Open-access Redução voltamétrica de artemisinina e sua interação com grupo heme (hemina)

Voltammetric reduction of artemisinin and its interaction with heme (hemin)

Resumos

A malária é a endemia tropical mais devastadora do mundo e esse quadro é agravado pela ausência de tratamento eficaz. Entretanto, a resistência dos plasmódios à artemisinina não apresenta relevância clínica e seu mecanismo de ação está associado ao grupo heme, com formação de radicais livres e rompimento da ponte endoperóxido. O comportamento voltamétrico da artemisinina foi estudado por voltametria cíclica e voltametria de onda quadrada. O fármaco é irreversivelmente reduzido em eletrodos de carbono vítreo e os valores de potencial de pico não sofrem influência da acidez do meio, porém observou-se o maior valor de corrente em pH 6,0. O comportamento voltamétrico da artemisinina foi significativamente alterado na presença do grupo heme, provocando uma antecipação de seu pico de redução em cerca de 600 mV. Por voltametria de onda quadrada observou-se que este novo pico foi sensível à adição crescente de concentração de hemina, atingindo valor de corrente cerca de 10 vezes maior em relação ao pico original da artemisinina, numa relação de concentração de 20 mmol/L para o primeiro e 50 mmol/L do segundo. Além disso, resultados indicaram que esse processo eletrocatalítico ocorreu pela formação de Fe(II)-hemina na superfície do eletrodo, com provável processo de eletro-polimerização da hemina sobre o eletrodo de carbono vítreo. Esse efeito adsortivo foi avaliado a partir da estimativa da concentração superficial (G) de hemina sobre o eletrodo de trabalho em pH 6,0. A modificação do eletrodo de carbono vítreo por hemina mostrou que a interação entre artemisinina e o grupo heme ocorre predominantemente sobre a superfície do eletrodo e não em solução. Portanto, esclarecer o mecanismo de ação da artemisinina é importante para o planejamento e desenvolvimento de novos agentes antimaláricos.

Artemisinina; Heme; Voltametria; Redução catalítica; Eletrodo modificado; Malária


Malaria is the tropical disease most devastating of the world and this situation is worsened by the absence of effective treatment. However, the plasmodium resistance to artemisinin does not show clinical relevance. The drug mechanism of action is associated to the heme group, with free radical formation and endoperoxide moiety breakage. The voltammetric behavior of artemisinin was studied by cyclic and square-wave voltametries. This drug was irreversibly reduced on glassy carbon electrode and the peak potential values are pH independent, however the biggest value of current peak was observed at pH 6.0. The voltammetric behavior of artemisinin was significantly changed in the heme group presence, provoking an anticipation of about 600 mV on cathodic peak. By square-wave voltammetry it was observed that this new peak was sensitive to the hemin concentration, reaching a value around 10 times larger regarding the original cathodic peak of artemisinin, being the concentration of 20 mmol/L for the former and 50 mmol/L for the latter. In addition, results indicated that this electro-catalytic process depends on the Fe(II)-hemin formation on the electrode surface, indicating the possible electro-polymerization of hemin on the glassy carbon electrode. This adsorptive effect was evaluated from the superficial concentration (G) estimation of the hemin on the working electrode at pH 6.0. The modification of the glassy carbon electrode using hemin showed that the interaction between artemisinin and the heme group predominantly occurs on the electrode surface and not in solution. Therefore, clarifying artemisinin mechanism of action is important in order to contribute for the design and development of new antimalarial agents.

Artemisinin; Heme; Voltammetry; Catalytic reduction; Modified electrode; Malaria


TRABALHOS ORIGINAIS

Redução voltamétrica de artemisinina e sua interação com grupo heme (hemina)

Voltammetric reduction of artemisinin and its interaction with heme (hemin)

Mauro Aquiles La-ScaleaI,II,*; Hélio Santa Rosa Costa SilvaII; Elizabeth Igne FerreiraII

IDepartamento de Ciências Exatas e da Terra, Escola Paulista de Química, UNIFESP-campus Diadema

IILaboratório de Planejamento e Síntese de Quimioterápicos Potencialmente Ativos Contra Endemias Tropicais, LAPEN, Departamento de Farmácia, Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Universidade de São Paulo

RESUMO

A malária é a endemia tropical mais devastadora do mundo e esse quadro é agravado pela ausência de tratamento eficaz. Entretanto, a resistência dos plasmódios à artemisinina não apresenta relevância clínica e seu mecanismo de ação está associado ao grupo heme, com formação de radicais livres e rompimento da ponte endoperóxido. O comportamento voltamétrico da artemisinina foi estudado por voltametria cíclica e voltametria de onda quadrada. O fármaco é irreversivelmente reduzido em eletrodos de carbono vítreo e os valores de potencial de pico não sofrem influência da acidez do meio, porém observou-se o maior valor de corrente em pH 6,0. O comportamento voltamétrico da artemisinina foi significativamente alterado na presença do grupo heme, provocando uma antecipação de seu pico de redução em cerca de 600 mV. Por voltametria de onda quadrada observou-se que este novo pico foi sensível à adição crescente de concentração de hemina, atingindo valor de corrente cerca de 10 vezes maior em relação ao pico original da artemisinina, numa relação de concentração de 20 mmol/L para o primeiro e 50 mmol/L do segundo. Além disso, resultados indicaram que esse processo eletrocatalítico ocorreu pela formação de Fe(II)-hemina na superfície do eletrodo, com provável processo de eletro-polimerização da hemina sobre o eletrodo de carbono vítreo. Esse efeito adsortivo foi avaliado a partir da estimativa da concentração superficial (G) de hemina sobre o eletrodo de trabalho em pH 6,0. A modificação do eletrodo de carbono vítreo por hemina mostrou que a interação entre artemisinina e o grupo heme ocorre predominantemente sobre a superfície do eletrodo e não em solução. Portanto, esclarecer o mecanismo de ação da artemisinina é importante para o planejamento e desenvolvimento de novos agentes antimaláricos.

Unitermos: Artemisinina. Heme. Voltametria. Redução catalítica. Eletrodo modificado. Malária

ABSTRACT

Malaria is the tropical disease most devastating of the world and this situation is worsened by the absence of effective treatment. However, the plasmodium resistance to artemisinin does not show clinical relevance. The drug mechanism of action is associated to the heme group, with free radical formation and endoperoxide moiety breakage. The voltammetric behavior of artemisinin was studied by cyclic and square-wave voltametries. This drug was irreversibly reduced on glassy carbon electrode and the peak potential values are pH independent, however the biggest value of current peak was observed at pH 6.0. The voltammetric behavior of artemisinin was significantly changed in the heme group presence, provoking an anticipation of about 600 mV on cathodic peak. By square-wave voltammetry it was observed that this new peak was sensitive to the hemin concentration, reaching a value around 10 times larger regarding the original cathodic peak of artemisinin, being the concentration of 20 mmol/L for the former and 50 mmol/L for the latter. In addition, results indicated that this electro-catalytic process depends on the Fe(II)-hemin formation on the electrode surface, indicating the possible electro-polymerization of hemin on the glassy carbon electrode. This adsorptive effect was evaluated from the superficial concentration (G) estimation of the hemin on the working electrode at pH 6.0. The modification of the glassy carbon electrode using hemin showed that the interaction between artemisinin and the heme group predominantly occurs on the electrode surface and not in solution. Therefore, clarifying artemisinin mechanism of action is important in order to contribute for the design and development of new antimalarial agents.

Uniterms: Artemisinin. Heme. Voltammetry. Catalytic reduction. Modified electrode. Malaria.

INTRODUÇÃO

A malária é a endemia tropical mais devastadora no mundo, com 300 a 500 milhões de casos clínicos e quase três milhões de óbitos a cada ano, sendo a maioria destas mortes causada por infecção pelo Plamodium falciparum, a mais nociva espécie de parasitas da malária (WHO, 2005). Lamentavelmente, esse quadro é agravado pela ausência de tratamento eficaz e pela existência de cepas de P. falciparum resistentes a fármacos, principalmente, à cloroquina (Ferreira, 2002; Burgess et al., 2006). Entre os quimioterápicos disponíveis para o tratamento e quimioprofilaxia da malária, a artemisinina merece destaque por ser o antimalárico cuja resistência dos plasmódios não possui relevância clínica (Meshnick et al., 1996; Dhigra et al., 2000; Olliaro, 2001). Entretanto, pesquisa recente sugere que o uso descontrolado do fármaco, e de seus derivados, pode criar condições favoráveis para o surgimento de resistência (Jambou et al., 2005). Não obstante, o Brasil já detém a tecnologia necessária para a produção de artemisinina em escala industrial (Garcia et al., 2000; Ereno, 2006) e, recentemente, modificações moleculares do fármaco foram efetuadas com o intuito de aumentar sua biosdisponibilidade com conseqüente melhora de sua eficácia terapêutica (Silva, 2006).

A artemisinina (Ar, Figura 1), extraída da Artemisia annua (Rodrigues et al., 2006), é esquizonticida sanguíneo que também acumula atividade gametocida (Silva, 2006). Este fármaco é uma lactona sesquiterpênica contendo uma ponte endoperóxido, essencial para atividade antimalárica, sendo entre os antimaláricos o único a apresentar essa ponte (Meshnick et al., 1996; Casteel, 1997). Estudos in vitro demonstram que a artemisinina é tóxica ao parasita da malária em concentrações nanomolares, enquanto que, em células mamíferas, esta toxicidade só aparece em concentração na ordem de micromolar. Esta seletividade pode ser explicada devido ao fato de as células infectadas pelo parasita terem maior captura do fármaco e, conseqüentemente, eritrócitos infectados conseguem reter cerca de 100 vezes mais artemisinina que os não-infectados. Este comportamento pode estar associado ao metabolismo do ferro, comumente encontrado alterado em células infectadas, facilitando, assim, o acúmulo do fármaco (Meshnick et al., 1996; Creek et al., 2005). Desta forma, pode-se afirmar que a ação da artemisinina ocorre em duas etapas: primeiro haveria a geração do radical livre e, em seguida, a alquilação de proteínas específicas e fundamentais para a sobrevivência do parasita (Silva, 2006). Com efeito, essa geração de radicais livres dependeria do íon ferro presente no grupo heme, sendo esta a etapa principal do mecanismo de ação do fármaco, pois a formação do complexo entre o grupo heme e artemisinina provocaria o rompimento da ponte endoperóxido por meio de redução catalítica (Zhang et al., 1992; Haynes, Vonwiller, 1996; Wu et al., 1998; Chen et al., 1999).


A artemisinina pode ser reduzida tanto química quanto eletroquimicamente (Wu, Wu, 2000), envolvendo o rompimento da ponte endoperóxido. O seu perfil ciclo voltamétrico indica um processo de redução irreversível, com pico pouco definido e, geralmente, com valores de potencial muito negativos (Zhang et al., 1992; Jiang et al., 1997; Donkers, Workentin, 1998; Chen et al., 1999; Chen et al., 1999; Yang et al., 2005). Adicionalmente, derivados do fármaco, como artesunato (Chen et al., 1998), diidroartemisinina (Chen et al., 1999) e artemeter (Chen et al., 1997; Debnath et al., 2006) apresentam comportamento voltamétrico idêntico ao da molécula original.

Por outro lado, o grupo heme (normalmente estudado pelo uso de hemina, Figura 1) exibe um bem definido sistema reversível de redução, envolvendo um elétron. Porém, resultados mostram que este mecanismo de transferência de carga é determinado por meio da adsorção do composto sobre a superfície do eletrodo de trabalho, podendo-se chegar até a modificação do eletrodo por um processo de eletropolimerização (Zhang et al., 1992; Jiang et al., 1997; Chen et al., 1997; Chen et al., 1998; Chen et al., 2000; Nan et al., 2002; Zheng et al., 2002). Neste caso, a presença de pequena concentração de oxigênio pode interferir no processo redutivo do grupo heme (Chen et al., 1997; Chen et al., 1998; Chen et al., 2000; Zheng et al.; 2002).

Resultados da literatura (Zhang et al., 1992; Chen et al., 1997; Chen et al., 1998; Chen et al., 1999; Chen et al., 1999; Yang et al., 2005) mostram que a redução voltamétrica de artemisinina é significativamente alterada na presença de hemina, a partir do estabelecimento de um processo eletrocatalítico. Assim, é possível observar a formação de um pico de redução com potencial menos negativo do que aquele registrado na redução voltamétrica do fármaco e a este resultado atribuiu-se ao processo eletrocatalítico da artemisinina na presença de hemina, envolvendo uma antecipação de potencial que pode atingir a diferença de mais de 600 mV utilizando-se eletrodo de carbono vítreo como eletrodo de trabalho. Vale ressaltar que ao se efetuar uma adição de padrão, este novo sinal de corrente obtido também é sensível à concentração de artemisinina. Em contraste, o pico de redução não-catalítico do fármaco decresce em sua altura, podendo desaparecer completamente, à medida que se aumenta a concentração de hemina em solução (Zhang et al., 1992; Chen et al., 1997).

Uma das características importantes das técnicas eletroquímicas é a possibilidade de sua aplicação ao estudo de fármacos que possuam como característica de sua ação biológica o envolvimento de processos de transferência de carga. Nesse sentido, as informações obtidas por meio dessas técnicas podem exercer papel relevante para a compreensão do mecanismo de ação desses fármacos (Abreu et al., 2002). Desta forma, este artigo tem por objetivo apresentar novos resultados sobre o estudo do processo eletrocatalítico de redução da artemisinina promovido pela presença de hemina, tendo o eletrodo de carbono vítreo como eletrodo de trabalho, aplicando-se a voltametria cíclica (VC) e, até o momento de forma inédita, a voltametria de onda quadrada (VOQ). Além disso, a possibilidade de obtenção de eletrodo de carbono vítreo modificado com hemina para a o estudo voltamétrico de artemisinina também foi avaliada.

MATERIAL E MÉTODOS

Reagentes

A solução estoque (10 mmol/L) de artemisinina (Medyplantex) foi obtida por dissolução direta em metanol. A solução estoque (5 mmol/L) de hemina (Sigma) foi preparada por dissolução direta em 0,1 molL-1 de NaOH. Efetuaram-se as medidas em tampão universal a partir da mistura de ácidos fosfórico, acético e bórico com NaOH, sendo estes reagentes de origem Merck, grau analítico. Todas as soluções foram obtidas com água purificada por meio do sistema Gehaka Master System.

Aparelhagem

Os voltamogramas cíclicos e de onda quadrada foram registrados utilizando-se o potenciostato/galvanostato Autolab PGSTAT 30, Eco-Chimie, acoplado a uma célula eletroquímica com três eletrodos: carbono vítreo como eletrodo de trabalho, Ag/AgCl como referência e Pt como eletrodo auxiliar. Controlou-se o pH das soluções estudadas utilizando-se medidor de pH Metrohm 744 e eletrodo de vidro combinado à temperatura ambiente.

Tratamento do eletrodo de carbono vítreo e modificação com hemina

O eletrodo de carbono vítreo (ECV, Ø = 2 mm) foi manualmente polido com suspensão de alumina (Arotec) de granulometria 0,3 µm sobre feltro metalográfico para polimento tipo DBM (Arotec) e, em seguida, o eletrodo foi lavado exaustivamente com água purificada. Após esse procedimento o ECV foi colocado em solução tampão e aplicados os potenciais de 1,0 e -1,0 V durante 10 segundos cada, seguido de varredura de potencial entre 0 e -1,0 V até estabelecimento de linha base constante.

O eletrodo de carbono vítreo modificado com hemina (ECV-H) foi obtido por aplicação de 10 µL de solução estoque de hemina (5 mmol/L) sobre a superfície de carbono vítreo. Esse eletrodo foi deixado à temperatura ambiente até completa secagem da solução aplicada e, em seguida, lavou-se com água purificada para eventual retirada do excesso de hemina adsorvida fora da superfície de carbono vítreo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Voltametria cíclica

A artemisinina apresentou único pico de redução por voltametria cíclica em pH 6,0 tendo ECV como eletrodo de trabalho, como pode ser observado pela Figura 2. Nestas condições experimentais e com velocidade de varredura (n) de 0,10 V/s esse pico registrou potencial (EpcAr) igual a -0,765 V. Além disso, a ausência de registro de pico no sentido reverso da varredura é indicação de processo irreversível. Se a reação de eletrodo for controlada por difusão, a corrente de pico para um sistema irreversível é proporcional à raiz quadrada da velocidade de varredura (Brett, Brett, 1996). No entanto, o gráfico apresentado junto à Figura 2 mostra que a corrente de pico de redução da artemisinina (IpcAr) varia linearmente com n, sendo, ao contrário da descrição anterior, demonstração de que este processo de transferência de carga é controlado por adsorção do reagente sobre a superfície do eletrodo de trabalho (Zhang et al., 1992; Chen et al., 1997).


Os valores de potencial de pico para reduções irreversíveis também são dependentes da velocidade de varredura, com variação linear no sentido negativo dos valores de potencial numa proporção de 30 mV/an por década de aumento dos valores de n (Brett, Brett, 1996), lembrando que a corresponde ao coeficiente de transferência de carga e n o número de elétrons envolvidos na reação. Com efeito, os valores de EpcAr são deslocados linearmente (r = -0,997) para valores mais negativos numa relação logarítmica com n, definida experimentalmente pela equação: EpcAr = -0,895 V — 0,0549 ln n.

De forma complementar, os valores de an podem ser determinados com aplicação da equação que segue (Brett, Brett, 1996):

sendo Ep/2 o potencial a meia altura do pico catódico (EpcAr).

A Tabela I mostra os resultados obtidos por VC para a redução de 0,10 mmol/L de artemisinina em pH 6,0. Os valores de an apresentados são compatíveis com resultados publicados por Donkers e Workentin (1998) que encontraram valor médio de a igual a 0,26 para a redução de artemisinina também utilizando ECV, porém em meio não-aquoso. Portanto, estes resultados indicam a participação de dois elétrons na redução voltamétrica do fármaco, estando de acordo com registros anteriores (Zhang et al., 1992; Chen et al., 1997; Chen et al., 1998; Chen et al., 1999; Debnath et al., 2006), que descrevem o mecanismo de redução da artemisinina envolvendo o rompimento da ponte endoperóxido, como mostra a Figura 3 (Wu, Wu, 2000).


Voltametria de onda quadrada e o efeito do pH

A voltametria de onda quadrada (VOQ) é uma das técnicas voltamétricas de pulso mais rápidas e sensíveis. Os limites de detecção podem ser comparados aos dos métodos analíticos baseados nas técnicas de separação, como a cromatografia líquida, com detector espectrométrico. Além disso, a análise dos parâmetros característicos desta técnica também possibilita a avaliação cinética e mecanística de processos de eletrodo (Brett, Brett, 1996; Souza et al., 2003).

Em solução tampão (pH 6,0), artemisinina (50 µmol/L) apresentou único pico de redução por VOQ com valores de EpcAr = -0,806 V e IpcAr = 4,26 µA, utilizando-se incremento de potencial (DEs) de 5 mV, freqüência (f) de 100 Hz e amplitude de pulso (a) de 50 mV, sendo que estes dois últimos parâmetros constituem-se os mais importantes à otimização experimental para o uso da voltametria de onda quadrada (Souza et al., 2003; Pedrosa et al., 2003).

A freqüência de aplicação dos pulsos de potenciais é parâmetro determinante para a intensidade do sinal obtido, ou seja, a sensibilidade da técnica. Assim, confirmando os resultados discutidos anteriormente, para sistemas totalmente irreversíveis controlados por adsorção das espécies em estudo sobre a superfície de eletrodo a corrente de pico apresenta relação linear com a freqüência (Souza et al., 2003; Pedrosa et al., 2003), como confirma o gráfico da Figura 4. Além disso, concordando com estudos teóricos (Souza et al., 2003), valores de EpcAr registrados para a artemisinina também variam linearmente com o logaritmo da freqüência, sendo esta proporção experimentalmente definida pela equação: EpcAr = -0,489 – 0,157 log f (r = -0,998).


A amplitude de pulso é outro parâmetro que influencia os valores de corrente de pico registrados por VOQ (Souza et al., 2003; Pedrosa et al., 2003). A Figura 5 ilustra claramente este efeito com resultados obtidos para 50 µmol/L de artemisinina em pH 6,0, tendo ECV como eletrodo de trabalho. Como descrito pela teoria (Lovri, Komorsky- Lovri, 1988), a corrente de pico apresenta variação linear com amplitude de pulso até valor de 50 mV, atingindo um patamar a partir deste ponto. Baseado nestes resultados, para todo o estudo de artemisinina por VOQ o valor de 50 mV foi selecionado para a.


Após o estabelecimento dos parâmetros descritos, observou-se por VOQ que o pH da solução não produz efeito sobre os valores de potencial de pico (Figura 6), o que pode indicar, baseando-se no mecanismo mostrado na Figura 3, que o processo de protonação ocorra após a etapa de transferência de elétrons. O valor de EpcAr apresentou valor mediano de -0,806 V com variação máxima de 15 mV para toda faixa de pH estudada (2<pH<12). É curioso observar que os diversos registros da literatura sobre a redução voltamétrica da artemisinna não apresentam discussão a respeito do efeito do pH (Zhang et al., 1992; Chen et al., 1997; Chen et al., 1999). Artigo recém-publicado por Debnath e colaboradores (2006), envolvendo estudo voltamétrico do artemeter, corrobora os resultados aqui apresentados. Apenas o trabalho de Chen et al. (1998) registra a variação de potencial de pico em função da acidez do meio para a redução voltamétrica de artesunato, envolvendo a variação de 70 mV dentro da faixa de uma unidade de pH.


Por outro lado, pode-se, também, observar pela Figura 6 que o pH da solução promove significativo efeito sobre o perfil dos voltamogramas de onda quadrada, alterando nitidamente seus valores de IpcAr, a ponto de em pH 12 não apresentar o registro do pico de redução da artemisinina, como mostra o detalhe da Figura 6. Assim, pode-se concluir, ao se analisar a Figura 6, que o valor de IpcAr atinge seu máximo em pH 6,0, o que mostra que apesar dos valores de potencial de pico serem independentes da acidez do meio, a corrente registrada pode ser afetada por processos de protonação que ocorram após a transferência de carga.(Bard, Faulkner, 1980).

Redução voltamétrica da hemina

A hemina apresenta único pico de redução por voltametria de onda quadrada em pH 6,0 com potencial (EpcH) igual a -0,228 V, envolvendo um elétron com a redução de Fe(III) a Fe(II) (Figura 7, voltamograma A), e corrente (IpcH) de 2,48 µA correspondente a 35 µmol/L do composto. Considerando-se sistemas reversíveis, a corrente de pico varia linearmente com a raiz quadrada da freqüência (Souza et al., 2003). Com efeito, esta relação linear (r = 0,995) pôde ser confirmada entre 30 e 100 Hz, sendo a equação que a define: IpcH = -4,22 + 0,886 f 1/2. Por outro lado, a gráfico apresentado junto à Figura 7 mostra que valores de EpcH são independentes da freqüência. Segundo Lovric e Komorski-Lovric (1988) esse comportamento caracteriza sistemas reversíveis que envolvem a adsorção de reagente e produto sobre a superfície do eletrodo de trabalho durante o processo redox.


Corroborando a descrição acima, trabalhos da literatura (Chen et al., 1997; Chen et al., 1998; Chen et al., 1999) afirmam que a redução voltamétrica da hemina é processo reversível controlado por adsorção. Além do estudo de parâmetros já apresentados, foi possível observar que o comportamento voltamétrico da hemina sofre alteração após sucessivas varreduras de potencial (cerca de 30 voltamogramas) utilizando-se a VOQ. O resultado final, como mostra o voltamograma B da Figura 7, apresenta potencial de pico (EpcH = -0,283 V) deslocado para valor mais negativo, além do aumento no valor de corrente (IpcH = 4,16 µA). Essa alteração de comportamento pode estar relacionada ao processo de eletro-polimerização da hemina sobre o eletrodo de carbono vítreo, como já registrado anteriormente (Chen et al., 2000; Zheng et al., 2002).

Vale destacar que uma das vantagens da VOQ é que a amostragem de corrente é efetuada ao final de cada pulso tanto em sentido positivo quanto em negativo de potencial. Assim, os picos correspondentes à redução ou à oxidação da espécie eletroativa podem ser obtidos na mesma experiência e, por subtração, a sua diferença (Brett, Brett, 1996; Souza et al., 2003). Desta forma, pode-se registrar, simultaneamente, a corrente resultante (voltamograma B, Figura 7) correspondente ao processo redox total da hemina, como também suas componentes catódica (corrente direta) e anódica (corrente reversa), denominadas como Bd e Br, confirmando, assim, a reversibilidade da hemina.

O efeito adsortivo descrito pode ser melhor avaliado a partir da estimativa da concentração superficial (G) da espécie adsorvida sobre o eletrodo de trabalho. Lovri e co-autores (1988) mostraram que a adsorção de reagentes e/ou produtos em qualquer reação redox pode causar aumento significativo nas respostas da VOQ. Segundo a equação de proporcionalidade linear obtida pelos autores, pode-se definir a corrente de pico na VOQ, como:

Ip = (5 ± 1)x102qan2FafDEsG,

sendo q a área do eletrodo (0,031 cm2), F a constante de Faraday (96.485 C/mol), além dos parâmetros já definidos. Assim, utilizando-se a = 0,5 (Wang et al., 2005) para hemina, o valor de G estimado corresponde a 1,3x10-10 mol/cm2 e 2,2x10-10 mol/cm2 para os voltamogramas A e B, respectivamente. Esses resultados mostram claramente o aumento da concentração superficial de hemina adsorvida sobre o eletrodo de carbono vítreo depois de seguidas varreduras por VOQ.

Interação da artemisinina com hemina e o processo eletrocatalítico

O comportamento voltamétrico da artemisinina é significativamente alterado na presença do grupo heme. Por voltametria de onda quadrada observou-se que a adição crescente de concentração de hemina em solução de 50 µmol/L de artemisinina promoveu o surgimento de uma segunda onda de redução com valor de potencial menos negativo do que aquele apresentado pelo fármaco em pH 6,0. O voltamograma A da Figura 8 mostra o pico de redução (EpcAr = -0,806 V) de artemisinina na ausência de hemina. À medida que se aumenta a concentração do grupo heme em solução, esse segundo pico de redução pode ser observado em potencial menos negativo com EpcAr-H final igual a -0,273 V (voltamogramas B, C e D, Figura 8). Este comportamento está em conformidade com os resultados descritos pela literatura (Zhang et al., 1992; Chen et al., 1997; Chen et al., 1998; Chen et al., 1999; Chen et al., 1999; Yang et al., 2005), cuja antecipação de 533 mV do pico de redução do fármaco pode ser atribuída ao processo eletrocatalítico de redução causado pela presença da hemina. Este deslocamento, como também o desaparecimento do pico original de redução da artemisinina, pode ser atribuído à diminuição da energia de ativação de redução do fármaco e do aumento na velocidade de transferência de carga (Chen et al., 1997).


Com efeito, os valores de corrente correspondentes também são alterados em função do aumento da concentração do grupo heme em solução. Na presença de 20 µmol/L de hemina, o pico original do fármaco apresentou valor de corrente igual a 0,69 µA, sofrendo diminuição em sua altura de mais de cinco vezes em relação ao valor inicial. Já o pico correspondente à redução eletrocatalítica é significativamente maior, sendo o IpcAr-H = 6,9 µA. Essas relações abrem excelente alternativa para o desenvolvimento de método analítico para a determinação de artemisinina.

A Figura 9 representa de maneira clara o efeito da presença de hemina sobre a redução voltamétrica do fármaco em estudo. Observa-se que o pico de redução catalítica atinge um patamar, indicando que apesar do aumento da concentração de hemina, o valor de corrente pode ser limitado pela concentração do fármaco. Por outro lado a corrente correspondente ao pico de redução original do fármaco atinge valor mínimo, porém diferente de zero, diferenciando-se um pouco ao registrado na literatura (Zhang et al., 1992; Chen et al., 1997; Chen et al., 1999), já que estes autores mostraram que quando o pico catalítico atinge seu máximo o pico não-catalítico desaparece completamente. Essas diferenças nos registros da corrente final podem estar relacionadas à maior sensibilidade da VOQ quando comparada à VC. Como demonstrado, a corrente registrada por VOQ sofre forte influência de processos adsortivos, assim o não completo desaparecimento do pico original do fármaco pode corresponder à presença de Ar adsorvida na superfície de eletrodo. Além disso, pode-se supor a existência de uma reação competitiva entre a redução da hemina e a redução catalítica de Ar, o que contribuiria para o aumento da corrente do pico catalítico.


O sinal voltamétrico de redução da hemina também sofre influência na presença de artemisinina. Porém, como pode ser observado pela Figura 10, apenas com concentração do fármaco acima de 39 µmol/L um único pico é registrado (EpcAr-H = -0,202 V). Adicionando-se concentrações menores de artemisinina fica evidente a sobreposição dos picos correspondentes à redução de hemina e a antecipação da redução do fármaco, indicando que a ordem de adição dos reagentes altera o comportamento do processo eletrocatalítico. Assim, o registro deste único pico com a adição de Ar em excesso de hemina pode indicar uma eficiente cobertura da superfície do ECV pelo grupo heme na ausência do fármaco, dificultando o sinal de redução não catalítico da artemisinina como mostrado na Figura 8. De fato, baseando-se nos resultados mostrados na seção anterior, pode-se inferir que com apenas a primeira varredura do branco em solução de hemina a superfície de carbono vítreo pode ter sofrido alguma modificação, sugerindo que o processo eletrocatalítico de redução do fármaco ocorra preferencialmente com o grupo heme adsorvido na superfície do eletrodo.


A possibilidade de registro das correntes direta e reversa mostra que o aumento da concentração de artemisinina contribuiu para o crescimento na altura do pico correspondente à componente catódica (detalhe da Figura 10). Por outro lado, como visto anteriormente, a redução da artemisinina é um processo irreversível. Assim, a corrente reversa registrada refere-se à presença da hemina em solução. Os picos mostrados no detalhe da Figura 10 indicam claramente o desaparecimento da corrente reversa com o aumento da concentração do fármaco, o que representa forte indício da participação de Fe(II)-hemina na redução eletrocatalítica da artemisinina.

Variedade de compostos é registrada na literatura (Haynes et al., 1996; Wu et al., 1998; Wu et al., 2000; Chen et al., 1999; Sibmooh et al., 2001) como prováveis produtos dessa redução catalítica, incluindo as espécies indicadas na Figura 3, envolvendo tanto Fe(II) quanto Fe(III) em diferentes mecanismos, mas sempre com o rompimento da ponte endoperóxido. Entretanto, comparando-se os resultados aqui apresentados com os registros voltamétricos da literatura (Zhang, et al., 1992; Chen et al., 1997; Chen et al. 1999; Yang et al., 2005), pode-se assumir que o esquema geral da Figura 11 representa de forma conveniente a interação entre hemina e artemisinina. Paralelamente, condições específicas seriam necessárias para que este processo ocorresse dentro da célula parasitada, já que existem indicações de que o mecanismo eletrocatalítico depende da formação de Fe(II)-hemina. Nesse sentido, tiol-redutases presentes no parasita da malária poderiam exercer essa função (Chen, et al., 1999; Krauth-Siegel, Coombs, 1999). Além disso, a estequiometria da reação apresentada baseia-se na possibilidade de a hemina catalisar de forma análoga a redução de peróxido de hidrogênio com envolvimento de dois elétrons (Zhang et al., 1992). Com efeito, esta discussão está de acordo com estudos de relação estrutura-atividade que mostram a importância da ponte endoperóxido para a atividade contra malária (Jiang et al., 1997; Cheng et al., 2002; Najjar et al., 2003), já que os metabólitos isolados de derivados de artemisinina são compostos que não apresentam essa parte da molécula, corroborando o modelo de que a decomposição do grupo endoperóxido é a etapa crítica da ação antimalárica (Meshnick et al., 1996; Casteel, 1997; Chen et al., 1997; Silva, 2006).


Eletrodo de carbono vítreo modificado com hemina

O pico registrado a -0,806 V, utilizando-se ECV e correspondente à redução de artemisinina na ausência de hemina, responde de forma não-linear à adição de padrão do fármaco em solução aquosa em pH 6,0, cobrindo uma faixa de concentração até 107 µmol/L. Dentro desta faixa uma pequena parcela linear pôde ser observada entre 4,98 a 29,1 µmol/L, como mostram os voltamogramas de onda quadrada e a curva de calibração apresentados na Figura 12, assim como os dados de regressão linear arrolados na Tabela II.


Inspirado por trabalhos que mostram a possibilidade da modificação de eletrodos de carbono por hemina (Chen et al., 2000; Zheng et al., 2002; Nan et al., 2002), 10 µL da solução 5 mmol/L de hemina foram aplicados sobre o ECV previamente polido, que foi mantido em temperatura ambiente até secagem completa. O voltamograma A apresentado na Figura 13 corresponde ao sinal obtido por este eletrodo modificado (ECV-H) em tampão pH 6,0. O potencial de pico (EpcECV-H = -0,293 V) apresentou valor ligeiramente mais negativo que o registrado anteriormente em solução de hemina. Além disso, a estimativa do valor G (4,8x10-10 mol/cm2) indica que esta estratégia proporcionou aumento significativo na concentração de hemina adsorvida sobre a superfície de carbono vítreo.


O ECV-H mostrou-se sensível à presença de artemisina em solução. Com efeito, o valor de corrente registrado pelo ECV-H em pH 6,0 aumentou com adição de padrão de Ar, levando-se à conclusão que a reação eletrocatalítica entre o fármaco e a hemina ocorre predominantemente sobre a superfície do eletrodo de trabalho modificada pelo grupo heme, indicando que esta interação se estabelece sem a necessidade de hemina em solução. Este comportamento corrobora resultados anteriores da literatura (Chen et al., 1997), que mostram que íons Fe(III) não-adsorvidos não apresentam efeito catalítico sobre a artemisinina. Entretanto, a interação aqui observada, que acontece sobre a superfície do ECV-H e não em solução, pode ser fisiologicamente relevante para a completa explicação do mecanismo de ação da artemisinina.

De forma complementar, a Figura 13B mostra o resultado da subtração efetuada entre o sinal do branco mostrado pela Figura 13A e cada adição de padrão de artemisinina registrada. Em razão das características técnicas da VOQ, a subtração dos valores de corrente é uma alternativa para eliminação de interferentes, estratégia comumente utilizada para a remoção da corrente devida à redução de oxigênio dissolvido em solução (Brett, Brett, 1996). No entanto, neste caso, oxigênio foi eliminado por borbulhamento de argônio, já que a literatura registra resultados do estudo da interação do gás com hemina (Chen et al., 2000; Zheng et al., 2002). Desta forma, considerou-se como constante o sinal de corrente obtido pelo ECV-H em tampão.

A relação entre corrente de pico e concentração de artemisinina utilizando-se ECV-H mostrou-se linear (r = 0,996) na faixa entre 2,99 e 19, 6 mmol/L, sendo a partir deste ponto registrado um patamar de corrente, indicando saturação da superfície do eletrodo pelo aumento da concentração do fármaco. A Tabela 2 traz os resultados de regressão linear para adição de padrão de artemisinina. Apesar da estreita faixa linear obtida, os resultados mostram ligeiro aumento de sensibilidade para a análise do fármaco aplicando-se o eletrodo de carbono vítreo modificado com hemina. Este aumento de corrente pode estar relacionado à regeneração de Fe(III)-hemina, promovida pelo processo eletrocatalítico (mecanismo EC), associada à redução em conjunto da artemisinina (Bard, Faulkner, 1980; Zhang et al., 1992; Chen et al., 1997). Novos estudos serão necessários para estabelecer a viabilidade de aplicação do ECV-H para determinação de artemisinina por técnicas eletroquímicas.

CONCLUSÕES

A partir dos resultados aqui apresentados fica evidente que artemisinina pode sofrer redução eletroquímica e que seu comportamento voltamétrico é significativamente alterado na presença de hemina. A essa alteração atribuiu-se um efeito catalítico da hemina sobre o fármaco, facilitando o rompimento da ponte endoperóxido, parte da molécula considerada a principal responsável pela atividade antimalárica da artemisinina. O conhecimento deste comportamento eletroquímico traz importantes informações para melhor compreensão do mecanismo de ação de artemisinina e seus derivados, o que pode contribuir para o planejamento e desenvolvimento de novos agentes antimaláricos.

AGRADECIMENTOS

À FAPESP pela bolsa de pós-doutorado no Brasil concedida a M.A. La-Scalea.

Recebido para publicação em 15 de dezembro de 2006.

Aceito para publicação em 20 de abril de 2007.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Set 2007

    Histórico

    • Recebido
      15 Dez 2006
    • Aceito
      20 Abr 2007
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