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Abordagem perioperatória de grávida com angioedema hereditário submetida a cesariana: relato de caso

Resumo

O angioedema hereditário é uma doença autossômica dominante, que se manifesta por crises súbitas, recorrentes e de gravidade variável de edema subcutâneo e submucoso, que podem ocorrer espontaneamente ou em resposta a gatilhos. São conhecidos três tipos de angioedema hereditário. A doença é condicionada por diminuição do nível plasmático ou alteração da capacidade funcional do inibidor de C1, com aumento da bradicinina e da permeabilidade vascular, com consequente edema. Várias medidas devem ser tomadas no período perioperatório de forma a evitar uma crise aguda. A profilaxia deverá ser realizada durante a gravidez antes de qualquer procedimento cirúrgico, antes de procedimentos dentários, quando existe manuseamento da via aérea, nos doentes com episódios prévios de angioedema e quando há alterações significativas da volemia. A literatura é escassa no que que diz respeito à associação de angioedema hereditário e gravidez. Descrevemos um caso de sucesso de uma grávida com angioedema hereditário tipo I submetida a cesariana.

PALAVRAS-CHAVE
Angioedema hereditário; Abordagem anestésica; Grávida; Cesariana

Abstract

Hereditary angioedema is an autosomal dominant disorder, presenting as sudden and recurring episodes of variable severity of subcutaneous and mucosa edema that may occur spontaneously or in response to triggers. There are three knwon types of hereditary angioedema. The disorder is caused by decrease in the plasma level or change in the functional capacity of C1 inhibitor, with increase in bradykinin and in vascular permeability, and consequent edema. Several measures are required in the perioperative period in order to avoid an acute attack. Prophylaxis should be carried out throughout pregnancy before any surgical procedure, before dental procedures, upon airway handling, on patients with previous episodes of angioedema, and when there are significant changes in volemia. The literature is scarce in regard to the association between hereditary angioedema and pregnancy. We describe a successful case of a pregnant patient with type I hereditary angioedema submitted to a C-section.

KEYWORDS
Hereditary angioedema; Anesthetic management; Pregnant patient; Cesarean section

Introdução

O Angioedema Hereditário (AEH) é uma doença rara, de transmissão autossômica dominante, que se carateriza por edema da pele e mucosas, sendo causada por um déficit de inibidor de C1 (C1 INH) do complemento.11 Tavares M, Gonçalo M, Pais M, et al. Angioedema hereditário e gravidez — um caso clinico. Acta Obstet Ginecol Port. 2013;7:143-5. Esta é uma proteína responsável pela inibição de C1 e das proteases do sistema de contato (calicreína e fator XII), da coagulação (fator XI e trombina) e fibrinolíticas (plasmina e activador do plasminogênio tecidual). A consequência clínica do déficit de C1 INH deve-se ao aumento da bradicinina, que, através do seu receptor B2, aumenta a permeabilidade vascular, com vasodilatação e contração do músculo liso não vascular. O AEH manifesta-se por episódios intermitentes de edema cutâneo e/ou das mucosas, que atinge o trato respiratório superior, a pele e o trato gastrointestinal. Foram descritos três tipos de AEH: no Tipo I, mais frequente (85% dos casos), a mutação condiciona produção ineficiente da proteína inibidora de C1 (< 40% do valor normal); no Tipo II (15% dos casos) há produção de proteína em quantidades normais, mas não funcionante (< 50% da atividade normal); no Tipo III, raro, em que a mutação é desconhecida, provavelmente no fator XII.22 Rodrigues C, Adrego T, Vieira H. Abordagem perioperatória de doentes com angioedema hereditário. Rev Soc Port Anestesiol. 2018;27:70-7.

Caso clínico

Descrevemos o caso clínico de uma primigesta de 34 anos com AEH do Tipo I diagnosticada aos 19 anos. Após crises recorrentes de dor abdominal, em 2002 ela foi submetida à laparatomia exploradora por suspeita de apendicite. Em 2004, teve episódio súbito de edema facial e das extremidades superiores e inferiores sem fatores precipitantes identificáveis, época em que é referenciada a consulta de imunoalergologia, tendo sido o diagnóstico estabelecido nessa altura e a doente, medicada com danazol 100 mg/dia desde então. Em 2009, foi submetida a cirurgia maxilo-facial para excisão dentária após tratamento profilático com C1-INH, sem intercorrências. Relativamente aos dados antropométricos, trata-se de uma mulher com 78 kg, 1,70 m, com um Índice de Massa Corporal de 27 kg.m-2. Sem outra patologia associada, sem outra medicação habitual, com alergia a camarão conhecida. Sem histórico familiar positivo de AEH.

Analiticamente a destacar doseamentos de C1-INH com valores muito baixos (< 0,060) (normal: 0,210-0,390 g.L-1), com atividade funcional que depois da medicação com danazol passa a 57% (normal > 68%; baixo < 40%). O valor de C4 era baixo (0,02 a 0,07 g.L-1) mesmo fora das crises (normal: 0,1 a 0,40 g.L-1). Suspendeu a terapia com danazol antes de engravidar por indicação médica e durante a gravidez teve duas crises de edema das extremidades, com melhoria após tratamento com concentrado de C1-INH.

Proposta para cesariana eletiva por feto com apresentação pélvica e oligâmnios às 39 semanas de gestação. Após cuidadosa avaliação pré-anestésica e de acordo com o protocolo proposto pelo seu médico assistente, profilaticamente foi medicada uma hora antes da cesariana com 500U de concentrado de C1-INH administrado em bolus Endovenoso (EV) lento (2-3 minutos). Adicionalmente foi-lhe administrado 1 g de ácido tranexâmico em bolus e, posteriormente, perfusão adicional de 1 g durante 6 horas. Pré-operatoriamente o sangue da doente foi tipado e foram mantidas duas unidades de plasma fresco congelado reservado e icatibanto, um antagonista do recetor de bradicinina, ficou disponível para administração na eventualidade de um quadro clínico agudo.

À chegada ao bloco operatório foi colocado um acesso venoso periférico sob monitorização standard. Optou-se pela abordagem do neuroeixo, com realização de técnica sequencial, com abordagem mediana a nível de L3-L4, com injeção intratecal de 10 mg de bupivacaína 0,5%, com bloqueio até T10. O procedimento cirúrgico demorou 40 minutos, a doente manteve-se hemodinamicamente estável, com perdas hemáticas estimadas em 500 mL, tendo o período intraoperatório decorrido sem intercorrências. Foi feita profilaxia antibiótica com 2 g de cefazolina.

Ela fez o recobro pós-operatório na Unidade de Cuidados Intensivos durante 24 horas, onde foram administradas mais 500U de concentrado de inibidor de C1. Em termos analgésicos ficou sob perfusão epidural através de um Drug Infusion Balloon (DIB) com ropivacaína 0,1% a 5cc/h, e medicada com paracetamol 1 g EV 6/6 h e tramadol 100 mg 8/8 h em SOS. A doente teve alta hospitalar após 72 horas, sem queixas álgicas e sem episódios de exacerbação da sua doença.

Discussão

Existem poucos relatos face à evolução do AEH durante gravidez, parto e puerpério. O nosso caso acrescenta, ainda, o fato de a paciente ser submetida a uma cesariana. Um dos potenciais gatilhos para uma crise de AEH é o trauma anestésico e cirúrgico. Para, além disso, no âmbito do curso dessa patologia, os fatores hormonais parecem ter particular importância na precipitação e agravamento das crises nas mulheres, havendo uma variação considerável da frequência dessas de acordo com as fases da vida: infância, puberdade, menstruação, gravidez e menopausa. O estrogênio tem um papel importante na síntese de vários genes e proteínas, nomeadamente da cascata da coagulação e do sistema cinina-calicreína, aumentando a síntese de bradicinina e calicreína e, consequentemente, a permeabilidade vascular. Desta forma, por ação do estrogênio, existe um consumo aumentado de C1-INH.33 Bouillet L. Hereditary angioedema in women. Allergy Asthma Clin Immunol. 2010;6:17.

Em cirurgia eletiva perante um doente com AEH, a conduta deve incluir medidas para a prevenção do angioedema22 Rodrigues C, Adrego T, Vieira H. Abordagem perioperatória de doentes com angioedema hereditário. Rev Soc Port Anestesiol. 2018;27:70-7.:

  1. Utilização de derivados de androgênio como o danazol, até 5 a 7 dias previamente à cirurgia;

  2. Administrar pré-medicacão ansiolítica (benzodiazepinas de curta duração ou opioide na véspera da cirurgia e à entrada do bloco);

  3. Uso profilático de fator C1-INH recombinante (10-20 U.kg-1) 30 a 60 minutos antes do procedimento cirúrgico;

  4. Utilização de ácido tranexâmico (1 g em bolus seguido de perfusão de 1 g em 6 horas), opcional como terapêutica profilática dupla;

  5. Preferir técnica anestésica locorregional face à anestesia geral;

  6. Disponibilidade de fármacos para tratamento de episódio agudo severo, como fator C1-INH recombinante (500-1000 U), antagonistas dos receptores da bradicinina (icatibanto 30 mg SC) ou, se não disponíveis, plasma fresco congelado (10 mL.kg-1 ou uma a duas unidades);

  7. Promover controle analgésico adequado e vigilância no pós-operatório.

Nesta doente em particular, os fármacos usados na profilaxia de longa duração, como o danazol, foram suspensos antes da gravidez pelo risco de teratogenia e virilização de fetos do sexo feminino.11 Tavares M, Gonçalo M, Pais M, et al. Angioedema hereditário e gravidez — um caso clinico. Acta Obstet Ginecol Port. 2013;7:143-5. A medicação pré-anestésica torna-se importante nesses doentes para diminuir os níveis de estresse e ansiedade, possíveis causas de crise. No entanto, por se tratar de uma gestante, não é indicada a utilização de opioides ou benzodiazepinas, por risco de passagem utero-placentária para o feto. Na abordagem perioperatória, tal como preconizado, foi feita profilaxia com C1-INH. A profilaxia não é totalmente efetiva na prevenção de crise, pelo que deverá ser assegurada a disponibilidade de doses de resgate de concentrado de C1-INH na farmácia do hospital e icatibanto, um antagonista seletivo que compete pelo receptor da bradicinina de Tipo 2, administrado nos episódios agudos, que deverão acompanhar o doente nas primeiras 24 horas. Em situações urgentes, e quando esse fármaco não está disponível, pode ser administrado plasma fresco congelado. Por vezes, na ausência de concentrado de C1-INH, antifibrinolíticos, como o ácido tranexâmico, podem ser utilizados.22 Rodrigues C, Adrego T, Vieira H. Abordagem perioperatória de doentes com angioedema hereditário. Rev Soc Port Anestesiol. 2018;27:70-7. Apesar de haver pouca evidência na sua eficácia, Sheffer et al. veio demonstrar alguma utilidade como tratamento profilático a curto prazo, e nesta paciente em particular foi administrado concomitantemente, pois trata-se de uma cirurgia com potencial hemorrágico importante, sendo que alterações bruscas na volemia podem desencadear uma crise.44 Horiuchi T, Hide M, Yamashita K, et al. The use of tranexamic acid for on-demand and prophylactic treatment of hereditary angioedema — a systematic review. J Cutan Immunol Allergy. 2018;1:126-38.

Sempre que possível, o anestesiologista deverá preferir técnicas de anestesia locorregional, em detrimento da anestesia geral, para evitar a manipulação da via aérea, que é um importante desencadeador de crise, razão pela qual se optou por fazer uma técnica sequencial. Não obstante, deve estar disponível material para a abordagem de via aérea difícil. Não parece haver limitações na escolha dos fármacos anestésicos. Apesar de a literatura sugerir que existe um mecanismo fisiopatológico subjacente a angioedema provocado pela desgranulação de mastócitos induzida pelos opiáceos, não está demonstrado que a utilização de opioides seja contraindicada nos doentes com AEH, mesmo por via do neuroeixo.55 Maynard A, Burger C, Schlesinger J. Angioedema: perioperative management. SAGE Open Med Case Rep. 2017;5:1-4. No entanto, optou-se por promover uma analgesia multimodal por meio de DIB epidural com anestésico local e analgesia endovenosa, com recurso a opioides apenas como terapêutica de resgate. Está desaconselhada a utilização de inibidores de Enzima de Conversão da Angiotensina (ECA), uma vez que esta é um catabolizante da bradicinina. A utilização de anti-inflamatórios não esteroides deve ser evitada, pois estes inibem a síntese de prostaglandinas, causando desgranulação cutânea dos mastócitos e podendo desencadear angioedema.66 Conceição L, Martinho H, Azenha M. Abordagem anestésica de doente com hereditary angioedema proposto para cirurgia electiva. Rev Soc Port Anestesiol. 2013;22:20-3.

Devido ao risco de crise de angioedema no pós-operatório, esses doentes devem permanecer em uma unidade com vigilância permanente, sob vigilância de pessoal treinado em via aérea durante as primeiras 24-36 horas.

Em conclusão, apesar de ser uma patologia rara, o anestesiologista deve ter noção da fisiopatologia do AEH, sendo crucial um planejamento adequado dos atos anestésicos e cirúrgicos. Neste caso foram tomados os cuidados apropriados e as medidas preventivas imperativas que contribuíram para o desfecho positivo de uma cesariana realizada numa paciente com diagnóstico de AEH.

References

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    Tavares M, Gonçalo M, Pais M, et al. Angioedema hereditário e gravidez — um caso clinico. Acta Obstet Ginecol Port. 2013;7:143-5.
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    Rodrigues C, Adrego T, Vieira H. Abordagem perioperatória de doentes com angioedema hereditário. Rev Soc Port Anestesiol. 2018;27:70-7.
  • 3
    Bouillet L. Hereditary angioedema in women. Allergy Asthma Clin Immunol. 2010;6:17.
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    Horiuchi T, Hide M, Yamashita K, et al. The use of tranexamic acid for on-demand and prophylactic treatment of hereditary angioedema — a systematic review. J Cutan Immunol Allergy. 2018;1:126-38.
  • 5
    Maynard A, Burger C, Schlesinger J. Angioedema: perioperative management. SAGE Open Med Case Rep. 2017;5:1-4.
  • 6
    Conceição L, Martinho H, Azenha M. Abordagem anestésica de doente com hereditary angioedema proposto para cirurgia electiva. Rev Soc Port Anestesiol. 2013;22:20-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2019
  • Aceito
    26 Out 2019
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