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Hepatotórax crônico devido à ruptura do diafragma direito: um desafio anestésico em um caso raro

Resumo

Justificativa:

A ruptura diafragmática é uma condição incomum e ocorre em 90% no lado esquerdo. No entanto, a incidência de ruptura à direita tem vindo a aumentar junto com o aumento dos acidentes automobilísticos. A herniação do fígado pode tornar-se progressiva, causar atelectasia grave do pulmão direito, resultar num débil estado respiratório e alterações hemodinâmicas.

Relato de caso:

Mulher de 40 anos, estado físico ASA 3, marcada para reparação de hepatotórax que evoluiu de hérnia diafragmática direita, adquirida aos 8 anos, após um acidente automobilístico. Clinicamente apresentava síndrome respiratória restritiva grave, causada pelo hepatotórax. A avaliação anestésica era normal, com exceção da radiografia do tórax, que evidenciava elevação da hemicúpula diafragmática direita, sem desvio traqueal. Diagnóstico foi confirmado por tomografia computadorizada. Depois da recolocação do fígado na cavidade abdominal foram observados um aumento transitório da pressão venosa central, do Stroke Volume Index e Flow Time Corrected (35%) e uma diminuição da resistência vascular sistêmica. Uma vez alcançada a estabilização hemodinâmica geral e hepatoesplênica, bem como da ventilação, a paciente foi transferida entubada, sob ventilação controlada e monitorada para a Unidade de Transplantação Hepática.

Conclusões:

O hepatotórax é uma condição rara e a sua correção pode representar um desafio anestésico. Após a recolocação abdominal do fígado, durante uma cirurgia corretiva, sob anestesia geral, podem ocorrer complicações, principalmente as associadas à reexpansão pulmonar. Um trabalho em equipe eficaz e o planejamento cuidadoso da cirurgia, entre as equipes cirúrgica e anestésica, são a chave para o sucesso.

PALAVRAS-CHAVE
Hepatotórax; Anestesia; Lesão diafragmática

Abstract

Background:

Diaphragmatic rupture is an uncommon condition, with 90% of ruptures occurring on the left side. However, its incidence on the right side is increasing along with the increase in traffic accidents. Liver herniation may become progressive causing severe atelectasis of the right lung, resulting in impaired respiratory status and hemodynamic changes.

Case report:

We report the case of a 40 years old female, ASA III, scheduled for hepatothorax repair that evolved from right diaphragmatic hernia after a car accident when she was 8 years old. Clinically, she had severe restrictive respiratory syndrome caused by the hepatothorax. The anesthetic evaluation was normal, except for the chest X-ray showing elevation of the dome of the right hemidiaphragm without tracheal deviation. Diagnosis was confirmed by CT scan. After liver replacement in the abdominal cavity, a transient increase in central venous pressure, stroke volume index and flow time corrected (35%), and a decrease in systemic vascular resistance were observed. After complete hemodynamic and hepatosplenic stabilization, as well as ventilation, the patient was transferred intubated, under controlled ventilation and monitored, to the liver transplant unit.

Conclusions:

Hepatothorax is a rare condition and its repair may represent an anesthetic challenge. After liver replacement in the abdominal cavity during corrective surgery under general anesthesia complications may occur, particularly associated with pulmonary re-expansion. Effective teamwork and careful planning of surgery, between the surgical and anesthetic teams, are the key to success.

KEYWORDS
Hepatotorax; Anesthesia; Diaphragmatic injury

Introdução

A ruptura traumática do diafragma é uma condição infrequente. Cerca de 90% ocorrem do lado esquerdo, embora a incidência de ruptura do lado direito tenha vindo a aumentar em relação com a maior frequência de acidentes automobilísticos.11 Igai H, Yokomise H, Kumagai K, et al. Delayed hepatothorax due to right-side traumatic diaphragmatic rupture. Gen Thorac Cardiovasc Surg. 2007;55:434-6. A ruptura traumática do diafragma do lado direito pode conduzir à herniação progressiva do fígado, causar atelectasias do pulmão direito e condicionar alterações respiratórias e hemodinâmicas.22 Baek SJ, Kim J, Lee SH. Hepatothorax due to a right diaphragmatic rupture related to duodenal ulcer perforation. World J Gastroenterol. 2012;18:5649-52. A correção de um hepatotórax é sempre cirurgia, pode acarretar importantes desafios anestésicos, notadamente os associados à possibilidade de edema por reexpansão pulmonar e alterações hemodinâmicas.11 Igai H, Yokomise H, Kumagai K, et al. Delayed hepatothorax due to right-side traumatic diaphragmatic rupture. Gen Thorac Cardiovasc Surg. 2007;55:434-6.,22 Baek SJ, Kim J, Lee SH. Hepatothorax due to a right diaphragmatic rupture related to duodenal ulcer perforation. World J Gastroenterol. 2012;18:5649-52.

Relato de caso

Mulher de 40 anos, estado físico da American Society of Anesthesiology (ASA) 3, programada para a reparação eletiva de um hepatotórax devido a ruptura crônica do diafragma direito. Essa condição foi adquirida após um acidente automobilístico aos 8 anos, no qual apenas houve necessidade de intervenção cirúrgica maxilofacial por fratura da mandíbula, sem que outros incidentes tivessem sido reconhecidos. Com o decorrer do tempo, a ruptura diafragmática não identificada propiciou o desenvolvimento progressivo de um hepatotórax, que conduziu ao aparecimento gradual de queixas de dispneia, acabou a paciente por desenvolver uma síndrome restritiva respiratória grave.

Na avaliação pré-anestésica o exame físico apenas revelava diminuição dos ruídos adventícios no hemitórax direito. Os testes analíticos e gasométricos pré-operatórios e o eletrocardiograma não apresentavam alterações dignas de nota. O ecocardiograma revelou uma boa função sistólica global com fração de ejeção de 62%. A radiografia simples de tórax mostrava uma elevação da hemicúpula diafragmática direita, sem desvio da traqueia (fig. 1), e as provas funcionais respiratórias também foram feitas, revelaram um padrão ventilatório obstrutivo e restritivo misto com resposta positiva ao broncodilatador.

Figura 1
Radiografia simples do tórax que apresenta elevação da hemicúpula diafragmática direita.

O diagnóstico foi confirmado por tomografia axial computadorizada torácica e abdominal que revelou uma hérnia diafragmática, com herniação completa do fígado no hemitórax direito com edema periportal, shunt veno-venoso e kinking da veia porta (fig. 2). Apresentava, igualmente, compressão das câmaras cardíacas direitas pelo fígado e um desvio contralateral do mediastino.

Figura 2
Diagnóstico confirmado por tomografia axial computadorizada: hérnia diafragmática com herniação quase completa do fígado no hemitórax direito.

Perante os achados imagiológicos e clínica apresentada, foi feito briefing anestésico-cirúrgico pré-operatório, no qual foram planejadas as atitudes e os procedimentos tendo em conta as prováveis dificuldades na dissecção, possível reconstrução vascular e eventual necessidade de autotransplante hepático (fig. 3).

Figura 3
Imagem intraoperatória que demonstra ausência do fígado na cavidade abdominal.

Dado se tratar de uma lesão crônica com vários anos de evolução, o risco de desenvolvimento de edema de reexpansão pulmonar era considerável, pelo que estava disponível tubo de duplo lúmem e broncofibroscópio na sala operatória.

Foi feita uma anestesia geral balanceada, induzida com fentanil 75 µg, 170 mg de propofol e 14 mg cisatracúrio. Na manutenção anestésica foi usado sevoflurano e remifentanil foi usado em perfusão durante toda a cirurgia.

Parâmetros de monitoração standard da ASA, bem como pressão venosa central (após colocação de cateter venoso central ecoguiado na veia jugular interna direita), pressão arterial invasiva (artéria radial esquerda), profundidade da anestesia (pelo bispectral index), diurese e pressão intra-abdominal foram monitorados. Foi igualmente usado o doppler esofágico durante o procedimento.

Foi feita uma laparotomia cirúrgica com incisão tipo hockey stick. Durante o reposicionamento hepático após a colocação do fígado na cavidade abdominal, se verificou um aumento transitório da pressão venosa central, do Stroke Volume Index (SVI) e do Flow Time Corrected (FTc) de 35%, bem como uma diminuição da Systemic Vascular Resistance (SVR), através do doppler esofágico. Posteriormente, procedemos a manobras de reexpansão pulmonar que decorreram sem intercorrências. No fim, uma vez verificada a estabilização hemodinâmica geral, hepatoesplênica e ventilatória, a cirurgia foi concluída, monitorou-se durante o processo de encerramento da parede abdominal a pressão intra-abdominal, que se manteve sempre dentro dos limites de segurança.

A paciente foi transferida entubada, sob ventilação controlada e monitorada para a Unidade de Transplantação Hepática da nossa instituição hospitalar, conforme planejado.

Pelo fato de se ter mantido hemodinamicamente estável e apresentar um controle por ecodoppler abdominal sem alterações relevantes, foi extubada 16 horas após a cirurgia, sem complicações. Teve alta da nossa Unidade de Transplantação Hepática ao quinto dia do pós-operatório.

Discussão

O diafragma é um músculo extremamente importante para a respiração. A ruptura diafragmática pode conduzir a lesão funcional, resulta no surgimento de dificuldade respiratória, atelectasias e desvio do mediastino,33 Hwang SW, Kim HY, Byun JH. Management of patients with traumatic rupture of the diaphragm. Korean J Thorac Cardiovasc Surg. 2011;44:348-54. a hérnia hemidiafragmática direita é mais incomum do que a esquerda.

A hérnia diafragmática direita é uma lesão rara, com uma incidência de 0,25%-1% após trauma abdominal fechado. O diagnóstico pode ser atrasado e apenas objetivado anos após o evento traumático.44 Peker Y, Tatar F, Kahya MC, et al. Dislocation of three segments of the liver due to hernia of the right diaphragm: report of a case and review of the literature. Hernia. 2007;11:63-5. Tendo em conta o tipo de evento traumático, usualmente podem estar associadas outras lesões abdominais, pélvicas, torácicas e das extremidades.55 Tiberio GA, Portolani N, Coniglio A, et al. Traumatic lesions oh the diaphragm. Our experience in 33 cases and review of the literature. Acta Chir Belg. 2005;1:82-8.,66 Rubikas R. Diaphragmatic injuries. Eur J Cardiothrorac Surg. 2001;1:53-7.

A herniação dos órgãos abdominais para a cavidade torácica pode causar lesões e alterações no funcionamento dos órgãos herniados, provocar sintomatologia cardiocirculatória, como arritmias, e envolver o sistema respiratório, como no caso da nossa paciente. A apresentação clínica pode variar amplamente, depende do grau da lesão diafragmática. No entanto, embora raramente, a herniação dos órgãos abdominais para a cavidade torácica pode ser assintomática.77 Stagnitti F, Priore F, Corona F, et al. Traumatic lesions of the diaphragm. G Chi. 2004;:276-82, 8-9.,88 Ould-Ahmed M, Choplain JN, Andre M, et al. Delayed and fortuitous diagnosis of right diaphragmatic rupture during preoperative evaluation. Ann Fr Anesth Reanim. 2005;4:416-20.

Até ao presente momento não existe um rastreamento de ruptura do diafragma de forma rápida e confiável. Estimou-se, em relatos anteriores, que a radiografia do tórax identifica apenas 1 em cada 3 pacientes e a sensibilidade é inferior se o paciente estiver intubado.99 Gelman R, Mirvis SE, Gens D. Diaphragmatic rupture due to blunt trauma: sensitivity of plain chest radiographs. AJR. 1991;156:51-7.,1010 Shapiro MJ, Heiberg E, Durham RM, et al. The unreliability of CT scans and initial chest radiographs in evaluating blunt trauma induced diaphragmatic rupture. Clin Radiol. 1996;51:27-30. Embora a ecografia FAST – Focused Assessment with Sonography for Trauma seja usada principalmente para detectar sangue livre intraperitoneal, pode ocasionalmente detectar um defeito do diafragma. Uma tomografia axial computadorizada pode ajudar no diagnóstico.1111 Porcelli M, Prychyna O, Rosenthal A, et al. Hepatothorax: a rare outcome of high-speed trauma. Case Rep Emerg Med. 2011, http://dx.doi.org/10.1155/2011/905641.
http://dx.doi.org/10.1155/2011/905641...
No entanto, alguns estudos referem uma sensibilidade superior para a tomografia helicoidal computadurizada.1212 Nchimi A, Szapiro D, Ghaye B, et al. Helical CT of blunt diaphragmatic rupture. AJR Am J Roentgenol. 2005;184:24-30.

O diagnóstico de ruptura diafragmática no pré-operatório constitui um desafio, com taxas que variam de 30% a 61%.1010 Shapiro MJ, Heiberg E, Durham RM, et al. The unreliability of CT scans and initial chest radiographs in evaluating blunt trauma induced diaphragmatic rupture. Clin Radiol. 1996;51:27-30.,1313 Hoang AD, De Backer D, Bouazza F, et al. Undiagnosed rupture of right hemidiaphragm–hepatothorax: a case report. Acta Chir Belg. 2002;102:353-5.

No caso relatado, a paciente foi submetida a um procedimento cirúrgico complexo com potencial para complicações graves, pelo que foi essencial a abordagem multidisciplinar da equipa anestésico-cirúrgica. Após a recolocação do fígado na cavidade abdominal se verificaram as alterações hemodinâmicas já relatadas, a equipe estava preparada, caso houvesse a perda de domicílio por parte do órgão ou lesão de vasos, para avançar para um autotransplante, que não foi necessário.

Conclusão

Relatamos o raro caso de uma paciente com um hepatotórax crônico submetida a cirurgia corretiva, sob anestesia geral, bem-sucedida, mesmo após a recolocação abdominal do fígado e reexpansão do pulmão.

O hepatotórax crônico é uma condição rara, mas a sua correção está associada a importantes desafios anestésicos e cirúrgicos para os quais o presente caso alerta, notadamente a reunião pré-operatória entre equipe anestésica e cirúrgica, planejamento da abordagem da via aérea, intubação orotraqueal, padrão ventilatório, monitoração hemodinâmica geral e hepática.

Os autores acreditam que a apresentação deste caso é útil para relembrar a existência dessa rara condição e alertar para os possíveis desafios anestésicos associados à sua correção.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2015
  • Aceito
    17 Ago 2015
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