Resumos
A amiloidose cardíaca é doença altamente limitante da sobrevida, por morte súbita na maioria dos pacientes. Pela agressão contra outros órgãos, particularmente rins e sistema nervoso central, o transplante cardíaco tem sido opção questionável, face à escassez de órgãos. O objetivo é relatar a evolução, com sobrevivência de 7 anos, da paciente após transplante cardíaco por amiloidose, em boas condições. Um ano após o transplante cardíaco, houve indicação de transplante renal, também pela agressão da doença. Esta paciente contrasta com outros três pacientes de nosso serviço que foram a óbito, ainda na fase de avaliação. Apesar de sua natureza multisistêmica, a amiloidose cardíaca pode, em pacientes selecionados, justificar o transplante cardíaco, pela gravidade do seu potencial evolutivo após o início dos sintomas
Amiloidose; Transplante de coração; Cardiomiopatias
Cardiac amyloidosis is a disease with a gloom life expectance after the beginning of the symptomatic phase, usually with sudden death as the final event. The aggression to other organs, although, can make heart transplantation a disputable form of treatment taking into consideration the shortage of donor organs. The aim is to report the evolution with a survival of seven years after heart transplantation and in very fair condition of a patient with amyloidosis. One year after the heart transplantation, there was indication of renal transplantation also from the aggression from the disease. This patient compares' favorable with three other patients also from our service, who died early after de diagnosis. Even considering the multi systemic nature of amyloidosis, we can accept that in peculiar patients justified the heart transplantation, taking in the consideration the very bad prognosis of the disease
Amyloidosis; Heart transplantation; Cardiomyopathies
RELATO DE CASO
Transplante cardíaco em amiloidose primária
José Francisco BaumgratzI; José Henrique Andrade VilaII; Claudia Jesus GuilhenIII; Luciana da FonsecaIV; Weverton Ferreira LeiteIII; Carlos D'AndrettaV; Américo Tângari JuniorIII; José Pedro da SilvaVI
ICirurgião Cardiovascular. Assistente da equipe do Dr. José Pedro da Silva no Hospital Beneficência Portuguesa de SP
IIDoutorando em Medicina pela UNIFESP - Chefe da UTI cardiológica da equipe do Dr. José Pedro da Silva no Hospital Beneficência Portuguesa de SP
IIIMédico especialista em cardiologia - Assistente da equipe do Dr. José Pedro da Silva no Hospital Beneficência Portuguesa de SP
IVDoutorando em Medicina pela UNIFESP - cirurgiã assistente da equipe do Dr. José Pedro da Silva no Hospital Beneficência Portuguesa de SP
VMédico especialista em Anatomia Patológica - membro da equipe de anatomia patológica do Hospital Beneficência Portuguesa de SP
VIDoutor em Medicina pela FMUSP - Chefe de equipe no Hospital Beneficência Portuguesa de SP
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: José Henrique Andrade Vila Rua Maestro Cardim, 1041, Paraíso São Paulo, SP, Brasil. CEP: 01323-001 E-mail: drvila@terra.com.br
RESUMO
A amiloidose cardíaca é doença altamente limitante da sobrevida, por morte súbita na maioria dos pacientes. Pela agressão contra outros órgãos, particularmente rins e sistema nervoso central, o transplante cardíaco tem sido opção questionável, face à escassez de órgãos. O objetivo é relatar a evolução, com sobrevivência de 7 anos, da paciente após transplante cardíaco por amiloidose, em boas condições. Um ano após o transplante cardíaco, houve indicação de transplante renal, também pela agressão da doença. Esta paciente contrasta com outros três pacientes de nosso serviço que foram a óbito, ainda na fase de avaliação. Apesar de sua natureza multisistêmica, a amiloidose cardíaca pode, em pacientes selecionados, justificar o transplante cardíaco, pela gravidade do seu potencial evolutivo após o início dos sintomas.
Descritores: Amiloidose. Transplante de coração. Cardiomiopatias/cirurgia.
INTRODUÇÃO
A amiloidose na sua forma primária sistêmica tem agressão cardíaca frequente, bem como renal, hepática, intestinal e de outros órgãos e frente à agressão miocárdica, importante limitação da sobrevida em nossa experiência; e na revisão de literatura é muito significativa [1,2].
Pereira Barreto et al. [3], em publicação nacional, já apontam mortalidade muito elevada quando se instala a forma clínica de insuficiência cardíaca diastólica. Dos oito pacientes estudados com amiloidose cardíaca, seis pacientes apresentavam insuficiência cardíaca, três foram a óbito em menos de três meses, o que está em consonância com a nossa experiência anterior de três casos em que todos foram a óbito antes do transplante cardíaco, ainda na fase de avaliação (Tabela 1).
O transplante cardíaco é hoje considerado método de indiscutível valor no tratamento da insuficiência cardíaca terminal, que tem como limitação a restrita oferta de órgãos, com o número de cirurgias vindo em relativo decréscimo nos países de primeiro mundo. Devido a medidas de controle da violência e principalmente de acidentes automobilísticos, por meio de códigos de trânsito progressivamente mais rigorosos no mundo ocidental, é de se acreditar que a limitação de órgãos em particular de coração seja progressiva nos próximos anos. Este fato torna de grande importância a seleção dos receptores, reservando-se o transplante cardíaco para pacientes que apresentem um potencial positivo de evolução [4-8]. Observamos na literatura citada o transplante simultâneo de coração e fígado, também agredido pela doença, e que poderia melhorar o prognóstico evolutivo da mesma.
O transplante cardíaco em portadores de amiloidose sistêmica é ainda uma conduta discutível em face da característica sistêmica da doença e da relativa imprevisibilidade de sua história natural, que pode comprometer a sobrevida a longo prazo dos receptores e, desta forma, tornar inócuo o procedimento inicial. A boa evolução do presente caso, operado em 24 de setembro de 2001, e a excelente evolução clínica da paciente em particular após o transplante renal, realizado em 8 de abril de 2002, permitem-nos avaliar que, em casos selecionados, este pode ser um procedimento justificável.
Entretanto, relatos na literatura demonstram de forma clara que pode existir recorrência da doença, tanto no coração como em outros órgãos [7-9].
Da mesma maneira, é também muito importante a atenção no diagnóstico, em particular para a exclusão de outra forma de cardiopatia restritiva, que é a pericardite constritiva, especialmente em apresentações inusitadas [10].
RELATO DO CASO
Paciente, V.A.C., 49 anos, internada em nosso serviço, com quadro de insuficiência cardíaca tipo funcional III/IV. Realizado ecocardiograma que demonstrou ventrículos direito e esquerdo com tamanhos normais, fração de ejeção de ventrículo esquerdo de 53%, com provável infiltração amilóide biventricular e de septo interventricular, padrão de enchimento tipo restritivo compatível com doença de depósito do tipo amiloidose, insuficiência tricúspide importante e derrame pericárdico mínimo (Figura 1). Esse achado foi confirmado por ressonância magnética cardíaca que evidenciou comprometimento da função diastólica biventricular devido à provável doença de depósito.
No dia 3 de agosto de 2001, foi realizada biópsia do miocárdio que demonstrou amiloidose cardíaca. Frente à má evolução, característica da amiloidose cardíaca primária, foi indicado o transplante cardíaco (Figuras 2 e 3).
Realizado protocolo para transplante cardíaco (exames laboratoriais dentro da normalidade, sorologias negativas, gradiente transpulmonar de 6 mmHg), a paciente foi inscrita para a realização de transplante cardíaco. No dia 31 de agosto de 2001, evoluiu com parada cardiorrespiratória, sendo realizadas manobras de ressuscitação cardiopulmonar com sucesso e priorizada para transplante cardíaco.
Em 24 de setembro de 2001, foi realizado transplante cardíaco ortotópico, sem intercorrências, porém sendo mantida sob diálise peritonial no período de 19 de setembro de 2001 a 16 de novembro de 2001.
A imunossupressão empregada foi de ciclosporina neoral 70 mg, de 12/12 h, e micofenofato mofetil 500 mg, de 12/12 h, aplicando-se 1 g de metilprednisolona ao final do transplante cardíaco.
As biópsias do miocárdio realizadas em 24 de outubro de 2001, 9 de novembro de 2001 e 16 de dezembro de 2001 demonstraram grau zero. A função renal manteve-se em níveis progressivamente piores, sendo constatada por biópsia renal, realizada em 31 de outubro de 2001, a presença de amiloidose renal, sendo indicado o transplante pela equipe da nefrologia.
A evolução após o transplante renal, que foi realizado em 8 de abril de 2002, foi favorável quando passou a fazer uso de esquema tríplice de imunossupressão, acrescentando-se a prednisona em doses baixas de 0,1 mg/kg à ciclosporina e ao micofenolato mofetil.
Após 11 meses do transplante cardíaco, foi internada devido a quadro de taquicardia e febre a esclarecer. Foi realizado ecocardiograma que demonstrou ventrículo esquerdo com função, tamanho e contração segmentar normais, insuficiência tricúspide discreta, aorta e câmaras direitas normais, sem demais anormalidades. A biópsia cardíaca demonstrou grau zero, afastando rejeição do enxerto, mantendo-se o mesmo esquema de imunossupressão. Foi diagnosticada broncopneumonia, pela radiografia de tórax e exame clínico, sendo realizada terapêutica adequada.
Em nenhuma biópsia realizada constatou-se qualquer indício de amiloidose que poderia indicar agressão "de novo" ao órgão implantado (Figura 4).
DISCUSSÃO
Em revisão de literatura, faltam séries com maior casuística que possam estabelecer um paradigma de confiança para a difícil dúvida de indicação de transplante na amiloidose cardíaca. A maior série que encontramos foi do Hospital Harefield, na Inglaterra, em que, dos 10 casos operados, somente obteve-se sobrevida tardia em um único paciente [9]. As demais publicações sobre o tema referem-se a casos isolados, porém, existem relatos que abordam a possibilidade terapêutica, da doença amiloidose, como real alternativa clínica, o que já traz novas esperanças para estes pacientes [1,3-8].
No presente caso, havia também comprometimento renal e conseguimos preservar a função dos rins, a níveis aceitáveis, reduzindo a dose de ciclosporina. Após cerca de um ano, o transplante renal se impôs, porém é digno de nota o fato de nenhuma biópsia cardíaca ter sugerido qualquer grau de rejeição cardíaca, mesmo frente ao esquema imunossupressor atenuado pelas difíceis características clínicas que a paciente apresentava.
Três outros casos de amiloidose cardíaca, avaliados em nosso serviço, foram a óbito após o diagnóstico, ainda na fase de investigação diagnóstica para o transplante cardíaco.
Na literatura, temos diferentes opiniões sobre a oportunidade do transplante cardíaco frente à amiloidose cardíaca, porém, face à boa evolução de quatro anos de nossa paciente, entendemos que pacientes jovens e com agressão pela amiloidose limitada ao coração (ou coração e rins) podem ser candidatos a transplante cardíaco, até que séries maiores de pacientes esclareçam com segurança esta difícil questão.
Ainda a favor desta política, há o fato de que a terapêutica clínica desta doença de depósito já tem sido tentada com razoável sucesso inicial [2,6,9].
Artigo recebido em 27 de janeiro de 2009
Artigo aprovado em 26 de junho de 2009
Trabalho realizado no Hospital São Joaquim da Real e Benemérita Associação Portuguesa de Beneficência - São Paulo, SP, Brasil.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Dez 2009 -
Data do Fascículo
Set 2009
Histórico
-
Aceito
26 Jun 2009 -
Recebido
27 Jan 2009