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Preditores de mortalidade intra-hospitalar em pacientes submetidos a cirurgias não eletivas em um hospital universitário: uma coorte prospectiva

Resumo

Introdução

Quando comparada a procedimentos eletivos, a morbimortalidade associada às cirurgias de urgência ou emergência é alta. Escores de risco perioperatório identificam o caráter não eletivo como fator independente de complicações e morte. O presente estudo objetiva caracterizar a população submetida a cirurgias não eletivas no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e identificar fatores clínicos e cirúrgicos associados à morte em 30 dias no pós-operatório.

Metodologia

Coorte prospectiva de 187 pacientes submetidos a cirurgias não eletivas entre abril e maio de 2014 no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Avaliaram-se dados relacionados ao paciente, situações de risco pré-operatórias e informações do âmbito cirúrgico. Mensurou-se óbito em 30 dias como desfecho primário.

Resultados

A média de idade da amostra foi 48,5 anos; 84,4% dos indivíduos apresentavam comorbidades. O desfecho primário foi observado em 14,4% dos casos, laparotomia exploradora foi o procedimento com maior mortalidade (47,7%). Após regressão logística multivariada, identificaram-se idade (odds ratio [OR] 1.0360, p < 0,05), anemia (OR 3.961, p < 0,05), insuficiência renal aguda ou crônica agudizada (OR 6.075, p < 0,05) e sepse (OR 7.027, p < 0,05) como os fatores de risco relacionados ao paciente significativos para mortalidade, além da categoria cirurgia de grande porte (OR 7.502, p < 0,05).

Conclusão

A elevada taxa de mortalidade encontrada pode refletir a alta complexidade dos pacientes da instituição. O conhecimento do perfil dos pacientes atendidos auxilia na definição de prioridades de gerenciamento, sugere a necessidade de criação de linhas de cuidado específicas para grupos identificados como de alto risco, a fim de reduzir complicações e óbitos no perioperatório.

PALAVRAS-CHAVE
Cuidado perioperatório; Cirurgias não eletivas; Complicações pós-operatórias; Mortalidade hospitalar

Abstract

Introduction

Morbidity and mortality associated with urgent or emergency surgeries are high compared to elective procedures. Perioperative risk scores identify the non-elective character as an independent factor of complications and death. The present study aims to characterize the population undergoing non-elective surgeries at the Hospital de Clínicas de Porto Alegre and identify the clinical and surgical factors associated with death within 30 days postoperatively.

Methodology

A prospective cohort study of 187 patients undergoing elective surgeries between April and May 2014 at the Hospital de Clínicas, Porto Alegre. Patient-related data, pre-operative risk situations, and surgical information were evaluated. Death in 30 days was the primary outcome measured.

Results

The mean age of the sample was 48.5 years, and 84.4% of the subjects had comorbidities. The primary endpoint was observed in 14.4% of the cases, with exploratory laparotomy being the procedure with the highest mortality (47.7%). After multivariate logistic regression, age (odds ratio [OR] 1.0360, p < 0.05), anemia (OR 3.961, p < 0.05), acute or chronic renal insufficiency (OR 6.075, p < 0.05), sepsis (OR 7.027, p < 0.05), and patient-related risk factors for mortality, in addition to the large surgery category (OR 7.502, p < 0.05) were identified.

Conclusion

The high mortality rate found may reflect the high complexity of the institution's patients. Knowing the profile of the patients assisted helps in the definition of management priorities, suggesting the need to create specific care lines for groups identified as high risk in order to reduce perioperative complications and deaths.

KEYWORDS
Perioperative care; Non-elective surgeries; Postoperative complications; Hospital mortality

Introdução

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 234 milhões de procedimentos cirúrgicos são feitos anualmente.11 Weiser TG, Regenbogen SE, Thompson KD, et al. An estimation of the global volume of surgery: a modelling strategy based on available data. Lancet. 2008;372:139-44. Nos países desenvolvidos, estima-se que a mortalidade cirúrgica oscile entre 0,4% e 0,8% e que complicações ocorram em 3% a 17% dos casos,22 State of Victoria - Department of Health & Human Services. Good practice in management of emergency surgery: a literature review; 2017. p. 1-79. Available from: https://www2.health.vic.gov.au/about/publications/policiesandguidelines/Good-practice-in-management-of-emergency-surgery-a-literature-review [Internet] [cited10.05.17].
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esses números são ainda maiores nos países em desenvolvimento.33 Braz LG, Braz DG, Cruz DS, et al. Mortality in anesthesia: a systematic review. Clinics. 2009;64:999-1006. Ao se avaliarem apenas os procedimentos de caráter não eletivo, essas taxas se elevam e, ainda que haja escassez de trabalhos nesse contexto, reporta-se mortalidade cerca de 10 vezes maior.44 Neary WD, Foy C, Heather BP, et al. Identifying high-risk patients undergoing urgent and emergency surgery. Ann R Coll Surg Engl. 2006;88:151-6.,55 Pearse RM, Harrison DA, James P, et al. Identification and characterisation of the high-risk surgical population in the United Kingdom. Crit Care. 2006;10:R81. Isso pode ser explicado tanto pela ausência de tempo hábil para a feitura de satisfatória avaliação pré-operatória e conseguinte aprimoramento de situações de risco como pelo perfil dos enfermos admitidos nesse contexto.

Uma série de desafios se faz presente ao se prestarem serviços cirúrgicos não eletivos, a dificuldade de equilibrar a demanda entre cirurgias eletivas e de emergência, o aprimoramento do fluxo de ocupação dos leitos e o fornecimento de cuidados de qualidade ao paciente são os principais. A fim de solucioná-los, a criação de protocolos institucionais surge como forma adequada de ordenar o atendimento sem prejudicar a qualidade da assistência.22 State of Victoria - Department of Health & Human Services. Good practice in management of emergency surgery: a literature review; 2017. p. 1-79. Available from: https://www2.health.vic.gov.au/about/publications/policiesandguidelines/Good-practice-in-management-of-emergency-surgery-a-literature-review [Internet] [cited10.05.17].
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Na criação de tais protocolos, revisão sistemática da literatura aponta as condições clínicas de base como o fator de maior relevância para o aumento da mortalidade.33 Braz LG, Braz DG, Cruz DS, et al. Mortality in anesthesia: a systematic review. Clinics. 2009;64:999-1006. Diante disso, estuda-se como melhor estratificar o risco dos pacientes submetidos a procedimentos não eletivos.44 Neary WD, Foy C, Heather BP, et al. Identifying high-risk patients undergoing urgent and emergency surgery. Ann R Coll Surg Engl. 2006;88:151-6.,66 Pearse R. Study Protocol v2.0 - Enhanced Peri-Operative Care for High-risk patients (EPOCH) Trial; 2017. p. 1-28. Available from: http://www.epochtrial.org/epoch.php?page=docs [Internet] [cited 10.05.17].
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No entanto, os atuais instrumentos para acessar risco perioperatório não são validados para diferentes populações, podem não refletir a realidade brasileira, uma vez que cada instituição tem características únicas, com demanda e recursos próprios que precisam ser considerados na implantação de um modelo de cuidado.

Nesse sentido, o Serviço de Anestesia e Medicina Perioperatória do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (SAMPE/HCPA) desenvolveu e validou com dados nacionais o modelo SAMPE de Predição de Mortalidade Perioperatória. Esse escore é composto por quatro variáveis facilmente coletadas no pré-operatório: idade, classificação segundo a American Society of Anesthesiology (ASA), porte do procedimento e caráter da cirurgia – urgente ou eletivo.77 Stefani LC, Gutierrez CS, Castro SMJ, et al. Derivation and validation of a preoperative risk model for postoperative mortality (SAMPE model): an approach to care stratification. PLoS ONE. 2017;12:e122-0187.

A fim de aprimorar o fluxo e a qualidade do atendimento aos pacientes em nossa instituição e considerando que cirurgias de urgência e emergência foram identificadas como preditores independentes de mortalidade, o presente estudo objetiva caracterizar a população submetida a cirurgias não eletivas no HCPA e identificar fatores clínicos e cirúrgicos associados à morte em 30 dias no pós-operatório.

Método

Estudo de coorte prospectivo que avaliou pacientes submetidos a cirurgias alocadas na sala de urgência do bloco cirúrgico Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). O HCPA é uma instituição quaternária universitária de referência no sul do país, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tem 741 leitos e faz cerca de 20.000 cirurgias por ano, atende todas as faixas etárias. Foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da mesma instituição, registrado com o número 14-0252.

Foram incluídos pacientes adultos consecutivos entre 21 de abril de 2014 a 20 de maio de 2014. Foram excluídos pacientes menores de 16 anos ou submetidos a procedimentos diagnósticos ou ambulatoriais.

Os dados do pré, trans e pós-operatório foram obtidos pela revisão do prontuário eletrônico e em fichas de anestesia impressas. Os pesquisadores eram médicos residentes treinados na busca de informações relacionadas às comorbidades pré-operatórias, à cirurgia e à anestesia, além de detalhamento das complicações trans e pós-operatórias.

Entre os dados relativos à cirurgia avaliaram-se: classificação temporal, de acordo com diretrizes internacionais, em emergência, urgência, não urgente/não eletivo e eletivo22 State of Victoria - Department of Health & Human Services. Good practice in management of emergency surgery: a literature review; 2017. p. 1-79. Available from: https://www2.health.vic.gov.au/about/publications/policiesandguidelines/Good-practice-in-management-of-emergency-surgery-a-literature-review [Internet] [cited10.05.17].
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(tabela 1), porte cirúrgico, segundo classificação de Glance et al.,88 Glance LG, Lustik SJ, Hannan EL, et al. The surgical mortality probability model. Ann Surg. 2012;255:696-702. o tempo entre a indicação cirúrgica e sua feitura, a duração do procedimento e a necessidade de reintervenção (tabela 1).99 Fleisher LA, Fleischmann KE, Auerbach AD, et al. 2014 ACC/AHA guideline on perioperative cardiovascular evaluation and management of patients undergoing noncardiac surgery: executive summary: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. Circulation. 2014;130:2215-45.

Tabela 1
Classificação temporal de cirurgias

O seguimento dos casos deu-se por revisão diária do prontuário até a alta hospitalar, ou até o 30° dia de internação se o paciente permanecesse em internação prolongada após a cirurgia. O desfecho primário mensurado foi mortalidade, definida como óbito intra-hospitalar em 30 dias. Na avaliação de complicações pós-operatórias, usou-se a escala Postoperative Morbidity Survey (POMS), composta por nove domínios, que registram a morbidade de acordo com a presença ou não de critérios preestabelecidos.1010 Grocott MP, Browne JP, Van der Meulen J, et al. The postoperative morbidity survey was validated and used to describe morbidity after major surgery. J Clin Epidemiol. 2007;60:919-28.

Análise estatística

Frequências e percentuais foram calculados para variáveis categóricas; variáveis contínuas são apresentadas como média ± desvio padrão (DP). Usaram-se χ2 e teste de Fisher para comparar variáveis categóricas e teste t de Student para variáveis contínuas. Para construção do modelo de regressão logística usou-se a técnica LASSO (Least Absolute Shrinkage and Selection Operator) a fim de selecionar as variáveis preditoras com mais rigor e menor possibilidade de superajustamento (overfitting), devido ao número reduzido de eventos em relação ao número de preditores. Essa técnica é considerada um método de regularização que seleciona as variáveis significativas e reduz os coeficientes de preditores sem importância.1111 Pavlou M, Ambler G, Seaman SR, et al. How to develop a more accurate risk prediction model when there are few events. BMJ. 2015;351:h3868.,1212 Babyak AM. What you see may not be what you get: a brief, nontechnical introduction to overfitting in regression-type models. Psychosom Med. 2004;66:411-21. Calcularam-se odds ratio e intervalos de confiança (IC) de 95% para determinar a magnitude da associação. Considerou-se valor de p< 0,05 como estatisticamente significativo. Usou-se o Sigma Stat (SPSS) version 22.0 e o Statistical Analysis System (SAS Studio).

Resultados

Dados demográficos, características clínicas e procedimentos cirúrgicos

Durante o período do estudo 187 pacientes foram acompanhados, a média de idade foi 48 (± 20,6), 48% sexo masculino, 38% ASA II, 29% ASA III e 16% ASA ≥ IV (tabela 2).

Tabela 2
Descrição da coortea a Dados expressos em media ± DP ou n (%). e associação com mortalidade em 30 dias

Entre as cirurgias; 24,1% foram estratificadas como de pequeno porte; 43,3%, intermediário e 32,6% como de maior porte, o tempo médio para execução do procedimento foi de 2,1 ± 1,2 horas. Quanto à classificação temporal: 12,3% configuraram emergências (2,1% dessas com risco a órgão ou membro); 46% urgências; 28,3% não urgentes e não eletivas e 13,4% eletivas. Os procedimentos mais frequentes foram colecistectomia, laparotomia exploradora (LE), procedimentos menores do trato genitourinário (26,7%, 23,5% e 12,3%, respectivamente). LE se destacou pela elevada mortalidade (47,7%): respondeu por 85,1% do total de óbitos, além das maiores taxa de reintervenção (20,4% × 10,6% do total de casos).

Houve grande variabilidade no tempo médio entre a indicação cirúrgica e sua efetiva execução, totalizou 28,3 ± 66 horas, assim distribuídas: 54% feitas em ≤ 12 h; 26,2% entre 12 h e 24 h; 11,2% entre 24 h e 48 h; 8,5% após 48 h da indicação. Sangramento intraoperatório significativo (> 500 mL) ocorreu em 8% dos casos, especialmente entre os óbitos (22,2%).

Morbimortalidade e complicações intra-hospitalares

A mortalidade pós-operatória foi 14,4%; 96,3% tiveram uma ou mais situações de risco pré-operatórias presentes. Dentre as situações de risco clínicas pré-operatórias, destacaram-se anemia, IRA ou IRC agudizada, sepse, choque, instabilidade hemodinâmica e neoplasia metastática, em ordem de prevalência. Anemia, a mais frequente, esteve presente em 74,07% dos pacientes com o desfecho primário. Destaca-se também entre os óbitos a presença de IRA ou IRC agudizada (59,25%) e sepse (44,4%). Em relação ao acompanhamento pós-operatório, registraram-se complicações pela escala POMS em 52,4% dos pacientes, foram mais incidentes as infecciosas, as pulmonares, as cardiovasculares e as renais (36,4%, 26,3%, 14,4% e 12,3%, respectivamente).

Preditores de risco

As variáveis significativas identificadas pela análise univariada ou aquelas com maior plausibilidade de ser associadas ao desfecho foram incluídas na técnica Lasso para pré-seleção para o modelo de regressão logística. Adotou-se essa estratégia para reduzir a possibilidade de superajustamento (overfitting) devido ao pequeno número de eventos em relação aos possíveis preditores. Optou-se por excluir do modelo a classificação ASA, que, apesar de universalmente aceita e com valor prognóstico definido, é composta pelos fatores clínicos definidos no estudo como situações de risco clínico pré-operatória. A idade foi agrupada em faixas etárias por apresentar comportamento não linear e mesmo assim não entrou no modelo final. Mantiveram-se anemia (OR = 3,70; 95% IC 1,14-12,05), IRA ou IRC agudizada (OR = 7,82; IC 95% 2,36-25,89) e sepse (OR = 5,78; IC 95% -1,72-19,42) como fatores de risco relacionados ao paciente significativos para mortalidade em 30 dias. Entre os fatores cirúrgicos, apenas a categoria grande porte (OR 8,85; IC 95% 1,85-42,3) se relacionou ao desfecho após regressão logística (tabela 3).

Tabela 3
Fatores associados ao desfecho-regressão logísticaa a Variáveis que foram testadas pela técnica LASSO mas não foram significativas e não entraram no modelo final: idade, instabilidade hemodinâmica, cardiopatia, neoplasia metastática, tempo cirúrgico, sangramento intraoperatório, reintervenção, classificação temporal.

Discussão

Nosso estudo confirmou alta mortalidade pós-operatória intra-hospitalar em pacientes submetidos a cirurgias não eletivas (14,4%). Os dados encontrados são compatíveis com os da literatura nacional sobre pacientes graves, internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) no pós-operatório de cirurgias não cardíacas.1313 Lobo SM, Rezende E, Knibel MF, et al. Epidemiologia e desfecho de pacientes cirúrgicos não cardíacos em unidades de terapia intensiva no Brasil. Rev Bras Ter Intensiva. 2008;20:376-84. Esse resultado reflete a alta complexidade da população atendida (45,4% dos pacientes com escore ASA ≥ III) e espelha a dificuldade de acesso e diagnóstico precoce de doenças cirúrgicas na população atendida pelo Sistema Único de Saúde no Brasil.

Almejando definir estratégias para aprimorar os desfechos dos pacientes cirúrgicos, o presente estudo buscou examinar os fatores clínicos e cirúrgicos envolvidos na maior incidência de complicações e morte em cirurgias não eletivas. Situações de risco pré-operatórias, como anemia IRA ou IRC agudizada e sepse, tornaram os pacientes mais suscetíveis ao óbito, de modo que os doentes com essas comorbidades podem configurar um grupo alvo para intervenção pré-operatória, antes do encaminhamento ao bloco cirúrgico. Anemia é achado prevalente tanto em pacientes críticos (cerca de 60% dos admitidos na UTI) quanto nos submetidos a procedimentos cirúrgicos de alto risco.1414 Hajjar LA, Fukushima JT, Almeida JP, et al. Strategies to reduce blood transfusion: a Latin-American perspective. Curr Opin Anaesthesiol. 2015;28:81-8.,1515 Retter A, Wyncoll D, Pearse R, et al. Guidelines on the management of anaemia and red cell transfusion in adult critically ill patients. Br J Haematol. 2013;160:445-64. Recente revisão sistemática demonstrou que ela contribui para deiscência de anastomose1616 van Rooijen SJ, Huisman D, Stuijvenberg M, et al. Intraoperative modifiable risk factors of colorectal anastomotic leakage: why surgeons and anesthesiologists should act together. Int J Surg. 2016;36(Pt A):183-200. e infecção pós-operatória, além de estar associada à instabilidade hemodinâmica e hipoperfusão tecidual no paciente crítico, é fator de risco independente para óbito desses indivíduos.

A alta prevalência de sepse entre os pacientes que faleceram (44,4%) corrobora o perfil de pacientes atendidos na sala de urgência desse hospital, que não inclui trauma. Os resultados encontrados são compatíveis com outros estudos brasileiros, com taxas de até 73% de sepse entre os óbitos e alta prevalência de disfunção de múltiplos órgãos e sistemas secundária a essa condição.1313 Lobo SM, Rezende E, Knibel MF, et al. Epidemiologia e desfecho de pacientes cirúrgicos não cardíacos em unidades de terapia intensiva no Brasil. Rev Bras Ter Intensiva. 2008;20:376-84. A fim de minimizar esse desfecho, administração de antibióticos precocemente e a busca da ressuscitação nas primeiras horas parecem prevenir a hipoperfusão tecidual, que está associada a pioria clínica. O manejo adequado do choque séptico, segundo as diretrizes da Surviving Sepsis Campaign,1717 Rhodes A, Evans LE, Alhazzani W, et al. Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of sepsis and septic shock: 2016. Intensive Care Med. 2017;43:304-77. ainda que questionado em trabalhos recentes,1818 Yealy DM, Kellum JA, et al. A randomized trial of protocol-based care for early septic shock. N Engl J Med. 2014;370:1683-93. parece ter papel mantido na ressuscitação dessa condição.

Outro fator identificado em nosso estudo, a IRA ou IRC agudizada, tem incidência perioperatória variável de acordo com a etiologia, definição e tipo de cirurgia, porém, para todos os casos, a falência renal é associada com taxas de mortalidade de 60% a 90%. A disfunção renal pós-operatória é também acompanhada de maior incidência de sangramento gastrointestinal, infecção respiratória e sepse. Ainda que várias estratégias preventivas tenham sido descritas, essas carecem de ensaios clínicos substanciais para sua comprovação, há melhores evidências de benefícios apenas para manutenção de normovolemia.1919 Sear JW. Kidney dysfunction in the postoperative period. Br J Anaesth. 2005;95:20-32.

A variável grande porte foi fator preditor independente de mortalidade. Destaca-se a alta taxa de mortalidade entre laparotomias exploradoras (47,7%), responsável por 85,1% do total dos óbitos. Esses dados são maiores que os dados da literatura, em que a mortalidade após cirurgias abdominais maiores eletivas pode ser tão alta quanto 17%, mas está usualmente entre 3% e 7%.2020 Jakobson T, Karjagin J, Vipp L, et al. Postoperative complications and mortality after major gastrointestinal surgery. Medicina. 2014;50:111-7. Sabe-se que cirurgia abdominal de urgência é acompanhada por diversos fatores que aumentam o risco de complicações pós-operatórias, como jejum, uso de múltiplas drogas, imobilidade, uso de sondas nasogástricas e sondagem vesical de demora. Desses, muitos são modificáveis, deve-se dispensar atenção para prevenir complicações principalmente em populações mais fragilizadas.2121 Merani S, Payne J, Padwal RS, et al. Predictors of in-hospital mortality and complications in very elderly patients undergoing emergency surgery. World J Emerg Surg. 2014;9:43.

Recente auditoria mostrou alta mortalidade (14,9%) em laparotomias em 35 hospitais do Reino Unido, fato que motivou o projeto NELA — National Emergency Laparotomy Audit, constituído de uma série de medidas pré, intra e pós-operatórias para melhoria dos desfechos nessa população com múltiplas comorbidades submetida a cirurgias em condições não eletivas. Dentre as medidas pré-operatórias destacam-se o plano de cuidados pelo cirurgião e a definição diagnóstica o mais breve possível, o acesso formal ao risco de morte e complicações, a administração precoce de antibióticos e a feitura precoce de cirurgia. Os resultados desse projeto ainda são aguardados.2222 Saunders DI, Murray D, Pichel AC, et al. Variations in mortality after emergency laparotomy: the first report of the UK Emergency Laparotomy Network. Br J Anaesth. 2012;109:368-75.

O intervalo de tempo entre a indicação da cirurgia e sua feitura, fator considerado importante por se tratar de um contexto de cirurgias não eletivas, não alterou a mortalidade. Tal fato fortalece a hipótese de que o emprego de cuidados pré-operatórios estruturados que minimizem o impacto das situações de risco identificadas parece ser mais relevante do que a redução do tempo para feitura da cirurgia.

Entre os fatores cirúrgicos, destaca-se a importância de supervisão aos médicos residentes por preceptores. Ainda que não tenha atingido significância estatística em nosso estudo, tal fator já foi destacado na literatura pelo New South Wales Health Emergency Surgery Guidelines como uma das principais metas de reestruturação dos serviços.22 State of Victoria - Department of Health & Human Services. Good practice in management of emergency surgery: a literature review; 2017. p. 1-79. Available from: https://www2.health.vic.gov.au/about/publications/policiesandguidelines/Good-practice-in-management-of-emergency-surgery-a-literature-review [Internet] [cited10.05.17].
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Da mesma forma, a duração da cirurgia, ainda que não tenha atingido associação no presente trabalho (duração média de 2,1 ± 1,2 h), estudos recentes com amostra composta por maioria de cirurgias eletivas identificaram a duração superior a 130 min como fator de risco independente para complicações, bem como esteve associada a maior tempo de internação.2323 Grocott MP, Pearse RM. Prognostic studies of perioperative risk: robust methodology is needed. Br J Anaesth. 2010;105:243-5.

Devido à coorte ter um número limitado de pacientes e apesar do desfecho óbito ter sido bastante significativo nessa população de alto risco, as variáveis do modelo de regressão foram selecionadas com uma técnica de penalização denominada Lasso para reduzir a possibilidade de overfitting. Nesse cenário deve-se considerar a limitação dos valores da razão de chances obtidos devido aos grandes intervalos de confiança. Além disso, o presente estudo é limitado pelo desenho observacional, tamanho da amostra e recrutamento de pacientes em um único hospital. Entretanto, pode contribuir de forma significativa para padronizar cuidados no contexto em que foi desenvolvido. O conhecimento do perfil dos pacientes atendidos auxilia na definição de prioridades de gerenciamento, sugere a necessidade de criação de linhas de cuidado específicas para grupos identificados como de alto risco, a fim de reduzir complicações e óbitos no perioperatório.

É importante ressaltar que nosso estudo foi feito em instituição terciária de um país em desenvolvimento, o que, juntamente com a gravidade da população estudada, pode ter influenciado os resultados. A associação entre mortalidade perioperatória e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre diferentes países foi recentemente avaliada em pacientes submetidos a anestesia geral. Os autores concluíram que a mortalidade perioperatória caiu significativamente ao longo dos últimos 50 anos, especialmente nos países desenvolvidos.2424 Bainbridge D, Martin J, Arango M, et al. Perioperative and anaesthetic-related mortality in developed and developing countries: a systematic review and meta-analysis. Lancet. 2012;380:1075-81. Entretanto, nos países em desenvolvimento, esse índice segue superior ao dos países desenvolvidos (19-51/10.000 no Brasil contra 20/10.000).33 Braz LG, Braz DG, Cruz DS, et al. Mortality in anesthesia: a systematic review. Clinics. 2009;64:999-1006.

Coorte recente2525 Pearse RM, Moreno RP, Bauer P, et al. Mortality after surgery in Europe: a 7 day cohort study. Lancet. 2012;380:1059-65. confirmou esses resultados, mostrou grande variabilidade de mortalidade pós-cirúrgica entre os países europeus, muito maior nos países com índice de desenvolvimento menor. Esses estudos corroboram a importância da organização dos sistema de saúde nos desfechos pós-cirúrgicos. O reconhecimento dos pacientes de alto risco cirúrgico, que são os responsáveis pelo maior número de óbitos no perioperatório, é fundamental para que se criem estratégias protetoras e linhas assistenciais de cuidados diferenciados. Dados comparativos entre hospitais americanos mostraram que a sobrevida pós-cirúrgica é maior naqueles que reconhecem precocemente os pacientes mais graves, apesar de o número de complicações ser semelhante entre as instituições.2626 Ghaferi AA, Birkmeyer JD, Dimick JB. Variation in hospital mortality associated with inpatient surgery. N Engl J Med. 2009;361:1368-75.

Portanto, pode-se concluir que a melhoria dos desfechos depende fundamentalmente de dois fatores: primeiro, o reconhecimento dos pacientes de maior risco, o qual possibilita a adoção de cuidados individuais e estratificados, auxilia na gestão do fluxo do paciente cirúrgico em curto, médio e longo prazo; segundo, a precocidade no tratamento das complicações, ao minimizar situações de failure to rescue (morte por complicação cirúrgica), possibilita a redução de desfechos adversos. Fatores associados à dificuldade no reconhecimento e tratamento das complicações incluem o alto volume de pacientes e equipe de enfermagem reduzida, assim como falha na comunicação e ausência de escalonamento de risco.2727 Johnston MJ, Arora S, King D, et al. A systematic review to identify the factors that affect failure to rescue and escalation of care in surgery. Surgery. 2015;157:752-63.

O reconhecimento das falhas no processo do atendimento ao paciente cirúrgico é importante para que se proponham melhorias nos diferentes momentos do perioperatório, na tentativa de reduzir a fragmentação do cuidado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2017
  • Aceito
    6 Abr 2018
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