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Quão suprema é a revisão judicial no jogo de políticas públicas?

SEÇÃO ESPECIAL

A CONJUNTURA DAS ESCOLHAS PÚBLICAS

Quão suprema é a revisão judicial no jogo de políticas públicas?

Jorge Vianna Monteiro

Professor de políticas públicas da Ebape/FGV e professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio. Endereço: PUC-Rio — Departamento de Economia — Rua Marquês de São Vicente, 225 — Gávea — CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br

"Um comentário estabelecido a partir do modelo analítico da 'public choice' — uma vertente da moderna economia política que considera as políticas públicas resultado da interação social, sob instituições de governo representativo."

Coordenação: Jorge Vianna Monteiro

1. Introdução

Desde meados de 2005 ocorrem seguidos episódios em que se contrapõem as preferências dos legisladores e de alguma instância do Judiciário (STF, STJ e TSE)1 1 As ocorrências cobrem um vasto espaço em que se desenrolam as escolhas públicas: acolhimento pelo STF de pleitos que limitam a capacidade investigativa de comissões legislativas em operação no Congresso Nacional, desde meados de 2005; divergências do STE e STF com virtualmente toda a classe política, relativamente a mudanças de regras que possam ter validade, já nas eleições de outubro próximo (a questão da verticalização do regime de alianças partidárias, por exemplo) e competição por liminares do STJ na regulação da agenda partidária (realização de indicações prévias de candidatos presidenciais pelo PMDB, em março de 2006). — o que traz implicações tanto para o sistema de separação de poderes, quanto para a estabilidade das regras constitucionais.

É paradoxal que, não obstante a Constituição já ter sido alvo de tantas e extensas emendas,2 2 Para referências a um proposto período de revisão constitucional iniciando em 2007, ver adiante. até aqui não se tenha definido um padrão de alterações que se possa tomar como linha de orientação da arquitetura da nova Constituição. Prossegue-se promovendo alterações localizadas, ainda que, no longo prazo, elas revelem sérios danos à separação de poderes (Monteiro, 2000, 2004).

Próximo ao final do primeiro quadrimestre de 2006, a conjuntura apenas reforça esse ponto de vista.

2. Transgressões às regras do jogo

Transcorrem no Congresso Nacional investigações rumorosas sobre potenciais delitos morais e eleitorais cometidos por uma variedade de políticos e partidos políticos; ao mesmo tempo, o notório pronunciamento feito em 16 de janeiro de 2006, pelo presidente da República, precipitou a campanha pela reeleição.3 3 Sobre incumbência, medidas provisórias e um dilema. Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 335, 30 jan. 2006. Em ambos os casos, têm sido freqüentes as argüições de transgressão à Constituição.

Essas ocorrências servem para ilustrar a conjectura de que o uso do processo eleitoral possa substituir a revisão judicial, na solução de problemas constitucionais quando, por algum motivo, o Judiciário se eximir de tomar uma decisão a esse respeito. Argumenta-se que a sociedade poderá usar o teste eleitoral para fazer valer restrições constitucionais que condicionam o processo político. Desse modo, os políticos associados às práticas transgressoras seriam então punidos pelo voto.

Tal perspectiva contrapõe o processo político ao recurso judicial, quando o Judiciário acolhe demandas quanto à impropriedade desses comportamentos delituosos, ou, visto por um outro ângulo, em que medida o processo eleitoral seria estritamente substituto de remédios judiciais, especialmente na solução de querelas constitucionais? (Siegel, 2005; Barkow, 2002).

Transferir a solução dessa classe de problemas para o plano político-eleitoral é, no entanto, uma sugestão impraticável.4 4 Esta questão é retomada adiante.

Digamos que seja apresentada ao Supremo Tribunal Federal a argüição de inconstitucionalidade quanto a um dado comportamento do presidente da República ou de um partido político, e que o STF, de algum modo, decline de apreciar a questão. Restaria, então, recorrer ao processo político, isto é, punir eleitoralmente o presidente ou os legisladores que patrocinem tais práticas (corrupção, uso da máquina governamental em campanha, por exemplo). Terá esse tema suficiente relevância na percepção do eleitor, a ponto de levar a que um número substancial de eleitores coordene uma estratégia de voto punitiva a esses políticos?

Provavelmente, não. Atos presumidamente inconstitucionais (mesmo aqueles que envolvam temas relevantes) poderão ter pouca — se de todo tiverem alguma — ressonância na campanha eleitoral.

O enquadramento analítico dessas questões pode ser feito a partir da consideração de que o processo político opera com características distintas do mecanismo judicial. Além do fato de que a estratégia punitiva por via eleitoral envolve dispêndio de esforço, tempo e recursos, significativamente superior ao que se incorreria no litígio judicial, essa diferenciação apresenta-se em vários atributos (Siegel, 2005).

• A via judicial é focalizada, isto é, a questão argüida junto ao STF é uma demanda específica por direitos, tanto quanto o processo judicial manifesta-se igualmente em torno dessa especificidade.

Como contraponto, decisões de governo representativo são processadas e finalizadas em diferentes misturas de temas de políticas públicas. É inviável singularizar um tema ou uma posição na agenda legislativa, especialmente porque a solução política é construída em torno da vontade da maioria que se obtém ao fim de intensa troca de votos. Um partido ou candidato em uma eleição não está relacionado a um tema singular, mas a todo um bloco de temas de política, especialmente em eleições na jurisdição nacional.5 5 Mesmo que a questão proposta seja única e apresentada diretamente ao eleitorado (plebiscito, referendo) — como visto recentemente no referendo de 23 out. 2005 —, o sentido da consulta popular pode ser percebido pelos eleitores de um modo bastante opaco (Monteiro, 2006, seção 3). Ainda que a coordenação da estratégia punitiva pelos eleitores chegasse a bom termo, "a natureza [dispersa] das eleições aponta para um outro problema que deve contaminar mesmo os esforços bem-sucedidos de acertar violações constitucionais através das urnas: o processo eleitoral é inescrutável" (Siegel, 2002:24), isto é, mesmo que a punição eleitoral venha a ocorrer e o político não se reeleja, a razão dessa derrota não é passível de ser relacionada a essa estratégia punitiva! Outra vez, não há como singularizar causas no resultado final observado do teste eleitoral — o que não invalida que a oposição e a mídia possam retirar do episódio a versão que mais lhes convenha.

• Diferentemente da revisão judicial, a decisão obtida no processo político (por deliberação dos legisladores ou diretamente do eleitorado) não vem acompanhada por um arrazoado de seus motivos.

Ou, dito de outro modo, o processo de decisão judicial deixa rastros bem claros, ao passo que o recurso ao processo político para resolver embates constitucionais é envolto em um emaranhado de fatores causais, complexo o suficiente para impedir que se decomponha essa causação em uma ordem de prioridades.

• O processo político não se sustenta na tomada de decisões segundo precedentes, como é habitual no Judiciário.

A cada votação no Congresso, as prioridades são peculiares e os termos em que ocorrem as trocas de votos são reconfigurados, mesmo porque a interpretação das votações pregressas — como argüido acima — não é única. No caso da manifestação do eleitorado, a questão do precedente perde igualmente o sentido pelo fato de que os resultados eleitorais federais ocorrem em intervalos muito longos, de quatro anos. Qualquer argüição de precedente nesse horizonte de tempo perde credibilidade, pela intervenção de novos fatores causais que distorcem a memória dos antigos eleitores e têm impactos diferenciados nos novos eleitores.

No Judiciário, o número fixo de participantes e a longa duração de seus mandatos são ingredientes que contornam esse tipo de dificuldade para estabelecer decisões, viabilizando a tomada de decisões por um sistema de precedentes.

• A escolha política é essencialmente uma escolha majoritária e, em decorrência disso, abre-se uma via de mão dupla: por um lado, a vontade da maioria dos eleitores pode sancionar a transgressão constitucional; por outro, a antecipação dessa preferência majoritária dos eleitores leva a que o político- candidato ajuste sua estratégia de campanha em sintonia com essa percepção.

Paradoxalmente, em meio à popularidade do candidato-incumbente, em razão de uma variedade de resultados de políticas públicas, a transgressão constitucional pode acabar recebendo baixa prioridade na formação dessa maioria de eleitores. Ou, em uma outra interpretação, a transgressão constitucional poderá vir a ser amplamente aceita pelo eleitorado!

3. Um dilema contramajoritário

A tabela que ilustra este artigo é um formato simples de mapear a estabilidade do conjunto mais essencial das regras nas escolhas públicas na economia brasileira.

Qualificando a incidência numérica dessas alterações (coluna A), a tabela apresenta na coluna B um indicador simples da amplitude com que essas alterações diretamente produzidas por emendas repercutem sobre todo o conjunto da Constituição.6 6 Duas outras vertentes de alteração constitucional não estão aí incluídas: a interpretação judicial das regras constitucionais e sua operacionalização no âmbito das políticas públicas formuladas pelos burocratas do Executivo. A respeito das várias vertentes em que se pode processar uma alteração constitucional, ver Monteiro (2004:95-99). Assim, estabeleceu-se que uma emenda de grande extensão é a que alcança, por acréscimo ou supressão, pelo menos três artigos do texto constitucional; nos demais casos, a emenda é classificada como de pequena extensão. Portanto, o índice exibido na coluna B representa a proporção de emendas de grande extensão no total das emendas promulgadas pelo Congresso, a cada período: por essa estimativa, o percentual total de grandes alterações ultrapassa 1/3.7 7 Esse indicador de amplitude da alteração de regras constitucionais reflete, em boa margem, o sentido mais intuitivo que comumente se atribuiria a uma emenda de grande amplitude: ela se traduz por um longo texto e, portanto, redefine numerosas regras, por adição ou supressão.

Vale ainda notar que, não obstante a Constituição já ter sido alvo de tantas e extensas emendas, no espaço de pouco menos de 20 anos, ainda não se definiu um padrão de alterações que se possa tomar como linha de orientação de uma nova arquitetura constitucional. Alterações ad hoc continuam sendo promovidas, ainda que, no longo prazo, elas revelem sérios danos ao sistema da separação de poderes (Monteiro, 2000, 2004). Evidências associadas às recorrentes tentativas de regular a emissão de medidas provisórias (em 2001 e 2006,8 8 A propósito da PEC nº 72/05, ver Monteiro (2006). por exemplo) bem como ao cabo-de-guerra9 9 Ver seção 2. ocorrido entre Legislativo e Judiciário exemplificam esse ponto de vista.

As lideranças políticas parecem não se dar conta da extrema relevância de se estabilizar as regras constitucionais, fazendo-as convergir para um equilíbrio (Ordeshook, 1992; Monteiro, 2004).

Uma explicação para isso parece ser o oportunismo eleitoral.

• Ainda que prevista no próprio texto constitucional de 1988, o esforço revisional de outubro de 1993-abril de 1994 frustrou-se, com a motivação do ano eleitoral de 1994 misturando-se a essa tarefa.

• Em 1997 deu-se uma alteração ad hoc do poder do Executivo: foi promulgada a EC nº 16 (4 de junho de 1997) atribuindo ao então presidente da República a possibilidade de obter mais um mandato eletivo sucessivo de quatro anos.10 10 E mais ainda: nas trocas legislativas necessárias a essa aprovação estendeu-se ao arranjo federativo o mesmo tratamento preferencial (Monteiro, 2000, cap. 2).

• Em fevereiro de 2006, o Congresso Nacional aprovou regra eleitoral que elimina a "verticalização" (TSE, 26 de fevereiro de 2002), ou seja, não são obrigatórias nos estados as coligações firmadas para a eleição presidencial, já com validade na eleição de outubro próximo.

Todavia, em 3 de março de 2006, o mesmo Tribunal Superior Eleitoral invalidou essa decisão dos legisladores.11 11 Eleições 2006: samba do crioulo doido nas alianças, O Globo, 4 mar. 2006, O País, p. 3 e 4. Não obstante, a decisão do TSE, o presidente do Congresso ameaça promulgar, enfim, a decisão já tomada pelo Congresso (Supremo deverá manter restrições para alianças, Folha de S. Paulo, 7 mar. 2006, Brasil, p. A6). De fato essa promulgação acabou por ocorrer em 8 de março de 2006. Ver adiante. Tal ocorrência ilustra um dilema contramajoritário (Monteiro, 2004:40-41, quadro 2): tendo deputados e senadores aprovado a extinção da regra de verticalização, um foro de membros que não detêm mandato eletivo (STE) decide contrariamente, sobrepondo-se à manifestação do processo político majoritário.12 12 O líder do PFL no Senado Federal argumenta: "por que o TSE vai contrariar a vontade do povo expressa por três quintos dos votos da Câmara?" Ver PFL ameaça contestar no STF decisão favorável do TSE à verticalização, Folha Online, 3 mar. 2006, 12h54.

• Mais recentemente (25 de fevereiro de 2006), foi criada na Câmara dos Deputados uma comissão especial para examinar a PEC nº 157/03, que propõe uma Assembléia de Revisão Constitucional, a ser instalada em 1º de fevereiro de 2007, com a participação da nova composição do Congresso Nacional que resultar das eleições de outubro de 2006.

Tal proposta não apenas viabiliza alterar o texto constitucional por maioria de metade mais um obtida em dois turnos de votação no Congresso (art. 2º da PEC nº 157/03), assim como regula que o período revisional possa se estender por até 12 meses (art. 3º ). Além disso, o substitutivo aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados estabelece um ciclo decenal de revisões constitucionais (art. 4º do parecer do relator da CCJ).

4. Um problema de superagência

A análise que toma a política econômica como resultante de um jogo (Monteiro, 2004, cap. 1) é muito adequada para um melhor entendimento do significado dos episódios acima mencionados. Tome-se, por exemplo, a decisão (22 de março de 2006) do STF quanto à inconstitucionalidade da EC nº 52 (8 de março de 2006). A EC nº 52 com validade imediata para a verticalização, ou a subseqüente declaração de sua inconstitucionalidade para aplicação já em outubro de 2006, reconfigura o processo político, assim como recondiciona o eventual resultado das eleições legislativas e presidencial; por conseqüência, também recondiciona o futuro fluxo de políticas públicas.

Cabe notar que essa discordância entre Congresso e Judiciário (STE e STF) tem o significado de:

• independentemente da variedade de confrontos, tal tipo de ocorrência reflete uma questão central no governo representativo: a quem compete suprir o conteúdo substantivo das regras constitucionais? (Friedman, 2005; Barkow, 2002; Ortiz, 1999).

Implícito nessa questão está o pressuposto de que os departamentos políticos, muito especialmente o Congresso, têm características institucionais que os tornam superiores ao Judiciário, na solução de certos problemas constitucionais (Barkow, 2002:240). Em verdade, a relação entre Executivo, Legislativo e Judiciário distribui-se entre os extremos da pura hierarquia e o arranjo coordenado. No primeiro caso, o topo da hierarquia é ocupado pelo STF: o STF tem o monopólio da interpretação constitucional. No arranjo coordenado, não obstante caber ao STF estabelecer os limites de sua própria jurisdição, o seu papel constitucional quanto a temas substantivos é transferido, na medida em que o tema seja identificado como uma questão política (Barkow, 2002:241-242).

• Em outra frente analítica, está em causa a própria representação política.

A figura chama a atenção para a precariedade de se pensar a arquitetura de governo representativo simplesmente em termos da relação direta entre eleitores e seus representantes na legislatura. Essa é uma relação em que os primeiros (patrocinadores) delegam, por via constitucional-eleitoral, poderes, funções e recursos aos políticos (agentes). Contudo, será suficiente pensar na intermediação política apenas nesses termos? Por certo que não. Complementarmente, há nessa intermediação o envolvimento de partidos políticos, empresas e grupos de interesses, entre outros.

A figura ilustra tal possibilidade, bem como uma decorrência surpreendente a que se pode chegar, com a intermediação de outros agentes se sobrepondo à delegação original entre eleitor e político. Daí o termo superagente atribuído a essas instâncias decisórias adicionais (Ortiz e Issacharoff, 1999). O acesso pelo voto (7) do patrocinador ao agente é complementado pela relação desse mesmo patrocinador com dois tipos de superagentes: uma empresa e um grupo de interesses.

Relativamente à empresa, o patrocinador (A) desempenha o papel de acionista (1); já por meio do superagente (D), esse mesmo consumidor-eleitor provê recursos (2) que viabilizem atividade de monitoramento e controle [(6) (9)] de externalidades negativas que possam estar associadas ao desempenho (8) dessa empresa. Por seu turno, a empresa (B) empreende lobbying e doa recursos (3) aos políticos (C), na expectativa de operar sob regulação econômica (5) menos restritiva, enquanto (D) recorre ao uso da mídia (4) para fazer chegar os seus pleitos ambientalistas aos políticos.

Nesse cenário institucional das escolhas públicas ocorre o seguinte paradoxo (Ortiz e Issacharoff, 1999):

• embora (1) e (2) possam trazer resultados (8) e (9) que atendam às preferências do eleitor individual (A), (5) e (6) podem ser adversos a essas preferências;

• os custos de superagência estão diretamente associados a que as demandas (3) e (4) possam se descolar daquelas encaminhadas por via eleitoral (7), não obstante as estratégias dos superagentes, (A) e (B), serem mais efetivas no condicionamento das escolhas dos políticos, comparativamente a que é processada pelo voto (7).

Em resumo, a intermediação política, como mostrada na figura, pode deprimir a legitimidade das escolhas de governo representativo.

5. Conclusão

A trajetória da economia brasileira desde meados dos anos 1990 mostra substancial deterioração da separação de poderes (Monteiro, 2000, 2004). Fatores determinantes dessa disfunção são a permissividade eleitoral trazida pela regra da reeleição presidencial (EC nº 16, de 4 de junho de 1997) e a igualmente permissiva capacidade de legislar atribuída ao Executivo (art. 62), sobretudo no regime que vigorou até a EC nº 32 (11 de setembro de 2001). Ambos esses fatores têm sido tratados por emendas ad hoc, isto é, fora de seu contexto mais amplo que é o comprometimento que trazem à distribuição dos poderes constitucionais. Mesmo agora, por meio de outra PEC em curso na Câmara (PEC nº 511, de 9 de fevereiro de 2006),13 13 Esse é texto da já mencionada PEC nº 72/05, como aprovado no Senado. volta-se à regulação do poder de legislar do Executivo, nesses termos localizados.

A análise aqui desenvolvida enquadra essa classe de problemas em uma dimensão do sistema constitucional da separação de poderes: em que bases a solução política equipara-se à solução judicial.

Por outro lado, perceba o leitor a ingenuidade implícita no raciocínio apresentado no parecer da CCJ quanto à PEC da revisão constitucional em 2007,14 14 Referido ao final da seção 3. no que diz respeito à adoção de um ciclo decenal de revisões das regras constitucionais: "O engessamento rigoroso da Lei Magna pode levar a indesejáveis rupturas constitucionais. E a revisão, a cada 10 anos, garantirá a sua manutenção" (§24 do parecer). Todavia, qualquer agente de decisão sofisticado incorporará em seu cálculo de estratégias no jogo de política econômica esse ciclo decenal, passando a lidar, portanto, com o valor presente da ocorrência do ciclo; com tal comportamento, a mencionada manutenção das regras do jogo será uma quimera.

Uma interpretação para a retomada dessa PEC (originalmente datada de 2003), justo em uma época eleitoral, é que define uma estratégia de seguro, ou seja, a oposição busca precaver-se quanto a um segundo mandato do governo Lula, condicionando-lhe, por antecipação, a margem de manobra que esse governo poderia ter, a partir de 2007; ao mesmo tempo, tal estratégia abre campo para empreender políticas constitucionais em sintonia com as preferências da oposição, no caso de uma vitória eleitoral do PSDB-PFL. Marginalmente, essa estratégia também passa a condicionar os termos das trocas legislativas que ocorrem no ano eleitoral de 2006.

Em qualquer das circunstâncias aqui abordadas, o fato de a mudança constitucional tornar-se moeda de troca nas negociações políticas encerra uma perversão quanto à durabilidade que se almeja para as regras do jogo, tanto quanto ao atendimento do interesse geral, que deve presidir revisões do texto constitucional. Sendo a política econômica o resultado final do jogo do qual participam políticos, burocratas, grupos de interesses privados, juízes e cidadãos-eleitores (Monteiro, 2004, cap. 1), a questão tratada nesta análise se retransmite ao grau de estabilidade da própria política econômica. Sem regras estáveis não se terá estratégias subsidiárias estáveis; e como as avaliações de ações empreendidas no jogo são contingentes a esses resultados finais, a política econômica deixa de evidenciar um grau mínimo de previsibilidade (Ordeshook, 1992:151).15 15 Incidentalmente, chamo a atenção do leitor para um importante sinal do descaso com que as regras constitucionais podem ser tratadas no Brasil. Na pressa de evitar maiores delongas na discussão do texto da EC nº 52, parcialmente aprovado há quatro anos, e fazer aprovar o novo regime de alianças partidárias com efeitos já para as eleições de outubro próximo, deixou-se ficar na EC nº 52 a redação original do art. 2º: "Esta emenda constitucional entra em vigor na data de sua publicação, aplicando-se às eleições que ocorrerão no ano de 2002". Por certo não se trata de um erro de revisão do documento, mas de uma estratégia que abreviaria a entrada em vigor da nova regra constitucional que, não obstante, esbarrava, como notado pelo STF, no art. 16 da Constituição: "A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência". O descaso é, portanto, duplo, pois apressa o que deveria ser decidido com serenidade e conflita com as regras constitucionais em vigor.

Referências bibliográficas

BARKOW, R. More supreme than court? The fall of the political question doctrine and the rise of judicial supremacy. Columbia Law Review, v. 102, n. 2, p. 237-336, Mar. 2002.

FRIEDMAN, B. The politics of judicial review. Texas Law Review, v. 84, n. 2, p. 257-337, Dec. 2005.

MONTEIRO, J. V. As regras do jogo: o Plano Real, 1997-2000. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

_____. Lições de economia constitucional brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

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ORDESHOOK, P. Constitutional stability. Constitutional Political Economy, v. 3, n. 2, p. 137-175, 1992.

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SIEGEL, J. Political questions and political remedies. Public Law Research, George Washington University Law School, July, 22, 2005. (Paper n. 92).

  • 1
    As ocorrências cobrem um vasto espaço em que se desenrolam as escolhas públicas: acolhimento pelo STF de pleitos que limitam a capacidade investigativa de comissões legislativas em operação no Congresso Nacional, desde meados de 2005; divergências do STE e STF com virtualmente toda a classe política, relativamente a mudanças de regras que possam ter validade, já nas eleições de outubro próximo (a questão da verticalização do regime de alianças partidárias, por exemplo) e competição por liminares do STJ na regulação da agenda partidária (realização de indicações prévias de candidatos presidenciais pelo PMDB, em março de 2006).
  • 2
    Para referências a um proposto período de revisão constitucional iniciando em 2007, ver adiante.
  • 3
    Sobre incumbência, medidas provisórias e um dilema.
    Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 335, 30 jan. 2006.
  • 4
    Esta questão é retomada adiante.
  • 5
    Mesmo que a questão proposta seja única e apresentada diretamente ao eleitorado (plebiscito, referendo) — como visto recentemente no referendo de 23 out. 2005 —, o sentido da consulta popular pode ser percebido pelos eleitores de um modo bastante opaco (Monteiro, 2006, seção 3). Ainda que a coordenação da estratégia punitiva pelos eleitores chegasse a bom termo, "a natureza [dispersa] das eleições aponta para um outro problema que deve contaminar mesmo os esforços bem-sucedidos de acertar violações constitucionais através das urnas: o processo eleitoral é inescrutável" (Siegel, 2002:24), isto é, mesmo que a punição eleitoral venha a ocorrer e o político não se reeleja, a razão dessa derrota não é passível de ser relacionada a essa estratégia punitiva! Outra vez, não há como singularizar causas no resultado final observado do teste eleitoral — o que não invalida que a oposição e a mídia possam retirar do episódio a versão que mais lhes convenha.
  • 6
    Duas outras vertentes de alteração constitucional não estão aí incluídas: a interpretação judicial das regras constitucionais e sua operacionalização no âmbito das políticas públicas formuladas pelos burocratas do Executivo. A respeito das várias vertentes em que se pode processar uma alteração constitucional, ver Monteiro (2004:95-99).
  • 7
    Esse indicador de amplitude da alteração de regras constitucionais reflete, em boa margem, o sentido mais intuitivo que comumente se atribuiria a uma emenda de grande amplitude: ela se traduz por um longo texto e, portanto, redefine numerosas regras, por adição ou supressão.
  • 8
    A propósito da PEC nº 72/05, ver Monteiro (2006).
  • 9
    Ver seção 2.
  • 10
    E mais ainda: nas trocas legislativas necessárias a essa aprovação estendeu-se ao arranjo federativo o mesmo tratamento preferencial (Monteiro, 2000, cap. 2).
  • 11
    Eleições 2006: samba do crioulo doido nas alianças,
    O Globo, 4 mar. 2006, O País, p. 3 e 4. Não obstante, a decisão do TSE, o presidente do Congresso ameaça promulgar, enfim, a decisão já tomada pelo Congresso (Supremo deverá manter restrições para alianças,
    Folha de S. Paulo, 7 mar. 2006, Brasil, p. A6). De fato essa promulgação acabou por ocorrer em 8 de março de 2006. Ver adiante.
  • 12
    O líder do PFL no Senado Federal argumenta: "por que o TSE vai contrariar a vontade do povo expressa por três quintos dos votos da Câmara?" Ver PFL ameaça contestar no STF decisão favorável do TSE à verticalização,
    Folha Online, 3 mar. 2006, 12h54.
  • 13
    Esse é texto da já mencionada PEC nº 72/05, como aprovado no Senado.
  • 14
    Referido ao final da seção 3.
  • 15
    Incidentalmente, chamo a atenção do leitor para um importante sinal do descaso com que as regras constitucionais podem ser tratadas no Brasil. Na pressa de evitar maiores delongas na discussão do texto da EC nº 52, parcialmente aprovado há quatro anos, e fazer aprovar o novo regime de alianças partidárias com efeitos já para as eleições de outubro próximo, deixou-se ficar na EC nº 52 a redação original do art. 2º: "Esta emenda constitucional entra em vigor na data de sua publicação, aplicando-se às eleições que ocorrerão no ano de 2002".
    Por certo não se trata de um erro de revisão do documento, mas de uma estratégia que abreviaria a entrada em vigor da nova regra constitucional que, não obstante, esbarrava, como notado pelo STF, no art. 16 da Constituição: "A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência". O descaso é, portanto, duplo, pois apressa o que deveria ser decidido com serenidade e conflita com as regras constitucionais em vigor.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2006
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