Acessibilidade / Reportar erro

Regurgitação aórtica após substituição valvular aórtica transcateter: decepção ou tempestade em copo d'agua?

EDITORIAL

Regurgitação aórtica após substituição valvular aórtica transcateter: decepção ou tempestade em copo d'agua?

Marco A. MagalhãesI; Ron WaksmanII; Augusto D. PichardIII

IMédico do Departamento de Medicina Interna, Divisão de Cardiologia, MedStar Washington Hospital Center. Washington, D.C., Estados Unidos

IIMédico do Departamento de Medicina Interna, Divisão de Cardiologia, MedStar Washington Hospital Center. Washington, D.C., Estados Unidos

IIIMédico, vice-presidente do MedStar Washington Hospital Center. Washington, D.C., Estados Unidos

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Augusto D. Pichard MedStar Washington Hospital Center 110 Irving St NW Washington District of Columbia, USA - 20010 E-mail: guspichard@gmail.com

Uma década de grande entusiasmo emergiu após o primeiro relato de caso de substituição valvular aórtica transcateter (SVAT) realizada com sucesso em 2002. Subsequentemente, os resultados do principal ensaio clínico Placement of AoRTic TraNscathetER (PARTNER) contribuíram para que a SVAT fosse aprovada como padrão de tratamento para pacientes portadores de estenose aórtica sintomática e inoperáveis.1 Esses 10 anos de sucesso tiveram grandes inconvenientes, que foram relacionados principalmente ao procedimento e resolvidos, em parte, através dos refinamentos da técnica e dos dispositivos adjuntos. Embora as complicações a curto prazo tenham melhorado (< 10%), a mortalidade a longo prazo após a SVAT não mudou com o passar do tempo.2-5 Aliás, a alta incidência e a associação de regurgitação aórtica com mortalidade após SVAT têm sido motivo de preocupação.6,7 Entretanto, as significativas limitações metodológicas desses estudos dificultam compreender se esses fenômenos representam uma grande decepção ou apenas uma tempestade em copo d'água.

Ver página 103

A incidência relatada de regurgitação aórtica após SVAT varia de 50% a 85%, obtida, principalmente, a partir de dados ecocardiográficos.8 A regurgitação aórtica pode ter origem central ou paravalvar, sendo graduada de acordo com parâmetros quantitativos ou semiquantitativos. Nenhum desses métodos, no entanto, foi prospectivamente validado ou padronizado consensualmente pelo Valve Academic Research Consortium.9 Reconhecendo essas limitações, aparentemente a regurgitação aórtica após SVAT mais do que leve está associada a piores resultados a longo prazo em diferentes estudos, com risco estimado de 2,27 [intervalo de confiança de 95% (IC 95%): 1,84-2,81), ao final de um ano.7 No entanto, os dados mais intrigantes foram observados no estudo PARTNER (Coorte A), no qual mesmo a regurgitação aórtica leve após SVAT foi associada a maior mortalidade, tendo sido demonstrado inclusive um efeito dose-resposta real.6

O artigo publicado por Lluberas et al.10, nesta edição da Revista Brasileira de Cardiologia Invasiva, acrescenta dados importantes sobre a regurgitação aórtica paravalvar após SVAT, fundamentados na análise retrospectiva de 112 (68,8%) pacientes com estenose aórtica sintomática tratados com dispositivo Medtronic CoreValve® (Medtronic, Minneapolis, Estados Unidos), basicamente em um único centro pioneiro no Brasil. Esses autores relataram frequência de 56% de regurgitação aórtica paravalvar após o procedimento. Desses casos, 41% eram leves e 11,6% foram considerados moderados. Não foi observada regurgitação aórtica grave. A incidência de regurgitação aórtica moderada a grave é semelhante à da literatura, mas no limite inferior dos estudos com a prótese CoreValve® (9% a 21%).11 Esse achado interessante pode estar relacionado ao uso mais liberal da pós-dilatação (34%). Embora o poder estatístico da amostra seja limitado para a comparação de desfechos clínicos, não foi observada diferença na mortalidade após um ano de acompanhamento comparando a regurgitação aórtica paravalvar moderada à regurgitação leve ou ausente (7,7% vs. 8,1%, respectivamente; P = NS).

Esse achado realça a evidência conflitante da associação entre mortalidade após SVAT e regurgitação aórtica paravalvar. Numerosos estudos demonstraram essa associação, mas considerações analíticas e metodológicas, tais como a função de risco proporcional, o viés de sobrevivência, a falta de padronização de critérios de definição, o tempo e a limitação inerentes da avaliação ecocardiográfica e a carência de dados obtidos de forma independente diminuem a força dessa associação. Juntas, essas considerações mitigam o estabelecimento de uma relação causal direta. Em outras palavras, a relação entre regurgitação aórtica após SVAT e mortalidade pode ser mediada ou moderada por variáveis de confusão aferidas ou não, e, portanto, está longe de estar concluída. Nessa linha de discussão, Lluberas et al.10 fornecem mais uma introspecção nesse tema, modelando os determinantes da regurgitação aórtica paravalvar após SVAT. No entanto, o número limitado de eventos (n = 13) muito provavelmente ultrapassou a capacidade do modelo e das estimativas. É interessante destacar que o único preditor ecocardiográfico independente foi a presença de fração de ejeção ventricular esquerda < 35% [odds ratio (OR): 4,16, IC: 1,01-17,0; P = 0,048], comparável à do subestudo ecococardiográfico longitudinal do PARTNER, que apontou para uma diferença potencial de remodelamento ventricular em pacientes que desenvolveram regurgitação aórtica após SVAT.12 Além disso, esse estudo também documentou que a regurgitação aórtica após SVAT permanece basicamente inalterada durante os dois anos de seguimento. Isso está, de certa forma, em conformidade com os estudos de história natural da regurgitação aórtica nativa crônica. A sobrevida a longo prazo da sobrecarga de volume da regurgitação aórtica moderada crônica é muito boa e a mortalidade está associada ao desenvolvimento de sintomas e tem uma inflexão clara com a alteração dos parâmetros de remodelação ventricular esquerda.13 Por outro lado, os estudos que demonstraram maior mortalidade por regurgitação aórtica após SVAT não apresentaram progressão da regurgitação aórtica em função do tempo, alteração dos parâmetros de remodelamento ventricular ou piora dos sintomas funcionais.

Entretanto, independentemente de a regurgitação aórtica após SVAT ser ou não mediadora ou moderadora de piores resultados, esse dado enfatiza a limitação atual do procedimento e a janela de oportunidade para melhorar a tecnologia. Avanços dos novos dispositivos para SVAT estão em andamento e incluem modificações que efetivamente limitarão ou eliminarão a regurgitação aórtica após SVAT.14 No momento, a melhor estratégia é adotar medidas preventivas, tais como selecionar o tamanho e a prótese mais adequados para cada paciente. Uma área importante de desenvolvimento é o entendimento do complexo valvar aórtico, por meio da análise multimodal de imagens.15 Esses estudos focaram no ânulo e, contra a crença anterior de que essa era uma estrutura simples de geometria circular, complacente e estática, o conhecimento atual sobre esse anel oval "virtual" está muito além da possibilidade de uma simples análise unidimensional. Recentemente, a quarta dimensão foi adicionada à mensuração do ânulo - o tempo - e confirmou a variabilidade da dimensão, de acordo com a fase do ciclo cardíaco.16 Aqui, a incorporação da análise multidimensional por meio de tomografia computadorizada com múltiplos detectores e de ecocardiografia bidimensional/tridimensional tem se mostrado útil.

O advento da SVAT transformou o tratamento da estenose aórtica e forçou a Cardiologia Intervencionista a uma reengenharia não apenas de nossos laboratórios de cataterismo mas também da maneira como interagimos com os diferentes componentes de um heart team atuante, com o objetivo de melhorar o prognóstico desses pacientes. Por ora, a questão se a regurgitação aórtica após SVAT representa uma real decepção ou apenas uma tempestade em copo d'água permanece sem resposta. Estudos especificamente delineados para responder a essa pergunta são necessários para garantir a potencial aplicação da SVAT em populações de riscos intermediário ou baixo no futuro.

CONFLITO DE INTERESSES

Augusto D. Pichard é proctor da Edwards Lifesciences. Marco A. Magalhães e Ron Waksman declaram não haver conflito de interesses relacionado a este manuscrito.

Recebido em: 4/6/2013

Aceito em: 5/6/2013

  • 1. Leon MB, Smith CR, Mack M, Miller DC, Moses JW, Svensson LG, et al. Transcatheter aortic-valve implantation for aortic stenosis in patients who cannot undergo surgery. N Engl J Med. 2010;363(17):1597-607.
  • 2. Moat NE, Ludman P, de Belder MA, Bridgewater B, Cunningham AD, Young CP, et al. Long-term outcomes after transcatheter aortic valve implantation in high-risk patients with severe aortic stenosis: the U.K. TAVI (United Kingdom Transcatheter Aortic Valve Implantation) Registry. J Am Coll Cardiol. 2011;58(20):2130-8.
  • 3. Gilard M, Eltchaninoff H, Iung B, Donzeau-Gouge P, Chevreul K, Fajadet J, et al. Registry of transcatheter aortic-valve implantation in high-risk patients. N Engl J Med. 2012;366(18):1705-15.
  • 4. Thomas M, Schymik G, Walther T, Himbert D, Lefevre T, Treede H, et al. One-year outcomes of cohort 1 in the Edwards SAPIEN Aortic Bioprosthesis European Outcome (SOURCE) registry: the European registry of transcatheter aortic valve implantation using the Edwards SAPIEN valve. Circulation. 2011;124(4): 425-33.
  • 5. Tamburino C, Capodanno D, Ramondo A, Petronio AS, Ettori F, Santoro G, et al. Incidence and predictors of early and late mortality after transcatheter aortic valve implantation in 663 patients with severe aortic stenosis. Circulation. 2011; 123(3):299-308.
  • 6. Kodali SK, O'Neill WW, Moses JW, Williams M, Smith CR, Tuzcu M, et al. Early and late (one year) outcomes following transcatheter aortic valve implantation in patients with severe aortic stenosis (from the United States REVIVAL trial). Am J Cardiol. 2011;107(7):1058-64.
  • 7. Athappan G, Patvardhan E, Tuzcu EM, Svensson LG, Lemos PA, Fraccaro C, et al. Incidence, predictors, and outcomes of aortic regurgitation after transcatheter aortic valve replacement: meta-analysis and systematic review of literature. J Am Coll Cardiol. 2013;61(15):1585-95.
  • 8. Lerakis S, Hayek SS, Douglas PS. Paravalvular aortic leak after transcatheter aortic valve replacement: current knowledge. Circulation. 2013;127(3):397-407.
  • 9. Leon MB, Piazza N, Nikolsky E, Blackstone EH, Cutlip DE, Kappetein AP, et al. Standardized endpoint definitions for transcatheter aortic valve implantation clinical trials: a consensus report from the Valve Academic Research Consortium. Eur Heart J. 2011;32(2):205-17.
  • 10. Lluberas S, Siqueira D, Costa Jr. JR, Abizaid A, Ramos A, Le Bihan D, et al. Análise da incidência e preditores clínicos e ecocardiográficos do refluxo paraprotético aórtico após o implante de prótese aórtica transcateter. Rev Bras Cardiol Invasiva. 2013;21(2):103-8.
  • 11. Généreux P, Head SJ, Hahn R, Daneault B, Kodali S, Williams MR, et al. Paravalvular leak after transcatheter aortic valve replacement: the new Achilles' heel? A comprehensive review of the literature. J Am Coll Cardiol. 2013;61(11):1125-36.
  • 12. Hahn RT, Pibarot P, Stewart WJ, Weissman NJ, Gopalakrishnan D, Keane MG, et al. Comparison of transcatheter and surgical aortic valve replacement in severe aortic stenosis: a Longitudinal Study of Echocardiography Parameters in Cohort A of the PARTNER Trial (Placement of Aortic Transcatheter Valves). J Am Coll Cardiol. 2013;61(25):2514-21.
  • 13. Bonow RO, Lakatos E, Maron BJ, Epstein SE. Serial long-term assessment of the natural history of asymptomatic patients with chronic aortic regurgitation and normal left ventricular systolic function. Circulation. 1991;84(4):1625-35.
  • 14. Binder RK, Rodes-Cabau J, Wood DA, Mok M, Leipsic J, De Larochelliere R, et al. Transcatheter aortic valve replacement with the SAPIEN 3: a new balloon-expandable transcatheter heart valve. JACC Cardiovasc Interv. 2013;6(3):293-300.
  • 15. Bloomfield GS, Gillam LD, Hahn RT, Kapadia S, Leipsic J, Lerakis S, et al. A practical guide to multimodality imaging of transcatheter aortic valve replacement. JACC Cardiovasc Imaging. 2012;5(4):441-55.
  • 16. Hamdan A, Guetta V, Konen E, Goitein O, Segev A, Raanani E, et al. Deformation dynamics and mechanical properties of the aortic annulus by 4-dimensional computed tomography: insights into the functional anatomy of the aortic valve complex and implications for transcatheter aortic valve therapy. J Am Coll Cardiol. 2012;59(2):119-27.
  • Endereço para correspondência:
    Augusto D. Pichard
    MedStar Washington Hospital Center 110
    Irving St NW Washington
    District of Columbia, USA - 20010
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
    Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista - SBHCI R. Beira Rio, 45, 7o andar - Cj 71, 04548-050 São Paulo – SP, Tel. (55 11) 3849-5034, Fax (55 11) 4081-8727 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: sbhci@sbhci.org.br