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Paciente 4.0 - O desafio do cuidado aos pacientes muito idosos

O termo “muito idoso” ou “grande idoso” define o paciente com mais de 80 anos, e essa faixa etária tem sido denominada “quarta idade”.[1]1 Higgs P, Gilleard C. Frailty, abjection and the ‘othering’ of the fourth age. Health Sociol Rev. 2014;23:10-9. Estima-se que, em 2050, mais de 20% da população global terá 60 anos ou mais;[2]2 United Nations. Department of Economic and Social Affairs. World Population Prospects; 2019, https://population.un.org/wpp/Download/Standard/Population/ [acesso em 28 de fevereiro de 2020].
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portanto, a população muito idosa tende a crescer e a expectativa é que em 20 anos, o número de idosos ultrapasse a população jovem nos países em desenvolvimento.

Paralelamente ao envelhecimento populacional, a sociedade vive um momento de grande evolução tecnológica, o que inclui a área da saúde. Além de novos equipamentos e fármacos, conceitos como data analytics e internet das coisas integram diferentes abordagens e avanços tecnológicos.[3]3 Ibarra-Esquer JE, González-Navarro FF, Flores-Rios BL, et al. Tracking the evolution of the internet of things concept across different application domains. Sensors (Basel). 2017;17:1379. O acrônimo VUCA (volatility, uncetainty, complexity, ambiguity, em português, “volatilidade, incerteza, complexidade, ambiguidade”), inicialmente usado pelas forças armadas americanas após o ataque de 11 de setembro de 2001, define um mundo em constante mudança. Esse termo, ao ser aplicado no cuidado à saúde, implica na necessidade de entender melhor o novo perfil demográfico dos pacientes que necessitam de assistência anestésico-cirúrgica com o uso dos novos recursos tecnológicos.

A separação nosológica entre fragilidade e velhice, incapacidade e doença é importante não apenas para a medicina, mas também para a revisão do conceito de envelhecimento e da chamada “quarta idade”,[2]2 United Nations. Department of Economic and Social Affairs. World Population Prospects; 2019, https://population.un.org/wpp/Download/Standard/Population/ [acesso em 28 de fevereiro de 2020].
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que denominamos aqui como pacientes 4.0; eles trazem novos desafios no seu cuidado, e um mundo completamente conectado nos permite entendê-los melhor, especialmente no caso dos muito idosos. No entanto, existem poucos estudos que exploram essa população cirúrgica. Lees et al. demonstraram que, em pacientes de 65 a 80 anos, a idade cronológica isoladamente ou o número de comorbidades não apresentou correspondência direta com a mortalidade.[4]4 Lees MC, Merani S, Tauh K, et al. Perioperative factors predicting poor outcome in elderly patients following emergency general surgery: a multivariate regression analysis. Can J Surg. 2015;58:312-7.

Calcula-se que metade dos procedimentos cirúrgicos é realizada em pacientes idosos,[5]5 Yang R, Wolfson M, Lewis MC. Unique aspects of the elderly surgical population: an anesthesiologist's perspective. Geriatr Orthop Surg Rehabil. 2011;2:56-64. sendo que grande parte das despesas médicas é gasta nos últimos anos de vida do idoso, em especial, quando há necessidade de algum procedimento cirúrgico. Isso provavelmente reflete a prevalência de doenças cardiovasculares e câncer, associados à necessidade de procedimentos diagnósticos, cirurgias de grande porte e cuidados intensivos e paliativos.

Os idosos apresentam peculiaridades relacionadas ao envelhecimento e à redução da reserva funcional de diferentes órgãos, e se estima que 41% dos custos hospitalares são atribuídos a pacientes acima dos 65 anos.[4]4 Lees MC, Merani S, Tauh K, et al. Perioperative factors predicting poor outcome in elderly patients following emergency general surgery: a multivariate regression analysis. Can J Surg. 2015;58:312-7. O cuidado perioperatório aos muito idosos requer conhecimento das alterações fisiológicas características do processo de envelhecimento e suas implicações, assim como a escolha da técnica e o uso mais ponderado de opioides e agentes anestésicos inalatórios. O tipo de anestesia e de cirurgia, a duração do procedimento, a necessidade de cuidados intensivos pós-operatórios, a ocorrência de delirium - uma das principais complicações observadas no período pós-operatório imediato, relacionado com características demográficas como o tempo de estudo formal e alcoolismo[6]6 Hshieh TT, Inouye SK, Oh ES. Delirium in the elderly. Psychiatr Clin N Am. 2018;41:1-17. -, complicações hemodinâmicas e insuficiência renal são importantes indicadores de desfecho nessa população.

Neste número da BJAN, Silva D et al.[7]7 Silva DJ, Casimiro LGG, Oliveira MIS, et al. A população cirúrgica muito idosa na terapia intensiva: características clínicas e desfechos. Rev Bras Anestesiol. 2020, https://doi.org/10.1016/j.bjan.2019.10.001.
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discutem a relação entre diferentes grupos etários e estados funcionais com os resultados cirúrgicos do doente idoso, mostrando que os piores desfechos acima dos 85 anos podem refletir a maior vulnerabilidade deste grupo às complicações pós-operatórias, possivelmente relacionadas às múltiplas comorbidades e à reserva fisiológica diminuída. Um ponto importante que deve ser considerado e estudado melhor é a diferença entre a idade cronológica e fisiológica, tendo em vista que a população de muito idosos tem aumentado e demanda intervenções cirúrgicas e cuidados intensivos pós-operatórios. Os autores trazem à tona a necessidade de incorporar essa avaliação aos sistemas de pontuação para predição de gravidade.

Além disso, muitas vezes há controvérsias sobre submeter ou não pacientes muito idosos a procedimentos cirúrgicos. Ao se considerar a indicação cirúrgica, deve-se avaliar não apenas o tratamento em si e o ganho de longevidade como também o risco de complicações e a piora na qualidade de vida.[2]2 United Nations. Department of Economic and Social Affairs. World Population Prospects; 2019, https://population.un.org/wpp/Download/Standard/Population/ [acesso em 28 de fevereiro de 2020].
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É importante que o procedimento objetive o ganho de vida com qualidade,[8]8 Beard JR, Officer A, DeCarvalho IA, et al. The World report on ageing and health: A policy framework for healthy ageing. Lancet. 2016;387:2145-54. e conhecer melhor essa população, dos principais fatores de risco às complicações mais frequentes no pós-operatório, pode permitir intervenções precoces e personalizadas, auxiliando na melhoria de resultados e até em uma eventual redução de custos. Estamos em uma nova fase, com um novo perfil de pacientes e novos desafios, e conhecer esse cenário é o primeiro passo para, com o auxílio da tecnologia, podermos planejar intervenções direcionadas com foco na melhoria de desfechos.

References

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    Higgs P, Gilleard C. Frailty, abjection and the ‘othering’ of the fourth age. Health Sociol Rev. 2014;23:10-9.
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    » https://population.un.org/wpp/Download/Standard/Population/
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    Ibarra-Esquer JE, González-Navarro FF, Flores-Rios BL, et al. Tracking the evolution of the internet of things concept across different application domains. Sensors (Basel). 2017;17:1379.
  • 4
    Lees MC, Merani S, Tauh K, et al. Perioperative factors predicting poor outcome in elderly patients following emergency general surgery: a multivariate regression analysis. Can J Surg. 2015;58:312-7.
  • 5
    Yang R, Wolfson M, Lewis MC. Unique aspects of the elderly surgical population: an anesthesiologist's perspective. Geriatr Orthop Surg Rehabil. 2011;2:56-64.
  • 6
    Hshieh TT, Inouye SK, Oh ES. Delirium in the elderly. Psychiatr Clin N Am. 2018;41:1-17.
  • 7
    Silva DJ, Casimiro LGG, Oliveira MIS, et al. A população cirúrgica muito idosa na terapia intensiva: características clínicas e desfechos. Rev Bras Anestesiol. 2020, https://doi.org/10.1016/j.bjan.2019.10.001
    » https://doi.org/10.1016/j.bjan.2019.10.001
  • 8
    Beard JR, Officer A, DeCarvalho IA, et al. The World report on ageing and health: A policy framework for healthy ageing. Lancet. 2016;387:2145-54.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020

Histórico

  • Recebido
    4 Mar 2020
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