Resumo
Esta pesquisa foi feita na Vila Nossa Senhora da Luz, na cidade de Curitiba-PR. A intenção foi compreender a relação entre o processo de concepção e planejamento dos espaços e equipamentos, a apropriação desses ambientes e as possibilidades de experiências no âmbito do lazer. Os procedimentos metodológicos foram aplicação de protocolos, observações, entrevistas e análise interpretativa, com o uso da triangulação de dados. Como resultado foi possível perceber que o cotidiano é compartilhado por regras formuladas e reformuladas por lideranças comunitárias locais, as quais possibilitam, por meio da solidariedade existente nessas praças, experiências significativas a partir de práticas corporais diversificadas.
PALAVRAS-CHAVE Lazer; Praças; Espaços; Equipamentos
Abstract
This research was conducted at Vila Nossa Senhora da Luz, in Curitiba-PR, the intention was to understand the relations among the conception and planning process of the spaces and equipments, the appropriation of those environments and the possibilities of experiences in the leisure scope. The methodological procedures were applied the data triangulation technique, implementation of protocols, observations, interviews, and interpretive analysis. As a result it was possible to realize that daily basis is shared by rules formulated and reformulated by local community leaders, which make it possible, through the solidarity existing in these squares, significant experiences from diverse bodily practices.
KEYWORDS Leisure; Squares; Spaces; Equipments
Resumen
Esta investigación fue realizada en la Vila Nossa Senhora da Luz, en la ciudad de Curitiba-PR, la intención era comprender la relación existente entre el proceso de concepción y planeamiento de los espacios y equipamientos, la apropiación de esos ambientes y las posibilidades de experiencia en el ámbito de ocio. Los procedimientos metodológicos fueron aplicación de protocolos, observaciones, entrevistas y análisis interpretativo, utilizándose la triangulación de datos. Como resultado fue posible percibir que el cotidiano es compartido por reglas formuladas y reformuladas por los líderes locales de la comunidad, que permiten, por medio de la solidaridad existente en las plazas, experiencias significativas de diversas prácticas corporales.
PALABRAS CLAVE Ocio; Plazas; Espacios; Equipamientos
Introdução
O presente estudo,1 que tem como objeto de reflexão as praças da Cidade Industrial de Curitiba (CIC), mais especificamente da Vila Nossa Senhora da Luz (VNSL), que se constituem como espaços de sociabilidade e como possíveis locais de vivências significativas no âmbito do lazer e do esporte.
Nessa perspectiva, nosso objeto de pesquisa são as diferentes praças que constituem os espaços e equipamentos de lazer da VNSL. Trata-se de 13 praças dispostas em aproximadamente 800 mil metros quadrados, o que significa um elevado número de espaços de lazer em uma única vila. Nesse estudo a proposta é apresentar e numerar as 13 praças e reuni-las em três grupos. Essa estratégia facilita a análise, além de contribuir para a identificação pelos leitores.
A partir da observação empírica na VNSL de que em todos os quarteirões existe uma praça, emerge a seguinte problemática: como se dá a apropriação dos espaços e equipamentos supostamente destinados às experiências no âmbito do lazer e do esporte na Vila Nossa Senhora da Luz?
Para responder a essa problemática, este trabalho caminhou na direção dada pelo seguinte objetivo geral – compreender a relação existente entre o processo de concepção e planejamento dos espaços e equipamentos e a apropriação desses ambientes.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que usa como estratégia a técnica da triangulação de dados que “tem por objetivo básico abranger a máxima amplitude na descrição, explicação e compreensão do foco em estudo”(Triviños, 1987, p. 138). Nessa perspectiva de pesquisa, busca-se associar conceitos e noções complementares e concorrentes e entender seus diferentes níveis de desenvolvimento teórico e prático no interior das áreas disciplinares. “Dentre as antinomias relevantes, se encontram as relações entre o universal e o particular; entre o global e o local; entre o micro e o macro; entre o coletivo e o individual; entre o todo e as partes; entre a análise e a síntese; entre as relações cêntricas, acêntricas e policêntricas” (Minayo, 2005, p. 34).
A Vila Nossa Senhora da Luz
A Vila Nossa Senhora da Luz, de acordo com Alfred Willer,2 foi um dos primeiros conjuntos habitacionais do Brasil. Foi inaugurada em 13 de novembro de 1966, quando o então presidente Humberto de Alencar Castelo Branco fez uma visita relâmpago à capital paranaense para dar início à concretização de um dos programas propostos pelo golpe militar de 1964, o de desfavelamento.
Esse conjunto habitacional foi considerado uma “revolução em urbanismo” pelos então diretores da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab-CT), engenheiro Jefferson Weigert Wanderlei, engenheiro e arquiteto Alfred Willer e coronel Jackson Pitombo. Foi uma tentativa de efetivar o projeto de desfavelamento, conhecido como Operação Mudança (Boletim Casa Romário Martins, 2006), referido pelo então prefeito Ivo Arzua Pereira para a cidade de Curitiba, mas que não se concretizou, segundo o engenheiro e arquiteto Alfred Willer.
O conjunto como um todo levou aproximadamente um ano e meio para ser construído e na época era composto por 2.115 habitações financiadas pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) e pelo acordo do Brasil com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid). Havia dois modelos de casas, segundo Broli (1979). O primeiro tinha quarto, sala, cozinha e banheiro e 21m2. O segundo tinha sótão, no estilo chalé, cinco quartos, sala, banheiro e cozinha e 50m2. Ambos ficavam em terrenos de 10m x 20m.
Além das casas, foram pensados alguns espaços destinados ao lazer. Conforme o arquiteto Lóris Ghesse, do Departamento de Planejamento da Cohab (1985), a ideia inicial era fazer com que as 13 praças funcionassem como ponto de encontro dos moradores, mas até aquele momento não tinha se efetivado, segundo o arquiteto, pois os espaços eram desprovidos de infraestrutura.
De acordo com o que relata Lóris Ghesse, podemos fazer a seguinte pergunta: qual era a real intenção dos planejadores do primeiro conjunto habitacional de Curitiba ao propor 13 espaços livres que supostamente poderiam ser apropriados no âmbito do lazer?
Alfred Willer afirma que desde a planta original foram pensados os espaços e equipamentos de lazer para a comunidade, mas infelizmente o BNH acabou não financiando essa parte do projeto. Apesar disso, a prefeitura fez alguns projetos. Na praça central, por exemplo,
havia igreja, mercado, posto de saúde e escola de artes e ofícios. Então, sobrava a área do centro da praça para equipamento esportivo. Também não havia espaço suficiente para um campo de futebol, mas havia espaço para algumas quadras poliesportivas para os adolescentes. Então, a ideia era essa, as praças menores eram mais para uso local, principalmente para crianças de menos de 10 anos. Nessas praças, o equipamento comunitário, o playground e material empregado foram depredados, apesar de ser materiais, por exemplo, como balanços de pneus pendurados em correntes, escorregadores, equipamento robusto difícil de manter, mas, mesmo assim, por falta de supervisão não teve muita duração, muita durabilidade.
Na sequência de seu depoimento, Willer ressalta que
o equipamento esportivo estava previsto para as praças. Agora, o que aconteceu com as praças foi interessante, não havia, como eu disse, a verba para fazer equipamento esportivo, tentou-se implantar alguns espaços de playground, foram depredados, faltou um acompanhamento comunitário das assistentes sociais, que havia na nossa equipe, acho que eram umas moças com pouca experiência de trabalho de campo e que não foram devidamente orientadas, então, justamente esse tipo de educação comunitária era fundamental, porque esse povo que foi mudado pra lá ele não tinha experiência de viver numa comunidade, viviam espalhados no interior ou vivam no meio de uma favela que era mais ou menos anônima. A ideia com essas unidades de vizinhanças era estimular a noção de pertencer ao local para que as famílias se identificassem com a sua casa e com o seu bairro e dentro dessa educação haveria também, com certa facilidade, a escolha de alguns moradores vizinhos aqui da praça, que ficassem encarregados de ficar de olho pra evitar depredação. Não houve isso [...] não havia interesse do morador, vendo a criançada depredando o balanço, tomar a iniciativa pra ir lá e dizer: escuta aqui, vamos parar, isso aqui é nosso, não vamos estragar porque quem vai ter que repor somos nós.
A partir desse depoimento podemos observar que os equipamentos de lazer e esporte, apesar de terem sido instalados nos projetos iniciais, infelizmente ficaram relegados a um segundo plano, tanto pelo poder público quanto pela comunidade, o que demonstra uma falta de articulação entre os gestores e os moradores para uma efetiva apropriação.3
As praças como espaços de lazer da vila
Quando pensamos nos espaços e equipamentos de lazer, desde meados da década de 1980, esses também receberam estruturas esportivas e playgrounds, nada muito além do que já era previsto no início de sua construção, mas que naquele momento não foi foco de investimentos do BNH. Os espaços que compõem as diferentes praças, hoje, são mantidos pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA), mais especificamente pelo Departamento de Parques e Praças (MAPP).
As praças, que são nosso foco de discussão, segundo Robba e Macedo (2003, p.17), são “espaços livres públicos urbanos destinados ao lazer e ao convívio da população, acessíveis aos cidadãos e livres de veículos”. Dessa forma, podemos perceber, a partir da definição, que as praças se caracterizam como espaços de lazer urbanos que, por ser públicos, facilitam a apropriação por parte das pessoas. Por esse motivo, o estudo das praças que compõe a VNSL, das suas concepções e de seus equipamentos torna-se de grande relevância, na tentativa de melhor compreender o fenômeno lazer e suas relações com os espaços públicos no cotidiano dos moradores da Vila Nossa Senhora da Luz.
Historicamente, as praças desempenharam diferentes funções, dentre elas o espaço para espetáculos, local para execução de condenados à morte, espaços cívicos destinados a discursos, espaços para a contemplação de prédios públicos, local onde se colocavam estátuas e monumentos, espaços verdes destinados ao lazer e à contemplação, espaços abertos para encontro pessoal, local de reuniões públicas e assim por diante (Leitão, 2002). Dependendo das mudanças sociais e históricas e do modo como a sociedade expressa sua vida coletiva, as praças podem exercer papéis diferenciados.
Cotidianamente as praças podem desempenhar algumas das funções citadas anteriormente. No entanto, na concepção de Robba e Macedo (2003), o espaço urbano moderno é planejado de forma funcional e deve suprir as necessidades da cidade relativas a habitação, trabalho, lazer e circulação. Nesse contexto, o lazer foi um dos itens que o urbanismo moderno estabeleceu como de grande relevância para o habitante urbano do século XX. Assim sendo, podemos afirmar que os espaços livres públicos se tornaram uma das opções mais significativas de área de lazer urbano.
Contudo, é a partir da década de 1940 que os espaços públicos passam a sofrer influência de arquitetos e paisagistas modernos. Nessa nova perspectiva, as praças passam a englobar o “lazer ativo”,4 que priorizava as atividades esportivas e a recreação infantil. De acordo com os autores, “o lazer ativo está presente, com a implantação de quadras esportivas, playgrounds e pistas de caminhada” (Robba e Macedo, 2003, p. 36).
Podemos afirmar que essa concepção de “lazer ativo” influenciou diretamente o planejamento das atuais praças da VNSL, pois em quase todas elas percebemos as mesmas estruturas descritas pelos autores.
O lazer
Para discutir como ocorre a apropriação dos espaços e equipamentos das diferentes praças da VNSL, nos apropriamos do conceito de lazer de Mascarenhas (2003, p. 97), que o considera como um “fenômeno tipicamente moderno, resultante das tensões entre capital e trabalho, que se materializa como um tempo e espaço de vivências lúdicas, lugar de organização da cultura, perpassado por relações de hegemonia”.
Para o autor, resulta das tensões entre capital e trabalho. Portanto,
[...] o chamado tempo livre surge em meio às contradições do próprio desenvolvimento capitalista como conquista de classe [...] a noção de tempo livre e o próprio entendimento de lazer não surgem com a Revolução Industrial, mas em outro cenário, quando as lutas sociais conseguem impor poucas, mas significativas, transformações sociais (Mascarenhas, 2000, p. 77, grifo do autor).
Podemos observar que é a partir da organização coletiva dos trabalhadores pelo aumento do tempo livre e consequentemente pela redução da jornada de trabalho que foi possível intentar um tempo de desenvolvimento de indivíduos e coletividades.
Mascarenhas esclarece que o lazer constitui-se como um tempo e um espaço de organização da cultura e amplia as oportunidades para que se questionem os valores da ordem social vigente, de forma que as pessoas possam se apropriar, reelaborar e produzir cultura.
Nessa esteira de discussão, a cultura é perpassada por relações de hegemonia, ou seja, torna-se palco social de disputa hegemônica, na qual a tensão se dá entre a penetração maciça da indústria cultural no mercado da diversão, do entretenimento, ou seja, do “mercolazer”, e a ação política e pedagogicamente orientada para uma formação crítica e criativa.
Nessa perspectiva, nos propomos a pensar nas questões referentes ao lazer do ponto de vista das classes trabalhadoras. Como indica De Decca (2002, p. 61), ao fazer uma releitura das obras de E.P. Thompson,
Tanto podemos ver nas atividades de lazer a manutenção das tradições e dos valores de sociedades anteriores ao capitalismo como podemos apreendê-la em suas dimensões complementares ao trabalho disciplinado. Assim, o lazer pode ser percebido nos interstícios do sistema de fábrica, como espaços e parcelas de tempo não administrados pelo capitalismo, como pode, também, ser visto sob o ângulo da administração do tempo livre complementar ao trabalho organizado oriundo da racionalização moderna do capital. O lazer pode ser entendido tanto pela ótica da acomodação como pela da resistência à imposição dos modos de vida criados pelo sistema de fábrica. Nessa perspectiva é que se delineiam as estratégias dos sujeitos históricos.
Nesse sentido, não devemos compreender o tempo livre e o tempo de trabalho de forma dicotômica, precisamos, sim, pensar de que forma o indivíduo moderno consegue “driblar” essa dicotomia. Temos consciência de que o aumento do tempo livre não se deve ao processo de automação decorrente do progresso técnico, pois no modo de produção capitalista não assistimos à “libertação” do homem, seja no campo ou na indústria. O que observamos, em grande parte, com esse incremento tecnológico é a flexibilização e a precarização do trabalho, nas quais o aumento do tempo livre não significa aumento de salário, mas sim o aumento da miséria humana.
Dessa forma, concordamos com Mascarenhas (2000, p. 87) quando observa que
Sob os auspícios do capital, a verdadeira liberdade no tempo não residiria, portanto, no fazer “o que se quer”, mas na possibilidade de um exercício crítico e comprometidamente superador de nosso modo de sentir, pensar e agir que não ocorre somente no plano individual, mas se dá dialeticamente articulado com o conjunto das outras relações que se estabelecem em uma determinada organização social.
Acreditamos que talvez seja por meio da cultura popular, da organização coletiva das comunidades com seus laços sociais, que poderemos compreender as experiências no âmbito do lazer de forma transformadora. Nessa perspectiva, Rechia (2006, p. 94) considera relevante pensar nas práticas sociais feitas nos interstícios da vida urbana como uma “linha de fuga” ao tempo de trabalho. De acordo com a autora, “ssas experiências podem possibilitar a aquisição de novos valores humanos, os quais se diferenciam de meras atividades compensatórias, funcionalistas e consumistas”. Além disso, afirma que para entender algumas experiências do lazer como uma possibilidade de resistência, precisamos antes de tudo “compreender que no interior das práticas de lazer e por meio delas os sujeitos, conscientes ou não, podem fazer – na extensão de suas possibilidades – a crítica de sua vida cotidiana” (Rechia, 2003, p. 16).
Para melhor entendimento do que seria a “linha de fuga”, coadunamos com Munné (1992, p. 102), que “al conjugar la libertad com la temporalidad, esta distinción se traduce en dos estadios temporales dado por un tiempo de libertad de y um tiempo de libertad para.” Os dois termos se referem ao “tempo livre”. O primeiro é condicionante para que exista o segundo, mas isso não exclui uma relação dialética entre eles, pois é a partir do segundo estágio que podemos chegar à liberdade objetiva, ou seja, o tempo livre de está diretamente ligado ao tempo de trabalho, enquanto o tempo livre para deve ser concebido como um tempo direcionado ao desenvolvimento da liberdade plena, seja por meio das diversas práticas culturais, pelo descanso ou pela contemplação, ou pela execução de atividades obrigatórias, de formação pessoal ou social.
Procedimentos metodológicos
Como afirmamos anteriormente, decidimos pela abordagem qualitativa, pois favorece o uso de grande variedade de procedimentos e instrumentos de coleta de dados. Os recursos metodológicos selecionados se inspiram na estratégia da triangulação dos dados, a qual, segundo Minayo (2005, p. 199), “processa-se por meio do diálogo de diferentes métodos, técnicas, fontes e pesquisadores”.
Para tanto, usamos primeiramente a aplicação do protocolo de análise descritiva nos espaços públicos de lazer da região analisada. Na sequência fizemos as observações dos diferentes espaços em diferentes momentos. Posteriormente fizemos as entrevistas e finalizamos com a análise interpretativa com a triangulação dos dados.
Nessa etapa, nossa proposta é apresentar as diferentes praças e agrupá-las em três. O primeiro grupo são as praças que apresentam equipamentos sociais ou igrejas. Dentre elas destacam-se as de número 1, 4, 9 e 12. O segundo grupo refere-se às praças que não apresentam uma apropriação considerada adequada, pois as pessoas não têm um sentimento de pertencimento (7), ou que são apropriadas, mas de forma menos constante (2, 3, 5, 6, 10 e 11), e por último aquelas que, além de uma efetiva apropriação, apresentam algumas singularidades (8 e Central). A seguir, apresentamos um desenho esquemático da Vila Nossa Senhora da Luz (Fig. 1), com as 13 praças em destaque para melhor compreensão do espaço estudado.
Desenho esquemático que representa a Vila Nossa Senhora da Luz com suas 13 praças em destaque e suas respectivas numerações. As praças são retratadas pelos moradores pelos números, e não pelos nomes. 1, Praça Milton Cézar da Silva; 2, Praça Ari de Souza; 3, Praça Alberto da Silva; 4, Praça Alceu Mileke; 5, Praça Eli Ribeiro da Silva; 6, Praça Donizete Custódio da Silva; 7, Praça Euclides da Silva; 8, Praça José Costa do Nascimento; 9, Praça Lino da Costa, 10, Praça Pantelis Stergov Zafires; 11, Praça Luiz Otávio Leal; 12, Praça do Evangelho Quadrangular; Praça Central, Praça Enoch Araújo Ramos.
Nosso objetivo foi ver a realidade concreta, ou seja, como se caracteriza e como ocorre a apropriação das praças públicas. As praças apresentam diversas características, Entre elas podemos citar a acessibilidade, que é permitida a todas as pessoas, além da possibilidade de sociabilidade que há nesses lugares. A dinâmica das relações sociais que se estabelecem nas diferentes praças pode ser influenciada pela composição dos espaços e de seus equipamentos, que podem propiciar o desenvolvimento da reflexão crítica a respeito do cotidiano. Dessa forma, os espaços públicos se caracterizam como expressão da vida coletiva nas cidades.
As formas de apropriação das praças
Em nossas observações tivemos condições de perceber que dentro do primeiro grupo existem algumas especificidades. A praça 7 tem espaços e equipamentos, mas sua apropriação é quase inexistente. De acordo com uma moradora dos arredores “as pessoas preferem ir para as outras praças para brincar ou jogar futebol. Além disso, à noite não é muito segura”. Essa desapropriação muitas vezes pode ocorrer pela questão da insegurança e também pelo número excessivo de espaços.
Já nas praças 1 e 4 os espaços e equipamentos de lazer e esporte são reduzidos pela existência de equipamentos sociais, como uma creche e o armazém da família5, além do posto de saúde. Devido a isso, essas praças têm um espaço reduzido para os equipamentos destinados às experiências no âmbito do lazer. Apesar disso, não podemos dizer que esses equipamentos caracterizam-se de forma negativa dentro da VNSL, pois possibilitam que a comunidade tenha condições de comprar alimentos de primeira necessidade a um custo reduzido – trata-se de uma comunidade que apresenta uma condição socioeconômica desfavorável –, além de permitir aos moradores deixarem seus filhos num local próximo às suas residências que não se preocupa apenas com cuidar das crianças, mas também com contribuir para a educação delas.
Nas praças 9 e 12 estão duas igrejas que reduziram os espaços de lazer. Dessa forma, podemos afirmar que a apropriação da comunidade é reduzida pelas poucas possibilidades de espaço e equipamentos que são apresentadas. Diferentemente das praças que apresentam equipamentos sociais e que procuram atender à totalidade da população da VNSL, esses territórios demarcados pelas igrejas atendem a uma determinada parcela. Não estamos julgando a importância de cada manifestação religiosa, acreditamos que todas precisam ter seus espaços. Não obstante, deveria haver outro local para que elas se instalassem ou ao menos que não ficassem localizadas no centro da praça e inviabilizassem a construção de outros equipamentos que possibilitariam outras experiências sociais, culturais e de lazer.
O segundo grupo são as praças que, apesar da apropriação, tinham número reduzido de pessoas que as usavam, permaneciam por pouco tempo ou não apresentavam atividade sistematizada.
Mesmo que a apropriação dessas praças não se efetivasse de forma constante, ou seja, por um período prolongado ou em todos os dias da semana, podemos ressaltar que algumas experiências importantes foram observadas enquanto estivemos em campo. As manifestações lúdicas se fizeram presentes em todos os momentos, seja na “fabricação” do cerol6 pelos meninos, nas brincadeiras no playground, na areia, nos jogos de futebol, no andar de bicicleta e até nas conversas das senhoras nos bancos do playground.
Essas seis praças apresentam uma rotina, quase que diária, em sua forma de apropriação. Isso não significa que tiveram menor relevância para nosso estudo, mas como as experiências vivenciadas pelos moradores passaram a se repetir rapidamente e como as pessoas permaneciam por pouco tempo nessas praças, não desenvolvemos uma análise tão aprofundada.
O terceiro grupo apresenta uma movimentação diferenciada em relação às demais. Na praça 8, nos diversos períodos e dias da semana, notamos que com seus equipamentos é efetivamente apropriada. O que difere essa praça das restantes é a atividade desenvolvida de forma sistemática há aproximadamente 25 anos. Trata-se do futebol aos domingos e nos feriados, a partir das 9h, quando os moradores das cercanias, amigos e antigos moradores se reúnem para jogar.
De acordo com S.F.C.,7 ao falar sobre a organização da atividade,
já tem o cartão de todo mundo, fazemos sorteio nome por nome para não ficarem times muito fortes e outros muito fracos. Então divido na caderneta os nomes e faço o sorteio dos times para poder jogar, porque se fosse no grito não tinha jeito de fazer.
Complementando as informações a respeito da forma de organização, R.C.L. afirma que
essa atividade na praça foi feita para ser uma associação, a pessoa paga dois reais por mês, preço mínimo e quando puder [...]. É cobrado só pra comprar bola e às vezes quando está faltando rede. Quem compra o material é o S.F.C., que é responsável pela organização.
Podemos afirmar que essas pessoas têm no futebol sua identidade, seja ela pertencer a um grupo, de cuidado, atenção, afeição ou até mesmo de guardar referências familiares. Esse último ponto está presente nessa atividade, pois foi possível constatar os pais se encontrando com seus filhos e netos no decorrer dos jogos e até mesmo jogando juntos.
Já a Praça Central apresenta alguns equipamentos que a distinguem das demais e possibilitam outras formas de apropriação pela comunidade. Uma possível resposta para que essa praça esteja tão bem equipada refere-se à centralidade que ela tem na Vila e por ter acesso a partir das duas ruas principais8. Essa praça é a responsável pela grande movimentação que ocorre na VNSL, principalmente nos fins de semana. No decorrer do ano são organizados campeonatos de futebol e bocha, principalmente para os adultos.
Durante nossa pesquisa, tivemos a oportunidade de observar diferentes práticas corporais vivenciadas pelos moradores da comunidade no seu tempo/espaço de lazer. Dentre elas podemos destacar: soltar pipa, andar de bicicleta, pular de pogobol, subir em árvore, brincar no playground, brincar nos aparelhos de ginástica como se fosse o trepa-trepa, subir no alambrado, jogar bocha, jogar futebol (gol a gol), jogar bolinha de gude, grassboard (descer o barranco de grama com tábua), pular elástico, brincar de esconde-esconde, caminhar pela praça, jogar dama com peças de xadrez e construir balança com cadeirinha de bebê (para carro) e corda de amarrar lona de caminhão.
As duas últimas práticas chamaram atenção, pelo fato de essa praça ser a única que tem mesas de xadrez. No entanto, poderia estar presente nas outras praças, pois, de acordo com J.A.J.,
as mesas com tabuleiro serviriam como um convite para que as pessoas viessem de forma espontânea para a prática e, assim, não precisariam ficar caçando adversário [...]. Nem todo morador está credenciado fisicamente a praticar um esporte de atividade física. Então, teria de estimular mais atividades intelectuais.
Já com relação à adaptação da balança, o morador A.S. afirma:
Nós temos parquinhos lá embaixo, que só tem o nome de parquinho, não tem gangorra, não tem balança. Então, a gente tem que estar improvisando assim, como você viu, eu fazendo balanço para as crianças brincarem, sendo que, por certo, deveria já ter os balanços nas praças.
A partir dessas falas, podemos afirmar que esses moradores jogaram com o acontecimento, com as situações, e os transformaram em “ocasião”. Queremos dizer com isso que os moradores aproveitaram as brechas existentes, para, de maneira astuta e criativa, reinventar a forma de jogar e brincar e dar outro sentido àquelas peças de xadrez e aos materiais da balança. Podemos afirmar que essa é uma das “maneiras de fazer” a que se refere Certeau (1994) e constitui as diferentes práticas pelas quais as pessoas se apropriam do espaço.
Nessa praça há um equipamento social que merece destaque. Trata-se do Farol do Saber. Esse espaço, além de ser uma biblioteca, oferece vários projetos para a comunidade, como, por exemplo, oficina de origami, xadrez, ginástica, aulas de violão e karatê.
Dessa forma, podemos afirmar que esse lugar, a praça central, é o que apresenta maiores oportunidades de experiências no âmbito do lazer, pelos projetos do Farol do Saber, pelos campeonatos de futebol ou pelos diferentes equipamentos que compõem a praça, o que propicia uma apropriação mais efetiva por parte da comunidade, desde crianças, jovens e adultos que moram nas redondezas ou nas outras 12 praças.
Assim, é possível assegurar que esse grupo apresenta um movimento diferenciado, principalmente nos fins de semana, além de apresentar singularidades que as diferenciam das outras praças, pois são as únicas que oferecem atividades constantes e não dependem de uma única pessoa ou de um órgão específico para ser desenvolvidas.
A partir da análise das diferentes praças, podemos inferir que a existência de muitas praças num determinado espaço pode fazer com que parte delas torne-se subusada. Outro ponto importante a ser levado em consideração diz respeito aos equipamentos que contribuem para o processo de apropriação dos espaços de lazer. Porém não é possível afirmar que sozinhos garantam uma vivência diversificada e constante. A apropriação à primeira vista nos dá a impressão de ser uma simples questão de atitude individual, mas não devemos nos deixar iludir por tal convicção, pelo fato de que muitas vezes para que ela ocorra é necessário um ambiente adequado, ou seja, segurança, manutenção, equipamentos adequados, acesso e acessibilidade.
Finalizando o debate por ora
Procurando finalizar o debate por ora, podemos dizer que a ideia de um estudo concreto, no caso o espaço denominado Vila Nossa Senhora da Luz com seus equipamentos de lazer, coloca-se como o estudo do lugar como expressão, materialidade espacial. Nas palavras de Relph (1976), citado por Santos (1997, p. 124), “os lugares são, eles próprios, expressão atual de experiências e eventos passados e de esperanças no futuro”. Assim, cada grupo de praças com seus equipamentos e com suas formas de apropriação singulares pode caracterizar-se como diferentes lugares. Nessa perspectiva, o lugar, ou melhor, cada praça pode ser considerada “o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis [...] pelas mais diversas manifestações de espontaneidade e criatividade” (Santos, 1997, p. 258).
Tivemos condições de perceber que o cotidiano é compartilhado por regras formuladas e reformuladas localmente. O lugar é, por essência, responsável pelas experiências vivenciadas de forma significativa por meio da solidariedade existente nessas praças e pela ludicidade proporcionada nas diversas manifestações.
Desse modo, temos condições de afirmar que essas relações só são possíveis de ser observadas no âmbito do lazer. Nesse sentido, não basta ter um olhar de cima, precisamos, sim, conhecer a fundo a realidade pesquisada para ver como se efetiva o cotidiano compartilhado.
A partir de nossa pesquisa, podemos afirmar que as praças permitem aos moradores a sociabilidade, a troca de experiências, a conversa, e confirmam que a dinâmica das relações que se estabelecem nesses lugares pode influenciar diretamente na forma de apropriação dos espaços e equipamentos.
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1
Resultado da dissertação de mestrado intitulada “Espaços e equipamentos de lazer da Vila Nossa Senhora da Luz: suas formas de apropriação no tempo-espaço de lazer”, defendida em 2008.
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2
Arquiteto e diretor técnico da primeira gestão da Cohab-CT de Curitiba.
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3
Apropriação para Debortoli et al. (2008 apud Tschoke e Rechia, 2012, p. 266) diz respeito ao sentimento de pertencimento, à compreensão do vivido para além do espaço geométrico.
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4
Conceito usado por Robba e Macedo (2003, p. 35).
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5
São unidades fixas de abastecimento instaladas em pontos estratégicos da periferia de Curitiba, bairros e em terminais de ônibus, onde é feita a venda de gêneros alimentícios e produtos de higiene e limpeza. Os armazéns vendem as mercadorias a preços 30% mais baixos, em média, do que o mercado formal.
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6
O cerol (composto de pó de vidro e cola goma) é passado no fio para deixá-lo mais resistente, além de ser usado com o objetivo de cortar o fio de outras pipas. O cerol por ser feito com pó de vidro e é extremamente cortante.
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7
Os participantes da pesquisa tiveram suas identidades preservadas para respeitar a privacidade deles.
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8
R. Davi Xavier da Silva e R. Orlando Luis Lamarca, Vila Nossa Senhora da Luz, Curitiba-PR.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2015
Histórico
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Recebido
22 Ago 2012 -
Aceito
06 Dez 2013