Resumos
No Brasil, identifica-se que a administração pública tem sido conduzida ao longo dos anos por diferentes modelos de gestão: patrimonialista, burocrático, gerencial e societal, cada qual representando determinado contexto histórico, econômico e político. Este artigo verifica quais elementos desses modelos predominam na administração pública brasileira, tendo como objeto de análise a Política Nacional de Habitação e suas etapas no ciclo político. Constata-se que essa política pública é marcada pelo hibridismo de elementos característicos dos modelos de administração pública burocrático, gerencial e com predominância do modelo societal, por se tornar evidente em todas as etapas do ciclo político analisadas.
modelos de administração pública brasileira; ciclo político; Política Nacional de Habitação
In Brazil, we identify that public administration has been conducted over the years by means of different management models: patrimonialist, bureaucratic, managerial, and societal, each one representing a certain historical, economic, and political context. This article verifies which elements of these models predominate in the Brazilian public administration, having as analytical object the National Housing Policy and its stages in the political cycle. We find out that this public policy is marked by the hybridity of elements characteristic of the bureaucratic, managerial, and predominantly societal models, as it becomes evident at all stages of the political cycle under analysis.
Brazilian public administration models; political cycle; National Housing Policy
En Brasil, se identifica que la administración pública ha sido conducida a lo largo de los años por diferentes modelos de gestión: patrimonialista, burocrático, de gestión y societal, cada uno representando determinado contexto histórico, económico y político. Este artículo verifica cuales elementos de estos modelos predominan en la administración pública brasileña, teniendo como objeto de análisis la Política Nacional de Vivienda y sus etapas en el ciclo político. Se constata que esa política pública es marcada por el hibridismo de elementos característicos de los modelos de administración pública burocrática, de gestión y con predominancia del modelo societal, por tornarse evidente en todas las etapas del ciclo político analizadas.
modelos de administración pública brasileña; ciclo político; Política Nacional de Vivienda
Predominância ou coexistência? Modelos de administração pública brasileira na Política Nacional de Habitação
¿Predominancia o coexistencia? Modelos de administración pública brasileña en la Política Nacional de Vivienda
Predominance or coexistence? Brazilian public administration models in the National Housing Policy
Alexandre Matos Drumond; Suely de Fátima Ramos Silveira; Edson Arlindo Silva
Universidade Federal de Viçosa
RESUMO
No Brasil, identifica-se que a administração pública tem sido conduzida ao longo dos anos por diferentes modelos de gestão: patrimonialista, burocrático, gerencial e societal, cada qual representando determinado contexto histórico, econômico e político. Este artigo verifica quais elementos desses modelos predominam na administração pública brasileira, tendo como objeto de análise a Política Nacional de Habitação e suas etapas no ciclo político. Constata-se que essa política pública é marcada pelo hibridismo de elementos característicos dos modelos de administração pública burocrático, gerencial e com predominância do modelo societal, por se tornar evidente em todas as etapas do ciclo político analisadas.
Palavras-chave: modelos de administração pública brasileira; ciclo político; Política Nacional de Habitação.
RESUMEN
En Brasil, se identifica que la administración pública ha sido conducida a lo largo de los años por diferentes modelos de gestión: patrimonialista, burocrático, de gestión y societal, cada uno representando determinado contexto histórico, económico y político. Este artículo verifica cuales elementos de estos modelos predominan en la administración pública brasileña, teniendo como objeto de análisis la Política Nacional de Vivienda y sus etapas en el ciclo político. Se constata que esa política pública es marcada por el hibridismo de elementos característicos de los modelos de administración pública burocrática, de gestión y con predominancia del modelo societal, por tornarse evidente en todas las etapas del ciclo político analizadas.
Palabras clave: modelos de administración pública brasileña; ciclo político; Política Nacional de Vivienda.
ABSTRACT
In Brazil, we identify that public administration has been conducted over the years by means of different management models: patrimonialist, bureaucratic, managerial, and societal, each one representing a certain historical, economic, and political context. This article verifies which elements of these models predominate in the Brazilian public administration, having as analytical object the National Housing Policy and its stages in the political cycle. We find out that this public policy is marked by the hybridity of elements characteristic of the bureaucratic, managerial, and predominantly societal models, as it becomes evident at all stages of the political cycle under analysis.
Keywords: Brazilian public administration models; political cycle; National Housing Policy.
1. Introdução
No Brasil identifica-se que a administração pública tem sido conduzida no transcorrer dos anos por modelos de gestão diferenciados. Cada um dos modelos implementados possui características marcantes na gestão pública, influenciando as formas do Estado conduzir a ação pública.
Os modelos presentes na administração pública brasileira são classificados como: patrimonialista (1500-1930), burocrático (1930-90), gerencialista (a partir de 1990) e societal (a partir da década de 2000). Esses modelos representam cada qual um determinado período histórico. No entanto, tem sido debatido que não houve uma sobreposição exclusiva dos novos modelos sobre os anteriores, de modo que características de todos os modelos podem ser encontradas na administração pública atual (Paes de Paula, 2005a; Costa, 2008; Secchi, 2009; Matias-Pereira, 2013).
As políticas públicas podem ser analisadas a partir das etapas que as compõem e podem ser compreendidas sob a perspectiva do ciclo político. Geralmente, as seguintes etapas, com pequenas alterações em alguns casos, são identificadas na literatura como componentes do ciclo político: identificação do problema, definição de agenda, elaboração da política, implementação e monitoramento e avaliação (Secchi, 2010; Jann e Wegrich, 2007; Souza, 2006; Frey, 2000; Theodoulou, 1995). No ciclo político cada uma de suas etapas possui forma e objetivos próprios, sendo constituídas pela relação entre diferentes atores sociais.
Deste modo busca-se verificar se há a predominância ou coexistência de elementos característicos de cada modelo de administração pública brasileira em cada uma das etapas do ciclo político. Para realizar esta análise optou-se pela atual Política Nacional de Habitação (PNH), criada em 2004, a qual apresenta uma diversidade de atores, portanto, uma amplitude de interesses presentes nas etapas do ciclo político, servindo como adequado objeto de investigação.
Especificamente, pretende-se identificar, nas etapas de percepção do problema, definição de agenda, elaboração de política e implementação, os principais agentes e suas atribuições, bem como, a partir da relação agente/ação, identificar elementos característicos dos modelos de administração pública brasileira.
Esta análise permite verificar quais avanços ocorreram na gestão desta política pública e como a presença de elementos característicos de cada modelo de administração pública influencia no desenvolvimento da Política Nacional de Habitação.
2. Referencial teórico
Para sustentação do escopo deste artigo e das análises realizadas buscou-se apresentar nessa seção os modelos de administração pública brasileira, a conceituação de políticas públicas e o ciclo político como um modelo de análise de políticas públicas.
2.1 Modelos da administração pública brasileira
2.1.1 Modelo patrimonialista
O primeiro modelo de administração pública no Brasil perdurou durante todo o período colonial, imperial e a Primeira República, abrangendo os anos de 1500 até 1930. Pela forma como foram conduzidas as relações entre a metrópole Portugal e a colônia Brasil atribuiu-se a este período o nome Patrimonialismo como modelo de gestão. Apesar da proclamação da independência do país em 1822, percebe-se a manutenção deste modelo de administração pública no Brasil Império, como também na República Velha (1889-1930).
As relações patrimonialistas são demarcadas pela dominação; porém, ela é sustentada pela aceitação dos súditos diante os soberanos. Nessa dominação não se expressa o conflito ou desejo de transformação, pelo contrário, a dependência é aceita como natural. Apesar de a origem deste conceito remontar às relações familiares das sociedades patriarcais, tais práticas adentraram na gestão pública. Na sociologia weberiana o patrimonialismo caracteriza-se como a apropriação de recursos estatais por funcionários públicos, grupos políticos e segmentos privados (Sorj, 2000 apud Oliveira, Oliveira e Santos, 2011).
No período imperial a estrutura estatal alterou-se no Brasil com a instituição de quatro poderes políticos: Executivo, Legislativo, Judicial e Moderador. No entanto, ressalva-se que o Poder Moderador exercido pelo imperador interferia arbitrariamente nos demais, sendo identificadas ações de aliciamento, manipulação e coação por parte das organizações partidárias sobre os eleitores, no sentido de manutenção do patrimonialismo.
Após a proclamação da República, foi aprovada a primeira Constituição da República Federativa do Brasil, em 1891. Mesmo com avanços em termos legislativos, percebe-se que a prática patrimonialista permaneceu predominante no período conhecido como a política dos governadores, marcada pelo sistema do coronelismo, em que os grandes fazendeiros do interior incorporam o papel de soberano e se apropriam do poder político e econômico (Iglésias, 1993).
Algumas derivações do patrimonialismo podem ser encontradas, como: o patrimonialismo privado em que grupos espoliam o Estado por diferentes meios (contratos superfaturados, empréstimos subsidiados); o patrimonialismo jurídico e fiscal, no qual estes sistemas são manipulados para assegurar a impunidade diante da lei; o patrimonialismo negativo, em que o poder político é empregado para prejudicar ou discriminar grupos sociais (Sorj, 2000 apud Oliveira, Oliveira e Santos, 2011).
Observa-se por estas características do modelo patrimonialista que o aparelho estatal está constituído pelas pessoas que nele transitam, não há a distinção entre o que é público e o que é privado, não há a institucionalização de práticas adequadas, toda a ação estatal é uma ação do particular que a coordena.
2.1.2 Modelo burocrático
O modelo burocrático de administração pública no Brasil remonta aos anos de 1930 até a década de 1990. O marco inicial para institucionalização deste modelo é o governo de Getúlio Vargas, com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) em 1936, o qual representou a primeira reforma administrativa do Estado brasileiro.
No período de governo de Getúlio Vargas (1930-45) ressalta-se que havia se instaurado a crise de 1929 e que no campo da teoria econômica estava em discussão a teoria de Keynes. Neste sentido, fortalece-se a ideia de Estado interventor em contraposição aos ideais liberais, assim como a ideia do estado de bem-estar social (Aragão, 1997).
A escolha pelo modelo burocrático visava romper com as práticas de corrupção, nepotismo e arbitrariedade das ações públicas, características do modelo patrimonialista até então vigente e contrário aos interesses de uma nova classe brasileira que ganhava corpo, a classe urbana.
A institucionalização deste modelo está fundamentada nos estudos de Max Weber (1864-1920), o qual considera que as organizações podem tornar-se mais eficientes a partir da implementação de normas bem definidas. O raciocínio burocrático reside na ideia de ordenamento e dominação legitimada pela existência de normas (Weber, 1999).
Este modelo apresenta alguns elementos essenciais, dentre eles: a estrutura de autoridade impessoal; hierarquia de cargos altamente especificada; descrição de cargos com claras esferas de competência e atribuições; seleção com base em qualificação técnica; remuneração fixa compatível com a hierarquia de cargos; o cargo como única ocupação do burocrata; promoção baseada em sistema de mérito; separação entre os bens públicos e privados do burocrata; e controle sistemático do cargo.
No governo de Getúlio Vargas o Estado decide por implantar os paradigmas burocráticos no setor, com o pretexto de modernização da máquina pública. Durante o Governo Militar foram instaurados cinco princípios estruturais da administração pública: planejamento, coordenação, descentralização, delegação de competências e controle. Depois de retomada a democracia, em 1988 é aprovada a nova Constituição Federal, a qual apresenta princípios da administração burocrática, como a obrigatoriedade de concursos públicos para contratação, procedimentos de compras públicas e regime jurídico único dos servidores públicos (Bresser-Pereira, 1996). Promove-se a distinção entre o público e o privado, assim como se implementa o sistema de meritocracia para as ascensões em funções públicas.
Entretanto, verifica-se que a eficiência almejada por este modelo não foi alcançada, assim como foram constatadas algumas disfunções burocráticas, como: morosidade do serviço público e centralização no governo da União. De acordo com Matias-Pereira (2008), o Brasil não consolidou um modelo de administração pública burocrática, constituindo um padrão híbrido de burocracia patrimonial.
2.1.3 Modelo gerencial
As bases deste modelo consistem no pensamento neoliberal, pelo qual a amplitude e o papel do Estado diante da economia devem ser repensados. Segundo as propostas de Adam Smith (1723-90), o Estado deveria se ocupar exclusivamente da manutenção da segurança interna e externa, a garantia do cumprimento dos contratos e a prestação de serviços de utilidade pública (Paes de Paula, 2005b).
A reforma do Estado para a perspectiva gerencial pode ser considerada uma mudança nas funções do Estado, o qual se abstém de ser o provedor de bens e serviços para assumir uma função de gestor e regulador do desenvolvimento. Como consequência da adoção do modelo gerencial, deve-se estabelecer novas formas de relação entre Estado, sociedade civil e mercado, por meio de processos inovadores de planejamento e implementação de políticas públicas, as quais pressupõem maior flexibilização do Estado, descentralização e consolidação de redes com a participação de diversos atores (Matias-Pereira, 2013).
Outro aspecto deste modelo é a inspiração em ferramentas de gestão próprias da administração privada, inserida no movimento conhecido como New Public Management (no Brasil, adotou-se o nome de modelo gerencial). Por esse modelo busca-se atingir critérios de eficiência na prestação do serviço público, o que por definição está relacionado ao atendimento dos objetivos finais com o menor custo possível. Estas duas bases fundamentais do modelo sugerem que este deve adotar algumas ações, como: a privatização, a terceirização e o ajuste fiscal.
O modelo de administração pública gerencial foi introduzido no Brasil na década de 1990. No governo de Fernando Collor de Mello (1990-91) decidiu-se pela proposta neoliberal de enfraquecimento do Estado, cargos da administração pública foram extintos, ocorreu a demissão de milhares de funcionários públicos e buscou-se ampliar o controle sobre as empresas estatais por meio de auditorias e fiscalização interna (Matias-Pereira, 2009; Reyes-Ricon et al., 2010).
No governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, tem-se a criação do Ministério de Administração e Reforma do Estado (Mare), o qual foi responsável por conduzir transformações no Estado brasileiro. O governo federal optou pela desestatização e a orientação para resultados. Assim como as privatizações, ocorreram também os processos de terceirização, a partir da diferenciação entre atividades exclusivas e atividades não exclusivas do Estado.
O modelo gerencial pauta-se pela elaboração de estratégias, apresentando como marcas deste período os planos diretores e os planos plurianuais, resultando no descolamento das funções de planejar e implementar (Matias-Pereira, 2009).
O modelo de administração pública gerencial apresentou vantagens para a gestão do Estado brasileiro; o aprimoramento dos órgãos governamentais subsidiados por ferramentas gerenciais e a constante busca pela eficiência permitiram avanços na gestão econômico-financeira (Paes de Paula, 2005b). Por outro lado, algumas desvantagens na concepção do modelo também são encontradas, como a baixa qualidade dos serviços em função do contingenciamento de gastos sociais e por centralizar o processo decisório, que não estimula o desenvolvimento de instituições abertas à participação social.
Alguns autores indicam que pode haver coexistência de elementos característicos dos diversos modelos de administração pública. Conforme Matias-Pereira (2013), apesar da reforma gerencial no Brasil, nas últimas duas décadas percebe-se o retorno de características do patrimonialismo na administração pública, evidenciadas pelos principais casos de corrupção no país, além da influência burocrática, cujos excessos contribuem para ineficiência na performance do Estado.
2.1.4 Modelo societal
O modelo de gestão societal ainda não se apresenta implementado no Brasil, é um conceito em construção que estabelece diálogo com os conceitos de governança pública, societalismo e transparência pública, mas se percebe um grande movimento para a discussão sobre suas possibilidades de concretização. Identifica-se que a proposta do modelo societal se encontra como proposta de soluções às disfunções presentes no modelo gerencial, o qual, em princípio, buscava a participação social, porém não conseguiu efetivá-la.
Indícios de implementação das bases do modelo societal encontram-se no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2002-10), o qual possui histórico de movimento popular e optou por retomar os investimentos nas áreas sociais como uma política de Estado (Paes de Paula, 2005a).
A participação social nas políticas do Estado pode ser incorporada a partir das Organizações Não Governamentais (ONGs), grupos de debate políticos regionais, associações populares e demais interessados. Entre os canais de participação social nas políticas públicas têm-se: os conselhos gestores, em todas as instâncias da federação, que deliberam ou são consultados sobre as temáticas que representam saúde, educação, habitação, assistência social (Paes de Paula, 2005b).
A condução de orçamentos participativos pelas prefeituras municipais, por meio dos quais a população participante delibera sobre a utilização de parte do orçamento público para os fins que escolher, é uma forma de participação social. Com o orçamento participativo amplia-se a capacidade de identificação das demandas sociais como também se favorece o controle social sobre o orçamento público.
As conferências municipais também representam os canais de participação social no Estado. As conferências são desenvolvidas por uma metodologia de reuniões por instância da federação e culminam nas conferências nacionais, das quais são elaboradas políticas públicas sociais.
Conforme Paes de Paula (2005b) a implementação de um novo projeto-político (societal) procura ampliar a participação dos atores sociais na definição de políticas públicas. Esse projeto permite alcançar a descentralização característica de outros modelos de administração na formulação das ações públicas.
Ao participar dos espaços públicos de participação política, o cidadão pode exprimir sua percepção da questão em debate e de forma ativa deixa de ocupar um papel de subalterno ou usuário, pois terá participado efetivamente da deliberação que pelo consenso for construída. Entre as vantagens do modelo societal destaca-se o potencial da solução produzida, uma vez que, pela participação popular, o lastro cultural dos participantes pode promover melhores soluções às questões em debate.
De acordo com Reyes-Ricon e colaboradores (2010), o Estado brasileiro apresentou em sua trajetória alternância na abrangência e nas funções do Estado diante do mercado, por um lado, com iniciativas de maior flexibilidade para atrair capital e investimentos externos, por outro lado, com a consolidação de sistemas universais de acesso a direitos sociais como saúde, educação e direitos trabalhistas. Ou seja, tal dinamismo pode ser associado a elementos híbridos entre o modelo gerencial e societal.
2.2 Políticas públicas
A sociedade é composta por pessoas que possuem diferentes valores, ideias, aspirações e que ao longo de sua existência desempenham também diferentes papéis. A política apresenta-se como meio de os diversos interesses presentes na sociedade serem negociados. Para Rua (1997), a política é o meio pelo qual se devem manter os conflitos em níveis aceitáveis, para sobrevivência e progresso da sociedade.
Com a evolução do processo democrático, a sociedade brasileira começou a exigir seus direitos, o que na visão de Matias-Pereira (2007) contribui para o país superar características históricas do autoritarismo e elitismo em um movimento de fortalecimento do sistema institucional mais democrático, com justiça social, que promova a diminuição das desigualdades e injustiças na distribuição de riqueza, renda e poder.
As políticas públicas são, portanto, criadas pelo Estado em resposta às necessidades da sociedade e de si próprio (Cunha e Cunha, 2002). Para Souza (2006) a política pública é tida como o campo do conhecimento que visa tanto colocar o governo em ação como analisar esta ação e sendo necessário propor mudanças ao curso desta ação.
Ao compreender a política pública enquanto área de conhecimento torna-se relevante apresentar a origem da teorização sobre este campo. Conforme Souza (2006), esta teorização se deve às contribuições de Lasswell, Simon, Lindblom e Easton, que ao longo dos anos desenvolveram conceitos importantes, conforme apresentados no quadro 1.
Este resgate conceitual contribui para o entendimento do surgimento dos modelos de ciclo político (policy cycle). De acordo com Smith e Larimer (2009), a tentativa inicial de modelar o processo político é proposta por Harold Laswell e Charles Jones na década de 1970.
2.3 Ciclo político
O ciclo político compreende a política pública a partir de vários estágios, os quais constituem um processo dinâmico de aprendizado (Souza, 2006). A distinção entre esses estágios é importante uma vez que os atores, os processos e as ênfases são diferentes; assim torna-se possível a compreensão dessas relações em cada um dos estágios (Saravia, 2006).
Conforme Jann e Wegrich (2007), a tipologia de estágios apresenta um forte apelo como modelo normativo e racional, o que contribuiu para o sucesso e a longevidade de sua utilização. Neste mesmo sentido, Secchi (2010) argumenta que o ciclo de políticas públicas permite a organização da vida de uma política, a partir do estabelecimento de fases sequenciais e interdependentes.
Para a análise proposta neste artigo é adotado o ciclo político a partir das fases elaboradas por Frey (2000), que apresentam certo grau de similaridade com Theodoulou (1995), quais sejam: percepção e definição de problemas, agenda-setting (definição de agenda), elaboração de programas e decisão, implementação de políticas e avaliação de políticas, com a eventual correção das ações.
Além da análise do ciclo político, pode-se analisar e compreender cada uma das fases que o compõem, assim como suas inter-relações.
A fase de percepção e definição de problemas caracteriza-se pela identificação, entre os inúmeros problemas, daqueles mais apropriados para tratamento por meio de políticas públicas; tais problemas podem ser identificados por grupos sociais isolados, por grupos políticos ou pela administração pública (Frey, 2000).
Os problemas existentes, mesmo que reconhecidos, podem receber tratamento diferenciado por parte do Estado, assim um problema público pode aparecer subitamente, como as catástrofes naturais; aos poucos pode ganhar relevância, como o congestionamento das cidades; ou ainda podem por muito tempo não receber a devida atenção, como a favelização das periferias das grandes cidades (Secchi, 2010).
No entanto, para que os problemas identificados sejam tratados pelos governos é preciso que incorporem a agenda de governo, o que consiste em uma nova etapa do ciclo político: definição de agenda. A agenda governamental representa os problemas e temas que são percebidos como prioridades e que são escolhidos como foco de ação dos agentes governamentais (Theodoulou, 1995).
Conforme Rua (1997), a inclusão de determinado problema na agenda governamental decorre do atendimento de pelo menos um dos seguintes fatores: a) mobilização política de grandes grupos, pequenos grupos dotados de poder ou por ação de indivíduos estrategicamente posicionados; b) constitui-se uma calamidade ou catástrofe, em que o ônus de não resolver o problema é maior do que o ônus de resolvê-lo; c) seja uma oportunidade, e por meio de sua solução obtenham-se vantagens.
À medida que o governo define sua agenda de questões prioritárias e pretende de fato intervir, inicia-se a fase de elaboração de política, para cada um dos problemas prioritários ou de modo a abranger mais de um deles.
A fase de elaboração de políticas públicas tem como propósito formular políticas, programas e projetos considerados consistentes e capazes de promover soluções aos temas que compõem a agenda de governo. Segundo Jann e Wegrich (2007), durante a formulação de políticas públicas, problemas, propostas e demandas são transformados em programas de governo.
Após ter estas políticas elaboradas, é preciso colocá-las em ação, o que representa uma nova etapa do ciclo político: a implementação. Essa fase abrange todo o conjunto de decisões e ações que devem ser realizadas pelos agentes ou instituições governamentais e por demais grupos ou indivíduos de natureza privada para que a política formulada e seus objetivos sejam alcançados, ou seja, trata-se das ações para que determinada política saia do papel (Rua, 1997).
Conforme Jann e Wegrich (2007) recordam, a execução nem sempre é de exclusiva responsabilidade do Estado, de modo que se torna necessária a utilização de mecanismos de avaliação. Tais mecanismos são úteis para o Estado controlar, monitorar e avaliar as demais instituições que desempenham determinados papéis na implementação. Por outro lado, os resultados das avaliações são informações que permitem fortalecer o controle social sobre as ações do Estado.
A fase de avaliação é importante, pois permite a compreensão do Estado em ação e a geração de informações como subsídio à tomada de decisão. A partir dos resultados da avaliação pode-se propor modificações ao programa, a suspensão ou até mesmo a exclusão do programa, encerrando-se um ciclo político. Rua (1997) ressalta que o controle ou avaliação não deve ser realizado somente ao final da implementação, mas pode estar presente durante todas as fases do ciclo político.
3. Metodologia
Nesta seção, apresentam-se as definições e os procedimentos metodológicos que conduziram a elaboração deste artigo. O foco deste artigo é a análise da Política Nacional de Habitação (PNH), desenvolvida desde 2004, a partir de uma abordagem do ciclo político; trata-se, especificamente, das etapas de percepção de problema, definição de agenda, elaboração de política e implementação.
Para Yin (2002), o estudo de caso consiste em uma investigação que analisa determinado fenômeno a partir de seu contexto real de ocorrência, principalmente quando os limites do fenômeno e seu contexto são tênues.
A abordagem pela qual foi conduzida a análise é predominantemente de cunho qualitativo a partir dos meios documentais e bibliográficos. Como unidades de análise foram utilizadas as publicações do Ministério das Cidades (MCidades), sobre a Política Nacional de Habitação, o Plano Nacional de Habitação, bem como informações contidas no sítio eletrônico do mesmo ministério.
Destaca-se que para o desenvolvimento deste artigo considerou-se analisar a Política Nacional de Habitação implementada a partir de 2004. Mediante consultas ao sítio eletrônico do Ministério das Cidades, mais especificamente da Secretaria Nacional de Habitação, foi possível identificar 13 programas federais para a habitação de interesse social.1
Para cada programa identificado foram levantadas informações como: a fonte de recursos que utilizam e os procedimentos necessários para acessá-los; qual é o órgão operador; que instituição pode atuar como proponente; características do grupo de beneficiários finais; quais são as contrapartidas exigidas dos proponentes; quais as modalidades de ação; que ações competem ao poder público local; e o período de existência do programa.
Para fins deste artigo serão mais exploradas quatro destas categorias (proponentes, modalidades, beneficiários finais e período de execução) por se relacionarem mais diretamente com os objetivos propostos. Como complemento à pesquisa utilizaram-se dados quantitativos, da Pesquisa de Informações Básicas dos Municípios, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nesta análise específica utilizou-se a Análise Exploratória de Dados (AED), que, para Triola (2005), é o processo de uso de ferramentas estatísticas (tais como gráficos, medidas de centro e medidas de variação, outliers), para investigar um conjunto de dados com o objetivo de compreender suas características importantes.
4. Resultados e discussão
Esta seção é destinada à apresentação dos resultados do artigo e foi estruturada de modo a permitir a análise de características dos modelos de administração pública brasileira na Política Nacional de Habitação (PNH) em cada etapa do ciclo político.
Apresenta-se primeiramente a etapa da percepção do problema, tratando-se em seguida da definição da agenda da PNH, da elaboração da política e a implementação.
4.1 Percepção de problemas
A demanda habitacional é uma questão antiga no Brasil, uma vez que, na década de 1940, em decorrência do processo crescente de urbanização nas grandes cidades, foi identificada uma crise da habitação. Uma das principais iniciativas do governo federal para o direcionamento de recursos para a questão habitacional foi realizada a partir de 1964, principalmente com o Banco Nacional de Habitação (BNH), o qual foi extinto em 1986 e a partir de então se percebe uma descontinuidade dessa política (Bonduki, 2004).
Neste contexto, iniciou-se uma mobilização entre a União dos Movimentos de Moradia da Grande São Paulo e Interior (UMM-SP), Movimento Nacional de Lutas por Moradia (MNLM), a União Nacional por Moradia Popular (UNMP), pastorais da moradia e segmentos políticos, particularmente vinculados ao Partido dos Trabalhadores (Paz, 1996).
Esta mobilização dos movimentos sociais pela moradia popular formulou uma proposta de criação do Fundo Nacional de Moradia Popular, o qual se tornou o primeiro projeto de lei de iniciativa popular enviado ao Congresso Nacional, após a Constituição de 1988 (Paz, 1996).
A mobilização popular em torno da questão habitacional, com a coleta de assinaturas para o Projeto de Lei nº 2.710/1992, representa a relevância desta demanda social. Apesar de este problema ter sido identificado em termos de sua grandeza, percebe-se que não incorporou a agenda do governo até o ano de 2005, quando o referido projeto de lei foi aprovado e transformado na Lei Ordinária nº 11.124/2005.
Outra confirmação da importância da questão habitacional está presente nos estudos do déficit habitacional no Brasil. A partir desse estudo estimou-se para o ano 2000 que 7,2 milhões de domicílios no Brasil se encontravam em situação de déficit habitacional, o que representava 16,1% dos domicílios totais do país. Conforme os dados da Fundação João Pinheiro (FJP), ao levar em consideração os domicílios que se encontram em situação inadequada de moradia, este número é ainda superior, atingindo 22,4 milhões de domicílios (FJP, 2005).
O referido estudo constatou que o déficit habitacional é característico da parcela da população que possui menores rendimentos, uma vez que 82,1% do déficit habitacional é composto por famílias cujo rendimento é inferior a três salários mínimos (FJP, 2005).
No processo de identificação do problema habitacional no Brasil é possível destacar a importância dos movimentos sociais e a mobilização realizada em prol do Projeto de Lei nº 2.710/1992. Esta característica de participação popular na elucidação da demanda e principalmente na elaboração de uma proposta para sua resolução vai de encontro aos pressupostos do modelo de administração pública societal.
As publicações dos estudos sobre o déficit habitacional no Brasil reforçam os argumentos apresentados pelos movimentos sociais, a partir de aspectos conceituais e procedimentos técnicos e estatísticos de quantificação de domicílios em situação de déficit habitacional, sua composição por faixa de renda familiar e distribuição pelos estados brasileiros. Este aspecto técnico e de quantificação da demanda habitacional aproxima-se de características do modelo de administração pública gerencial.
4.2 Definição de agenda
Os problemas do déficit habitacional e a inadequação de domicílios começam a ser incorporados como uma questão de destaque na agenda do governo federal a partir de 2003. Destaca-se que esse período é o início da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, governo que foi eleito com uma proposta de investimentos na área social e possui sua base formada a partir da participação em movimentos sociais (Paes de Paula, 2005a).
A primeira medida que permite afirmar que a demanda habitacional pertence à agenda do governo consiste na criação do Ministério das Cidades (MCidades), o qual é composto por quatro secretarias nacionais: Habitação, Saneamento, Programas Urbanos, e Transporte e Mobilidade. Essa estrutura de ministério permite um orçamento próprio para reorganização de uma política urbana e, por consequência, uma política habitacional.
Nesse mesmo ano de 2003 inicia-se a Conferência das Cidades a partir do tema "Construindo uma política democrática e integrada para as cidades". Foram realizados 1.430 conferências municipais, 150 encontros regionais, além das 26 conferências estaduais e a do Distrito Federal (Ministério das Cidades, 2012).
A partir da Conferência Nacional das Cidades foi instituído o Conselho Nacional das Cidades (ConCidades), em 2004, com o propósito de constituir um instrumento de gestão democrática. Esse conselho é composto por 86 representantes titulares e 86 suplentes, de modo que a sociedade civil é representada por 49 membros titulares e outros 37 membros titulares representam o poder público (Ministério das Cidades, 2012).
A própria institucionalização do Ministério das Cidades e da Secretaria Nacional de Habitação remete a características do modelo de administração pública burocrática, com a formação de uma estrutura organizacional e a constituição de corpo técnico especializado.
Por outro lado, ao mostrar a necessidade de apreciação das ações deste Ministério pelo Conselho das Cidades, que é um órgão de participação popular, com pressupostos de gestão democrática, de caráter deliberativo e consultivo, indica a predominância do modelo de administração societal.
A presença deste modelo torna-se mais evidente pela utilização do sistema de conferências municipais, regionais, estaduais e nacional como instrumento de diagnóstico e elaboração de propostas para a política urbana e habitacional.
4.3 Elaboração de política
No ano de 2004 iniciou-se o processo de elaboração da Política Nacional de Habitação (PNH). Para tanto, realizaram-se vários seminários sob a coordenação do Conselho Nacional das Cidades, em especial o seu Comitê Técnico de Habitação, e contou com a participação de vários atores sociais (Ministério das Cidades, 2004).
Esta política habitacional visa promover as condições necessárias para o acesso à moradia digna a toda a população brasileira, principalmente a de baixa renda, contribuindo para a inclusão social. Para tornar possível o alcance deste objetivo foram elaborados quatro instrumentos fundamentais para a implementação da PNH, sendo eles: Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), o Desenvolvimento Institucional, o Sistema de Informação, Monitoramento e Avaliação da Habitação e o Plano Nacional de Habitação (Ministério das Cidades, 2004).
O Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) foi criado por meio da Lei nº 11.124, de 2005, resultado do Projeto de Lei nº 2.710/1992, a qual também cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e o Conselho Gestor do FNHIS (Brasil, 2005).
Este sistema SNHIS regulamenta o modus operandi da Política Nacional de Habitação de Interesse Social e objetiva proporcionar o acesso da população de menor renda à terra urbanizada e habitação digna e sustentável; implementar políticas e programas de financiamento e subsídios destinados à população de menor renda; articular, compatibilizar e apoiar a atuação de órgãos de interesse social que desempenham funções no setor de habitação, tendo por função centralizar todos os programas e projetos destinados à habitação de interesse social.
O Ministério das Cidades apresenta-se como órgão central do SNHIS, que é também incorporado pelo Conselho Gestor do FNHIS, pela Caixa Econômica Federal como agente operador, o Conselho das Cidades, conselhos estaduais e municipais cujas especificidades sejam relativas a questões urbanas e habitacionais e entidades, órgãos e instituições da administração pública direta e indireta e da sociedade civil que atuam na área de habitação.
O instrumento Desenvolvimento Institucional consiste no Plano de Capacitação, sendo considerado instrumento essencial da PNH para viabilizar sua implementação de forma descentralizada, o que requer a estruturação institucional de estados, Distrito Federal e municípios, bem como a capacitação de agentes públicos, sociais, técnicos e privados.
A ideia do Sistema de Informação, Monitoramento e Avaliação da Habitação (Simahab) é constituir-se em uma ferramenta estratégica para garantir um processo permanente de revisão e redirecionamento da política habitacional e de seus programas.
O Plano Nacional de Habitação (PlanHab) consiste no planejamento de longo prazo da Secretaria Nacional de Habitação para almejar a universalização do acesso à habitação digna. Esse plano foi elaborado em 2009, com a perspectiva de trabalho para 15 anos, ou seja, até o ano de 2023.
O processo de elaboração do PlanHab contou com a participação de dois elementos relevantes, os quais consistem na participação social e na elaboração de um consórcio para formação da equipe executora (Ministério das Cidades, 2009).
A Secretaria Nacional de Habitação contratou um consórcio entre o Instituto Via Pública, o Laboratório de Habitação e Assentamentos Urbanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, juntamente com a Fundação para a Pesquisa em Arquitetura e Ambiente e a empresa de consultoria Logos Engenharia, para compor a equipe de elaboração do PlanHab.
A metodologia de elaboração desse plano incorporou a participação de entidades e movimentos sociais em prol da moradia, empresas da construção civil e representantes dos entes federativos em diversos seminários que ocorreram em todas as regiões do Brasil. Todo este processo foi conduzido com a participação do Grupo de Acompanhamento do PlanHab composto por membros do Conselho das Cidades.
A etapa de elaboração da Política Nacional de Habitação apresenta um hibridismo de características dos modelos de administração pública brasileira. Verifica-se a necessidade de institucionalização de todo um aparato legal de sustentação da PNH, sendo o mais marcante a Lei nº 11.124/2005, que cria o FNHIS, seu respectivo conselho gestor e estabelece outros fundos de financiamento para a política habitacional. Percebe-se esta característica como uma herança do modelo burocrático, em seu aspecto de estrutura e normalização.
Tanto para a elaboração da PNH como do PlanHab mantém-se presente a participação social por meio do Conselho das Cidades, Conselho do FNHIS, Grupo de Acompanhamento do PlanHab e os seminários regionais, os quais são instrumentos característicos de um modelo societal.
Alguns aspectos do modelo gerencial, até então não predominantes na PNH, apresentam-se com relevância, estando mais visíveis no processo de elaboração do PlanHab. A própria concepção de planejamento, definição de estratégias, utilização de modelos de previsão de demanda futura por moradia, métodos estatísticos para diagnóstico da questão habitacional e para as alternativas de solução são elementos correntemente adotados por instituições privadas, sob uma lógica de mensuração de eficácia e eficiência.
Tais elementos encontram-se expressos em todo o documento de publicação do Plano Nacional de Habitação e podem tanto ser decorrentes do contrato firmado com o consórcio entre as instituições de pesquisa, o instituto e a empresa de consultoria, como da própria concepção de planejamento em que a racionalidade predominante é de natureza gerencial.
4.4 Implementação
A análise da etapa de implementação da PNH seguiu por duas vias: uma em decorrência de um aspecto normativo-legal que trata das aplicações dos recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS); outra se refere às características dos programas habitacionais implementados.
A Lei nº 11.124/2005 determina que a aplicação dos recursos do FNHIS ocorra de forma descentralizada e que para tanto os estados, Distrito Federal e municípios deverão constituir fundo, conselho e planos locais de habitação próprios para receberem os recursos do referido fundo. Tendo em vista esta exigência normativo-legal, procedeu-se à verificação da constituição dos referidos órgãos e instrumentos no nível municipal.
A base de dados mais atual que permite este tipo de análise é a Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2011, realizada pelo IBGE, que consiste em uma pesquisa realizada diretamente com as 5.565 prefeituras municipais, referente à gestão e à estrutura dos municípios (IBGE, 2012).
Em relação à existência de fundo municipal de habitação, tem-se que, dos 5.565 municípios, 3.060, em 2011, já haviam constituído esse fundo, o que corresponde a 55% dos municípios do país. Com resultado um pouco superior, tem-se que 3.240 municípios possuem o conselho municipal de habitação constituído, o que representa 58% do total de municípios.
No entanto, no âmbito da participação social discutem-se as atribuições que são concedidas aos conselhos gestores. Portanto, torna-se relevante apresentar o caráter dos conselhos municipais de habitação (tabela 1).
Conforme exposto da tabela 1, 32,3% dos municípios brasileiros possuem conselhos municipais de habitação com caráter consultivo, e em 49,3% dos municípios estes conselhos possuem poder de deliberação. Ressalta-se que ainda são necessários avanços quanto à constituição dos conselhos municipais de habitação, visando sua ampliação e que estes conselhos venham a se tornar cada vez mais espaços efetivos de participação política, constituindo-se como conselhos deliberativos.
Outra questão a ser destacada em relação à participação social é que esta deve emergir da cultura da comunidade, pelo pensamento crítico e interesse em alcançar melhorias de modo coletivo.
Como a constituição de conselhos municipais decorreu de um processo de deliberação em nível nacional, torna-se relevante verificar duas questões: uma referente à constituição de conselhos em função do número de habitantes dos municípios; e a criação de conselhos municipais ao longo dos anos, a partir da elaboração da Política Nacional de Habitação em 2004 e da instituição do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social em 2005.
Na tabela 2 é apresentada a distribuição de municípios brasileiros em função do número de habitantes e da existência de conselho municipal de habitação, bem como a proporção de municípios com conselho para cada classificação de população.
Percebe-se que os grupos de municípios com população superior a 50 mil habitantes apresentam maiores proporções de municípios com conselho municipal de habitação, acima de 69%. Por outro lado, os municípios com número de habitantes inferior a 20 mil não atingem a proporção de 54% com conselho municipal de habitação.
A proporção de municípios com conselhos municipais de habitação apresenta-se definida pela faixa populacional e pode estar atrelada à maior exigência do Conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social de constituição de conselhos gestores aos municípios com população superior a 50 mil habitantes e posteriormente aos municípios com mais de 20 mil habitantes.
Conforme apresentado na tabela 3, percebe-se que a criação de conselhos municipais é crescente ao longo dos anos 2004-08, decaindo mais precisamente no ano de 2009 e retomando crescimento em 2010-11. Destacam-se os anos de 2007 e 2008, e em cada um deles foi criado um número de conselhos municipais de habitação superior a todos os que foram criados antes de 2004, ano de criação da Política Nacional de Habitação.
A retomada do crescimento dos conselhos municipais de habitação no biênio 2010-11 (tabela 3) pode ser atrelada ao incremento de recursos na política habitacional, a partir de 2009 (ano de criação do Programa Minha Casa Minha Vida), em que os municípios, diante da oportunidade de captar recursos junto ao governo federal, agilizaram os procedimentos para adequação ao SNHIS.
Este resultado indica que a forma como o SNHIS foi elaborado, visando à descentralização da aplicação dos recursos e a gestão democrática por meio de conselhos municipais, surtiu efeito. Contudo, é necessário verificar se a atuação dos conselheiros tem permitido efetuar um melhor controle sobre a aplicação dos recursos pela política habitacional e com isso apresentado melhores resultados na implementação desta política.
Quanto à elaboração do Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS) os municípios pouco avançaram, uma vez que somente 28,3% deles possuem este plano formalizado, o que corresponde a 1.574 municípios. Este nível baixo de institucionalização do PLHIS pode ser decorrente do fato de o prazo final para elaboração do plano ter sido prorrogado algumas vezes, sendo 31 de dezembro de 2012 a data limite para municípios com população superior a 50.000 habitantes.
Para a análise desta etapa da Política Nacional de Habitação realizou-se o levantamento dos programas que foram executados no âmbito da Política Nacional de Habitação e pelo SNHIS no período de 2004 a 2010. Para a identificação das características dos programas recorreu-se ao sítio eletrônico do Ministério das Cidades e a uma base de dados fornecida pela Secretaria Nacional de Habitação.
Em síntese, foram analisados 13 programas do governo federal, através dos quais podem se enquadrar como proponentes tanto o poder público como as entidades do terceiro setor e empresas do setor da construção civil cujas atividades estejam voltadas para a questão habitacional; também existem programas destinados diretamente a pessoas físicas.
Quanto às modalidades de atendimento, percebe-se que os programas estão predominantemente direcionados ao financiamento, mas também existem aqueles que apresentam a possibilidade de subsídios parciais para a construção ou a aquisição de unidades habitacionais. Outro grupo de programas atua na regularização fundiária e na urbanização de assentamentos precários.
A maioria dos programas restringe-se a beneficiários finais cujas famílias possuem rendimentos mensais de até três salários mínimos; no entanto, existem programas que extrapolam esta faixa salarial como: Carta de Crédito Individual e Associativo, Programa de Arrendamento Residencial e Programa Minha Casa Minha Vida.
Destaca-se que, durante o período analisado, três programas que já existiam em 2004 não contaram com aplicação de recursos nos anos que se seguiram, sendo extintos: o Morar Melhor em 2005, o Pró-Moradia em 2006 e Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social em 2008. Por outro lado, foram criados outros programas como: Programa Crédito Solidário; Habitação de Interesse Social; Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários e Programa Minha Casa Minha Vida.
Percebe-se pela etapa de implementação da PNH que há uma tentativa expressa de disseminar a cultura da participação social e gestão democrática por meio dos conselhos municipais de habitação. No entanto, se questiona se pela imposição normativo-legal seria possível promover uma participação social crítica e com qualidade.
Quanto aos programas implementados, percebe-se uma diversidade de atores sociais envolvidos, tanto como agentes proponentes como os responsáveis pela gestão dos empreendimentos habitacionais. Cabe ressaltar que expressas críticas são direcionadas ao Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), desde sua concepção, por apresentar contradições em relação ao Estatuto das Cidades, ao SNHIS e ao PlanHab, considerados instrumentos avançados para implementação de uma política habitacional.
O Programa MCMV é concebido para servir a interesses econômicos para superação da crise, mediante o aquecimento da indústria da construção civil e o aumento dos postos de trabalho, com consequente direcionamento a famílias com rendas superiores a três salários mínimos. Dessa forma, assume a lógica do mercado em detrimento de uma política de habitação articulada com uma política urbana de repensar as cidades, o acesso à terra e à propriedade (Rolnik e Nakano, 2009; Cardoso, Aragão e Araújo, 2011).
Portanto, é válido questionar quanto se investe em cada um dos programas e a partir desse resultado verificar se há a predominância, em termos de investimento, para programas destinados à autogestão ou à gestão por empresas, bem como para programas que atendem famílias com determinada faixa de renda. Essas análises poderiam indicar, de fato, se nesta etapa da implementação há a predominância de características de determinado modelo de administração pública. Estas são sugestões para estudos futuros.
Apresenta-se no quadro 2 uma síntese dos resultados deste artigo, com a identificação das características dos modelos de administração pública brasileira que se fazem presentes nas etapas do ciclo político da Política Nacional de Habitação.
5. Considerações finais
A partir da análise das etapas do ciclo político da Política Nacional de Habitação foi possível identificar elementos que são característicos de diferentes modelos da administração pública brasileira.
Conforme as análises realizadas, percebe-se que essa política pública é marcada pelo hibridismo dos modelos de administração pública burocrático, gerencial e societal. Entretanto, esse hibridismo torna-se visível de formas diferenciadas entre as etapas do ciclo político.
Elementos característicos do modelo burocrático encontram-se presentes nas etapas de definição de agenda, elaboração de política e implementação, sem, contudo, estar presentes na etapa de percepção do problema, uma vez que nessa etapa predominam elementos do modelo societal.
O modelo de administração pública gerencial apresenta seus elementos nas etapas de percepção de problema, elaboração de política e implementação. Na etapa de definição de agenda não foram identificadas características próprias do modelo gerencial.
Destaca-se na Política Nacional de Habitação elementos do modelo de administração pública societal. Esse modelo está presente em todas as etapas do ciclo político de modo que pode ser considerado a base dessa política.
Entretanto, algumas ressalvas se fazem necessárias, como na etapa de implementação, pois, apesar de existirem os programas específicos para associações e cooperativas em prol da questão habitacional, é importante verificar o montante de recursos viabilizados por esses programas em comparação com os demais, com o intuito de averiguar se há de fato a predominância de investimentos em programas que fortalecem a autogestão dos empreendimentos habitacionais.
Outro aspecto importante refere-se à qualidade da atuação dos representantes nos conselhos municipais de habitação, pois a criação de determinado conselho não garante que as ações de seus representantes conduzam à melhor gestão dos recursos públicos e melhores soluções à questão habitacional.
Em relação aos conselhos municipais também é válido verificar se há, entre os membros do conselho, além da paridade de representantes, o respeito pela opinião de todos e a busca pela solução em consenso, caso contrário esses conselhos estariam destituídos desta característica que lhes deveria ser inerente.
Vale ressaltar que, pela análise realizada, não foram identificados elementos característicos da administração pública patrimonialista; no entanto, esse fato não significa que seus elementos não estejam presentes na Política Nacional de Habitação. Suspeita-se que estes elementos possam ser identificados à medida que sejam realizados estudos de caso na implementação da política habitacional nos municípios. Para tanto, sugere-se que sejam verificados os mecanismos pelos quais as prefeituras selecionam as famílias a serem beneficiadas pelos programas habitacionais, bem como os programas executados por entidades do terceiro setor. Ainda há que se verificar a lisura nos processos de escolha das empresas de construção civil que executam os empreendimentos habitacionais.
Acredita-se que este artigo contribui para os estudos sobre a administração pública brasileira, os elementos de seus modelos e para a análise da Política Nacional de Habitação, perpassando por etapas do ciclo político.
Artigo recebido em 10 dez. 2012 e aceito em 11 nov. 2013.
Alexandre Matos Drumond é discente no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Viçosa (PPG-ADM/UFV). E-mail: matosdrumond@gmail.com.
Suely de Fátima Ramos Silveira é doutora em economia aplicada pela ESALq/Universidade de São Paulo (USP), professora associada ao Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Viçosa (PPG-ADM/UFV) e diretora do Instituto de Políticas Públicas e Desenvolvimento Sustentável (IPPDS). E-mail: sramos@ufv.br.
Edson Arlindo Silva é doutor em administração pela Universidade Federal de Lavras (Ufla), professor adjunto no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Viçosa (PPG-ADM/UFV). E-mail: edsonsilva@ufv.br.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Fev 2014 -
Data do Fascículo
Fev 2014
Histórico
-
Aceito
11 Nov 2013 -
Recebido
10 Dez 2012