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Amaurose e paralisia do III e do VI pares cranianos contralaterais após bloqueio peribulbar - relato de caso

Resumo

Justificativa e objetivos:

A anestesia peribulbar surgiu como uma opção mais segura quando comparada com o bloqueio retrobulbar intraconal. Ainda assim, a anestesia peribulbar não pode ser considerada isenta de riscos. Inúmeras complicações foram descritas quando da aplicação dessa técnica. O presente relato tem como objetivo descrever um caso raro caracterizado por amaurose e paralisia contralaterais quando da tentativa de se fazer a anestesia peribulbar.

Relato de caso:

Paciente masculino, 75 anos, estado físico ASA II, submetido à facectomia por facoemulsificação com implante de lente intraocular. Sedado com fentanil e midazolam e submetido a APB. Não houve intercorrências durante a cirurgia. Após o término do procedimento o paciente relatou ausência de visão no olho contralateral. Foram observadas acinesia da musculatura inervada pelo III e VI pares cranianos, ptose palpebral e pupilas de tamanho médio, não responsivas ao estímulo luminoso. Após quatro horas da anestesia, houve recuperação completa da visão, da movimentação das pálpebras e do globo ocular não operado.

Conclusões:

Durante a APB, estruturas localizadas no espaço intraconal podem ser atingidas acidentalmente levando a complicações como a descrita no relato acima. O respeito às diretrizes técnicas e o uso de agulhas com o tamanho adequado podem reduzir o risco de tal complicação, mas não de forma completa.

PALAVRAS-CHAVE
Anestesia peribulbar; Bloqueio retrobulbar; Complicações; Amaurose; Paralisia; Contralaterais

Abstract

Background and objectives:

Peribulbar anesthesia has emerged as a safer option compared with intraconal retrobulbar block. Still, peribulbar anesthesia may not be considered without risk. Numerous complications have been described when performing this technique. This report aims to describe a rare case of amaurosis and contralateral paralysis while attempting to perform a peribulbar anesthesia.

Case report:

Male patient, 75-year old, physical status ASA II, undergoing cataract surgery by phacoemulsification with intraocular lens implantation. Sedated with fentanyl and midazolam and subjected to peribulbar anesthesia. There were no complications during surgery. After finishing the procedure, the patient reported lack of vision in the contralateral eye. Akinesia of the muscles innervated by the cranial nerve pairs III and VI, ptosis, and medium-sized pupils unresponsive to light stimulus were observed. Four hours after anesthesia, complete recovery of vision and eyelid and eyeball movements was seen in the non-operated eye.

Conclusions:

During peribulbar anesthesia, structures located in the intraconal space can be accidentally hit leading to complications such as described in the above report. Following the technical guidelines and using appropriate size needles may reduce the risk of such complication, but not completely.

KEYWORDS
Peribulbar anesthesia; Retrobulbar block; Complications; Amaurosis; Paralysis; Contralateral

Introdução

Apesar do aumento da popularidade da anestesia local tópica em detrimento das demais modalidades de técnica, como o bloqueio retrobulbar ou o peribulbar, para a correção cirúrgica da catarata, ainda há indicações para a anestesia por meio da introdução de agulha na cavidade orbitária, apesar dos riscos associados a tais procedimentos. Isso porque a técnica é aplicada “às cegas”, uma vez que não se pode afirmar com certeza a posição exata da extremidade da agulha a partir do momento em que essa perfura a pele. Nesse contexto, a anestesia peribulbar (APB) surgiu como uma opção mais segura, quando comparada com o bloqueio retrobulbar intraconal, pois a injeção da solução anestésica ocorre no forame do cone muscular, evita riscos inerentes à presença da agulha próximo ao nervo óptico e à artéria oftálmica.11 Gillart T, Dualé C, Curt I. Ophthalmic regional anesthesia. Curr Opin Anaesthesiol. 2002;15:503-9.,22 Ripart J, Lefrant JY, De La Coussaye JE, et al. Peribulbar versus retrobulbar anesthesia for ophthalmic surgery: an anatomical comparison of extraconal and intraconal injections. Anesthesiology. 2001;94:56-62. Ainda assim, a APB não pode ser considerada isenta de riscos. Inúmeras complicações foram descritas, quando da aplicação dessa técnica.33 Davis DB, Mandel MR. Efficacy and complication rate of 16,244 consecutive peribulbar blocks. A prospective multicenter study. J Cataract Refract Surg. 1994;20:327-37. Uma delas é a injeção do anestésico local após perfuração das meninges que envolvem o nervo óptico, o que permite a dispersão da solução anestésica para o sistema nervoso central (SNC) e causa alterações hemodinâmicas e depressão respiratória por atuação no tronco cerebral.44 Carneiro HM, Oliveira B, Ávila MP, et al. Anestesia do tronco encefálico após bloqueio retrobulbar extraconal. É possível evitar? Relato de caso. Rev Bras Anestesiol. 2007;57:391-400. Recentemente, Kriles et al.55 Krilis M, Zeldovich A, Garrick R, et al. Vision loss and partial third nerve palsy following contralateral peribulbar anesthesia. J Cataract Refract Surg. 2013;39:132-3. descreveram um caso caracterizado por amaurose e perda parcial da função do III par de nervos cranianos contralaterais após APB, mas sem comprometimento do SNC. Segundo os autores, é provável que a injeção tenha sido intraneural, ou seja, após a perfuração das meninges e a bainha do nervo óptico, o que permitiu a dispersão do anestésico pelo trajeto do nervo para o lado contralateral sem a passagem pelo líquor.

O presente relato descreve um caso caracterizado por amaurose e perda completa da função do III e do VI par de nervos cranianos contralaterais, sem alteração do SNC, quando da tentativa de se fazer a APB.

Relato de caso

Paciente masculino, 75 anos, estado físico ASA II, portador de hipertensão arterial sistêmica e catarata em olho direito. Submetido à facectomia por facoemulsificação com implante de lente intraocular. Após venóclise com cateter 22G, foi iniciada infusão de solução salina a 0,9%. O paciente foi monitorado com cardioscopia contínua, pressão arterial (PA) não invasiva e oximetria de pulso. A PA inicial era de 160 × 90 mmHg e a frequência cardíaca (FC) de 70 batimentos por minuto. Administrou-se oxigênio sob máscara facial, com fluxo de 5 L.min-1, e a sedação foi feita com fentanil (50 µg) e midazolam (1 mg) por via venosa. Após antissepsia da região periorbital com iodo povidona, os pacientes foram submetidos à APB, com técnica da dupla injeção, com agulha 23G, 25 mm. Os primeiros 3 mL da solução de anestésico local (ropivacaína 1% associada à hialuronidase 20 UI.ml-1) foram depositados por injeção imediatamente lateral ao forame supraorbitário e 3 mL adicionais, por injeção na junção do terço lateral com os dois terços mediais da rima orbitária inferior. O olhar do paciente foi mantido em posição neutra durante ambas as injeções. Após cinco minutos, foi observada a acinesia ocular completa e o início do procedimento autorizado. Não houve intercorrências durante a cirurgia, cuja duração foi de aproximadamente 60 minutos. Imediatamente após o término do procedimento e da retirada dos campos cirúrgicos, o paciente relatou ausência de visão no olho contralateral. Foram observadas acinesia da musculatura inervada pelo III e VI pares cranianos, ptose palpebral e pupilas de tamanho médio, não responsivas ao estímulo luminoso. O paciente foi levado para a Sala de Recuperação Pós-Anestésica, onde permaneceu lúcido e hemodinamicamente estável. Após quatro horas da anestesia, houve recuperação completa da visão, da movimentação das pálpebras e do globo ocular não operado. O exame oftalmológico feito em ambos os olhos no dia seguinte à cirurgia não evidenciou qualquer alteração, além das esperadas para o primeiro dia de pós-operatório.

Discussão

O presente relato descreve um caso de amaurose contralateral associada à perda completa da função do III e do VI par de nervos cranianos quando da tentativa de se fazer a APB. Há descrições, embora raras, sobre casos em que houve perda transitória da visão contralateral após o bloqueio retrobulbar.66 Follette JW, LoCascio JA. Bilateral amaurosis following unilateral retrobulbar block [letter]. Anesthesiology. 1985;63:237-8.

7 Antoszyk AN, Buckley EG. Contralateral decreased visual acuity and extraocular muscle palsies following retrobulbar anesthesia. Ophthalmology. 1986;93:462-5.
-88 Friedberg HL, Kline OR. Contralateral amaurosis after retrobulbar injection. Am J Ophthalmol. 1986;101:688-90. O comprometimento adicional do III par craniano contralateral também foi citado após a aplicação dessa técnica anestésica.99 Capote AC, Ureña FJB, Ramos MAF, et al. Contralateral amaurosis and extraocular muscle palsies after retrobulbar injection. Arch Soc Esp Oftalmol. 2006;81:45-8.,77 Antoszyk AN, Buckley EG. Contralateral decreased visual acuity and extraocular muscle palsies following retrobulbar anesthesia. Ophthalmology. 1986;93:462-5. No entanto, apenas um autor cita a ocorrência dessa complicação após a APB.55 Krilis M, Zeldovich A, Garrick R, et al. Vision loss and partial third nerve palsy following contralateral peribulbar anesthesia. J Cataract Refract Surg. 2013;39:132-3. Nenhum relato cita o envolvimento contralateral do II, III e VI pares cranianos, como o presente caso. O nervo óptico é envolto pelas três camadas meníngeas, caracteriza-se como uma extensão extracraniana do espaço subaracnoideo. A punção inadvertida das meninges que envolvem o nervo óptico possibilita a dispersão do anestésico local para o espaço subaracnoideo e, consequentemente, a intoxicação do SNC.1010 Nicoll JM, Acharya PA, Ahlen K, et al. Central nervous system complications after 6000 retrobulbar block. Anesth Analg. 1987;66:1298-302. Embora a técnica adotada tenha sido a APB, o que pressupõe que a injeção ocorreu no espaço retrobulbar extraconal, pelas alterações observadas no presente relato presume-se que houve penetração inadvertida do espaço intraconal. Somente dessa forma poderia haver lesão da camada meníngea que envolve o nervo óptico, cujo trajeto se faz na porção central do cone formado pelos músculos extrínsecos do olho. A ausência de sinais como confusão mental, hiperatividade simpática ou depressão respiratória reforça a hipótese de que a agulha tenha perfurado também a bainha do nervo ótico, o que permitiu que a solução anestésica caminhasse pelo trajeto do nervo, passasse pelo quiasma ótico e se dirigisse para a órbita contralateral, sem que houvesse elevação significativa da concentração de AL no espaço liquórico. É provável que a dispersão da solução tenha permitido o bloqueio adicional do III e VI pares cranianos. Outra possível explicação para a ocorrência de amaurose transitória seria a oclusão da artéria central da retina após injeção intraneural ou mesmo após APB, resultado do vasoespasmo após a administração do AL.1111 Brod RD. Transient central retinal artery occlusion and contralateral amaurosis after retrobulbar anesthetic injection. Ophthalmic Surg. 1989;20:643-6.,1212 Vinerovsky A, Rath EZ, Rehany U, et al. Central retinal artery occlusion after peribulbar anesthesia. J Cataract Refract Surg. 2004;30:913-5. No presente relato, o anestésico local empregado foi a ropivacaína. Estudos experimentais feitos em animais demonstraram a ação vasoconstritora direta induzida por esse agente na vasculatura arterial.1313 Nakamura K, Toda H, Kakuyama M, et al. Direct vascular effect of ropivacaine in femoral artery and vein of the dog. Acta Anaesthesiol Scand. 1993;37:269-73.,1414 Ishiyama T, Dohi S, Iida H, et al. The effects of topical and intravenous ropivacaine on canine pial microcirculation. Anesth Analg. 1997;85:75-81. Duas orientações frequentemente citadas e adotadas no presente relato não foram suficientes para evitar a ocorrência da punção inadvertida das meninges que envolvem o nervo ótico. A primeira foi o tamanho da agulha empregada. O melhor conhecimento da anatomia da órbita permitiu a observação de que agulhas menores, no máximo 30 mm de comprimento, possibilitam a execução da APB de forma mais segura.1515 Katsev DA, Drews RC, Rose BT. An anatomic study of retrobulbar needle path length. Ophthalmology. 1989;96:1221-4.,1616 Van den Berg AA. An audit of peribulbar blockade using 15 mm, 25 mm and 37.5 mm needles, and sub-Tenons injection. Anaesthesia. 2004;59:775-80. A segunda orientação adotada foi a feitura do bloqueio com o olho em posição neutra. Sabe-se que a posição de adução e para cima facilita a exposição do nervo ótico à punção acidental.1717 Rubin AP. Complications of local anaesthesia for ophthalmic surgery. Br J Anaesth. 1995;75:93-6. Portanto, durante a anestesia peribulbar, estruturas localizadas no espaço intraconal, como o nervo óptico, podem ser comprometidas de forma inadvertida. A tendência atual (não adotada no presente relato) para o bloqueio peribulbar é a feitura de punção única (inferoexterna), evita-se a superointerna devido ao risco aumentado de perfuração do globo ocular e de vasos da órbita, bem como de injeção do anestésico local nos músculos oblíquo superior e troclear, causa potencial de estrabismo pós-operatório.1818 Mc Goldrick KE, Gayer SI. Anesthesia for ophthalmologic surgery. In: Barash PG, Cullen BF, Stoelting RK, editors. Clinical anesthesia. 7ª ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2013. p. 1373-99.,1919 Capó H, Roth E, Johnson T, et al. Vertical strabismus after cataract surgery. Ophthalmology. 1996;103:918. O respeito às diretrizes técnicas e o uso de agulhas com o tamanho adequado podem reduzir o risco de tal complicação, mas não de forma completa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2016
  • Aceito
    19 Jul 2016
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