Acessibilidade / Reportar erro

Doença de Chagas: uma infecção tropical de interesse para o radiologista

Neste número da Radiologia Brasileira está sendo publicado um interessante estudo sobre as alterações radiológicas observadas em pacientes com megaesôfago chagásico, identificadas nas radiografias do tórax e na esofagografia(11 Abud TG, Abud LG, Vilar VS, et al. Radiological findings in megaesophagus secondary to Chagas disease: chest X-ray and esophagogram. Radiol Bras. 2016;49:358-62.). O primeiro ponto a ser ressaltado sobre este trabalho é o fato de ser um estudo feito, nos dias atuais, usando-se radiologia convencional. Embora muitos pensem o contrário, as radiografias convencionais continuam sendo fundamentais na investigação das doenças do tórax. Quando realizadas e interpretadas de modo adequado, dão informações úteis para a caracterização de lesões, eventualmente sendo o único exame complementar de imagem necessário. Entretanto, é um método que apresenta limitações, muitas vezes obrigando ao uso de outros exames, especialmente a tomografia computadorizada(22 Escuissato DL, Marchiori E, Warszawiak D, et al. Radiografia simples do tórax. In: Maciel R, Aidé MA, editores. Prática pneumológica. 2ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara Koogan; 2017. p. 54-76.). Outro aspecto relevante é tratar-se de estudo sobre uma doença com alta incidência e prevalência na América Latina, particularmente no Brasil. Ao contrário de outras infecções tropicais altamente incidentes no nosso meio, como a paracoccidioidomicose, que tem sido assunto de algumas publicações recentes na literatura radiológica brasileira(33 Vermelho MB, Correia AS, Michailowsky TC, et al. Abdominal alterations in disseminated paracoccidioidomycosis: computed tomography findings. Radiol Bras. 2015;48:81-5.)-(77 Zanetti G, Nobre LF, Mançano AD, et al. Qual o seu diagnóstico? (Paracoccidioidomicose). Radiol Bras. 2014;47(1):xi-xiii.), a avaliação radiológica da doença de Chagas (DC) tem sido negligenciada pelos pesquisadores nacionais. Mesmo o volume de publicações radiológicas sobre a paracoccidioidomicose tem sido considerado insuficiente, diante da importância da doença. Em editorial recente, Rodrigues(88 Rodrigues MB. Current status of imaging diagnosis of musculoskeletal involvement in tropical diseases. Radiol Bras. 2015;48(2):ix.), referindo-se à deficiência de estudos sobre aspectos de imagem na paracoccidioidomicose, ressaltou que este "vazio" na literatura é grande responsabilidade nossa, dos pesquisadores brasileiros, por ser o Brasil o país em que ela é mais frequente, e que estudos sobre este tipo de doença, típica e endêmica em nosso país, são extremamente importantes, permitindo que se tenha uma melhor compreensão das suas características, possibilitando a realização de diagnósticos mais precisos e tratamentos mais adequados.

A DC, também chamada de tripanossomíase americana, é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, que tem alta prevalência e morbidade significativa na América Latina. Embora a incidência venha diminuindo nas últimas décadas, um número extremamente elevado de pacientes ainda sofre com essa doença. A maioria dos pacientes chagásicos crônicos é de idosos. Isto ocorre porque grande parte dos chagásicos é procedente de áreas onde a erradicação do vetor se deu há pelo menos três ou quatro décadas. Cerca de 30% das pessoas cronicamente infectadas desenvolvem alterações cardíacas, e cerca de 10% desenvolvem alterações digestivas, neurológicas ou mistas, que requerem tratamento específico. A alteração cardíaca mais importante, passível de avaliação por métodos de imagem, é a cardiopatia chagásica crônica, ao passo que no tubo digestivo as principais alterações são as dilatações, como o megaesôfago e o megacólon chagásicos(99 Rochitte CE, Nacif MS, Oliveira Jr AC, et al. Cardiac magnetic resonance in Chaga's disease. Artif Organs. 2007;31:259-67.).

O comprometimento cardíaco é o principal determinante para o prognóstico da DC. A ressonância magnética cardíaca tem sido o exame de escolha para avaliação do coração de pacientes chagásicos. É um método não invasivo, que não usa radiação ionizante, com imagens de alta resolução, permitindo avaliação da anatomia, da função e caracterização tissular. Novas técnicas estão sendo rotineiramente usadas para avaliação detalhada da função cardíaca na DC, como marcação miocárdica, cine-RM de alta resolução, realce tardio miocárdico para detecção de fibrose miocárdica, perfusão miocárdica, técnicas de detecção de inflamação e edema, e monitoramento de injeções intramiocárdicas de células-tronco para o tratamento da miocardiopatia chagásica(99 Rochitte CE, Nacif MS, Oliveira Jr AC, et al. Cardiac magnetic resonance in Chaga's disease. Artif Organs. 2007;31:259-67.).

Em relação ao comprometimento do tubo digestivo, acalásia idiopática e acalásia consequente à DC têm manifestações clínicas e radiológicas semelhantes, e o mesmo tratamento. O termo acalásia refere-se à doença motora do esôfago, e megaesôfago, à sua consequência. O megaesôfago é uma das formas clínicas da DC que, embora de natureza benigna, tem caráter crônico e progressivo, determinando repercussões clínicas relevantes. O sintoma mais frequente é a disfagia, seguida pela regurgitação, pirose e dor torácica. A disfagia tem evolução crônica, de vários anos, e é progressiva. Pacientes com megacólon chagásico apresentam constipação grave e prolongada por anos ou décadas. Eles frequentemente fazem uso de óleo mineral para tratamento de constipação crônica. Desta forma, pneumonia lipoídica é uma complicação potencial de DC. Além disso, acalásia é um fator de risco para aspiração, potencializando o desenvolvimento da pneumonia lipoídica1010 Dantas RO. Comparação entre acalásia idiopática e acalásia conseqüente à doença de Chagas: revisão de publicações sobre o tema. Arq Gastroenterol. 2003;40:126-30.)-(1212 Marchiori E, Zanetti G, Nobre LF, et al. Lipoid pneumonia complicating chagasic megaesophagus. High-resolution CT findings. J Thorac Imaging. 2010;25:179-82.).

Em conclusão, DC deve ser considerada no diagnóstico diferencial de pacientes que apresentam doenças com alteração na motilidade do tubo digestivo, cursando com disfagia ou constipação graves, associadas ou não a comprometimento cardíaco.

REFERENCES

  • 1
    Abud TG, Abud LG, Vilar VS, et al. Radiological findings in megaesophagus secondary to Chagas disease: chest X-ray and esophagogram. Radiol Bras. 2016;49:358-62.
  • 2
    Escuissato DL, Marchiori E, Warszawiak D, et al. Radiografia simples do tórax. In: Maciel R, Aidé MA, editores. Prática pneumológica. 2ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara Koogan; 2017. p. 54-76.
  • 3
    Vermelho MB, Correia AS, Michailowsky TC, et al. Abdominal alterations in disseminated paracoccidioidomycosis: computed tomography findings. Radiol Bras. 2015;48:81-5.
  • 4
    Gava P, Melo AS, Marchiori E, et al. Intestinal and appendiceal paracoccidioidomycosis. Radiol Bras. 2015;48:126-7.
  • 5
    Lima Júnior FV, Savarese LG, Monsignore LM, et al. Computed tomography findings of paracoccidiodomycosis in musculoskeletal system. Radiol Bras. 2015;48:1-6.
  • 6
    Queiroz RM, Gomes MP, Valentin MV. Pulmonary paracoccidioidomycosis showing reversed halo sign with nodular/coarse contour. Radiol Bras. 2016;49:59-60.
  • 7
    Zanetti G, Nobre LF, Mançano AD, et al. Qual o seu diagnóstico? (Paracoccidioidomicose). Radiol Bras. 2014;47(1):xi-xiii.
  • 8
    Rodrigues MB. Current status of imaging diagnosis of musculoskeletal involvement in tropical diseases. Radiol Bras. 2015;48(2):ix.
  • 9
    Rochitte CE, Nacif MS, Oliveira Jr AC, et al. Cardiac magnetic resonance in Chaga's disease. Artif Organs. 2007;31:259-67.
  • 10
    Dantas RO. Comparação entre acalásia idiopática e acalásia conseqüente à doença de Chagas: revisão de publicações sobre o tema. Arq Gastroenterol. 2003;40:126-30.
  • 11
    Oliveira GC, Lopes LR, Andreollo NA, et al. Surgically treated megaesophagus: epidemiological profile of patients operated in the Clinical Hospital of the State University of Campinas between 1989 and 2005. Rev Soc Bras Med Trop. 2008;41:183-8.
  • 12
    Marchiori E, Zanetti G, Nobre LF, et al. Lipoid pneumonia complicating chagasic megaesophagus. High-resolution CT findings. J Thorac Imaging. 2010;25:179-82.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2016
Publicação do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem Av. Paulista, 37 - 7º andar - conjunto 71, 01311-902 - São Paulo - SP, Tel.: +55 11 3372-4541, Fax: 3285-1690, Fax: +55 11 3285-1690 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: radiologiabrasileira@cbr.org.br