RESUMO
Este artigo objetiva discutir a conceituação do “ativo” jogador de futebol, bem como sua repercussão dentro da indústria futebolística. A investigação foi caracterizada como exploratória e bibliográfica. Como principais achados, percebeu-se a relevância dos atletas para a produção de riqueza na modalidade, tanto na relação clube-clube como pelo vínculo clube-futebolista, notadamente a partir da reestruturação capitalista em sua fase tardia. Por outro lado, ao cotejar o “ativo” com o conceito de força de trabalho, concluiu-se pela necessidade de se problematizar a definição contábil de “ativo” como a mais apropriada para explicar a realidade, particularmente o processo de produção de valor pela indústria do futebol.
Palavras-chave: Ativo intangível; Força de trabalho; Futebol; Capitalismo
ABSTRACT
This article aims to discuss the conceptualization of the "asset" football player, as well as its repercussion within the football industry. The investigation was characterized as exploratory and bibliographical. As main findings, the relevance of the athletes for the production of wealth in the modality was perceived, as much in the club-club relation, as by the club-footballer link, notably, from the capitalist restructuring in its late phase. On the other hand, when comparing the "asset" with the concept of work force, it was concluded that it is necessary to problematize the accounting definition of "asset" as the most appropriate one to explain reality, particularly, the process of production of value by the football industry.
Keywords: Intangible asset; Labour force; Football; Capitalism
RESUMEN
Este artículo pretende discutir la conceptualización del futbolista "activo", así como su repercusión dentro de la industria del fútbol. La investigación se caracterizó como exploratoria y bibliográfica. Como principales hallazgos, se percibió la relevancia de los atletas para la producción de riqueza en la modalidad, tanto en la relación club-club, como por el vínculo club-futbolista, notablemente, a partir de la reestructuración capitalista en su fase tardía. Por otro lado, al comparar el "activo" con el concepto de fuerza de trabajo, se concluyó que es necesario problematizar la definición contable de "activo" como la más adecuada para explicar la realidad, en particular, el proceso de producción de valor por la industria del fútbol.
Palabras clave: Activo inmaterial; Mano de obra; Fútbol; Capitalismo
INTRODUÇÃO
Segundo Harvey (2006), desde a Revolução Industrial até a crise do fordismo, o tempo e o espaço têm se tornado cada vez mais comprimidos por causa da lógica econômica, política, social e cultural que nos impõe ritmos de vida mais acelerados. Com efeito, são reconfigurados valores, costumes, ideias, tradições, modos e maneiras de produzir, reproduzir e perceber a vida em sociedade.
Na economia, entre inúmeras transformações, percebem-se mudanças nos ritmos e processos de trabalho, o que resulta na flexibilização e precarização das condições laborais (Antunes, 2006). Na política, tais modificações potencializaram a implementação do ideário neoliberal. Nele, ao passo que o Estado se afasta de seu papel integrador via políticas sociais, torna-se mais presente no que toca ao seu papel econômico de manutenção das condições de produção e reprodução do capital (Mandel, 1985; Behring, 2003). No universo da cultura, percebe-se o fortalecimento da indústria cultural por meio da integração entre economia de mercado e cultura de massa, ou seja, o capital penetra definitivamente o setor cultural e o estrutura para a produção de mercadorias (Harvey, 2006).
Deste modo, no contexto do que Mandel (1985) chamou de capitalismo tardio, há uma incorporação de determinações socioeconômicas em âmbitos mais amplos e correlacionados da vida social. Nessa condição, ao considerarmos o esporte como manifestação cultural, podemos perceber que, em razão dessa nova configuração capitalista, ele tem sofrido um conjunto de adaptações, as quais o tencionam para uma nova forma, mais mercadorizada, mercantilizada e industrializada. Isso ocorre a partir de modificações nos padrões de relacionamento entre esporte-espetáculo, mídias diversas (aquelas fomentadas por imagens) e marketing esportivo. O esporte contemporâneo, portanto, adentra no circuito mundial de produção e reprodução do capital, passando a interagir com vários setores produtivos (Reis et al., 2020).
Nessa dinâmica, advém o desenvolvimento de uma pujante economia do futebol, pois a modalidade tem ocupado lugar de destaque nas indústrias culturais, com grande relevância para o setor de entretenimento. Por tal razão, Moura (2022), ao considerar o processo geral de trabalho - que envolve produção, distribuição, troca e consumo - e a tendência de diminuição do tempo entre a produção e o consumo das mercadorias no capitalismo tardio, avalia que o futebol, em sua versão mais desenvolvida, como atividade de amplo interesse público, torna-se uma importante plataforma para impulsionar a rotação do capital. Logo, seu valor de uso, ligado ao desempenho e à fruição, é apropriado tanto pelas entidades de prática e administração como pelos meios de comunicação e outros capitais que se relacionam com a modalidade para promover seu valor de troca identificado a partir do espetáculo.
Dessa maneira, o futebol espetáculo, como mercadoria, é consumido em todo o mundo, e, com essas trocas, assenta-se a possibilidade de, a partir dele, extrair-se valor, seja de forma direta ou indireta. Conforme Matias (2018) e Reis (2022), a contar da década de 1970/80, a agenda futebolística se volta à quase completa industrialização da modalidade, gravitando em torno dela um dilatado mercado de produtos, serviços, espetáculos, eventos e megaeventos, bem como uma ampla cadeia produtiva. Com isso, mudanças profundas na estruturação do futebol se acentuam, a exemplo das alterações das relações trabalhistas, da abertura ao mercado de transferências de jogadores entre países, da venda de direitos de transmissão das competições, da aquisição de clubes por entes exclusivamente privados, dentre outras.
Ao considerar tais elementos, estamos sinalizando a constituição de um “mercado-mundo da bola”. Este, por sua vez, é alçado à condição de relevante setor econômico, tanto no sentido da produção de competições e espetáculos com vendabilidade global quanto no sentido da comercialização de um tipo de força de trabalho altamente especializada, o que se reflete no trabalho de alguns atletas. Não sem razão, as transferências de jogadores se consolidaram como relevante para a indústria futebolística, sendo que, em alguns momentos, elas têm representado mais de 50% do total da composição orçamentária dos clubes (Matias, 2018; Reis, 2022).
Nessa direção, Soriano (2010) ratifica o entendimento de que o talento esportivo é o fator mais determinante na indústria do futebol. Cabe problematizar que conceito hegemônico de talento esportivo descaracteriza o processo de formação como aquele capaz de educar, desenvolver e atualizar as capacidades dos praticantes. De toda forma, para o autor, a fórmula dos clubes para atrair o melhor futebolista se alicerça em dois cenários bem delineados, ainda que não excludentes. Por um lado, a escolha passa por mapear, com critério claro, esse mercado de transferências, acertar o pagamento do atleta escolhido a preço “justo” e oferecer salários correspondentes ao perfil desejado. Mas existe outra maneira de contar com os jogadores de altas habilidades e isso consiste em desenvolvê-los. O entendimento considera os clubes como unidades básicas de formação e produção deste tipo especial de força de trabalho (Brohm, 1982; Matias, 2018; Reis, 2022).
Com o aperfeiçoamento desta cadeia produtiva, referente à formação de atletas de futebol, podemos localizar na indústria do futebol a existência de entidades formadoras, negociadoras e/ou compradoras e outras que transitam entre essas categorias. Para os compradores, o interesse maior é no potencial financeiro e esportivo dos atletas, para deles extraírem rendimentos por longos períodos. Já nos dois primeiros casos, trata-se de recrutar meninos com potencial de crescimento na modalidade, formá-los e treiná-los nas equipes inferiores (Guimarães, Oliveira e Paoli., 2020).
Neste horizonte, ainda que os clubes experimentem a incerteza do sucesso do investimento realizado e o retorno esteja fixado em um recorte temporal amplo, o custo é menor e a porcentagem de êxito é alta, ainda que incerta. Em verdade, tal circunstância é característica dos países formadores e/ou negociadores de atletas da modalidade. Muitos clubes brasileiros se encaixam nos dois perfis identificados. Mas Matias (2018) adverte que o Brasil ocupa um papel secundário na dinâmica global da modalidade, tendo em vista que se fundamenta no fornecimento de jogadores para o exterior e consome um espetáculo importado, produzido via ligas dos países centrais, especialmente o mercado europeu - inglês, espanhol, italiano, alemão e francês.
Paralelamente a isso, com o desenvolvimento da industrialização e empresariamento do futebol, modernas lógicas de gestão dos clubes têm sido estimuladas, pautadas em padrões de competitividade, eficiência, qualidade e maximização de resultados. Tal processo envolve decisões que, por inúmeras vezes, vislumbram apenas a otimização de custos e benefícios em função de um melhor equilíbrio econômico-financeiro dos clubes (Reis, 2022). Em outros termos, abalizadas no discurso modernizante, duas estratégias se materializam, a saber: clubes que vão simplesmente se dedicar à produção e negociação de atletas na perspectiva de margens de lucro significativas, que é o caso da maioria dos clubes brasileiros; e clubes voltados à produção do espetáculo esportivo de entretenimento a seus torcedores e público em geral como principal finalidade. Esta última situação é cada vez mais concentrada no continente europeu, o qual tem papel privilegiado (Soriano, 2010).
Nota-se que, independentemente das estratégias utilizadas, o protagonismo da força de trabalho altamente especializada é o ponto nevrálgico das análises, as quais têm associado o atleta ao conceito de “ativo”. Isso pode ser observado nos estudos sobre gestão esportiva1, no caso da área da Contabilidade, que mostram que a participação dos atletas no ativo total dos clubes tem sido em percentual médio de 16,5%, composto de 13% de atletas profissionais e 4% de atletas em formação (Krauspenhar, 2021). Em tal categoria, vislumbramos potencial que permite melhor compreender e explicar a realidade da formação de jogadores, ainda que mereça cotejo com a produção teórica acerca da economia política do futebol. Para tanto, não resta dúvida que entendê-la se faz necessário, assim como articular diversos conceitos relacionados com o momento da formação, produção e aperfeiçoamento de um futebolista.
À vista disso, a pergunta norteadora circunscreve-se à tentativa de esclarecer: o que de fato significa tal “ativo” e qual a sua repercussão dentro da indústria da modalidade? Nessa perspectiva, o objetivo geral do texto é tencionar a conceituação do “ativo” jogador de futebol, pois a formação esportiva deste pode implicar na construção de um potencial financeiro aos clubes no momento de alguma transferência de empregador.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para o desenvolvimento da investigação, optamos por uma pesquisa bibliográfica de nível exploratória, visto que, apesar de se reconhecer a importância tomada pela categoria “ativo” na gestão dos clubes de futebol em tempos atuais na área da Educação Física e Ciências do Esporte, o debate em torno da categoria é quase inexistente. E mais, o próprio futebol tem se desenvolvido sobre os mais variados aspectos, sejam eles físicos, táticos, pedagógicos, culturais, políticos, psicológicos e/ou econômicos, porém com limitações teórico-metodológicas sob uma perspectiva crítica na maioria dos casos. Desse modo, faz-se necessário ampliar a base de estudos e pesquisas, o que certamente envolve a constituição e assimilação de abordagens, procedimentos e referências peculiares para o entendimento de um complexificado objeto.
Assim, sob o ponto de vista técnico e operacional, optou-se pela revisão narrativa, notadamente a partir da identificação de textos vinculados à literatura contábil2. Importa dizer que as revisões narrativas são, nas palavras de Rother (2007), apropriadas para discutir e analisar determinado assunto, sob a perspectiva teórica ou contextual. Estas revisões não utilizam critérios explícitos e sistemáticos na busca da literatura, já que não têm a pretensão de esgotar as fontes de informações. Assim, a seleção e a interpretação dependem dos interesses da investigação. Seu uso é recomendado para a fundamentação teórica de trabalhos acadêmico-científicos futuros.
Nessa direção, a revisão de literatura possibilitou encontrar investigações para além da citada área de conhecimento. Por consequência, identificamos artigos científicos, dissertações e teses em âmbito dos estudos contábeis, os quais nos forneceram um material de diálogo e interlocução. Na tentativa de localizar os avanços das obras encontradas, destaca-se como precursor o estudo de Lopes e Davis (2006), em que se discute a contabilização do “ativo” jogador de futebol brasileiro. Com base no mencionado estudo, outros tantos - direta ou indiretamente - têm buscado analisar a produção, formação e/ou aquisição do jogador como “ativo” e foram destacados para análise a partir de sua localização.
Isto posto, embora não tenhamos nenhuma pretensão de findar o debate e na finalidade de identificar e dialogar com o produzido pela literatura, passamos a apresentar a discussão em torno da aludida categoria.
ENTENDENDO O FUTEBOLISTA COMO UM “ATIVO”
Conforme vimos em Soriano (2010), pessoas são os recursos mais valiosos de uma organização por causa de sua primordial participação no processo de geração de riqueza. Todavia, cabe aqui uma advertência importante, pois, em respeito à matriz teórica adotada pelos pesquisadores responsáveis pela elaboração do texto, pontuamos que o dito pelo autor espanhol se aproxima, em alguma medida, da discussão marxiana sobre o papel da força de trabalho. Por tal razão, faz-se necessário apresentá-la.
Para Marx (2013) e sua teoria do valor, força de trabalho se configura como a capacidade laboral dos indivíduos negociada com o capitalista, isto é, o complexo das capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade e na personalidade viva dos indivíduos que, postas em movimento, sempre produzem valores de uso de qualquer tipo. Dentro do processo de produção, é ela que possui a prerrogativa exclusiva de gerar riqueza, ou melhor, é a única fonte de valor. Dela ainda advém um novo valor, para além daquele vinculado à sua própria reprodução, intitulado de mais-valia.
No entanto, na observação da literatura contábil, destacada para análise, não localizamos estudos que adotam tal conceituação para subsidiar as investigações realizadas. Podemos, assim, dizer que o único ponto de convergência nestes referenciais teóricos, o contábil e o marxista, é a consideração da relevância dos seres humanos no processo produtivo - uma realidade concreta e comprovada pelos balanços financeiros de qualquer associação e/ou empresa atuante interna e externamente no mundo esportivo.
Leoncini (2001), por exemplo, advoga que os atletas são primordiais à cadeia produtiva do futebol, seja para os objetivos esportivos, seja para os objetivos financeiros. Para o autor, a negociação de jogadores e a formação de novos talentos são atividades basilares para essa indústria. Do mesmo modo, Matos et al. (2015) destacam o papel do jogador de futebol como o principal ativo das instituições futebolísticas, condição ratificada por Krauspenhar (2021), que revela a imprescindibilidade dos clubes de dispor de um conjunto de jogadores à consecução de suas atribuições finalísticas. Como resultado, a significativa evolução econômica da indústria reverbera nos investimentos feitos pelos clubes em futebolistas, os quais atualmente, para fins contábeis, são tidos como “ativos” intangíveis, pois possuem valor econômico, mas não têm existência física sob a forma tradicional de veículos, imóveis ou maquinários, estes últimos classificados como imobilizados.
Ao retomarmos o diálogo com a teoria do valor e autores marxistas, percebemos que essa conjuntura foi propiciada com o advento da acumulação flexível, tendo em vista a importância tomada por aquela classe de “ativos” na fase tardia da economia capitalista. É importante dizer que, segundo Harvey (2006), o novo padrão de acumulação flexível pode ser caracterizado pelo surgimento de setores produtivos inteiramente novos, além de novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, mercados e, principalmente, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional.
Nesse contexto, o capital intelectual - que nos remete à discussão, por exemplo, sobre o papel do conhecimento e da ciência na produção de valor - começou a dividir o foco de atenção que era dado somente ao capital físico, derivando uma tentativa de aferição e avaliação do capital intangível das empresas. Tal movimento é representado na identificação dos direitos de propriedade intelectual via diversos aspectos, a saber: marcas, patentes, fundo de comércio, obras literárias, artísticas ou científicas, softwares, domínios na internet e conexos etc. Em síntese, produtos não palpáveis começam a se tornar mais importantes do que os produtos físicos (Harvey, 2006; Moura, 2022).
Diante do panorama, e por dentro dos estudos da área da Contabilidade, Krauspenhar (2021) questiona quais seriam os requisitos necessários para a identificação de bens e/ou direitos como “ativos” contábeis. Na tentativa de resposta, o autor define que “ativo” é um recurso econômico presente e controlado pela entidade como resultado de eventos passados. Em outros termos, trata-se de um mecanismo que tem o potencial de produzir benefícios financeiros, ainda que incertos, sendo administrável se a entidade possuir capacidade de direcionar o uso de tal recurso econômico ao mesmo tempo que obtém benefícios de mesma natureza, em detrimento de qualquer outro interessado.
Apoiados nessa definição, Morrow (1996), Lopes e Davis (2006) e Krauspenhar (2021) fazem uma aproximação do conceito ao mundo do futebol. Pelos trabalhos dos autores, o vínculo contratual mantido entre atleta e clube se configura como um “ativo”, já que tem potencial de produzir benefícios econômicos pelo desempenho esportivo do jogador contratado pela instituição futebolística. É controlado pelo clube via relação contratual entre ambos, com exclusão de qualquer outro, decorrendo de um evento passado inerente à contratação e/ou formação do futebolista.
Destarte, a literatura da Contabilidade ratifica que os esportistas são “ativos” fundamentais aos clubes em razão da potencialidade de geração de rendas por meio de diversas formas quando estão ou não em atividade em suas respectivas instituições contratantes. Assim, o elemento imprescindível para a formalização do vínculo é o contrato entre eles, pois este se torna um instrumento que cria direitos e obrigações entre o jogador e o clube de futebol. Por intermédio dessa configuração jurídica, o esportista, principalmente por gerar benefícios futuros para as instituições esportivas, pode ser considerado como um “ativo” (Rezende, Dalmácio e Pereira, 2010).
Marçal et al. (2021) também corroboram tal leitura, ao considerarem que todas as características exigidas para a definição de “ativo” são claramente satisfeitas nessa relação contratual. Portanto, na visão dos autores, não há dúvidas quanto à sua classificação, porém fazem um adendo sobre a necessidade de diferenciação entre direito federativo e direito econômico. Enquanto o primeiro remete à faculdade do clube de registrar determinado jogador na entidade de administração esportiva de forma exclusiva para fins administrativos, o segundo decorre justamente no estabelecimento de um vínculo que pode ser comercializado com outros clubes em eventuais transações.
O negociado na relação entre clube-clube são os direitos econômicos. Já o contratado entre clube-jogador são os direitos federativos. A distinção é importante, posto que, por direitos federativos, depreende-se a noção de vínculo esportivo. A existência de tal vínculo imbrica a vigência do contrato de trabalho mantido entre clube-jogador. Consequentemente, o termo mais adequado para expressar a relação jurídica é direito de vínculo trabalhista, isto é, uma relação econômica de compra e venda da força de trabalho na qual o clube terá o direito de usufruir os benefícios proporcionados pelo trabalho do jogador via contrato laboral (Lopes e Davis, 2006; Marçal et al., 2021).
Retomando novamente o diálogo com a teoria marxiana, pontuamos como importante que essa relação de direito baseada na liberdade de contratar, na igualdade formal e na propriedade privada, que tem o contrato por forma, é entendida como uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica, invariavelmente desfavorável ao trabalhador. Em âmbito estrutural e sistêmico, essa diminuição dos seres humanos a meros vendedores de força de trabalho não se deu de modo natural; pelo contrário, é marcada com a ajuda de um processo histórico permeado por expropriações, assim como de conversão dos meios de vida em capital, uma vez que no capitalismo é priorizada a acumulação de riquezas em detrimento da satisfação das necessidades humanas (Marx, 2013).
Dessa forma, pode-se dizer que o maior reflexo de o trabalhador não deter outra propriedade senão sua própria força de trabalho é a necessidade de vendê-la ao capitalista para poder sobreviver, o que ocorre a partir da formalização de um contrato. Por tudo isso, podemos concluir que o conteúdo dessa relação jurídica é dado pela própria relação econômica. Para fins deste debate, esta não é uma questão menor, posto que, se a Contabilidade considera os jogadores como “ativos”, é graças ao mencionado instrumento jurídico que eles trabalham para a geração de receitas ao clube em sua atividade-fim, qual seja: os jogos realizados, pois podem culminar em premiações de competições e também atrair mais torcedores aos estádios e mensalidade de sócios, entre outras atividades próprias da indústria do futebol.
Acrescenta-se que, desse relacionamento cuja produção de valor decorre a partir de uma composição mais orgânica e interna aos clubes, o que equivale a uma zona de acumulação primária, o trabalho e a atuação dos atletas nas competições contribuem ainda para que outras rendas se entrelacem, tais como rendas provenientes de patrocínios, da venda de direitos de transmissão aos conglomerados de mídia e da venda de serviços e produtos licenciados das instituições futebolísticas atrelados às suas imagens, isto é, uma zona socioeconômica de acumulação mais ampla, como definem Kennedy e Kennedy (2016).
A combinação de duas zonas de acumulação na modalidade, uma interna e outra externa, torna vendável não apenas a partida disputada por duas equipes, mas também estilos de vida dos jogadores e produtos associados a eles, despertando sonhos e desejos de fazer parte de um mundo particular, potencializando a fetichização da mercadoria futebol. Isso é muito significativo, pois, a contar do momento da abertura do futebol no sentido de valorização de outros setores, melhor dizendo, quando ele se torna uma plataforma de exposição de outras mercadorias, ocorre essa disjunção substantiva de seu financiamento, sendo que o fluxo de capitais externo é cada vez maior. Isto porque os clubes, em especial os maiores e mais globalizados, potencializaram uma nova e extraordinária fonte de renda, o marketing (Soriano, 2010; Matias, 2018; Reis, 2022; Moura, 2022).
A utilização e o crescimento do marketing como fonte de renda culminam em uma mudança de modelo fundamental, que transforma o negócio dos clubes em um comércio de entretenimento global. Nesse sentido, o papel do “ativo” futebolista seria criar produtos diversos para alimentar o desejo do público, estimulando vendas e rotatividade do capital. A partir desse processo, o resultado do trabalho do jogador envolve também a produção de sua própria imagem, tendo claro que tal produção resulta da associação da indústria do futebol à indústria do audiovisual (Moura, 2022).
À vista disso, pode-se afirmar que os jogadores de futebol compõem a base produtiva do espetáculo, são o elo que fundamenta todo o sistema, e essa parece ser a razão para o seu tratamento pela literatura contábil como “ativos”. Mas é importante destacar que, diante da estruturação de um mercado-mundo que envolve a circulação de tais “ativos”, há interesses distintos na sua produção. Existem clubes que investem na formação de jogadores visando ao consumo interno, principalmente, para atuação na equipe principal. Paralelamente, existem clubes especializados em uma produção mais voltada para fora. Existem ainda clubes que combinam ambas as estratégias.
No caso da produção para a venda, o objetivo primário é a negociação com clubes de maior potencial esportivo e econômico, especialmente aqueles localizados nos países europeus. A estratégia se justifica porque as margens de compra e venda de jogador são expressivas dentro do futebol, ainda que tal fonte de receita não seja recorrente, principalmente por depender da demanda e flutuações do mercado (Soriano, 2010; Matias, 2018). O clube português FC Porto, por exemplo, notabilizou-se em garimpar talentos na América do Sul, em um esquema que conta com vários observadores técnicos espalhados pelo continente. Considerando apenas os últimos dez anos (período de 2012 a 2022), o clube investiu algo próximo de R$ 530 milhões em brasileiros, porém faturou o dobro vendendo atletas da mesma nacionalidade, 188 milhões de euros (R$ 1 bilhão), com casos de valorização dos direitos econômicos de 600% em apenas um ano (Guimarães, Oliveira e Paoli., 2020).
Quando estamos falando de venda de atletas, estamos nos referindo, em verdade, à cláusula indenizatória paga pelo clube “comprador” ao clube “vendedor” que possui contrato de direitos econômicos sobre a força de trabalho do jogador. Nesse processo, vale destacar outra figura importante: trata-se do agente/intermediário. Seu papel é também no sentido de promoção de “ativos” dos clubes, o que lhe traz ganhos econômicos por sua atuação. Neste processo, localizamos a ocorrência de algum investimento monetário por parte do agente/intermediário, sobretudo nos períodos antecedentes ao contrato do jogador com seu empregador, seja por primeiro vínculo, por renovação ou em momento de desemprego do atleta.
Na realidade, o agente/intermediário ocupa um lugar antes inexplorado e pouco estudado. Ainda que ele não garanta retorno algum em um primeiro momento, posteriormente o retorno financeiro do profissional em razão de suas comissões pode ser bastante significativo, sobretudo quando o “ativo” sob seu agenciamento consegue alocação no mercado de trabalho (primeiro contrato) ou quando seus direitos econômicos são comercializados. Todavia, o aumento recorrente das taxas pagas pelos clubes por serviços de intermediação vem preocupando as instituições mandatárias do futebol, particularmente a FIFA. Em algumas ocasiões, os ganhos dos agentes/intermediários superam os ganhos dos clubes e dos jogadores. De toda forma, registramos a necessidade de maiores estudos sobre o tema.
Não obstante, considerando os aspectos sinalizados ao longo da exposição e incorporando, “a priori”, o debate da literatura contábil, é possível responder à nossa pergunta inicial da seguinte forma: o “ativo” intangível futebolista é imprescindível à cadeia produtiva do futebol, uma vez que, a partir dele, os objetivos esportivos e financeiros da modalidade podem ser administrados, potencializados e realizados. Sua relevância na produção de riqueza no futebol é perceptível tanto na relação clube-clube, materializada pela negociação entre eles via direitos econômicos dos atletas, quanto pelo vínculo clube-esportista, estabelecido pela relação laboral.
PRIMEIRAS CONCLUSÕES
Pelo exposto, ao apontarmos que a indústria do futebol está estruturada para a produção/formação do atleta de futebol por causa de sua relevância na geração de riqueza na modalidade, é possível identificar que a literatura contábil nos oferece uma interessante chave interpretativa para a compreensão do intitulado “ativo” futebolista. Por meio do conceito, fica claro que a contabilização dos direitos decorrentes do vínculo esportivo não é do jogador intrinsecamente, considerado como unidade de mercadoria ao invés de ser humano, mas sim do direito do clube de usufruir dos benefícios econômicos futuros advindos da força de trabalho do jogador regulada pela relação contratual (Oprean e Oprisor, 2014).
Por conseguinte, entendemos que tais encaminhamentos repercutem de forma considerável na análise e abrem novos interesses investigativos, sobretudo porque os estudos contábeis identificam, mas não explicam, como ocorre o processo de exploração na modalidade. Assim, secundarizam o debate sobre o trabalho em torno da relação entre detentores dos meios de produção (clubes) e da força de trabalho (jogadores). Isso sem falar da homogeneização que a discussão supõe, pois todos os jogadores, mesmo aqueles com menores salários e precarizados, são tratados na literatura como potenciais “ativos”. Compreendemos que a liberdade da vontade no trabalho não pode ser generalizada a todos os futebolistas. Em alguns contextos, talvez seja até menor do que um trabalhador de outro setor, pois, embora igualmente vendedores de sua força de trabalho, o direito de ir e vir dos primeiros depende dos termos do contrato firmado acerca de seus direitos econômicos em detrimento dos federativos.
Assim, desconfiamos que o termo contábil em voga pode se configurar como tautológico e eufemístico das verdadeiras relações estabelecidas no processo. Daí a necessidade de que o conceito de “ativo” seja mais bem tensionado à luz do arcabouço categorial da teoria do valor por dentro da crítica da Economia Política do Futebol. Por fim, certos de que tais considerações constituem um esforço inicial, apreendemos que a discussão que envolve o “ativo” jogador de futebol demanda a verticalização deste debate em um estudo de maior fôlego, alinhado à constituição e assimilação de abordagens, procedimentos e referências peculiares em razão da existência de outros aspectos, os quais, neste momento, não foram contemplados.
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É importante mencionar que estudos sobre gestão esportiva se tornaram hegemônicos no debate, contudo apenas no intuito simplista de potencializador da própria economia para justificar possíveis investimentos no setor.
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2
Conforme Krauspenhar (2021), os estudos sobre demonstrações contábeis vislumbram aprimorar a transparência e eficiência em nível de gestão de determinado segmento econômico, bem como efetivar uma melhor comunicação financeira interna e externa de determinada empresa.
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FINANCIAMENTO
O presente trabalho contou com apoio financeiro para a execução de projetos de pesquisas científicas, tecnológicas e de inovação de discentes de pós-graduação da Universidade de Brasília, Decanato de Pós-Graduação - DPG - Edital DPG Nº 0011/2022.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
22 Maio 2023 -
Aceito
18 Ago 2023