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Práticas pedagógicas: entre a reprodução e a reflexão

Pedagogic practices: between reproduction and reflection

Prácticas pedagógicas: entre la reproducción y la reflexión

Resumos

Este artigo apresenta a pesquisa na qual buscamos compreender a constituição das práticas pedagógicas através das teorias da ação. Nesse sentido, desenvolvemos um estudo de caso etnográfico em uma escola municipal de Porto Alegre. Obtivemos a colaboração de sete professores de educação física que se encontravam em momentos distintos da docência e observamos que as experiências vividas por eles influenciam fortemente sua prática pedagógica. Identificamos que os professores que problematizam suas práticas o fazem com o auxílio de teorias pedagógicas recentes. A pesquisa foi apresentada aos professores colaboradores como forma de validação do estudo e com o intuito de estabelecer um diálogo com os participantes, promovendo uma discussão sobre suas práticas

Prática pedagógica; educação física; formação de professores; habitus; experiências vividas


In the present study we seek to comprehend the constitution of pedagogic practices through the theories of action. In this sense, we have developed an ethnographical case study in a district school of Porto Alegre. We had the collaboration of seven physical education teachers who were in distinct moments of their teaching career and we observed that their life experiences strongly influence their pedagogic practices. We found out that the teachers who problematize their practices do so with the help of recent pedagogic theories. The research was presented to the collaborative teachers as a means of validating the study and with the intent of establishing a dialogue with the participants to promote a discussion on their practices

Pedagogic practices; physical education; teacher training; habitus; life experience


En este artículo presentamos una investigación en la cual intentamos comprender la constitución de las prácticas pedagógicas a través de las teorías de la acción. En este sentido, desarrollamos un estudio de caso etnográfico en una escuela municipal de Porto Alegre. Hemos tenido la colaboración de siete docentes de educación física que se encuentran en diferentes momentos de la carrera docente y observamos que las experiencias vividas por éstos influencian de manera significativa en su práctica pedagógica. Identificamos que los docentes que problematizan sus prácticas lo hacen con la ayuda de las teorías pedagógicas recientes. La investigación fue presentada a los profesores colaboradores como forma de validación del estudio y con el intuito de establecer un diálogo con los participantes

Práctica pedagógica; educación física; formación de profesores; habitus; experiencias vividas


ARTIGOS ORIGINAIS

Práticas pedagógicas: entre a reprodução e a reflexão* * O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.

Pedagogic practices: between reproduction and reflection

Prácticas pedagógicas: entre la reproducción y la reflexión

Mônica Urroz SanchoteneI; Vicente Nolina Neto, DRII

IProfessora da rede municipal de ensino de Porto Alegre (Rio Grande do Sul - Brasil) E-mail: msanchotene@yahoo.com.br

IIProfessor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul - Brasil) E-mail: vicente.neto@ufrgs.br

Endereço para correspondência Endereço para correspondência : Mônica Urroz Sanchotene R. Livramento, 409 - Santana Porto Alegre-RS CEP 90640-130

RESUMO

Este artigo apresenta a pesquisa na qual buscamos compreender a constituição das práticas pedagógicas através das teorias da ação. Nesse sentido, desenvolvemos um estudo de caso etnográfico em uma escola municipal de Porto Alegre. Obtivemos a colaboração de sete professores de educação física que se encontravam em momentos distintos da docência e observamos que as experiências vividas por eles influenciam fortemente sua prática pedagógica. Identificamos que os professores que problematizam suas práticas o fazem com o auxílio de teorias pedagógicas recentes. A pesquisa foi apresentada aos professores colaboradores como forma de validação do estudo e com o intuito de estabelecer um diálogo com os participantes, promovendo uma discussão sobre suas práticas.

Palavras-chave: Prática pedagógica; educação física; formação de professores; habitus; experiências vividas.

ABSTRACT

In the present study we seek to comprehend the constitution of pedagogic practices through the theories of action. In this sense, we have developed an ethnographical case study in a district school of Porto Alegre. We had the collaboration of seven physical education teachers who were in distinct moments of their teaching career and we observed that their life experiences strongly influence their pedagogic practices. We found out that the teachers who problematize their practices do so with the help of recent pedagogic theories. The research was presented to the collaborative teachers as a means of validating the study and with the intent of establishing a dialogue with the participants to promote a discussion on their practices.

Key words: Pedagogic practices; physical education; teacher training; habitus; life experience.

RESUMEN

En este artículo presentamos una investigación en la cual intentamos comprender la constitución de las prácticas pedagógicas a través de las teorías de la acción. En este sentido, desarrollamos un estudio de caso etnográfico en una escuela municipal de Porto Alegre. Hemos tenido la colaboración de siete docentes de educación física que se encuentran en diferentes momentos de la carrera docente y observamos que las experiencias vividas por éstos influencian de manera significativa en su práctica pedagógica. Identificamos que los docentes que problematizan sus prácticas lo hacen con la ayuda de las teorías pedagógicas recientes. La investigación fue presentada a los profesores colaboradores como forma de validación del estudio y con el intuito de establecer un diálogo con los participantes.

Palabras claves: Práctica pedagógica; educación física; formación de profesores; habitus; experiencias vividas.

INTRODUÇÃO

O presente artigo emerge de uma investigação concluída no ano de 2007 e tem como foco a constituição das práticas pedagógicas de professores de educação física com base nas teorias da ação (Bourdieu, 2005). Esse interesse tem, basicamente, duas causas: sermos professores de educação física e estarmos inseridos em um grupo de pesquisa que estuda em profundidade essa prática pedagógica em escolas organizadas por ciclos de formação. No grupo de pesquisa, acompanhamos e realizamos estudos que se referem às inovações que têm acontecido na rede municipal de ensino de Porto Alegre (RMEPOA) há mais de 10 anos, com especial atenção à formação permanente e às práticas pedagógicas no âmbito da educação física. Alguns desses estudos podem ser encontrados na forma de artigos e teses, como Günther (2006, 2009), Bossle (2002) e Wittizorecki e molina Neto (2005)1 1 . Algumas dessas produções podem ser acessadas no endereço www.ufrgs.br/pos/gruposdepesquisa/f3p_efice.php. . Acompanhamos ainda as produções de grupos de outras universidades brasileiras2 2 . Universidades brasileiras tais como: Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e Universidade Federal de Uberlândia (UFU), dentre outras. que têm como tema a educação física escolar.

Nos estudos antes mencionados, os pesquisadores ressaltam que a organização do ensino por ciclos, por tratar-se de uma inovação pedagógica, não atinge professores e escolas da mesma forma. As pesquisas identificam que as reações dos professores são distintas e que a prática pedagógica nas aulas de educação física aparece como algo diversificado e dependente do contexto escolar (Günther, 2009), com muito de improvisação e de urgência (SanChotene, 2007). Para Bossle (2002), o que os professores de educação física vêm realizando nas escolas é a "educação física possível".

Ao analisar propostas curriculares alternativas como as do estado de minas Gerais, do município de São Paulo, do estado do Rio de Janeiro e da cidade de Porto Alegre, moreira (2000) descreve algumas características de cada uma dessas propostas de reformulação educacional (ou curricular, dependendo do caso) e discute suas similaridades e diferenças. Para esse autor, ocorreram avanços significativos na organização do currículo e na gestão escolar, de diferentes formas e em diferentes graus. Destaca, finalmente, a necessidade de confluência entre a teoria do currículo e a prática pedagógica e defende a "centralidade da prática nos estudos de currículo", acrescentando que "o foco na prática não deve ser compreendido como secundarização da teoria" (p. 131).

Referindo-se ao caso da RMEPOA, Günther (2009) ressalta que, a partir dos ciclos de formação, os professores passaram "a ver os alunos com outros olhos", valorizando os vínculos mútuos que se estabeleceram, tanto no que se refere ao caráter afetivo quanto ao respeito pelas diferentes culturas que se apresentam na escola. No entanto, a autora conclui dizendo que o currículo organizado por ciclos representa muito mais uma possibilidade de inovar do que propriamente a sua garantia.

Nesse sentido, buscamos compreender como os professores de educação física organizam suas práticas, através do seguinte problema de pesquisa: Como as experiências vividas pelos professores de educação física interferem nas práticas pedagógicas desenvolvidas na rede municipal de ensino de Porto Alegre?

Desenvolvemos um estudo de caso etnográfico, no intuito de compreender a constituição das práticas pedagógicas dos professores de educação física por meio das teorias da ação. Pretendemos avançar na discussão a respeito da constituição das práticas, buscando relacioná-las com as experiências vividas pelos professores e ampliar a discussão sobre as possibilidades e limitações de mudança delas, principalmente em relação à proposta de ensino por ciclos de formação.

Para tanto, o artigo está organizado da seguinte forma: iniciamos com uma discussão teórica sobre a noção de habitus e as relações com as experiências vivenciadas pelos professores de educação física; prosseguimos tratando dos aspectos teóricometodológicos da investigação; e, por fim, apresentamos algumas considerações a respeito do estudo e nossa compreensão sobre o processo de investigação.

A ESTRUTURAÇÃO DA PRÁTICA PEDAGÓGICA

Com o auxílio de um estudo de caso etnográfico, buscamos compreender a constituição das práticas pedagógicas dos professores de educação física por meio das teorias da ação. Bourdieu (2005) ressalta que, em uma filosofia da ação, o ponto central é a "relação, de mão dupla, entre as estruturas objetivas (dos campos sociais) e as estruturas incorporadas (do habitus)" (p. 10). Com o aporte teórico da filosofia da ação, o autor busca romper com algumas noções patenteadas no discurso acadêmico, tais como "sujeito", "motivação", "papel" e também com uma série de oposições socialmente muito fortes, como indivíduo/sociedade, consciente/ inconsciente, entre outras. Compreendemos em Bourdieu (2005) que, nas teorias da ação, os "sujeitos" [grifo do autor] agem a partir de um senso prático, de um sistema adquirido de preferências e de estruturas cognitivas duradouras que são produtos da incorporação de estruturas objetivas. Sendo assim, o habitus, para o autor, é essa espécie de senso prático, do que se deve fazer em uma determinada situação. Nesse sentido, destacamos que:

A prática é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma em relação à situação considerada em sua imediatidade pontual, porque ela é o produto da relação dialética entre uma situação e um

habitus

- entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona em cada momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações - e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma, e às correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por esses resultados (Bourdieu, 1983, p. 65).

Para Bourdieu (1983), o habitus é o produto da história e um princípio estruturador de práticas individuais e coletivas que podem ser apreendidas empiricamente. São disposições duráveis "predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador de práticas e das representações" (p. 60-61, grifo nosso).

Nessa perspectiva, a prática pedagógica dos professores de educação física será entendida como resultante da interação entre um habitus e um contexto. Com o intuito de tornar mais clara a perspectiva de análise, elaboramos o seguinte esquema:

A literatura nos mostrou que amplo debate se estabelece em torno do papel do habitus e do contexto nas práticas. Nesse sentido, Lahire (2002) coloca a questão das modalidades de desencadeamento dos esquemas de ação, ou seja, de que forma somente uma parte das experiências passadas incorporadas é convocada para a situação presente? Assim, o interesse do autor repousa não somente na constituição dos esquemas de ação, mas, fortemente, em como se dá a mobilização desses esquemas de ação.

Para Silva (2005), "a semelhança entre a lógica da noção de experiência e a noção de habitus é visível. O que seguramente se pode dizer é que uma não existe sem a outra, já que o habitus é a substância da experiência, e vice-versa" (p. 158, grifos da autora).

Essa discussão também se faz presente no âmbito da educação física, mais especificamente no trabalho de Borges (2003). A autora ressalta que pretende dar relevo a outros aspectos da formação do saber/prática dos professores de educação física que vêm sendo desconsiderados em sua formação e refere-se "à ideia de que muitos dos saberes que formam os professores são resultantes das experiências que estes adquirem na trajetória profissional, no desenvolvimento de atividades pedagógicas vivenciadas nas instituições onde atuam e atuaram" (p. 109). Borges (2003) utiliza o conceito de habitus para "buscar identificar como se dá e quais elementos influenciam a construção dos saberes" (p. 111). Nesse sentido, a expressão saberes da experiência3 3 . O conceito de saberes da experiência, para Tardif (2002), refere-se a saberes específicos que são desenvolvidos pelos professores, fundados nos saberes do cotidiano e no conhecimento do seu meio. Estes brotam da experiência e são validados por ela: "Eles incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber fazer e de saber ser" (p. 39). diz respeito, principalmente, às interações vivenciadas pelos docentes.

Desse modo, é reforçada a ideia de que o habitus constitui a prática pedagógica dos professores por meio da incorporação de experiências vividas e da repetição de ações que deram certo. Encontram-se presentes no habitus dos professores saberes que foram constituindo-se ao longo do exercício da docência, conhecimentos adquiridos a partir de suas experiências e crenças relativas ao seu período de escolarização, ou seja, durante o período em que estiveram na escola, como alunos.

Sendo assim, é possível observar que outro fator importante na constituição dessas práticas é o contexto no qual essas se desenvolvem. Para a realização da pesquisa, tratamos o contexto com base em um entendimento mais amplo, abarcando-o como um espaço de relações, como um espaço de tempo e como um espaço lugar.

Para Bourdieu (1983, 2005), o contexto/a situação desencadeadora é um dos aspectos constituintes da prática; enquanto para Lahire (2002) as situações sociais constituem verdadeiros "ativadores" de resumos de experiências incorporados, que são nossos esquemas de ação (no sentido amplo do termo) ou nossos hábitos. Desse modo, dependemos fortemente dos contextos sociais "que 'tiram' de nós certas experiências e deixam outras em estado de gestação ou de vigília. mudar de contexto (profissional, conjugal, familiar, de amizade, religioso, político...) é mudar as forças que agem sobre nós" (p. 59, grifo do autor).

Nesse sentido, para Lahire (2002) a situação desencadeadora tem papel importante nas práticas. Porém, nem o acontecimento desencadeador, nem a disposição incorporada podem ser entendidos como determinantes das práticas. Para o autor, "O comportamento ou a ação é o produto de um encontro no qual cada elemento do encontro não é nem mais nem menos determinante que o outro" (p. 56).

Na educação física, há uma gama de autores que tratam do contexto em seus trabalhos, e todos parecem concordar que há forte influência do contexto na organização e no desenvolvimento das aulas. Borges (2003) denomina de poder educativo das instituições a forte influência que a organização escolar exerce sobre a prática, enquanto Gariglio (2005) ressalta o fato de que as aulas de educação física acontecem em um contexto que as difere das demais disciplinas pelas condições ambientais da sala de aula, pela interação professor-aluno afetivamente mais intensa, por seus objetos didáticos peculiares, entre outros. O autor constata que "os saberes docentes são elaborados dentro de um contexto situado de trabalho, ou seja, construídos em função de situações particulares e singulares" (p. 1986).

Sendo assim, no caso específico da educação física, consideramos importante tratar da situação nas quais ocorrem as aulas: o espaço e o tempo destinados pela instituição a essas aulas, a relação numérica professor-aluno, a relação da escola com a disciplina de educação física, as normas escolares, o material disponível, entre outros aspectos. Desse modo, o contexto4 4 . Para saber mais a respeito da influência do contexto nas aulas de educação física, sugerimos a leitura de SANCHOTENE, M. U. A relação entre as experiências vividas pelos professores de educação física e a sua prática pedagógica: um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento Humano) - Escola de Educação Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. foi tratado de forma abrangente (espaço escolar, comunidade escolar e o tempo destinado às aulas de educação física), na tentativa de compreender uma prática determinada no interior de uma instituição determinada: a escola.

DECISÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

A aproximação ao objeto de estudo e a revisão teórica do tema da pesquisa apontaram, durante o percurso, que a perspectiva qualitativa seria a mais adequada para analisar a prática cotidiana dos professores como resultante de um habitus e de um contexto escolar.

A fim de compreender como se constitui a prática pedagógica dos professores de educação física da RMEPOA, consideramos a importância de observar as aulas dos professores de educação física buscando relacioná-las com as suas experiências vividas e entender os motivos que os levaram a produzir essa organização de aulas, ou ainda, essa prática pedagógica. Desse modo, para Woods (1995), é apoiando-nos na etnografia que podemos descobrir resultados, os quais seriam impossíveis encontrar de outra maneira; como por exemplo, a construção do conhecimento escolar e as regras rotineiras não escritas que guiam a ação do professor (Woods, 1995).

A pesquisa teve início com o estudo preliminar em outubro de 2005. A partir dele, percebemos que a escola se configurava como um ambiente empírico adequado para o estudo proposto. Nesse sentido, Lüdke e André (2005) ressaltam que o estudo de caso vai delineando-se com o avanço da investigação e se deve captar a realidade como ela é e não como se gostaria que fosse.

Entendemos que o estudo de caso se define, principalmente, com base nas provocações que nos faz o objeto de estudo; e, dessa forma, a opção por desenvolver um estudo de caso etnográfico levou-nos a considerar alguns fatores, como a representatividade tipológica5 5 . Consideramos como representatividade tipológica a diversificada gama de professores da Escola Restinga (nome fictício): alguns professores com muito tempo de docência, outros com pouco tempo de trabalho no município de Porto Alegre, professores que continuavam estudando ou outros que utilizavam práticas alternativas em suas aulas, ou seja, havia nessa escola professores com distintas características, como formação inicial, perspectivas teóricas, tempo de trabalho no magistério, dentre outras. da escola: trabalhavam oito professores de educação física, com diferentes idades e diferentes tempos de inserção na própria escola e na RMEPOA. Por meio de conversas informais, percebemos que suas experiências anteriores eram bastante diversificadas, assim como suas concepções de educação física e suas formas de trabalho.

Outro fator que consideramos importante na elaboração do caso foi o amplo espaço, na escola, destinado às aulas de educação física. Ao entender que o contexto é um dos aspectos constituinte das práticas, o estudo não poderia ser realizado em um contexto que lhes seria inadequado, sob pena de ser inviabilizado. As aulas, ao acontecerem em um contexto semelhante, minimizavam sua influência nas práticas, permitindo que a atenção estivesse mais focada no papel do habitus em sua constituição.

Ressaltamos que este desenho investigativo é dotado de características singulares. Para Sarmento (2003), o que distingue a etnografia de outros tipos de estudos qualitativos não é uma questão de método, "mas a perspectiva, enfoque ou orientação" (p. 152). Para esse autor, um estudo de caso etnográfico impõe a adoção de um desenho investigativo baseado nos seguintes pressupostos: permanência prolongada no campo a fim de que o investigador possa colher, pessoalmente, suas informações; interesse por todos os detalhes e pormenores da vida escolar; interesse voltado para os comportamentos e atitudes dos atores sociais; esforço para produzir um relato enraizado nos aspectos significativos para os atores; esforço para estruturar o conhecimento obtido, ou seja, buscar produzir conhecimento de forma dialógica e compreensiva; e, finalmente, um relato final criativo e capaz de casar a narração/descrição dos contextos com a perspectiva teórica da análise.

Nessa perspectiva, a coleta de informações foi realizada por meio dos seguintes instrumentos: observação participante, entrevista semiestruturada e análise de documentos. A utilização de várias fontes de evidências permitiu a triangulação e a convergência das evidências. Finalmente, com o intuito de produzir conhecimento de forma dialógica, realizamos a devolução do estudo para os professores colaboradores. Para García e Cervantes (2004), essa pode ser considerada uma forma de validação da pesquisa. Sendo assim, organizamos um encontro com os professores participantes, com o objetivo de expor os "achados" do estudo. Além de informá-los, foram respeitadas suas manifestações de concordância ou de discordância em relação ao estudo e algumas foram incorporadas ao texto. Esse momento foi considerado pelos professores participantes uma oportunidade de problematizar a própria prática.

O trabalho de campo teve a duração de 13 meses6 6 . Período de 13 meses do trabalho de campo: outubro, novembro e dezembro de 2005. Durante o ano de 2006: março a dezembro. . Foi iniciado em outubro de 2005 (com a realização do estudo preliminar) e encerrado em dezembro de 2006, totalizando 200 horas de observação participante com registro em diário de campo. Foram realizadas oito entrevistas semiestruturadas com duração variável de 35 a 70 minutos, e também foi realizada a análise de documentos, como planejamentos dos professores de educação física, avaliações trimestrais, planta original da escola, entre outros. Todos os nomes utilizados no estudo são fictícios no intuito de garantir o sigilo das fontes.

A importância da observação participante e de seu registro pormenorizado no diário de campo deve-se à singularidade da tarefa de trabalhar com as disposições incorporadas, pois, para Lahire (2002), estas não são diretamente observáveis. Para esse autor, o pesquisador as reconstrói com base na descrição das práticas, na descrição das situações nas quais essas práticas se desenvolveram e na reconstrução de elementos que julga importantes na história do praticante (trajetória, biografia, entre outros).

Das entrevistas realizadas, sete foram com professores de educação física e uma com a diretora da escola. A entrevista com a diretora não fez parte da categorização, porém serviu de instrumento na compreensão do contexto escolar por meio de uma informante privilegiada. A professora Eliane, ao ler a transcrição de sua entrevista, entendeu que suas respostas não estavam de acordo com o que ela pensava, optando, a seguir, por produzir um documento escrito sobre os principais pontos de seus pensamentos.

O processo de categorização deu-se por meio das entrevistas. A construção das categorias de análise foi um processo bastante trabalhoso em razão do excessivo número de unidades de significado encontradas nas entrevistas e da opção por construí-las ao longo do estudo. Conforme André (1998), buscamos organizá-las com base em um diálogo constante com a teoria e com os dados obtidos, estabelecendo a vinculação do referencial teórico com as observações e com as entrevistas. Contudo, no presente artigo apresentaremos apenas a categoria "das experiências vividas pelos professores de educação física e a relação com a sua prática pedagógica (ou de onde provêm as incorporações?)".

A ORGANIZAÇÃO DA PRÁTICA PEDAGÓGICA

Para este artigo, realizamos a tarefa de extrair da dissertação apenas alguns excertos essenciais à compreensão do papel do habitus e do contexto na organização da prática pedagógica dos professores de educação física. Nossa opção por aprofundar a discussão a respeito da constituição das práticas pedagógicas dos professores de educação física levou-nos a identificar que as experiências vividas pelos que participaram do estudo se encontram presentes em sua prática pedagógica, seja como inspiração para as aulas, seja como um meio de questionamento delas.

Dos sete professores que colaboraram com o estudo, apenas dois deles trabalhavam há menos de três anos na RMEPOA. Esses dois professores já acumulavam experiências como personal trainner, diretores ou professores em pré-escolas. O trabalho de Ana estava eminentemente voltado para a educação física não escolar, como ioga e recreação em condomínios. Denis foi diretor de uma pré-escola durante alguns anos e estava realizando o mestrado em educação no período de 2004 a 2006. Os outros professores colaboradores trabalhavam com o magistério em escolas públicas, alguns há mais de vinte anos, como Beto e Carlos, e outros, como Glória, Flávia e Eliane, trabalhavam há mais de 15 anos na RMEPOA, como destaca o quadro a seguir.

Identificamos que os professores que atuavam há mais tempo em escolas da RMEPOA utilizavam, na maior parte das vezes, as experiências vivenciadas na escolarização como fonte de inspiração na organização das aulas e em sua prática na escola. A professora Eliane utilizava em sua prática algumas vivências de seu tempo de estudante dos ensinos de 1º e 2º graus e de sua formação:

As atividades que eu proponho são bem parecidas com as que eu vivenciei no tempo do colegial, só que existia respeito pelo professor e os alunos não eram agressivos e sem limites (Eliane, entrevista em agosto de 2006).

Outro aspecto importante na organização das aulas da professora Eliane era a sua própria prática na escola, como mostra o trecho da entrevista abaixo:

Utilizo as atividades dos anos anteriores que funcionaram bem e que tiveram boa aceitação entre os alunos. Eu penso em primeiro lugar no perfil das turmas [com] que eu vou trabalhar, verifico se a atividade não vai agitar demais os alunos, se não é muito agressiva e, principalmente, se os alunos têm condições de entender a brincadeira. Às vezes vejo atividades de outras turmas e converso com o colega, se não tiver problema eu utilizo nas minhas aulas (Eliane, entrevista em agosto de 2006).

Da mesma forma, a professora Flávia utilizava suas experiências como parâmetro de organização de suas aulas; porém, essa professora, ao falar de sua prática, coloca que procura valorizar suas vivências positivas na escolarização:

Eu procuro evitar os negativos. Não deixar o aluno por conta, eu procuro trabalhar com toda a parte de iniciação desportiva, que eles experimentem todos, todos não, mas pelo menos o que for possível a escola oferecer dentro do desporto e aqueles alunos que têm dificuldade eu procuro [fazer com que] que eles participem também, que não é porque eles têm dificuldade que eles deixem de participar (Flávia, entrevista em 19 de setembro de 2006).

No entanto, para Ana, Glória e Denis, a escolarização parece estar influenciando a reflexão que produzem sobre a prática. Nas palavras desses professores, respectivamente:

O que eu trago da escolaridade é observar bem o que eu não quero (Ana, entrevista em 21 de agosto de 2006).

É o que eu não repito, o que eu procuro não repetir. Por exemplo, porque eu, como eu venho da pedagogia tecnicista, do rendimento, da valorização dos melhores, eu procuro retirar isso do meu trabalho (Glória, entrevista em 3 de outubro de 2006).

E como eu falei agora há pouco, que eu não entendo porque cheguei na educação física, mas eu lembro que eu era um aluno que não gostava do que acontecia. [...] E tenho um cuidado muito grande de tentar não reproduzir isso (Denis, entrevista em 31 de outubro de 2006).

Esses professores, por buscarem modificar as práticas vivenciadas durante sua própria escolarização ou mesmo em outras dimensões da experiência, como escolinhas esportivas, buscam suporte em estudos com diferentes níveis de aprofundamento e/ou de diferentes áreas. Nesse caso, a professora Ana relata que busca conhecimentos em outras áreas para subsidiar sua prática:

Onde é que eu vou buscar recursos pra melhorar nesse sentido? Há recursos fora, em áreas [em] que eu acredito, como o ioga, teatro e tal (Ana, entrevista em 21 de agosto de 2006).

E explica que esses conhecimentos estão baseados em sua formação:

Olha, estão baseados na minha formação, mas não tanto acadêmica, mais nesses caminhos assim que eu vou buscar de educação e valores humanos do Sai Baba ou no ioga ou essa questão mais oriental mesmo (Ana, entrevista em 21 de agosto de 2006).

De outra forma, Glória e Denis, que estavam realizando cursos de longa duração (como o curso de especialização em esporte escolar e o mestrado em educação, respectivamente), relataram que esses estudos influenciam em suas aulas e nas reflexões que realizam com base nelas.

E os conceitos que eu venho estudando, o conceito de poder, as relações de gênero, também são coisas [com] que eu me preocupo, que eu acho interessante[s]. Acho que é uma conquista que a gente teve nessas minhas turmas que eles conseguem... essa questão de gênero, da divisão, dessa dicotomia grande entre meninos e meninas é bem legal que a gente consegue superar, de alguma forma. Eu acho que rola. E faço essas coisas e acho que essas coisas rolam dessa forma pelos estudos que venho fazendo. Acho que colabora muito sim. Não para que a gente consiga o ideal. Ou algo que seja bem interessante, que funcione como um relógio, mas colaborar para que a gente consiga nesse nosso caos ir organizando as coisas, temporariamente (Denis, entrevista em 31 de outubro de 2006).

A professora Glória8 8 . Durante a entrevista, que foi realizada na residência da professora Glória, ela mostrou os livros que estava lendo e os materiais que confeccionava com a sua família para as aulas de educação física. Conversamos a respeito desses livros, pois eram publicações recentes relativas à metodologia de ensino da educação física, além de outros, também recém-publicados, que a auxiliavam nas preparações das aulas e da possibilidade de trabalhar com materiais alternativos nas aulas. relatou que desenvolve suas aulas se baseando em alguns princípios que, segundo ela, provêm de suas experiências vividas e de suas leituras recentes:

Bom, eu tenho alguns princípios [de] que eu não abro mão: a participação, a integração com todos, trabalhar bastante essa questão de gênero (Glória, entrevista em 3 de outubro de 2006).

Sempre procurando que eles tenham uma autocrítica de como foi o seu envolvimento. Como eu busco um conhecimento e uma interação deles em função das discriminações, eles têm que fazer uma crítica. Porque se aquele, por exemplo, que discriminou o outro porque ele não sabia jogar, ele tem que entender que ele está num processo diferente, que o direito é de todos, que o espaço é de todos... não é exclusivo dele porque ele já domina alguma habilidade. Então, sempre baseado nisso, buscando uma crítica... minha mesmo, do meu trabalho (Glória, entrevista em 3 de outubro de 2006).

No entanto, professores com mais tempo de experiência nas redes públicas de ensino, como Carlos e Beto, tendem a organizar suas aulas baseados nos conhecimentos acumulados durante esse tempo de trabalho. O professor Carlos tem clareza quanto à força de suas experiências em suas aulas:

É, eu acho que me baseio muito na minha experiência, naquilo que a escola me possibilita, muito pouco no pedido dos alunos, embora a gente faça [...] no início do ano uma consulta. mas muitas vezes a gente não consegue oportunizar algumas coisas que aparecem (Carlos, entrevista em 1 de dezembro de 2005).

Então eu trabalho dentro das condições que nós temos, dentro também, um pouco, da minha experiência; a minha experiência como professor é mais voltada para o esporte. [...] Eu realizo as aulas procurando dar as informações relacionadas ao esporte. Relacionar o esporte com a parte de fundamentos... tanto na prática como também na teoria, regras, e as relações de convivência, entre os alunos também (Beto, entrevista em 30 de novembro de 2005).

O professor Beto reconhece que seu planejamento anual está baseado, principalmente, na prática dos anos anteriores, e a esse respeito relatou que se baseia:

Na prática, na prática. Dependendo da situação busco algum... faço alguma leitura, para alguma dificuldade, alguma dúvida, busco uma leitura para esclarecer, ficar com mais condições de trabalhar [...] em determinado momento, quando eu acho que tenho que trabalhar determinada coisa, mas não tenho planejamento, como é que eu vou dizer... sistemático. [Tenho] Planejamento geral, depois o planejamento do dia a dia de aula, se dá pela prática (Beto, entrevista em 30 de novembro de 2005).

Ou como colocou o professor Carlos:

Então acho que eu ainda estou muito limitado por formação, pela arquitetura da própria escola, pela cultura que envolve ainda a prática escolar. [...] Essa área da dança é uma área que eu acho que a gente deve entrar, mas não estou conseguindo (Carlos, entrevista em 1 de dezembro de 2005).

Desse modo, podemos observar que o aspecto físico do contexto influencia as aulas dos professores de educação física. Também foi possível observar, durante o trabalho de campo, que os professores fazem críticas ao seu trabalho, mas apresentam muita dificuldade em mudar as práticas, o que parece indicar a grande dificuldade na superação de um habitus precocemente estabelecido, como pode ser observado no trecho a seguir:

Beto disse que gostaria de trabalhar com outras atividades, dança, por exemplo, porém, não sabia como fazer. Ana rebateu dizendo que ele poderia ser apenas um organizador, porque as crianças tinham algum conhecimento a respeito e que este deveria ser levado em conta (Diário de campo, 26 out. 2005, turno da manhã).

Identificamos, com base nas falas dos professores e nas observações das aulas, que os docentes com mais tempo de trabalho no magistério tendem a utilizar em sua prática pedagógica muitos elementos de um habitus constituído durante sua escolarização (pela utilização das mesmas brincadeiras e relações hierárquicas), enquanto os professores com menos tempo de trabalho no magistério buscam apoio pedagógico em outras fontes para organizar suas aulas, seja nas áreas alternativas, seja na área da educação. Esse segundo grupo de professores parece ter conseguido alguns avanços em sua prática, sobretudo aqueles que, ao continuarem seus estudos, vão construindo uma visão mais crítica acerca das propostas educacionais e/ou da educação como um todo, em razão das aprendizagens construídas ao longo da carreira docente.

Observamos que o contexto (como espaço físico) ou as experiências nele vivenciadas estão presentes na organização das aulas dos professores. Sendo assim, discutiremos, a seguir, qual a influência do contexto na organização das aulas de educação física.

O CONTEXTO NA ORGANIZAÇÃO DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Os professores reconhecem que o contexto exerce influência sobre sua prática e que, em alguns casos, essa influência pode ser determinante. Eles relataram em suas entrevistas e, algumas vezes, afirmaram a seus alunos (anotações no diário de campo) que trabalham em um local privilegiado, porque a escola possui um ginásio com quadra poliesportiva, duas quadras poliesportivas descobertas e mais um pátio que pode ser utilizado nas aulas práticas de educação física. Porém, durante a entrevista, o professor Beto reconsidera essa afirmação:

Nós temos uma boa estrutura de instalação esportiva, mas não temos uma sala adequada para fazer atividades de dança, de ginástica... como isso também é uma atividade corporal. Aí, voltando àquela pergunta anterior, realmente, isso é uma coisa que falta na escola. Eu acho que em quase todas... eu acho que a gente sabe do problema, a força que tem o esporte (Beto, entrevista em 30 de novembro de 2005).

E os professores sentem a necessidade de mais espaços flexíveis, como salas de multiuso:

O espaço é fundamental para tu fazeres um bom planejamento, para que tu possas dar mais condições para eles. Uma sala apropriada... ali a gente não tem... o ginásio fica muito grande, falta uma sala para uma ginástica com música, um espaço um pouco menor seria ideal, mas ali não tem (Glória, entrevista em 3 de outubro de 2006).

A questão arquitetônica esta aí. Seria muito bom se a gente tivesse uma sala de multiuso. Diversificar materiais também (Carlos, entrevista em 1 de dezembro de 2005).

No entanto, o contexto exerce outros tipos de influência na prática dos professores, sendo, em alguns momentos, determinante, como percebem os professores Denis e Flávia:

Mas a escola está muito imbricada na comunidade. Então, o funcionamento da comunidade é bem parecido com o funcionamento da escola. Que não é uma coisa que me agrade. Eu acho que aqui a gente trabalha com muita violência. Nós somos violentos na maneira de tratar com os alunos, nós "cortamos" eles, a gente não deixa fazerem uma série de coisas... quando eu falo "a gente", eu estou botando a escola como... eu como parte da escola, todo o bando (Denis, entrevista em 31 de outubro de 2006).

O que me influencia muito é o espaço físico. A divisão de espaços que a gente faz aqui, porque conforme o espaço que eu tenho disponível, eu mais ou menos organizo a aula em cima daquele espaço que eu tenho disponível e basicamente é essa função. A escola, no caso, a interferência básica que seria, em cima das minhas aulas, é mais a função do espaço (Flávia, entrevista em 19 de setembro de 2006).

Outro aspecto observado no trabalho de campo foi a dificuldade da professora Flávia em trabalhar dança criativa com seus alunos9 9 . As informações desse parágrafo estão baseadas nas descrições contidas no diário de campo da pesquisa. . Acompanhamos a série de aulas nas quais a professora objetivava trabalhar dança com os alunos e pudemos perceber os limites de se trabalhar com esse conteúdo. Observamos as aulas por dois meses de trabalho, totalizando nove aulas. Dessas, apenas cinco vezes a aula foi realizada como a professora havia planejado10 10 . Nos dias de trabalho com dança, a professora Flávia tinha o primeiro período vago. Geralmente, chegávamos cedo à escola e ficávamos conversando a respeito das aulas da tarde, do horário, entre outros assuntos. . Ainda assim, por duas vezes essa atividade foi realizada na sala de aula, ambiente pequeno em relação à quantidade de alunos e, algumas vezes, as aulas eram realizadas no ginásio, espaço amplo demais para a capacidade do aparelho de som disponível. Consideramos que produzir uma mudança no que está estabelecido, neste caso, nas aulas com conteúdos esportivos, se torna ainda mais complexo pela falta de espaços físicos multifuncionais na escola. Também influenciaram nessas aulas algumas mudanças de horários, os conselhos de classe, solicitações do SSE (Serviço de Supervisão Escolar) a respeito das avaliações dos alunos, entre outras questões.

Desse modo, podemos perceber, na fala dos professores e nas descrições do diário de campo, que tanto o espaço escolar destinado às atividades da educação física quanto a comunidade na qual a escola está inserida exercem influência sobre as aulas de educação física.

AS DISTINTAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

De acordo com a discussão inicial do texto, no que se refere às inovações em educação de um modo geral ou aos ciclos de formação, neste caso particular, reconhecemos que as mudanças nas práticas, geralmente propostas por essas inovações, passam, necessariamente, pela subjetividade dos professores. Nesse sentido, Hernández (1999) reconhece o docente como um profissional deliberativo, que traz consigo distintas concepções de educação e possui um conhecimento que guia suas estratégias de ação em sala de aula.

Na pesquisa, identificamos que os professores que colaboraram com o estudo organizavam suas aulas baseados em rotinas e em reflexões sobre a prática, sendo que, na maior parte das vezes, suas reflexões tinham suas próprias aulas como parâmetro. Percebemos que as experiências vivenciadas por eles se encontram presentes em suas aulas, seja no sentido de reforçar as experiências vividas, seja na tentativa de modificá-las.

Sendo assim, consideramos que, apesar das regularidades observadas nas práticas, nos encontramos diante de práticas pedagógicas distintas. Entendemos que, entre os professores participantes da pesquisa, existiam três tipos de prática e que cada docente tinha diferentes modos de reflexão sobre essas práticas:

Práticas com padrão prático: Nessas aulas, os professores privilegiavam a própria prática como meio de reflexão. A escolarização vivenciada por eles serve muito mais de apoio para a organização do seu trabalho do que de parâmetro para suas reflexões e, dessa forma, é bastante forte a influência da experiência vivida em suas aulas. Podemos considerar que elas são organizadas com base em um habitus constituído precocemente durante a escolarização dos professores e pouco questionado. As rotinas da aula são construídas por meio da valorização da organização dos conteúdos e em função da estrutura escolar. Desse modo, a relação que se estabelece entre professor e alunos é hierárquica, visto que há uma organização das aulas baseada nas práticas que deram certo. Há dificuldade em modificar essa organização, ou seja, as rotinas estão estabelecidas e há resistência a mudanças, principalmente porque as experiências corporais vivenciadas pelos professores são utilizadas em aulas em detrimento de outras práticas corporais.

Práticas com padrão reflexivo e busca efetiva de respostas em outras áreas: Essas práticas, apesar de buscarem uma adequação ao ambiente escolar, são fruto de reflexão. Essa reflexão nem sempre está vinculada ao âmbito da educação física ou da educação, mas possibilita práticas mais diversificadas em relação às aulas fortemente ancoradas em conhecimentos esportivos. Há uma busca por novos conhecimentos a serem trabalhados nas aulas, os quais, no mais das vezes, são provenientes das experiências pessoais dos professores, como dança, meditação e ioga. Esses professores obtêm avanços em relação aos conteúdos considerados tradicionais e específicos nas aulas de educação física, buscando em suas experiências novas formas de "dar aulas de educação física". Nessas práticas, a organização escolar é pouco questionada, pois encontram sua fonte fora da área da educação e da educação física. Sendo assim, as vivências são trazidas para as aulas e não chegam a promover um questionamento relativo à estrutura escolar. Apesar de a escolarização servir de parâmetro para a reflexão, no sentido de questionamento das experiências vividas, a relação entre o professor e os alunos é hierárquica. As experiências que estão sendo vivenciadas exercem influência sobre a prática.

Práticas com padrão reflexivo aprofundado: São práticas sobre as quais os professores buscam não somente pensar, mas o fazem por meio de cursos de longa duração ou de estudos que vêm desenvolvendo. Em suas aulas, há espaço para os alunos fazerem críticas e participarem dos planejamentos anuais e das aulas. Professores e alunos estabelecem relações menos hierárquicas, com mais espaço para as críticas, seja no que se refere aos conteúdos desenvolvidos em aula ou ao planejamento. Dada a experiência e a sólida formação como educador, existe a possibilidade de ampliação das discussões de modo mais democrático, existindo espaço para os pontos de vista divergentes. As rotinas que vão sendo construídas visam promover a crítica dos alunos às aulas e à escola. A escolarização vivenciada pelos professores serve de apoio para a reflexão, porém a influência de suas experiências vividas e de seu habitus parece ser menor, visto que é uma prática constantemente questionada.

Assim, relembramos a contribuição de Lahire (2002), pois, para o autor, diferentes formas de reflexão agem nos diversos tipos de ação. Consideramos que os níveis distintos de reflexão dos professores a respeito de suas práticas podem vir a constituir práticas diferentes, sobretudo no que se refere à prática pedagógica dos professores que buscavam qualificar seu fazer por meio de cursos de longa duração. Nesse sentido, o currículo organizado por ciclos de formação parece não ter influenciado diretamente para mudanças nas práticas dos professores, porém representa uma nova possibilidade de compreender a educação e os alunos, de reconhecer que as diferentes culturas devem conviver no ambiente escolar e a importância de ampliarem os conhecimentos a serem trabalhados nas aulas de educação física.

Entendemos que o contexto, tanto em seus aspectos físicos quanto nos aspectos relacionados à comunidade escolar, exerce forte influência na organização das práticas dos professores, inclusive limitando os conteúdos a serem trabalhados ou atuando sobre a relação interpessoal entre o professor e seus estudantes.

Entretanto, não pretendemos afirmar que o contexto seja o aspecto fundamental na constituição das práticas, ou mesmo que o habitus dos professores determine as práticas pedagógicas ou, ainda, que somente os professores que realizam cursos de longa duração sejam capazes de obter mudanças em suas aulas. O que queremos (ou pretendemos) é contribuir na discussão a respeito da possibilidade de se produzirem mudanças nas práticas por meio de uma reflexão consubstanciada em teorias pedagógicas recentes.

A apresentação dos resultados da pesquisa aos professores colaboradores mostrou-se uma oportunidade de reflexão e de questionamento da própria prática, como expressado na fala dos professores.

Recebido: 12 nov. 2008

Aprovado: 2 dez. 2009

Não houve conflitos de interesse para a realização do presente estudo.

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  • Endereço para correspondência
    :
    Mônica Urroz Sanchotene
    R. Livramento, 409 - Santana
    Porto Alegre-RS CEP 90640-130
  • *
    O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.
  • 1
    . Algumas dessas produções podem ser acessadas no endereço
  • 2
    . Universidades brasileiras tais como: Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e Universidade Federal de Uberlândia (UFU), dentre outras.
  • 3
    . O conceito de saberes da experiência, para Tardif (2002), refere-se a saberes específicos que são desenvolvidos pelos professores, fundados nos saberes do cotidiano e no conhecimento do seu meio. Estes brotam da experiência e são validados por ela: "Eles incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de
    habitus e de habilidades, de saber fazer e de saber ser" (p. 39).
  • 4
    . Para saber mais a respeito da influência do contexto nas aulas de educação física, sugerimos a leitura de SANCHOTENE, M. U.
    A relação entre as experiências vividas pelos professores de educação física e a sua prática pedagógica: um estudo de caso. Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento Humano) - Escola de Educação Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.
  • 5
    . Consideramos como representatividade tipológica a diversificada gama de professores da Escola Restinga (nome fictício): alguns professores com muito tempo de docência, outros com pouco tempo de trabalho no município de Porto Alegre, professores que continuavam estudando ou outros que utilizavam práticas alternativas em suas aulas, ou seja, havia nessa escola professores com distintas características, como formação inicial, perspectivas teóricas, tempo de trabalho no magistério, dentre outras.
  • 6
    . Período de 13 meses do trabalho de campo: outubro, novembro e dezembro de 2005. Durante o ano de 2006: março a dezembro.
  • 7
    . A professora Gabriela optou por não participar do estudo porque estava trabalhando com as escolinhas esportivas e estava com pouco envolvimento com as aulas de educação física.
  • 8
    . Durante a entrevista, que foi realizada na residência da professora Glória, ela mostrou os livros que estava lendo e os materiais que confeccionava com a sua família para as aulas de educação física. Conversamos a respeito desses livros, pois eram publicações recentes relativas à metodologia de ensino da educação física, além de outros, também recém-publicados, que a auxiliavam nas preparações das aulas e da possibilidade de trabalhar com materiais alternativos nas aulas.
  • 9
    . As informações desse parágrafo estão baseadas nas descrições contidas no diário de campo da pesquisa.
  • 10
    . Nos dias de trabalho com dança, a professora Flávia tinha o primeiro período vago. Geralmente, chegávamos cedo à escola e ficávamos conversando a respeito das aulas da tarde, do horário, entre outros assuntos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Maio 2010

    Histórico

    • Recebido
      12 Nov 2008
    • Aceito
      02 Dez 2009
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