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Dossiê – Práticas e prescrições sobre o corpo: a dimensão educativa dos métodos ginásticos europeus

Dossier – Practices and prescriptions on body: educational dimension of European gymnastics methods

Dossier – Prácticas y prescripciones sobre el cuerpo: la dimensión educativa de los métodos gimnásticos europeos

Em maio de 2013, por ocasião do VII Congresso Brasileiro de História da Educação, em Cuiabá, propusemos e apresentamos uma comunicação coordenada intitulada "Práticas e prescrições sobre o corpo: a dimensão educativa dos métodos ginásticos europeus". Essa mesa reunia quatro trabalhos que, a partir de diferentes tempos, lugares e fontes singulares, apresentavam e problematizavam os métodos ginásticos europeus e os interrogava desde diferentes questões. Naquela ocasião compuseram a proposta, além das coordenadoras deste dossiê, Profª. Carmen Lucia Soares e Profª. Andrea Moreno, o Prof. Edivaldo Goes Junior e a doutoranda Evelise Amgarten Quitzau. A pertinência da temática, aliada à densidade dos debates suscitados, estimulou-nos a publicar, em conjunto e de forma ampliada, os textos apresentados sob a forma deste dossiê. Para dar consequência a essa proposta convidamos três professores estrangeiros cujas pesquisas tomam essa temática geral como objeto e problema. Assim, uniram-se à proposta o Prof. Pablo Scharagrodsky, da Universidad Nacional de Quilmes e da Universidad Nacional de la Plata (Argentina); a Profª. Annette Hofmann, da Pädagogische Hochschule Ludwigsburg (Alemanha), e os Profs. Luis Miguel Carvalho e António Carlos Correia, ambos do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.

Os métodos ginásticos europeus analisados nos artigos aqui reunidos surgem em seus contextos, suas ideias e prescrições singulares, a partir dos sujeitos que estiveram envolvidos em sua elaboração e difusão. Tratamos, também, de sua circulação como proposição científica, pedagógica e cultural em um período bastante específico de uma Europa que vive profundas e extensas transformações: fins do século XVIII até as primeiras décadas do século XX.1 1 Este recorte de tempo é modificado, apenas, no artigo escritopela Profa. Dra. Annette Hofmann, cujo período se estende até osanos 1990. Os métodos ginásticos aqui analisados são fruto desse recorte de tempo no qual se inauguram novas formas de morar, de vestir, de se alimentar, de amar, de falar, de gesticular, de se educar, ou, mais amplamente, de viver. Novas teorias filosóficas e descobertas científicas emergem e repercutem diretamente, e consequentemente, em novas formas de se olhar, de intervir, de educar o corpo. É nesse quadro de novas ideias, novos comportamentos e atitudes em relação aos indivíduos e à sociedade que tem lugar, em diferentes países, sistematizações científicas bem mais precisas, específicas e, sobretudo, aceitas nos meios intelectuais acerca dos exercícios físicos e de seu lugar na educação e na preservação da saúde. Esse movimento em prol dos exercícios físicos – fruto de uma nova e mais positiva atitude em relação a eles – originou e configurou entre fins do século XVIII e início do século XX os chamados métodos ou escolas de ginástica e deram-se, assim, passos decisivos para o que conhecemos hoje como educação física. Os métodos ou escolas de ginástica nascem e se desenvolvem juntamente com a constituição dos Estados nacionais e participam, de certo modo, de sua identidade. Essa seria uma das razões para que França, Suécia e Alemanha, lugares importantes desse movimento, viessem a apresentar tanto singularidades quanto universalidades em relação a esse modo mais sistematizado de educar o corpo. A particularidade que deseja guardar a nação de origem cede espaço para finalidades muito semelhantes, pois os problemas que esse modo de tratar do corpo buscava resolver também o eram e se voltavam para a melhoria e a prevenção da saúde, a força de vontade, o desenvolvimento do caráter e a energia de viver. Suas bases eram, sobretudo, aquelas de natureza científica, mas diversos saberes e artes populares também os constituíam, também os fundamentavam, como, por exemplo, a grande diversidade que constitui o que se chama de artes circenses, assim como certos espetáculos do corpo apresentados por artistas mambembes, tais como acrobatas, dançarinos, lutadores, homens e mulheres que ganhavam a vida a partir do espetáculo e dos desafios do corpo. Os métodos ou escolas de ginástica são, por essa razão, bastante plurais e, sobretudo, permeáveis aos lugares e tempos que os assimilam; guardam, assim, traços de uma espontaneidade popular, ao lado de um rigor científico, além de uma organização pautada pela disciplina militar. Seria possível pensar que são muito mais amálgama do que pureza e refletem, assim, suas múltiplas e diversas origens.

Esses métodos extrapolaram as fronteiras dos países de origem e encontraram fértil acolhida muito além do continente europeu. Livros (originais e traduções), programas escolares, discursos de intelectuais e de políticos, notícias de jornais, são exemplos de por onde circularam, foram divulgados, e também sofreram modificações. Diferentes sujeitos, por diferentes táticas e estratégias, ajudaram a enraizar, mais ou menos profundamente, uma nova maneira de conceber e educar o corpo, cuidar dele e cultivá-lo a partir de metódicos exercícios ginásticos.

Partindo das obras originais de Guts Muths e F.L. Jahn para tratar do método alemão, de Georges Demenÿ e George Hébert para tratar de duas proposições do método francês e de Per-Henrik Ling para tratar do método sueco, os autores desse dossiê analisam como uma nova prática corporal científica e metodizada, a gymnastica, inaugura modos de pensar, prescrever e aplicar o exercício físico e, assim, de conceber e educar o corpo.

Trata-se, finalmente, de mostrar como, sob a denominação generalizante de "métodos ginásticos europeus", formas bastante particulares de pensar o corpo emergem, se aproximam e se distanciam. Surge então uma "ginástica" mais próxima da dança, do teatro e do circo, ao lado de outra mais "científica", talvez mais rígida e mais próxima do universo militar; uma ginástica que amplia os benefícios da natureza e de seus elementos e que se pretende existir ao ar livre; ou outra, mais metódica e próxima da medicina, que se desenvolve em ginásios bem específicos para tal; ou, ainda, formas mais ecléticas em que se podem identificar traços de cada uma das possibilidades apontadas. Estamos, assim, e a partir do recorte temático dos métodos ou das escolas de ginástica, diante não somente de distintas maneiras de exercitar-se, mas de diferentes formas de conceber e educar o corpo.

No artigo escrito pela Profª. Evelise Amgarten Quitzau encontramos o debate que se trava na passagem do século XVIII para o XIX, na Alemanha, em torno de dois manuais que muito contribuíram para a consolidação de uma sistematização dos exercícios físicos: 1) Ginástica para a juventude, de Guts Muths, publicado em 1793; 2) A ginástica alemã, de F.L. Jahn, publicado em 1816. Neste artigo o leitor encontrará uma aproximação entre esses dois manuais e autores, sobretudo uma análise dos argumentos desenvolvidos por ambos para justificar o lugar de importância da ginástica, e encontrará neles tanto similaridades quanto diversidade.

Tratando ainda do contexto alemão temos a contribuição da Profª. Drª. Annette Hofmann, que analisa com grande acuidade o lugar da imigração alemã nos EUA, em cuja bagagem cultural encontra-se uma das expressões de sua cultura física: o Turnen. O artigo da Profª. Hofmann resume a história do movimento do Turnen teuto-americano desde fins do século XIX até os anos 1990 e relata as diferentes etapas de sua americanização.

A discussão sobre o método sueco é tema tratado aqui tanto pela Profª. Drª. Andrea Moreno como pelos Profs. Drs. Luís Miguel Carvalho e António Carlos Correia. O primeiro artigo se desenvolve a partir das possibilidades de sua popularização e circulação por meio de compêndios, manuais e guias em língua portuguesa entre fins do século XIX e início do XX. No artigo que compõe este dossiê, o sistema sueco de ginástica criado por P.H. Ling é retomado em sua trajetória com destaque para o Instituto Central de Ginástica de Estocolmo, em seu papel de preservação e divulgação dos preceitos e valores lingianos. O segundo artigo analisa a difusão e penetração da ginástica sueca no espaço político e cultural de Portugal, onde se conservou durante cerca de meio século como referência principal da educação física. A sua presença foi alvo de recepções distintas e de acaloradas controvérsias em torno da correta interpretação do método.

O método francês é aqui tratado a partir de duas perspectivas distintas, porém não excludentes, pois ambas compõem a escola francesa de ginástica. O dossiê trata então de dois autores fundadores: Georges Demenÿ e Georges Hébert.

O Prof. Dr. Edivaldo Goes Junior analisa obras produzidas no Brasil e na França sobre a ginástica francesa e toma para si a tarefa de comparar textos de Georges Demenÿ e Fernando de Azevedo, num período que compreende de 1860 a 1930. O artigo discute a predominância nas obras dos dois autores, da defesa de uma ginástica científica por meio de uma prática controlada e moderada. Entre o desejo e a realidade, um outro espaço se criou e outras tradições produziram uma cultura gímnica eclética tanto no Brasil quanto na França. Demenÿ é um de seus defensores e divulgadores.

A Profª Dra. Carmen Lúcia Soares analisa o método francês de ginástica a partir de um recorte pouco tratado no Brasil: o método natural de Georges Hébert. A obra de Hébert, produzida entre 1905 e 1936 e aqui tomada como fonte principal, revela o quanto a natureza e seus elementos começam a ser percebidos como auxílio e resposta às necessidades da vida urbana e de seus inúmeros desafios e confere um lugar de importância à prática regular de exercícios físicos e jogos ao ar livre como procedimentos educativos.

Finalmente, o artigo do Prof. Dr. Pablo Ariel Scharagrodsky analisa o sistema argentino de educação física escolar em princípios do século XX. Como fonte, mobiliza a produção escrita de Enrique Romero Brest, que ocupou um lugar central e fundante na educação física daquele país, referenciado como o "autêntico criador" da disciplina escolar em terras argentinas. O artigo analisa como esse sistema se consolida a partir de três pilares: o discurso científico, a justificativa higiênica e o ecletismo como elemento de diferenciação de outros sistemas.

Convictas de que pesquisas sobre os métodos ginásticos são fonte inesgotável de estudos e de potentes debates para a compreensão da história do que hoje chamamos educação física, desejamos a todos uma boa leitura.

  • Disponível na Internet em 23 de março de 2015
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    Este recorte de tempo é modificado, apenas, no artigo escritopela Profa. Dra. Annette Hofmann, cujo período se estende até osanos 1990.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015
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