Resumo
Uma das principais controvérsias relativas à realização da Copa do Mundo no Brasil diz respeito à construção de novos estádios, sobretudo aqueles indicados como potenciais "elefantes brancos", como é o caso da Arena das Dunas, em Natal. O presente trabalho teve por objetivo avaliar os argumentos que constituem os diferentes discursos acerca da construção da Arena das Dunas. Para tal, acessamos três posições discursivas sobre o assunto: dos organizadores, da imprensa e da sociedade civil. Os dados foram coletados por meio de entrevistas, observação direta e documentos. O método adotado foi a arqueologia foucaultiana e sua análise de discurso. Como lente teórica, adotamos a teoria do pós-desenvolvimento. Nossos achados apontam para duas formações discursivas antagônicas: uma favorável e outra contestadora ao investimento feito na construção da arena.
Palavras-chave: Copa do Mundo; Arena das Dunas; análise de discurso foucaultiana; teoria do pós-desenvolvimento; pós-estruturalismo
Resumen
Una de las mayores controversias en relación con el logro de la Copa del Mundo en Brasil se refiere a la construcción de nuevos estadios, especialmente los que se señalan como posibles "elefantes blancos", como el Arena das Dunas en Natal. Este estudio tuvo como objetivo evaluar los argumentos que constituyen los diferentes discursos sobre la construcción de la Arena das Dunas. Para esto, accedemos a tres posiciones discursivas sobre el tema: la de los organizadores, de la prensa y de la sociedad civil. Los datos fueron colectados a través de entrevistas, observación directa y documentos. El método utilizado fue la arqueología de Foucault y su análisis del discurso. Como lente teórica, adoptamos la teoría del post-desarrollo. Nuestros resultados apuntan a dos formaciones discursivas antagónicas: una favorable y otra contestadora de la inversión hecha en la construcción de la Arena.
Palabras clave: Copa del Mundo; Arena das Dunas; análisis del discurso de Foucault; teoría del post-desarrollo; post-estructuralismo.
Abstract
One of the big controversies surrounding the holding of the World Cup soccer finals in Brazil involved the construction of new stadiums, especially those considered as potential "white elephants", such as the Arena das Dunas in Natal. The purpose of this study was to evaluate the arguments that constituted the different discourses relating to the construction of the Arena das Dunas. To this end, we looked at three different discursive positions on this subject: those of the organizers of the event, those of the media and those of civil society. The data was obtained through interviews, direct observation and documents. The method adopted was Foucauldian archeology and its discourse analysis. In opting for a theoretical perspective, we adopted post-development theory. Our findings pointed to two opposing discursive formations: one favorable and the other contrary to the investment made in the construction of the stadium.
Keywords: World Cup; Arena das Dunas; Foucauldian discourse analysis; post-development theory; post-structuralism.
1. Introdução
O Brasil foi escolhido como sede da Copa do Mundo 2014 sob a promessa, apresentada pela Fédération Internationale de Football Association (Fifa) e pelo governo brasileiro, de que o evento traria melhorias e deixaria um positivo legado ao país (Langoni, 2013). Ao longo da preparação do país para o evento, no entanto, tal promessa foi vista com cautela por alguns setores da sociedade (Almeida et al., 2015); e, entre as obras realizadas para a Copa no país, a construção das arenas foi uma das mais criticadas (Marques, 2013; Gonçalves, 2013).
A escolha das cidades-sede também envolveu controvérsias, sobretudo pelo fato de o governo ter pressionado a Fifa para incluir um número maior de sedes do que o convencional. A Fifa previa a utilização de oito a 10 cidades para a realização dos jogos, enquanto o governo cogitava a inclusão de 17. Por fim, optou-se por um total de 12 cidades, sob a justificativa de que tal número estaria condizente com as proporções geográficas do território brasileiro e que, com a realização da Copa em todas as regiões do país, a identidade nacional estaria mais bem representada (Agência Estado, 2013).
Em 2009 foi feito o anúncio das cidades-sede, sendo Natal uma das escolhidas. Ao longo dos preparativos para receber os jogos, a cidade apresentou diversos problemas em seu planejamento. Em relação à construção das instalações, a cidade foi, em diferentes momentos, criticada pelo secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, que alertava para os atrasos nas obras e pedia comprometimento dos organizadores (Brasil, 2014). Em 2012 e 2013, em análise feita pelo Instituto Ethos, com o objetivo de medir o grau de transparência dos gastos públicos com a organização do evento, Natal apareceu nas últimas posições entre as cidades-sede avaliadas (Jogos Limpos, {2014}).
Uma das críticas mais contundentes à escolha da cidade como sede concerne à construção de um novo estádio para a realização dos jogos da Copa do Mundo, a Arena das Dunas. Para justificá-la, o Ministério do Esporte defendeu - a partir das impressões de visitantes nos eventos inaugurais do estádio - que a construção da arena ajudaria a impulsionar o futebol local e que os clubes da cidade garantiriam seu uso (Ministério do Esporte, 2014). Argumenta-se, no entanto, que as dimensões da arena não condizem com a realidade da cidade: em 2015, nos jogos realizados na Arenas das Dunas válidos pelo Campeonato Potiguar (nove jogos) e pela Copa do Nordeste (quatro jogos), a média de público foi de 4.273 e 2.822 pagantes, respectivamente; em 2016, por sua vez, a arena teve média de público no campeonato estadual (10 jogos) de 5.941 pagantes e, no campeonato regional (três jogos), 2.962 (Sr. Goool, 2016).
A viabilidade financeira do projeto é outro ponto discutido. Para suprir os custos de manutenção do estádio, o governo planejou criar parcerias com a iniciativa privada e realizar eventos diversos que impulsionariam a economia local (Governo do Estado do Rio Grande do Norte, 2013). Entre outubro de 2014 e maio de 2016, foram realizados 15 eventos privados e 62 eventos públicos de entretenimento, como shows e feiras (Arena das Dunas, 2016).
Além de críticas feitas pela imprensa, parte da população de Natal não acredita que o empreendimento possa trazer melhorias para as suas vidas (O Jornal de Hoje, 2014). Desse modo, ainda que representantes do governo defendam a importância econômica e social do estádio, parece haver uma percepção de que a Arena das Dunas é um mero "elefante branco", cuja utilidade pública após a Copa do Mundo é questionada (Resende, 2014).
Os aspectos aqui apresentados indicam que a construção da Arena das Dunas foi baseada em aspectos políticos e promessas que não têm se verificado na prática, gerando visões distintas entre entidades ligadas à organização do megaevento na cidade, mídia e sociedade. Assim, buscamos compreender os argumentos empregados por esses agentes na composição de seus discursos com relação à construção do estádio e sua efetividade na promoção de desenvolvimento econômico e social. Com base nisto, norteamo-nos pela seguinte pergunta de pesquisa: que argumentos constituem os discursos acerca da construção da Arena das Dunas?
Como justificativa para a realização desta pesquisa, indicamos a questão dos legados deixados pela realização da Copa do Mundo. Em todo o período de preparação do país para o evento esteve presente a ideia de que as obras realizadas nas cidades-sede justificavam os investimentos realizados. Segundo o governo federal, bem como os estaduais e municipais das cidades-sede, os legados girariam em torno da infraestrutura esportiva e urbana, da exposição do país e do incremento do turismo. A construção das arenas, particularmente, foi justificativa pela chegada ao país de um novo modelo de estádios (Souto e Torres, 2010), bem como pela possibilidade de novos negócios voltados para o futebol (Fernandes, 2013). Por outro lado, alguns estudos já fazem críticas à organização de megaeventos no país e, principalmente, ao uso do conceito de legado para justificativa e legitimação dos altos investimentos, que "acaba por esconder, da população em geral, os possíveis impactos negativos que advêm da sua realização" (Belmiro e Carvalho, 2014:394). Além disso, ressaltamos como justificativa o fato de o fenômeno em questão, o cenário político-econômico no qual está inserida a realização da Copa do Mundo e a presença de diversos agentes estão alinhados aos estudos sobre administração pública e parcerias público-privadas (PPP). Tal cenário pode revelar, entre outras coisas, questionamentos acerca dos legados prometidos pela organização do evento no país, como mostram estudos sobre os impactos econômicos e sociais (e.g., Giampiccoli e Nauright, 2010; Molloy e Chetty, 2015) e acerca da produção da imagem (Maguire, 2011) da África do Sul, país-sede da Copa do Mundo de 2010.
2. Administração pública
Um dos modelos utilizados na gestão pública contemporânea, o New Public Management (NPM) tem sido o modelo adotado nas principais reformas aplicadas globalmente, cuja ênfase recai na performance dos atores públicos em termos de eficiência e qualidade, num processo similar ao empregado nas empresas privadas (Ashworth et al., 2013). No Brasil, as últimas décadas viram uma tentativa de implantação de princípios da NPM na administração pública nacional. A partir de 1980 passou-se, acompanhando a tendência mundial, à adoção de princípios de governança corporativa, como controle público e accountability (Benedicto et al., 2013). Todavia, esse modelo ainda carece de meios eficazes para pôr em práticas esses princípios. Assim, novas formas de gerir a máquina pública surgem, exaltando uma visão sistêmica, que integre os diversos atores sociais no processo de gestão pública (Klering e Porsse, 2014).
O modelo sistêmico de administração pública, de modo descentralizado, já vem sendo utilizado em alguns ambientes do território brasileiro, com resultados satisfatórios (e.g., Angnes et al., 2013; Freitas et al., 2012). Percebe-se, por meios desses estudos, que a participação popular tem efeitos positivos quando equacionada na elaboração das políticas promovidas pelo Estado, criando sentimento de pertença e emancipação das capacidades locais (Freitas et al., 2012). Ao fugir da lógica centralizadora do NPM para tendências mais participativas, passou-se a dar maior ênfase aos segmentos que estão além do setor público, como as entidades privadas e a população, e as relações que se podem construir entre estes, num processo de networking (Ashworth et al., 2013; Kjaer, 2011). Assim, experiências de governança local são incentivadas, com aberturas de canais institucionais e participativos, que visem atrair a população, proporcionar maior autonomia aos governos locais e garantir maior sinergia entre as esferas de decisão (Lima, 2014; Kjaer, 2011; Freitas et al., 2012; Angnes et al., 2013). Projetos desse tipo também foram feitos em alguns países, com resultados mistos, no qual houve melhora da prestação dos serviços públicos por meio da descentralização; porém foram percebidas pioras da autonomia e concentração de controle ao se tentar diluir as responsabilidades públicas para os governos locais (Awortwi, 2011).
Em torno desse processo de descentralização, uma prática que se tornara recorrente no país - e que fora a base para a construção das arenas, por exemplo - foi a constituição de parcerias público-privadas (PPP). Por definição de papéis, o ente privado participa, ou efetivamente realiza, um serviço público, em acordo contratual com o ente privado, dividindo riscos e responsabilidades. Essa cooperação pressupõe um acordo mútuo, no qual deverão ser satisfeitos os serviços públicos a serem prestados, e os interesses privados em realizá-los (Brinkerhoff e Brinkerhoff, 2011). Sua utilização tem sido bastante positiva em economias bastante diversas (Brinkerhoff e Brinkerhoff, 2011; Yang e Hou, 2013); no entanto, as PPP apresentam situações negativas e de discussão, que giram em torno da distribuição das responsabilidades e dos riscos associados entre as partes envolvidas na celebração dos acordos (Lima e Coelho, 2015), como também a interferência de grupos de interesses na configuração de contratos (Fernandez et al., 2014).
3. Teoria do pós-desenvolvimento
Como base para interpretação dos nossos achados, utilizamos a teoria do pós-desenvolvimento. Trata-se de uma abordagem inserida nas discussões da antropologia do desenvolvimento, de matriz pós-estruturalista, numa perspectiva pós-colonialista e com forte influência foucaultiana. Seu surgimento deriva de um debate crítico, promovido por diferentes perspectivas das ciências sociais sobre o desenvolvimento planejado (Radomsky, 2011).
O pós-desenvolvimento se firma, a partir do final da década de 1980, nos estudos realizados por Esteva (1987), Sachs (1992), Escobar (1995) e Bawtree e Rahnema (1997). Contribuições para o enriquecimento da abordagem também foram feitas por Fergunson (1990), Latouche (1993) e Rist (1997). Muitos dos teóricos pós-desenvolvimentistas realizaram seus trabalhos junto a populações indígenas e movimentos sociais de regiões subdesenvolvidas, a exemplo de Arturo Escobar, na Colômbia; Gustavo Esteva, no México; e James Fergunson, em Lesoto.
A crítica pós-desenvolvimentista reside na forma como o modelo de desenvolvimento planejado pelo Ocidente, a partir da segunda metade do século XX, privilegiou uma visão eurocêntrica e homogênea de sociedade (Radomsky, 2011; Dinerstein e Deneulin, 2012). Em seu modo de ação, essa lógica desenvolvimentista assume que os países ocidentais ditos desenvolvidos possuem a expertise necessária para conduzir o desenvolvimento dos demais países "subdesenvolvidos", ou "do Sul" (Justen e Moretto Neto, 2013), que passam a agir por meio de agências e organismos internacionais orientados por aqueles (Bruno e Guerrini, 2011; Pogodda, 2014). Ocorre, portanto, uma abordagem verticalizada, na qual a cultura eurocêntrica é, sob o disfarce da modernidade, imposta às localidades sob a forma de tecnologia e mercadorias, sem considerações à cultura local (Escobar, 1995). Assim, a teoria do pós-desenvolvimento busca desconstruir o discurso de um modelo de desenvolvimento universal e suas formas constitutivas de poder, cujo fundamento arvora-se no utilitarismo e crescimento econômico em termos mercadológicos (Latouche, 2014; Escobar, 2010).
Outro aspecto central da abordagem é o questionamento do papel do Estado como planejador do progresso, cuja práxis vem, em grande medida, acompanhada de interesses personalistas e da inobservância às demandas sociais (Radomsky, 2013; Justen e Moretto Neto, 2013). De uma perspectiva micro, argumenta-se que a forma como se dá o planejamento desenvolvimentista leva à sujeição do indivíduo à presença de normas uniformizantes. Isso ocorre sob o pretexto da coletividade e, em consequência, adoção de modelos restritivos e excludentes (Escobar, 1995, 2010). Tal situação conduz ao apagamento da diversidade, num processo que termina por destituir o sujeito de sua autonomia (Escobar, 1995).
Os teóricos pós-desenvolvimentistas criticam o modelo de desenvolvimento planejado pela sua violência estrutural, que marginaliza formas de conhecimento tradicionais, manipula a cultura local ao sabor de suas ambições e promove a destruição ambiental (Daskon e McGregor, 2012; Pogodda, 2014). Com isso, buscam apontar críticas ao modelo de desenvolvimento sobejamente utilizado e apresentar propostas que possam guiar novos modos de desenvolvimento centrados em aspectos humanos e locais (Escobar, 2010).
Nesse âmbito, os trabalhos de Arturo Escobar tornam-se fundamentais na medida em que propõem uma nova visão de modernidade ao mesmo tempo que discutem particularmente os problemas da América Latina. Seu primeiro grande estudo (Escobar, 1995) focou a Colômbia, seu país natal, e foi seguido por observações subsequentes da Bolívia, Venezuela e Equador (Escobar, 2010). Escobar foi amplamente influenciado pela dinâmica do discurso e representação de poder de Michel Foucault, como também por autores pós-colonialistas que denunciaram a imposição do discurso ocidental em diferentes localidades e estamentos, como Edward Said, Valentin-Yves Mudimbe, Chandra Mohanty e Homi Bhabha. Para o autor, a própria noção de "Terceiro Mundo" é um construto discursivo daqueles que desejam promover o desenvolvimento. O desenvolvimento passa a ser visto, assim, como uma necessidade social, e a realidade passa a ser colonizada por ele (Escobar, 1995).
Diversas críticas foram feitas ao pós-desenvolvimento (Pieterse, 2000; Andrews e Bawa, 2014). O ponto central delas revolve na ênfase romântica que se dá às comunidades locais e tradições locais (Horner, 2013), gerando uma forte dicotomia na qual a modernização é completamente rechaçada, passando-se a prescrever um antidesenvolvimento perene (Kippler, 2010). A proposta pós-desenvolvimentista, no entanto, não encerra em seus objetivos o fim do desenvolvimento (Lummis, 1994; Pieterse, 2000). A defesa que Escobar faz não é, portanto, da eliminação do desenvolvimento, mas de formas de valorização e autonomia de desenvolvimento que respeitem a identidade local em termos de cultura, economia e ecossistema (Escobar, 2012), migrando da ótica eurocêntrica e universal de progresso para uma que considere diferentes possibilidades de desenvolvimento, o que o autor chama de alternativas ao desenvolvimento ou alternativas à modernidade (Escobar, 1995, 2010). Sob esse aspecto, ao expressar alternativas, Escobar não apenas advoga o fim de um paradigma, mas reafirma a possibilidade de criação de modernidades plurais, que sejam obras da episteme e da realidade locais, de maneira que tais alternativas ofereçam melhores formas de proteger (e dignificar) a vida no planeta (Escobar, 2010).
4. Procedimentos metodológicos
O presente estudo é caracterizado como uma pesquisa do tipo qualitativa e de perspectiva crítica de corrente pós-estruturalista. Além disso, a pesquisa adota um caráter indutivo, uma vez que iniciamos a investigação sob uma lente epistemológica definida, mas apenas adotamos uma teoria em específico a partir do andar da análise (Leão, Mello e Vieira, 2009), como será destacado.
Como método, adotamos a análise de discurso foucaultiana, com base em sua analítica arqueológica, que se propõe à descoberta das condições de possibilidade de certos saberes (Foucault, 2014). Tal abordagem se debruça sobre discursos de forma a compreender certas formações ali presentes, a partir da identificação de seus enunciados. Foucault (2014) apresenta as formações discursivas como grupo de enunciados, dotados de funções, que seguem certas regras. Essa definição revela as categorias analíticas trabalhadas pelo filósofo, das quais passaremos a tratar, já traduzindo como são trabalhadas em nossa pesquisa (quadro 1).
Nossa análise tem início pela identificação de enunciados, seguida de possíveis relações entre eles. Essas relações foram de dois tipos, às quais denominamos síncronas, referentes a enunciados mutuamente explicativos - para os quais usamos retas; e incidentes, referentes a enunciados que explicam outros - para os quais usamos setas. Esse procedimento já nos sensibiliza quanto às funções enunciativas, que são escrutinadas mais atentamente na sequência. Vale mencionar que funções mesmas podem se referir a diferentes enunciados e, por sua vez, um mesmo enunciado apontar para mais de uma função. A etapa seguinte é a identificação das regras de formação, que se baseia na análise de cada um de seus critérios (objeto, modalidade, conceito e estratégia). Tais regras e a maneira como elas se desencadeiam a partir dos enunciados e suas funções propiciam a elaboração das formações discursivas.
Neste ponto registramos a forma como a teoria foi utilizada no procedimento analítico. Conforme mencionado, a presente pesquisa foi feita por meio de um caráter indutivo, sem uma teoria em específico como referência, mas apenas os próprios conceitos da arqueologia como um todo, bem como uma visão de mundo pós-estruturalista. A primeira etapa revelou um caráter desenvolvimentista dos discursos analisados, o que nos levou à escolha da teoria do pós-desenvolvimento como base tanto para a própria revisão dessa etapa quanto para o prosseguimento da análise. Esse procedimento, apesar de inserir mais uma complexidade na análise, permite que evitemos que a seleção de uma teoria específica a priori influencie a própria interpretação dos resultados.
Ao conjunto de dados utilizados para a análise de discurso Foucault (2014) denomina arquivo. Segundo o autor, se trata de um conjunto de práticas discursivas que permite o surgimento dos enunciados. O arquivo foi constituído por dados coletados por meio de observação direta, entrevistas e dados documentais (quadro 2) e foi organizado em três categorias: o discurso oficial, referente às práticas discursivas de agentes e instituições ligados à organização do evento; o discurso da sociedade civil, referente às práticas da população e de órgãos criados para fiscalizar a organização do evento; e o discurso da mídia, relativo às práticas discursivas da imprensa acerca de sua cobertura da organização do evento.
Por fim, tivemos atenção ao atendimento de critérios de qualidade da pesquisa qualitativa (Paiva Jr., Leão e Mello, 2011). A análise dos dados foi realizada de forma triangulada, tendo sido realizada por par de pesquisadores e validada por um terceiro, de maior experiência, responsável pela coordenação do projeto. Esse processo foi feito com reflexibilidade, por meio de constante questionamento da interpretação dos dados, sobretudo em relação a como as evidências empíricas poderiam ser apreciadas à luz da teoria. Também a maneira como o arquivo foi construído teve o intuito de atender à noção de representatividade do corpus de pesquisa em relação ao objeto investigado. Por fim, a despeito da restrição de tamanho, o presente artigo busca apresentar uma descrição rica e detalhada do estudo.
5. Descrição dos resultados
Nesta seção descrevemos os resultados obtidos na pesquisa. Para tal fim, optamos por dividir nossa descrição em duas partes. Na subseção a seguir apresentamos os enunciados, funções enunciativas e as regras de formação identificados, que são base das formações discursivas, apresentadas e discutidas na subseção posterior. A apresentação inicial dos elementos nos permite descrever as formações discursivas de forma mais direta, uma vez que aqueles já terão suas definições apresentadas, permitindo maior foco na descrição de cada formação, nas relações destas com aqueles elementos e na apresentação de exemplos retirados do arquivo.
5.1 Identificação e descrição dos elementos constitutivos das formações discursivas
O primeiro grupo de elementos identificados que apresentamos nesta subseção refere-se aos enunciados (quadro 3). Definimos tais elementos como proposições afirmativas, de modo a revelar não só suas características, mas também uma ideia clara de significação em seu contexto. À exceção de um dos enunciados, todos os demais foram observados em pelo menos dois dos discursos, e, dos 21 enunciados identificados, nove estão presentes nos três. Dos demais, a maioria (10) está presente nos discursos da mídia e da sociedade, o que sugere uma maior compatibilidade entre estes.
O segundo grupo de elementos são as funções enunciativas (quadro 4). Denominamos essas funções por orações iniciadas por um verbo no infinitivo, de forma a destacar o fato de se referirem a uma "ação" dos enunciados aos quais se relacionam, e as descrevemos visando exprimir sua definição conceitual e sua referência empírica na pesquisa.
O terceiro grupo de elementos diz respeito às regras de formação (quadro 5). Primeiramente, apresentamos os critérios componentes (objetos, conceitos, modalidades e estratégias) das regras identificadas. Para tal, utilizamos substantivos ou locuções substantivas, por se tratarem de termos referentes a tais critérios, acompanhados de uma breve descrição.
O quadro 6 apresenta as regras de formação e suas descrições. Para intitulá-las, usamos locuções substantivas, seguindo a mesma lógica adotada quanto aos critérios anteriormente apresentados.
Por fim, no intuito de elucidar como as regras de formação resultam dos critérios apresentados, o quadro 7 apresenta essas relações.
5.2 Formações discursivas
Nossa análise nos levou à identificação de duas formações discursivas. Das cinco regras de formação, três são favoráveis ao investimento feito na Arena das Dunas e valorizam a maneira como ela foi realizada e os benefícios que o equipamento deve propiciar à cidade, enquanto as outras duas contestam tal investimento e denunciam o mau uso do dinheiro público e a manipulação da opinião pública. O mesmo ocorre em relação às funções enunciativas e aos enunciados: três funções e 12 enunciados dão coro ao primeiro grupo de argumentos e outras três funções e 11 enunciados ao segundo.
Nossos relatos são discutidos a partir dos feixes de relações oriundos das duas formações, seguindo os elementos constitutivos identificados. Respeitando o limite de espaço para a produção do presente texto, apresentamos dados empíricos que ilustram todos os feixes oriundos de uma relação entre formação discursiva, uma regra de formação e uma função enunciativa, capturando um ou mais enunciados ali presentes e, quando pertinente, variações importantes dentro dessas relações.
5.2.1 A Arena das Dunas representa a chegada do progresso na cidade
A formação discursiva está alinhada à presença de um modelo universal de desenvolvimento em torno da proposta dos megaeventos esportivos e defende a modernização da infraestrutura da cidade, a troca de experiências e expertises de elaboração e gerenciamento de obras e eventos de tal tamanho e, principalmente, os legados (que serão deixados para a cidade e sua população), representados pelas obras de mobilidade e daquelas ligadas ao turismo. Entretanto, identificamos como obra mais significativa a Arena das Dunas, que ilustra o conceito de arena multiuso e representa uma nova fase para o futebol brasileiro.
Essa formação discursiva está ancorada por três regras de formação, relacionadas a três funções enunciativas e a 12 enunciados (figura 1 ). Todos os enunciados estão presentes no discurso oficial. Todavia, em sua maioria (nove), são corroborados pelos outros discursos, sendo mais um atestado pela sociedade e outros dois pela mídia (quadro 3).
Os enunciados e suas relações entre si indicam a existência de quatro grupos de significação, relativos à competência do governo (enunciados de 1 a 5), à identidade local (enunciados 6 e 7), ao futebol local (enunciados 8, 9 e 12) e à cidade como espaço de convivência (enunciados 10 e 11). Por outro lado, tais grupos se relacionam. Os enunciados do primeiro grupo estão, de alguma forma, relacionados. A centralidade do enunciado "A Arena das Dunas teve sua destinação planejada para depois da Copa do Mundo", que sofre incidência de nove enunciados - sendo do mesmo grupo os dois que não cumprem esse papel -, estabelece relação desse grupo com todos os outros. Já os dois enunciados relativos à identidade local (6 e 7), além de se relacionarem, incidem sobre o grupo referente ao futebol local. Também os dois enunciados relativos ao espaço da cidade (10 e 11) se relacionam entre si e ao grupo relativo ao futebol local. Por sua vez, o enunciado desse grupo que está nessa relação (12) diz respeito ao futebol de forma ampla e não se relaciona aos outros dois de sua temática (8 e 9), que dizem respeito, especificamente, aos times locais, e relacionam-se entre si.
Em relação às funções enunciativas, defender potencial da Arena das Dunas sob a gestão privada se liga a enunciados que afirmam a capacidade da iniciativa privada para a gestão da Arena das Dunas e que, por outro lado, declaram a falta de capacidade do poder público para o gerenciamento do estádio. Demonstrar potencial da cidade na destinação da Arena das Dunas, por sua vez, se liga a enunciados que se referem ao planejamento realizado para utilização da arena e destacam seu uso pelos times locais e sua adequação às demandas da cidade. Por fim, demonstrar potencial da Arena das Dunas para o desenvolvimento local se liga a enunciados que destacam o trabalho bem idealizado da construção da arena e sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento da cidade e de seu futebol, sendo motivo de orgulho dos potiguares. Duas regras de formação se relacionam às três funções, enquanto apenas a que destaca o potencial da cidade para a destinação da arena se relaciona à regra desenvolvimento social.
Desenvolvimento social faz referência a um dos principais objetivos da implantação do modelo de desenvolvimento: a vida da população. O feixe decorrente dessa regra pode ser ilustrado na entrevista do representante da organização da Copa na cidade (ver trecho a seguir): ao ser questionado sobre os potenciais usos da arena, o entrevistado argumenta sobre a presença de shows na cidade.
Roberto Carlos vinha de 10 em 10 anos aqui em Natal. Por quê? Porque não tinha um espaço adequado pra receber, não tinha uma casa de show adequada pra receber. Depois da inauguração do Midway Mall, que foi inaugurado em 2005, inaugurou-se lá um teatro, uma casa de show belíssima, Roberto Carlos já veio a Natal 3 vezes. Veio... veio... em 3 anos, já veio duas vezes a Natal. Então, na Arena das Dunas vai acontecer a mesma coisa. Natal vai entrar de vez, também, através do Arena das Dunas, no circuito de grandes eventos culturais, isso eu não tenho dúvida. Eu não tenho dúvida. Natal tá entre Fortaleza e Recife. Você faz um evento aqui, você atrai {pessoas} dos dois estados. Difícil o cearense sair pra Recife, porque é longe; difícil o pernambucano sair pro Ceará, que é longe. Se vier pra Natal, com a duplicação da BR, duas horas e meia, cê tá aqui em Natal {saindo de Recife}. Com essa duplicação da BR 304 também, que está sendo planejada, com três horas o cara sai do Ceará, sai de Fortaleza, chega aqui em Natal.
Nessa passagem, o enunciado a Arena das Dunas e a cidade têm dimensões compatíveis fica evidente quando o entrevistado menciona que a frequência de shows de grande porte será melhorada com o uso da Arena das Dunas; tal afirmação é justificada a partir da comparação feita com outro espaço mostrando, assim, a compatibilidade do novo espaço com a realidade da cidade. O cenário descrito pelo entrevistado ilustra também o enunciado a cidade demanda mais eventos culturais e esportivos: Natal entrou no circuito dos shows importantes. Tal ponto é ilustrado quando a cidade é colocada como alternativa ante outras capitais nordestinas. Esses enunciados têm a função, no contexto do desenvolvimento social, de demonstrar o potencial da cidade na destinação da Arena das Dunas, quando evidencia que a população de Natal fará bom proveito do novo equipamento.
Por outro lado, o mesmo trecho também demonstra o potencial da Arena das Dunas para o desenvolvimento local, pois alega que a cidade ingressará no circuito de grandes eventos culturais. O argumento valoriza o modo como isso resulta de um trabalho pensado para essa finalidade, remetendo à regra de formação expertise administrativa, que diz respeito à atuação do governo e da iniciativa privada. Quando relacionada com as funções que se referem à destinação da arena e ao seu potencial para o desenvolvimento local, como é o caso, o papel do governo como planejador - muitas vezes de forma indireta, quando se menciona o "estado" - fica mais evidente. No entanto, a relação dessa regra com a função que condiciona o potencial da arena à gestão privada revela o entendimento de que o governo não dispõe da competência para administrar o equipamento. O argumento que ressalta a competência da iniciativa privada pode ser ilustrado por um estrato de entrevista a seguir, realizada com um jornalista de um dos jornais de maior circulação do Rio Grande do Norte.
{...} Então, a gente tem um excelente estádio, que se for bem gerido, e eu acho que sim, graças a Deus, porque vai pra iniciativa privada por 30 anos, porque na minha opinião, o Estado não tem que administrar estádio de futebol. Pode administrar saúde, educação. {...}. Fica com a iniciativa privada e o estado recebe o que tiver que ganhar.
Nesse trecho, o enunciado a iniciativa privada tem condições de gerenciar a Arena das Dunas é evidenciado no posicionamento adotado pelo entrevistado: a iniciativa privada pode (e deve) ser a responsável pela exploração da arena, pois, para ele, o governo deve ficar responsável por questões mais importantes, como saúde e educação. Se bem gerenciada, a Arena das Dunas poderá promover o desenvolvimento turístico. Já os argumentos que sustentam o lado reverso dessa concepção, de que o governo não tem expertise para gerenciar a Arena das Dunas, podem ser ilustrados por um registro fotográfico (figura 2) feito por um dos pesquisadores, uma hora antes da abertura oficial do estádio, com presença da presidente da República, entre outras autoridades. A imagem revela que a arena ainda não estava pronta em sua inauguração, sendo o seu entorno, na ocasião, um canteiro de obras.
Por fim, a regra de formação infraestrutura física trata dos investimentos feitos na cidade em virtude de sua participação como cidade-sede, com ênfase na Arena das Dunas. Essa regra também está relacionada com as três funções enunciativas presentes na formação em discussão. Um exemplo que ilustra todos esses feixes de relações é uma propaganda (figura 3) veiculada pelo consórcio responsável pela Arena das Dunas.
A peça publicitária destaca o equipamento em si (infraestrutura física) em várias frentes. Primeiramente, vale destacar que o anúncio é assinado pelo consórcio, o que indica que a iniciativa privada tem condições de gerenciar a Arena das Dunas, que tem a função de defender o potencial da arena sob a gestão privada. O texto em si do anúncio primeiro evoca o sonho do potiguar em ter a arena e sua oportunidade de vivenciá-la e, na sequência, o estádio é associado à natureza e ao povo do estado, argumentos (enunciados) de que a Arena das Dunas é motivo de orgulho para os potiguares e que teve sua destinação planejada. Esse aspecto também está presente quando as características da arena são apontadas como capazes de realizar grandes eventos, o que indica que a cidade os demanda. Esses enunciados têm a função de demonstrar o potencial da cidade na destinação da arena e desta para o desenvolvimento local.
O potencial da Arena também perpassa por uma resposta a críticas, sobretudo da imprensa nacional, de que o futebol local não tem potencial para manter a arena devidamente ativa, convertendo o estádio num "elefante branco". Em resposta a esse tipo de crítica, um jornalista esportivo da cidade entrevistado para a pesquisa defende a arena:
Muitos chegaram a falar que o estádio de Natal para a Copa do Mundo ficaria obsoleto após o mundial. Não foram poucos os que disparavam a todo instante que o estado do Rio Grande do Norte não tinha time para ter uma Arena de tal porte. Até o momento, o América Futebol Clube vem mandando os seus jogos, sempre que possível, na Arena das Dunas. E o time potiguar vem mostrando que, no que depender do futebol, o estádio não será um "elefante branco". O clube já colocou grandes públicos na Arena. Na final do Campeonato Potiguar, por exemplo, foram registrados cerca de 18 mil pagantes. Além disso, o alvirrubro mantém uma média de público de 4.502 pessoas no Campeonato Brasileiro Série B.
O enunciado a cidade sofre preconceito com relação à destinação da Arena das Dunas é evidenciado nas acusações de que a Arena das Dunas é um elefante branco. Para refutar tal questão, o entrevistador descreve o uso da arena pelo América, apresentando dados sobre a média de público dos jogos do clube e de sua participação numa competição nacional, o que evidencia, respectivamente, os enunciados os times locais podem garantir o bom uso da Arena das Dunas e os times locais participam de importantes competições. Tais enunciados têm a função de demonstrar o potencial da cidade na destinação da Arena das Dunas.
5.2.2 A Arena das Dunas não condiz com a realidade local
A segunda formação discursiva revela críticas ao modelo de desenvolvimento proposto e refletido na realização do Copa do Mundo em Natal. Nesse discurso, a Arena das Dunas é vista como um legado não compatível com as demandas da cidade. Argumenta-se que a cidade não precisava do equipamento, uma vez que os times locais não têm condição de comportá-la; que o dinheiro gasto na obra e em sua manutenção foi arcado pela população, que é carente de investimentos sociais não atendidos pelo governo; e que este, por sua vez, não é transparente com esses gastos.
Tal formação está ancorada por duas regras de formação, que estão relacionadas com três funções enunciativas e com 11 enunciados (figura 4 ). Desses, 10 estão presentes tanto no discurso da sociedade quanto no da mídia, sendo este também responsável, sozinho, por mais um.
Os enunciados e suas relações entre si indicam a existência de três grupos de significação, relacionados com a situação do futebol local (enunciados de 1 a 4); com o uso do dinheiro público na construção da arena (enunciados 5, 7, 9 e 11); e com implicações sociais, econômicas e políticas que resultam da construção da arena (enunciados 6, 8 e 10). Assim como ocorreu na primeira formação discursiva, tais grupos se relacionam. Existe uma centralidade relativa ao enunciado "O dinheiro público investido na construção da Arena das Dunas foi desperdício", que sofre incidência de todos os outros enunciados, conectando o segundo grupo aos outros. Ainda sobre esse grupo, os outros três enunciados também têm relações entre si (7-9 e 9-11). Os quatro enunciados do primeiro grupo também estão, em alguma instância, relacionados e se conectam ao segundo grupo por meio do enunciado central. Os enunciados do terceiro grupo, por sua vez, não se conectam, mas se relacionam com os outros dois grupos.
Quanto às funções enunciativas, denunciar improbidade do governo em relação à construção da Arena das Dunas se liga a enunciados que indicam a falta de compromisso da gestão pública e seu beneficiamento à iniciativa privada. Os enunciados que se ligam a denunciar leviandade do governo em relação à construção da Arena das Dunas corroboram esses aspectos e acrescentam a falta de necessidade dos investimentos e de clareza em seu uso. Por fim, evidenciar potencial ociosidade da Arena das Dunas se liga a todos os enunciados sobre os times locais e ao problema da verba investida na construção e requerida à manutenção.
Por manipulação social se evidencia a concepção de que as promessas acerca da destinação da Arena das Dunas foram engodos para influenciar a opinião pública, sobretudo no que diz respeito ao comprometimento de que a obra seria impulsionadora do futebol potiguar. Tal pacto revelaria a desconsideração das particularidades locais no proposto desenvolvimento da cidade por meio do esporte. Em matéria publicada no site da ESPN Brasil (figura 5), durante a Copa do Mundo, são feitas observações acerca do futuro da Arena das Dunas.
No trecho, o enunciado os times locais não têm projeção nacional é revelado quando a matéria indica que os principais clubes da cidade jogam a segunda divisão do campeonato nacional. A situação do futebol local é evidenciada também pela presença do enunciado os times locais não têm público suficiente para um estádio dessas proporções, condição ilustrada nas informações acerca do público pagante que frequentou a arena. Nesse contexto, ambos os enunciados evidenciam a potencial ociosidade da Arena das Dunas, única função enunciativa relacionada a essa regra.
Já a regra de formação regime de opressão se relaciona com as três funções enunciativas da formação. Em trecho de entrevista, uma comerciante de artesanato destaca a inocuidade do novo estádio:
{...} Os times daqui não têm condição de jogar num campo daquele, não. Investimento alto demais pra nada, só pra passar {na Copa} três joguinho (sic), quatro joguinho (sic). {...} Dinheiro jogado fora... aí você vá no Hospital Valfredo Gurgel, é todo mundo no chão, nos corredores.
Sua fala sobre os times locais argumenta que eles são pobres e não têm condições de manter a Arena das Dunas e enfatiza o desperdício de dinheiro público para abrigar apenas quatro jogos da Copa (enunciados), evidenciando a potencial ociosidade da Arena das Dunas depois da competição (função enunciativa). Por outro lado, denuncia a improbidade do governo (função enunciativa), que deveria ter usado o dinheiro público investido na construção do estádio para cuidar da população (enunciado), veja-se o caso de calamidade da saúde no maior hospital público do estado.
De forma mais contundente, uma matéria do site O Jornal de Hoje, publicada no início de 2014, ilustra os impactos sofridos por parte da população natalense em virtude das obras da Copa: "A construção da Arena das Dunas envolveu uma série de desapropriações em áreas menos nobres. Isso fez com que as pessoas perdessem seus lares em troca de uma compensação que nem sempre é a real correspondente ao valor do imóvel, levando os desapropriados à justiça".
Temos ilustrado nesse trecho o enunciado a Arena das Dunas é prejudicial para a população mais carente de Natal, que menciona um reflexo sentido diretamente por pessoas mais carentes da cidade ao serem retiradas de áreas de interesse do governo sem a devida compensação pelas desapropriações, o que denuncia leviandade do governo em relação à construção da Arena das Dunas.
6. Considerações finais
Voltando à nossa questão de pesquisa, nossa investigação apontou dois discursos claramente antagônicos: de um lado, um posicionamento favorável à construção da Arena das Dunas, ancorado na concepção de que o equipamento pode contribuir para o desenvolvimento de Natal; de outro, um posicionamento contrário a este, embasado na convicção de que a arena não é compatível com a realidade local, necessitada de serviços públicos prioritários.
Por trás dessas convicções, argumentos também muitos díspares: a favor, a garantia de que a verba pública investida na construção do estádio foi bem planejada e terá retorno com uma gestão (privada) competente e seu bom uso, bem como de que a cidade demanda eventos esportivos e culturais que serão mais bem atendidos com a arena, que poderá, inclusive, contribuir para o desenvolvimento do futebol local e, por isso tudo, é motivo de orgulho para os potiguares; contra, a premissa de que o estádio não terá destinação adequada, sobretudo porque não é compatível com a realidade do futebol local, e que o investimento público feito na construção da arena beneficiou a iniciativa privada, quando poderia ter sido utilizado para cuidar da população, sobretudo a mais carente, que, ao contrário, foi prejudicada pela obra, enquanto o governo não é transparente com os gastos.
É curioso também identificar as fontes desses discursos: se a oposição à Arena das Dunas encontra-se manifestada pela sociedade civil e pela imprensa, integrantes desses grupos também se colocam favoráveis à construção da arena, apesar de serem os organizadores aqueles que dão o maior lastro a esse posicionamento.
Recorrendo à teoria do pós-desenvolvimento para interpretar esses achados, é possível atestarmos o primeiro discurso como desenvolvimentista. Evidenciamos uma concepção universalista - nesse caso, fortemente eurocêntrica (Radomsky, 2011; Bennett, 2012) - de desenvolvimento (Escobar, 1995, 2010; Latouche, 1993), uma vez que o modelo de arenas, fortemente adotado no futebol europeu, é incorporado como positivo, sem que haja uma reflexão crítica acerca da realidade do futebol da localidade. Também verificamos o papel do estado como planejador de um progresso (Radomsky, 2013; Justen e Moretto Neto, 2013) que não prioriza demandas sociais, mas uma lógica de mercado (Escobar, 1995, 2010), inclusive no próprio entendimento do que seja bom para a sociedade, e, alinhado a uma lógica liberal de estado mínimo, delega à iniciativa privada a gestão de um legado social.
A consistência ideológica contrária não pode ser claramente evidenciada no discurso antagônico. Antes de propriamente politizados no sentido de uma agenda oposicionista, o que se evidencia são queixas populares vinculadas à inaptidão do estado em prover serviços públicos básicos e garantir a segurança e a qualidade de vida à população, sobretudo à sua camada desprivilegiada. Apesar disso, os argumentos do pós-desenvolvimento são identificáveis. O estado é visto como opressor, ao sujeitar os cidadãos a normas uniformizantes que não correspondem às principais demandas populares (Escobar, 2010), o que estaria sendo feito de forma irresponsável e até leviana, e como manipulador, ao tentar convencer a população de que a Arena das Dunas é capaz de trazer benefícios que não correspondem à realidade.
Nossa conclusão é de que, independentemente do que o futuro vier a revelar sobre a destinação da Arena das Dunas, sua construção foi feita com base em uma lógica de modernidade estabelecida por um sistema político-econômico hegemônico, que homogeneíza o mundo e se encontra embasada numa noção de globalização que, antes de ser problematizada, é proclamada como inevitável, quando se trata, a rigor, de uma visão de globalização dos grandes centros econômicos sobre os periféricos, quando diferentes globalizações, com base na diversidade cultural de diferentes localidades, seriam possíveis (Berger, 2002).
Acreditamos que o presente estudo oportunize, para além do que já discutimos acerca da situação da Arena das Dunas, uma importante reflexão acerca do legado da Copa do Mundo realizada no Brasil, que foi a principal base para investimentos públicos. Vincular a aceleração do crescimento de um país à realização de um evento esportivo - a despeito de sua enorme repercussão - nos diz muito do mundo contemporâneo e da posição que o Brasil ocupa nesse cenário: por um lado, uma economia global cada vez mais baseada na produção imaterial, determinante de um novo paradigma desenvolvimentista, e, por outro, um estado que busca se inserir neste cenário por meio de um modelo de gestão corporativa. Por outro lado, especificamente em relação às arenas construídas para sediarem jogos da Copa do Mundo, o que vemos, de forma geral, é uma baixa ocupação média (Mendonça, 2015) e pouca utilização para eventos que não os próprios jogos de futebol (Siqueira, 2015).
Reconhecemos como limitação do trabalho o recorte temporal. Apesar do longo período de levantamento de dados, a pesquisa se encerra apenas um ano depois da Copa do Mundo, logo, sem evidências mais concretas de como se dará a destinação da Arena das Dunas nos próximos anos, bem como sobre seu potencial retorno para a economia local. Apesar desse reconhecimento, entendemos que se trata de uma limitação inerente à própria delimitação da pesquisa, e não a uma escolha inadequada. Por outro lado, entendemos que investigações semelhantes a esta em relação a outras arenas construídas ou reformadas para sediarem jogos do mundial poderiam contribuir para um aprofundamento da discussão aqui apresentada.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul-Aug 2016
Histórico
-
Recebido
11 Jul 2015 -
Aceito
16 Jun 2016