Open-access Pedagogia decolonial e intersecções entre corpo, gênero e sexualidade

Decolonial pedagogy and intersections between body, gender and sexuality

Pedagogía decolonial e intersecciones entre cuerpo, género y sexualidad

RESUMO

O presente estudo analisa intersecções entre corpo, gênero e sexualidade sob a perspectiva pedagógica decolonial no campo da educação física. De cunho teórico e prático, o texto compõe-se de literatura relacionada a marcadores sociais de diferença (notadamente, gênero e sexualidade) e decolonialidade, assim como orienta-se por reflexões acerca de experiências corporais com foco no gênero e na sexualidade na dança a dois, decorridas do desenvolvimento de uma oficina numa realidade local. As análises teóricas e a experiência prática registrada em diário de campo (interpretada e ressignificada para esse escrito) favorecem o debate acerca da pedagogia decolonial como potencializadora de transformações que envolvem as intersecções entre corpo, gênero e sexualidade. Ao mesmo tempo, esse estudo propõe o enfrentamento da colonialidade de gênero e sexualidade que atravessa diferentes corpos, acionando práticas de engajamento e consciência crítica para o enfrentamento dos desafios decoloniais.

Palavras-chave: Pedagogia decolonial; Gênero; Sexualidade; Corpo

ABSTRACT

This study analyses intersections between body, gender, and sexuality from a decolonial pedagogical perspective within the field of physical education. Both theoretical and practical in nature, the text draws from literature related to social markers of difference (notably, gender and sexuality) and decoloniality. It is also guided by reflections on bodily experiences, with a focus on gender and sexuality in partner dancing, stemming from the development of a workshop in a local context. The theoretical analyses and practical experiences documented in a field diary (interpreted and reframed for this writing) contribute to the discussion surrounding decolonial pedagogy as an agent for transformations involving the intersections of body, gender, and sexuality. Simultaneously, this study proposes confronting the gender and sexuality coloniality that permeates diverse bodies, activating practices of engagement and critical consciousness to address decolonial challenges

Keywords:  Decolonial pedagogy; Gender; Sexuality; Body

RESUMEN

El presente estudio analiza las intersecciones entre cuerpo, género y sexualidad desde la perspectiva pedagógica decolonial en el campo de la educación física. De naturaleza tanto teórica como práctica, el texto se compone de literatura relacionada con los marcadores sociales de diferencia (notablemente, género y sexualidad) y la decolonialidad. Además, se orienta mediante reflexiones sobre experiencias corporales centradas en el género y la sexualidad en la danza en pareja, surgidas del desarrollo de un taller en un contexto local. Los análisis teóricos y la experiencia práctica registrada en un diario de campo (interpretada y resignificada para este escrito) favorecen el debate sobre la pedagogía decolonial como potenciadora de transformaciones que involucran las intersecciones entre cuerpo, género y sexualidad. Al mismo tiempo, este estudio propone enfrentar la colonialidad de género y sexualidad que atraviesa diferentes cuerpos en el objetivo de accionar prácticas de compromiso y conciencia crítica para el enfrentamiento de los desafíos decoloniales.

Palabras clave:  Pedagogía decolonial; Género; Sexualidad; Cuerpo

INTRODUÇÃO

Ao enfrentarmos desafios que interseccionam corpo, gênero e sexualidade, acionamos pedagogias de resistência que se oponham à colonialidade do poder (Quijano, 2009), do ser (Maldonado-Torres, 2007) e do saber (Lander, 2005) que atravessa diferentes práticas e ambientes. Concebemos essas pedagogias a partir da construção de espaços e processos de aprendizagem potencialmente capazes de contribuir com o enfrentamento dos efeitos nocivos de instruções colonizadoras de corpos, subjetividades e experiências de vida. Na interlocução com Catherine Walsh, entendemos as pedagogias decoloniais como práticas insurgentes e corporificadas em contextos de resistência, de luta e de marginalização que rompem com paradigmas da modernidade e colonialidade, abrindo caminhos para outras maneiras de ser, estar, pensar, conhecer, sentir, existir e viver em sociedade. Nelas, “[...] o corpo, as subjetividades e as emoções são centrais para repensar os processos organizacionais, as experiências de vida e a ação política” (Walsh, 2013, p. 417, tradução nossa).

Ações educacionais propostas com esse direcionamento pedagógico de resistência se constroem no campo da práxis e são orientadadas, fundamentalmente, por teorias baseadas em referenciais não-europeus e/ou não eurocentrados e por uma empiria que reconhece e valoriza vozes e experiências locais ao colocar em evidência os subalternizados. No que toca a América Latina, como lembra Ballestrin (2013), torna-se essencial retomar a importância do movimento epistemológico que reconhece e preza pelos saberes latino-americanos no enfrentamento do padrão de poder colonial. Tais questões, tecidas a partir de uma práxis de resistência, incitam-nos a pensar em técnicas, princípios, métodos e estratégias no campo educacional que busquem questionar e transformar modelos educacionais tradicionais enraizados na colonialidade e no eurocentrismo.

Ao nos percebermos em movimentos que nos posicionam na ‘fronteira’ de enfrentamento do saber hegemônico em defesa de saberes subalternizados (Walsh, 2019), assumimos o compromisso ético da educação pautada na responsabilidade crítica, no respeito à alteridade e no aprendizado conjunto com a diferença. Em termos de enfrentamento da colonialidade em meio a processos educacionais em instituições de ensino, esse compromisso implica o desafio de formular pedagogias outras, ou seja, modos alternativos de conceber a alteridade, sem negar, invisibilizar, marginalizar ou explorar as diferenças percebidas. A partir de nossas respectivas trajetórias em práticas de educação do corpo, perspectivamos um modo de agir nesse sentido por meio do reconhecimento dos marcadores sociais em seus atravessamentos de poder e de suas mediações pedagógicas nos espaços de aprendizado. Porém, mediações pedagógicas com essa inclinação nem sempre são materializáveis em espaços formais de ensino, haja vista a forte tendência a que esses espaços conservem instruções coloniais junto à lógica interna que os fundamenta.

A escritora estadunidense bell Hooks (2013) exemplifica essa tendência ao tratar de certa tradição epistemológica incorporada ao sistema educacional moderno que secundariza o corpo e prioriza a mente e o racionalismo na sala de aula, ou mesmo que desconsidera a importância do corpo para a aprendizagem. Daí nosso pressuposto de que propor ações pedagógicas que se oponham à colonialidade implica acionar uma postura de desconstrução da ‘história única’ (Adichie, 2019) e do sujeito universal/generalizante, bem como de reconhecimento da presença, dos usos e dos efeitos dos corpos das pessoas em espaços e processos de aprendizagem, de modo a enfrentar situações e epistemes fundamentadas no projeto eurocêntrico moderno, como buscamos sinalizar ao longo do estudo.

Ao focarmos a interseção entre corpo, gênero e sexualidade não negamos a existência e a importância de outros marcadores sociais de diferença na construção dos ambientes e processos de aprendizagem, como religião, raça, etnia, nação, habilidade, entre outros. Ao contrário, entendemos que os marcadores sociais agem de modo interseccional e podem ser concebidos como “[...] eixos/constructos de diferenciação que atravessam os sujeitos em sociedade e atuam na definição de particularidades expressas em formas de desigualdade, oportunidade (ou ausência), hierarquia, comportamento, relações de opressão/dominação [...] (Lara, 2023, p. 228). Os marcadores sociais de diferença também são acionados como dispositivos para o exercício do poder colonial e representam efeitos desse exercício.

A partir de incursões por literatura relacionada a marcadores sociais de diferença, em especial, gênero, sexualidade, bem como por educação/práticas/pedagogia decolonial (Louro, 2018; Walsh, 2019; Devide e Brito, 2021; Lara, 2023), analisamos, neste artigo, o processo de construção/desenho e de implementação de ações pedagógicas voltadas a atravessamentos de gênero e sexualidade em experiências corporais que se dão no amplo campo da cultura física1. Para isso, articulamos conhecimentos advindos dessa literatura a uma experiência pedagógica (oficina) com estudantes de educação física em uma realidade local. Trata-se de uma oficina perpassada pela preocupação com a gestualidade que se expressa nos corpos que dançam juntos e com os modos pelos quais eles são impactados pela produção do ‘sistema de gênero moderno colonial’ e de ‘sexualidades generizadas’, isto é, pela ‘colonialidade do gênero’, nos termos discutidos pela socióloga argentina María Lugones (2020, 2007), autora que vem a somar à nossa busca por ações pedagógicas que desnaturalizem relações de poder baseadas em gênero e sexualidade.

No campo da educação física, o endosso a pedagogias decoloniais vai desde ações voltadas à redução de desigualdades e injustiças nos ambientes em que se materializa a cultura física (salas de aula, quadras de esportes, espaços de danças, ringues/tatames de lutas, campos de jogos, pistas/ruas de corrida, entre outros), até a democratização do acesso a essa cultura. Essa democratização, inclusive, parafraseando Prado (2021, p. 95), é parte do reconhecimento da educação física como “[...] tecnologia produtora de novas formas de vida que permitam questionar a arbitrariedade do enquadramento social dos corpos em reducionismos e fragilidades, já bem desvelados das normas regulatórias de sexo e gênero.” Para isso, no entanto, é preciso reconhecer e agir em prol da desnaturalização e desconstrução da colonialidade por meio de intervenções em campo.

Visando socializar e incrementar/lapidar ações que temos materializado a esse propósito, a teorização que alicerça esse artigo aborda possibilidades teóricas para fomentar a percepção e a consciência crítica a respeito da colonialidade de gênero e sexualidade, partindo do conceito ‘modelo’2 utilizado por Lugones (2007, 2020) em algumas de suas produções teóricas. Em complemento, os referenciais com os quais dialogamos contribuem para situar algumas implicações da colonialidade operada por meio desses dois marcadores/dispositivos de diferenciação na organização de práticas que competem à educação física, bem como contribuem com as considerações que realizamos a partir da proposição de uma oficina organizada sob a perspectiva pedagógica decolonial, com vistas a acionar questões de corpo, gênero e sexualidade na dança a dois. Com esse constructo, esperamos reunir elementos que auxiliem no entendimento e aprimoramento de ações decoloniais passíveis de transposição aos diferentes ambientes e processos de aprendizagem na educação física.

COMO IDENTIFICAR A COLONIALIDADE DE GÊNERO E SEXUALIDADE? CONHECER PARA INTERVIR

Sensibilizar para a percepção da colonialidade em nossos corpos, bem como para o reconhecimento dos atravessamentos de gênero e sexualidade como dispositivos e efeitos da hierarquização social requer consciência e ação. Vale retomar que a colonialidade é o padrão de poder instituído e herdado com o domínio, a opressão e a exploração de povos originários no período de ‘descoberta das Américas’ pelos impérios português e espanhol, materializada com a invenção eurocêntrica da categoria raça, conservada em ideais de civilização e modernidade, e reiterada com a classificação hierárquica de relações globais entre pessoas com base nessa categoria (Quijano, 2009) e em outras que se apresentam como marcadores de diferenciação. A partir dos estudos da colonialidade que viabilizam esse entendimento, Lugones (2007, 2020) parte do que chama de ‘modelo’ para analisar o ‘sistema moderno colonial de gênero’ como componente da lógica em torno da qual a ‘modernidade/colonialidade’ se organiza, sistema ao qual ela se refere como ‘colonialidade do gênero’ e por meio do qual buscamos analisar também a sexualidade.

Ao partir da lógica dos eixos estruturais da colonialidade (a colonialidade do poder e a modernidade) elucidados pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, Lugones (2007, 2020) questiona o gênero como ‘instrução colonial’, como constructo que segue fomentando modos de subjetivação e de leitura da realidade. Ao tratar das sociedades pré-colombianas, a autora ilustra esses modos de subjetivação e leitura ao evidenciar como aspectos linguísticos e culturais de povos iorubás foram adequados para comportar ideais de gênero introduzidos com o domínio ocidental, além de destacar a presunção de pesquisadoras/es que os assumem como princípio organizador da vida desses povos previamente à sua colonização. Lugones destaca a existência de uma lógica de formação mútua entre o sistema de gênero e a colonialidade do poder, a qual foi sendo construída com o avanço das ‘aventuras coloniais da Espanha e de Portugal’, e se consolidou com a ‘modernidade tardia’. Ela se expressa, principalmente, por um lado ‘visível/iluminado’ e outro ‘oculto/obscuro’.

O lado visível dessa lógica constrói o gênero e suas relações hierárquicas em seu caráter hegemônico, isto é, organiza a vida de mulheres e homens brancas/os e burguesas/es e dá forma aos significantes coloniais/modernos ‘mulher’ e ‘homem’ como ‘sujeito genérico’ em torno do qual são produzidas narrativas sociais universalizantes, as quais não abrangem experiências de vida de mulheres e homens de cor. Lugones (2020, p. 76) explicita que os vínculos do sistema colonial de gênero com “[...] o controle patriarcal e racializado da produção – inclusive de conhecimento – e da autoridade coletiva [...]” são permeados pela heterossexualidade compulsória. Com isso, a autora demonstra que, embora socialmente reconhecidos, os poderes e direitos das mulheres brancas são perversamente violados e reduzidos ao cumprimento do papel de “[...] reprodutoras da classe e da posição racial e colonial dos homens brancos burgueses [...]” (Lugones (2020, p. 76), sobretudo à medida que as posições que elas ocupam reforçam estereótipos de fragilidade, pureza, passividade sexual.

Esse caráter perverso denota o lado obscuro do sistema colonial de gênero, que secundariza ou inferioriza sujeitas/os a partir do sujeito ideal do patriarcado, que reduz a participação em processos de tomada de decisão, que limita ações econômicas, que explora intensamente forças laborais. O lado oculto desse sistema contempla as relações de produção da sexualidade. Mas, ainda que Lugones a situe em meio a relações coloniais de classe, raça e gênero, o faz com foco na ‘violação heterossexual de mulheres’, sobretudo para tratar das implicações violentas dessas relações para mulheres de cor e problematizar a reprodução de padrões dessas relações por homens de cor. Assim, apesar de auxiliar na leitura das imbricações da sexualidade com o sistema colonial de gênero e com seu padrão de poder, o modelo de análise tratado pela autora apresenta limites para o trato interseccional desse marcador na análise da subjugação e dos efeitos da colonialidade nas subjetividades, como nota a própria Lugones (2020) ao reconhecer que a perspectiva por ela esboçada carece de detalhamento quanto a construções subjetivas que possam transpor os binarismos sexual e de gênero heterossexista que prevalecem no sistema colonial moderno.

Tolentino e Batista (2017) contribuem para o entendimento acerca da limitação do ‘modelo’ ao qual Lugones se refere para abordagens decoloniais das sexualidades não-heterocisnormativas. Essas autoras notam que tanto Lugones quanto Quijano “[...] não investigam a questão das sexualidades que não correspondem ao padrão patriarcal [...]” (Tolentino e Batista, 2017, p. 46), como as homossexualidades femininas (lésbicas), masculinas (gays), as não monossexualidades. Para essas autoras, “[...] a heterossexualidade é mais um discurso tomado como apolítico pela modernidade/colonialidade, como se ela não produzisse relações de poder e violências concretas” (Tolentino e Batista, 2017, p. 49). Assim, a naturalização da heterossexualidade compulsória – com extensões à cisgeneridade, a nosso ver – propicia o não questionamento da sexualidade como dispositivo político e ideológico de controle da autonomia e da consciência de si em meio ao sistema colonial moderno e, por vezes, sua retirada de discussões voltadas à diferença sexual como base da desigualdade de gênero, dada a não percepção de sua integração a esse sistema.

A dessensibilização da percepção e da consciência acerca da sexualidade como componente do poder colonial está organicamente relacionada à heterossexualidade compulsória e à perpetuação desse padrão de poder. Afinal, “[...] é exatamente pela moldagem das dinâmicas inconscientes que governam a percepção e os hábitos cognitivos, afetivos e de comportamento dos sujeitos que o poder opera e se reproduz.” (Condorelli, 2017, p. 196) Sob a perspectiva decolonial, “[...] é relevante pensar o quão violento teria sido a heterossexualidade compulsória imposta pelo sistema patriarcal como fundamental para suprir as necessidades do capitalismo moderno eurocentrado” (Tolentino e Batista, 2017, p. 48) para sujeitas/os que não se enquadravam no binarismo homem e mulher. Porém, como a ferida colonial não é a mesma para diferentes pessoas, ainda que questões de gênero e sexualidade ‘dissidentes’ sejam pautadas, “[...] poucas vezes a maioria heteroerótica é capaz de identificar-se com essa posição e pensar em suas consequências moralmente constrangedoras. [...]” (Costa, 1992, p. 37). A conformidade às instruções coloniais não requer o “[...] exercício imaginativo de supor como seria a vida de alguém que, malgrado sua vontade, fosse permanentemente obrigado a ser reconhecido por sua preferência erótica e não por outras qualidades pessoais que quisesse ver apreciadas e respeitadas pelos outros.” (Costa, 1992, p. 37).

Pautar a sexualidade como produto da colonialidade, assim como o gênero, é uma forma de abordar a colonialidade do ser (Maldonado-Torres, 2007) frente à naturalização e ao esvaziamento da natureza política da opressão e da exploração de pessoas cujos desejos afetivos e sexuais não comportam a cis-heteronormatividade imposta com as instruções coloniais mobilizadas na subjetivação patriarcal moderna. Isto significa, na prática, questionar a naturalidade com que é abordada – quando abordada – a configuração contingencial sistêmica das violências simbólica e material produzidas com o propósito da conformação de corpos e experiências de vida à narrativa universalizante de ‘ser homem’ e ‘ser mulher’ nesse sistema. Daí nossa ressalva de que a leitura da colonialidade do gênero e da (hetero)sexualidade possibilitada pelo modelo discutido por Lugones apresenta lacunas como ferramenta de sensibilização para a percepção de relações entre esses dois marcadores e a colonialidade, bem como para nosso interesse em contribuir com a inteligibilidade da sexualidade como produto colonial em aproximação com os estudos de gênero e decolonialidade na educação física.

QUAIS AS IMPLICAÇÕES DA COLONIALIDADE DE GÊNERO E SEXUALIDADE PARA O CORPO E SUAS EXPERIÊNCIAS NA EDUCAÇÃO FÍSICA?

Se no amplo campo da educação física ainda são escassas abordagens que tensionem questões de gênero e sexualidade na linha de uma epistemologia decolonial para intervenções epidemiológicas em atividade física e saúde, por exemplo, como argumentam Palma et al. (2023), em outros casos, ações aglutinadas nessas questões suscitam apropriações de categorias teóricas que fomentem o aprimoramento de metodologias de análise em meio a discussões emergentes, como ilustram estudos afins a corpo, esporte e docência reunidos na coletânea organizada por Devide e Brito (2021). Trata-se do refinamento de instrumentos que habilitem para o enfrentamento da colonialidade de gênero e sexualidade como efeitos da colonialidade do saber (Lander, 2005), assim como de (im)possibilidades de avançar em debates e estudos que desmistifiquem a abordagem monolítica universal desses marcadores e que desconstruam seus sentidos estáveis naturalizados. Esses efeitos reverberam na abordagem (ou não) de ambiguidades de gênero e sexualidade na produção dos saberes que fundamentam ações voltadas às práticas corporais que competem à educação física, bem como na renúncia ou lealdade à colonialidade de gênero e sexualidade por profissionais do campo.

Como frisa a escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2019), “o problema da questão de gênero [e sexualidade] é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. [...]”. A autora reconhece que os processos de socialização exageram as diferenças biológicas existentes entre homens e meninas visando atender às expectativas de gênero, sendo que a pressão por cumprir tais expectativas promove restrições de liberdade e realização pessoal. Os imperativos correspondentes a essas expectativas − materializadas pelos estereótipos de gênero e sexualidade ditos ‘masculino’ e ‘feminino’ − são presentificados também na educação física: a) o menino/homem macho e heterossexual, dotado de valências físicas típicas, correspondentes a virilidade, liderança, competitividade, força, resistência, deve se envolver com práticas corporais que reforcem essas valências ‘naturalmente masculinas’; b) a menina/mulher fêmea e heterossexual, que possui valências específicas, como fragilidade, passividade, colaboração, suavidade, flexibilidade, deverá se envolver com práticas corporais igualmente condizentes com sua ‘feminilidade inata’.

Vale observar que, embora os corpos se movam independentemente de atributos de gênero e sexualidade, são inegáveis os efeitos de poder-saber dos atravessamentos das diferenciações socialmente produzidas com base nesses marcadores nas formas como cada pessoa faz uso de seus corpos e se/os movimentam em diferentes espaços. Formas de segregação das vivências corporais de movimentos baseadas nesses estereótipos são regulares em aulas de educação física, bem como fundantes de jogos e esportes (Devide e Brito, 2021). Expectativas referidas a tais estereótipos se desdobram nos modos como as particularidades de movimento são percebidas, significadas e expressas ou reprimidas por cada pessoa, e ainda, nos modos como serão lidas por outras pessoas (Silva e Santana, 2020).

Cecchetto (2021, p. 14), por exemplo, afirma que, ainda que a participação de meninas no futebol seja mais aceita atualmente, “[...] os meninos que dançam ou prefiram jogos que demonstrem menos habilidades viris, como competitividade e força, ainda continuam a ser discriminados [...]”. Além disso, são excluídos e estigmatizados entre os próprios pares, experimentando “[...] o ônus de uma lógica heteronormativa ao cruzarem as fronteiras do gênero [...]” (Cecchetto, 2021, p. 14), sobretudo frente à ‘homohisteria’ (Devide, 2021) e à fobia de que as práticas corporais atuem como dispositivo de ‘homossexualização’ ou ‘feminilização’ de homens/masculinidades (Silva Junior, 2010). Por outro lado, Devide (2021, p. 49) evidencia que atletas gays que buscam aceitação no esporte devem gerenciar suas identidades e assimilar práticas alinhadas à ‘masculinidade ortodoxa’, o que pressupõe reprimir suas sexualidades, silenciar seus desejos, adotar e praticar o discurso sexista, misógino e homofóbico, e ‘competir bem’.

Esses recortes não exemplificam meras expectativas de gênero e sexualidade ‘masculinas’, tampouco dizem respeito apenas a implicações das instruções coloniais para vivências de formas de movimento instituídas em práticas de competência da educação física. Parafraseando Prado (2021, p. 87), elas demonstram que “[...] a ideia de ‘essência’, de ‘original’, de ‘natural’ é, na verdade, um efeito de normas regulatórias produzidas e acionadas por determinados discursos.” Retomamos esses exemplos no escopo deste estudo a fim de estimular a percepção de como a colonialidade de gênero e sexualidade se sustenta na naturalização de ideias e práticas vinculados a discursos como o de existência de valências físicas tipicamente masculinas e femininas, atinentes a homens e a mulheres, respectivamente. Vale destacar que essa visão estereotipada não apenas condiciona e oprime a vivência das variadas possibilidades de se movimentar ou a livre expressão de si nos espaços de experienciação do corpo em movimento. Ela é regularmente acionada e reiterada como princípio de organização dos espaços em que se materializam as práticas corporais às quais se atêm a educação física.

Embora pareça-nos que o modelo disponível para leitura e análise da colonialidade de gênero e sexualidade em meio a esses discursos instrumentalize a percepção de analistas de modo limitado, como pontuamos anteriormente, esse modelo mostra-se profícuo para introduzir a pauta da colonialidade de gênero e sexualidade no debate voltado à educação/práticas/pedagogia decolonial na educação física. A escassez de programas de ensino que pautem questões dessa ordem na formação superior possui reflexos no planejamento e na sistematização dos conteúdos da educação física, haja vista que o distanciamento desse debate dificulta sua inclusão entre os conteúdos que integrarão as intervenções pedagógicas (Pelluso e Devide, 2021). Esse afastamento fragiliza e inviabiliza a apropriação e lapidação de categorias fundamentais, enfraquecendo o potencial de conscientização crítica das intervenções pedagógicas acerca dos mecanismos de produção das ‘diferenças percebidas entre os sexos’ e de sua naturalização (Prado, 2021). É no horizonte de ações que favoreçam a mudança desse quadro que se situa a oficina proposta na formação inicial em educação física, cujo processo de concepção e implementação é aqui abordado.

CORPOS, MOVIMENTOS E ATRAVESSAMENTOS DE GÊNERO E SEXUALIDADE: DESENHOS INICIAIS DE UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA DECOLONIAL

Uma das formas pelas quais temos organizado ações de enfrentamento dos desafios decoloniais na educação física é a proposta do ‘círculo de cultura física’, idealizada pela professora/pesquisadora Larissa Lara e pelo professor/pesquisador Vitor Marani, líderes dos Grupos de Pesquisa Corpo, Cultura e Ludicidade (GPCCL/UEM/CNPq) e Grupo de Pesquisa Corpo, Diferença e Educação Física (CODEF/UFG/CNPq), respectivamente. Inspirado no círculo de cultura de Paulo Freire (1987, 2017)3, o círculo de cultura física vem sendo concebido como uma metodologia que busca a organização de grupos de debate e experiência corporal por meio da escuta ativa e da consciência crítica, especialmente das/os historicamente subalternizados. Situamos a cultura física em meio a fenômenos que atravessam a percepção individual e coletiva com base na realidade vivida, sobretudo ao se considerar os atravessamentos de poder que impactam diferentes experiências. Identificam-se, com isso, problemas e desafios no acesso à cultura física que são acionados com vistas ao empoderamento de pessoas e ao delineamento de aspectos relevantes a políticas públicas.

Essa proposta metodológica emerge do projeto de pesquisa institucional do GPCCL, ao qual se vinculam as autorias deste artigo e pesquisadoras/es de dez IES nacionais e internacionais. Trata-se de uma pesquisa que busca identificar e mitigar efeitos da colonialidade relacionados a desigualdades no acesso à cultura física por pessoas em situação de vulnerabilidade social, especialmente mulheres, com ênfase em intersecções étnico-raciais, de gênero e classe social. O enfrentamento desses desafios converge com a segunda pesquisa na qual estão envolvidas as autorias deste artigo, cujo interesse em experiências das pessoas com práticas corporais contribui com o desenho inicial dos círculos de cultura física, a exemplo da oficina em questão. Por meio dela foi possível identificar limites do corpo na dança a dois, assim como de lacunas no conhecimento academicamente produzido a respeito da interação entre os corpos que se movem juntos nessa prática. Da articulação de elementos metodológicos que viabilizam a implementação dessas duas pesquisas foi idealizada a oficina em questão, como laboratório cujo intuito foi promover elos com o círculo de cultura física, no qual fossem decodificadas e problematizadas questões de gênero, sexualidade e experiências corporais de movimentos partilhados entre e com profissionais de educação física em formação.

A oficina foi ofertada a discentes e docentes de Educação Física com interesse no tema ‘corpo, gênero e sexualidade nas danças de salão’, em março de 2024, durante um encontro que durou cerca de três horas. Dela participaram 12 pessoas, oriundas de cidades das regiões nordeste e sul do Brasil (a maioria), sendo seis homens, cinco mulheres e uma pessoa não-binária. O grupo era predominantemente formado por estudantes brancas e jovens. Ao longo dos três momentos em torno dos quais a oficina foi organizada, as pessoas participantes demonstraram interesses e experiências diversas relacionadas à vivência de suas identidades de gênero e sexualidades, dentro e fora da dança como pr’atica corporal focalizada nesse encontro.

O primeiro momento da oficina deu-se com uma roda de conversa inicial para reconhecimento das/os participantes, de suas expectativas e interesses em relação ao tema da oficina, bem como experiências prévias com a dança a dois. O segundo compreendeu uma dinâmica experimental de contato e improvisação em pares, a partir de movimentos que compõem o repertório cotidiano de cada participante e que fossem considerados prazerosos ou satisfatórios para elas/es, a serem compartilhados com o grupo. O terceiro momento concentrou-se no debate a respeito da interação entre os corpos em movimento e seus atravessamentos de gênero e sexualidade, acionando como ‘situações existenciais’ para decodificação e debate (Freire, 2017) séries enunciativas extraídas de literatura especializada em dança a dois (teses e dissertações), as quais refletem diferentes experiências e realidades vividas por praticantes e profissionais que enfrentam, contestam e/ou percebem tais atravessamentos.

As discussões a respeito de gênero e sexualidade ao longo da oficina pautaram machismo, misoginia, assédio, homofobia, transfobia, e outras noções que, como evidenciado pelo grupo de trabalho, ainda são nebulosas e pouco tratadas em seu processo formativo, carecendo de encaminhamentos adequados. Além de assuntos específicos relacionados à dança a dois, no que compete ao escopo desse estudo, vale destacar que foram abordados assuntos gerais relacionados a: formas de tratamento dessas noções por profissionais do campo em espaços formais de ensino; ambiguidades de gênero e sexualidade em diferentes práticas e espaços da educação física; percepção de impactos negativos dos dois marcadores (gênero e sexualidade) como princípios de organização das práticas para as experiências de praticantes; dificuldade em reconhecer desigualdades e violências relacionadas a esses marcadores, tanto nas lógicas internas estruturantes das práticas quanto em dinâmicas estabelecidas entre os corpos; importância de conceber as práticas e as experiências de movimento a partir de outros fundamentos que não as instruções de gênero e sexualidade; responsabilidade pedagógica da/o docente em não reproduzir estereótipos/preconceitos e em fomentar a transmissão de conhecimentos com embasamento científico.

A oficina ofereceu um espaço de aprendizado conjunto e de conscientização acerca de questões e/ou situações cotidianas, as quais agregaram temas como: objetificação sexual dos corpos e reconhecimento de que uma dança pode ser sensual sem necessariamente ter conotação sexual; existência de atravessamentos de assédio e violência, por vezes, velados ou silenciados na dança a dois; invisibilidade de violências e assédios sofridos por homens nessa prática, bem como implicações para suas respectivas constituições subjetivas e experiências corporais; diferentes formas de violência contra os corpos que dançam, incluindo a coação, o constrangimento, a força física, a deslegitimação; a condição dos marcadores de gênero e sexualidade como barreiras para acessar e permanecer na prática da dança a dois, bem como de outras manifestações (lutas, esportes, ginásticas).

Apesar de perpassar discursos (Foucault, 2008) materializados na oficina e de sustentar esse espaço de aprendizagem, a pedagogia decolonial não foi foco das discussões emergentes. Sua importância para essa experiência pedagógica se traduz principalmente na dialogicidade e na construção dos consensos e dissensos internos ao grupo, os quais favoreceram a conscientização crítica das/os integrantes a respeito de si, da configuração do campo profissional, bem como de distinções que a realidade social pode apresentar, conforme lidas as diferenças que marcam e representam culturalmente cada pessoa. A construção e a validação coletiva desse espaço de aprendizagem a partir de experiências e realidades vividas pelas/os integrantes foi primordial para descentralizar o processo da figura do professor-pesquisador e envolver as/os participantes na percepção e no questionamento de questões de corpo, gênero e sexualidade. Organizar essa experiência foi, também, promover a escuta ativa desse grupo na educação física e perceber como ele acionava diferentes corpos na dança a dois, independente de gênero ou sexualidade representados nessa interação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo propôs-se a analisar intersecções entre corpo, gênero e sexualidade sob a perspectiva pedagógica decolonial no campo da educação física. Partimos do modelo problematizado por Lugones para abordar o poder colonial em seus atravessamentos de gênero a fim de situar elementos pertinentes à análise interseccional. Embora o escopo e o formato do estudo não comportem o devido aprofundamento analítico, destacamos que parte da limitação que sinalizamos quanto a esse modelo parece estar associada ao seu fundamento em elementos como binarismo complementar de gênero-sexo e práticas sexuais reprodutivas centradas na manutenção da família nuclear patriarcal. Porém, Lugones (2020, p. 81) reconhece que há trabalho a ser feito para detalhar o sistema colonial de gênero, de modo a abranger construções subjetivas não capturáveis “[...] pelas lentes do binário sexual ou de gênero [...]”.

Assim, assumimos seu modelo como instrutivo para introduzir a colonialidade de gênero e sexualidade na pauta do debate dedicado a pedagogias decoloniais na educação física, bem como aceitarmos seu convite para somar ao trabalho a ser feito, ao que buscamos contribuir por meio desse estudo. A experiência possibilitada pela oficina com dança a dois é uma porta de entrada a perspectivas pedagógicas decoloniais na educação física. A intersecção envolvendo corpo, gênero e sexualidade aciona o mundo vivido e revela o quanto esses (e outros) marcadores precisam ser pautados e problematizados para o amplo enfrentamento dos desafios decoloniais com distintos grupos sociais.

  • 1
    A menção à cultura física – cultura muito além da fisicalidade – remete às práticas historicamente construídas (jogos, danças, lutas, esportes, brincadeiras) que possibilitam diferentes experiências corporais atravessadas por marcadores sociais de diferença (gênero, sexualidade, raça/etnia, classe social, religião) e por relações de poder. A esse respeito, cf. Lara e Rich (2017).
  • 2
    Nos dois textos que acionamos para o diálogo com Lugones (2007, 2020) é possível constatar que a autora analisa as articulações das questões de gênero ao sistema moderno colonial de poder de que trata a teoria de Quijano. Ao partir das contribuições desse autor para leituras das relações sociais nesse escopo, Lugones (2007, p. 207, tradução nossa, grifos da autora) nota que "Quijano prefere padrão a modelo como tradução para patrón. A razão dele é que modelo sugere algo a seguir ou copiar. Como esse uso de padrão costuma ser estranho, eu uso modelo."
  • 3
    O Círculo de Cultura, de Paulo Freire, foi criado na década de 1960 na região Nordeste do Brasil, formado por grupos de trabalhadores/as populares reunidos/as sob a coordenação de um/a educador. O objetivo era debater assuntos diversos de interesse dos/as trabalhadores/as com a mediação de um/a educador/a, que resultasse na alfabetização (letramento) e na consciência crítica. O regime militar interrompeu o desenvolvimento dos círculos de cultura existentes e outros projetos que seriam implementados em várias regiões do Brasil (Freire, 2017).
  • FINANCIAMENTO
    O presente trabalho se desdobra de duas pesquisas, uma realizada com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), contemplada na Chamada CNPq/MCTI N° 10/2023 - UNIVERSAL (Processo 407669/2023-0), outra desenvolvida com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES - Código de Financiamento 001).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2024
  • Aceito
    16 Set 2024
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