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Reconstrução da região superior do dorso com retalho musculocutâneo do trapézio em V-Y baseado na artéria dorsal da escápula

■ RESUMO

Introdução:

Defeitos na região superior do dorso geralmente são de difícil tratamento, especialmente nos casos de exposição de vértebras, meninge ou material de síntese. O fechamento primário com retalho muscular ou musculocutâneo é a melhor escolha, mas a área doadora para tratar grandes defeitos pode requerer enxertia. A preservação da artéria dorsal da escápula parece assegurar um território cutâneo maior do que o do retalho musculocutâneo do trapézio clássico baseado apenas na artéria cervical transversa.

Método:

Foi concebida uma ampla ilha triangular de pele sobre o músculo trapézio baseado na artéria dorsal da escápula com transferência por movimento pendular e um procedimento tipo V-Y em cinco pacientes após a extirpação de tumores malignos.

Resultados:

Os defeitos e as áreas doadoras foram fechados primariamente com total viabilidade dos retalhos e não foram observadas complicações além da ocorrência de seroma.

Conclusão:

O retalho musculocutâneo do trapézio baseado na artéria dorsal da escápula oferece segurança no tratamento de exposição óssea na região superior do dorso.

Descritores:
Dorso; Músculos do dorso; Retalhos cirúrgicos; Retalho miocutâneo; Coluna vertebral; Procedimentos de cirurgia plástica

■ ABSTRACT

Introduction:

Defects in the upper region of the back are generally difficult to treat, especially in cases of exposure of vertebrae, meninges, or synthetic material. Primary closure with a muscular or musculocutaneous flap is the best choice, but the donor area to treat large defects may require grafting. Preservation of the dorsal artery of the scapula appears to ensure a larger cutaneous territory than that of the classic trapezius musculocutaneous flap based only on the transverse cervical artery.

Method:

A wide triangular island of skin was designed over the trapezius muscle based on the dorsal scapular artery with pendulum transfer and a V-Y type procedure in five patients after the extirpation of malignant tumors.

Results:

The defects and donor areas were closed primarily with full viability of the flaps and no complications were observed other than the occurrence of seroma.

Conclusion:

The trapezius musculocutaneous flap based on the dorsal artery of the scapula offers safety in the treatment of bone exposure in the upper back region.

Keywords:
Back; Back muscles; Surgical flaps; Myocutaneous flap; Spine; Plastic surgery procedures

INTRODUÇÃO

Defeitos de grandes dimensões na região superior do dorso, como nos casos de exposição de vértebras, nas úlceras de pressão ou naqueles que evoluem com deiscência e exposição de placas ou parafusos, podem ser de fechamento complexo, assim como nas exposições de meninge em mielomeningoceles altas. O tratamento convencional pode exigir grandes retalhos com enxertia de pele na área doadora e, por vezes, o tempo necessário para a suficiente granulação11 Mathes SJ, Nahai F. Reconstructive surgery: principles, anatomy and technique. 1st ed. New York: Churchill Livingstone; 1997. p. 651-77..

O músculo trapézio pode ser dividido em três partes: ascendente, transversa e descendente, com irrigação pelas artérias occipital, cervical transversa, dorsal da escápula e intercostais posteriores. De acordo com a classificação de Mathes & Nahai11 Mathes SJ, Nahai F. Reconstructive surgery: principles, anatomy and technique. 1st ed. New York: Churchill Livingstone; 1997. p. 651-77., essa vascularização é do tipo II baseada em um pedículo dominante, a artéria cervical transversa (ACT)11 Mathes SJ, Nahai F. Reconstructive surgery: principles, anatomy and technique. 1st ed. New York: Churchill Livingstone; 1997. p. 651-77..

Segundo Horch & Stark22 Horch RE, Stark GB. The contralateral bilobed trapezius myocutaneous flap for closure of large defects of the dorsal neck permitting primary donor site closure. Head Neck. 2000;22(5):513-9., após a extirpação de tumores, o tratamento ideal é o fechamento precoce e feito de eleição com retalho muscular, que leva à irrigação ao defeito.

O primeiro retalho musculocutâneo do trapézio foi descrito por Baek et al., em 1980, com aplicação em cabeça e pescoço, porém com limitações de vascularização que ainda são referidas em outras publicações11 Mathes SJ, Nahai F. Reconstructive surgery: principles, anatomy and technique. 1st ed. New York: Churchill Livingstone; 1997. p. 651-77.

2 Horch RE, Stark GB. The contralateral bilobed trapezius myocutaneous flap for closure of large defects of the dorsal neck permitting primary donor site closure. Head Neck. 2000;22(5):513-9.

3 Weiglein AH, Haas F, Pierer G. Anatomic basis of the lower trapezius musculocutaneous flap. Surg Radiol Anat. 1996;18(4):257-61.

4 Yang D, Morris SF. Trapezius muscle: anatomic basis for flap design. Ann Plast Surg. 1998;41(1):52-7.
-55 Netterville JL, Wood DE. The lower trapezius flap. Vascular anatomy and surgical technique. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 1991;117(1):73-6..

De acordo com os estudos de Weiglein et al.33 Weiglein AH, Haas F, Pierer G. Anatomic basis of the lower trapezius musculocutaneous flap. Surg Radiol Anat. 1996;18(4):257-61., a artéria dorsal da escápula (ADE) tem importância na garantia de um território cutâneo maior e sua preservação nos retalhos de trapézio pode incluí-la na classificação de tipo V de Mathes e Nahai.

Segundo Cormack & Lamberty66 Cormack GC, Lamberty BGH. The arterial anatomy of skin flaps. 2nd ed. New York: Churchill Livingstone; 1994. p. 324., a irrigação das partes ascendente e transversa do músculo é feita pelas artérias occipital e cervical transversa com ramos perfurantes para a pele que garantem um território cutâneo dentro dos limites anatômicos do músculo. Porém, na parte descendente, quando a porção cutânea ultrapassa em 5 centímetros o ângulo inferior da escápula, sofre e necrosa, pois a pele desta região é irrigada por perfurantes diretas da ADE que, embora tenha território cutâneo maior, não é preservada nos retalhos baseados na ACT22 Horch RE, Stark GB. The contralateral bilobed trapezius myocutaneous flap for closure of large defects of the dorsal neck permitting primary donor site closure. Head Neck. 2000;22(5):513-9.,66 Cormack GC, Lamberty BGH. The arterial anatomy of skin flaps. 2nd ed. New York: Churchill Livingstone; 1994. p. 324..

Yang & Morris44 Yang D, Morris SF. Trapezius muscle: anatomic basis for flap design. Ann Plast Surg. 1998;41(1):52-7. dissecaram 20 cadáveres e descreveram dois padrões de irrigação para a porção descendente do músculo trapézio e constataram a constância da ADE cujo território cutâneo é descrito com dimensões que ultrapassam os limites daquele atribuído à ACT, mas não estabeleceram seus limites.

Netterville & Wood55 Netterville JL, Wood DE. The lower trapezius flap. Vascular anatomy and surgical technique. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 1991;117(1):73-6. estudaram a irrigação do músculo trapézio e relataram o encontro da ADE como pedículo dominante em 15 lados de 30 dissecções, a ACT em 9 lados e em 6 lados a dominância de ambas as artérias. Os autores enfatizaram a importância da primeira na irrigação da porção musculocutânea caudal ao ângulo inferior da escápula.

Rocha et al.77 Rocha JLBS, Paiva GR, Rocha LCS. A artéria dorsal da escápula no terço inferior do músculo trapézio. Rev Bras Cir Plást. 2021;36(2):151-5. estudaram oito lados por dissecções em cadáveres e 60 lados por EcoDoppler em voluntários e constataram a constância da artéria dorsal da escápula com os dois padrões de trajeto já descritos. Verificaram que os dois padrões permitem a mobilização do retalho em composição musculocutânea com território cutâneo que ultrapassa os limites do músculo em seu terço inferior.

Tendo em vista estes conceitos e as dificuldades encontradas em casos de defeito na região superior do dorso, os autores planejaram um retalho musculocutâneo do trapézio que, com a preservação da artéria dorsal da escápula, assegurasse um território cutâneo de grandes dimensões e permitisse o fechamento primário da área doadora com mobilização em V-Y.

OBJETIVO

Tratar defeitos de grandes dimensões com exposição óssea na região superior do dorso com retalho musculocutâneo do trapézio com território cutâneo maior que o recomendado na literatura e fechar a área doadora primariamente com mobilização em V-Y.

MÉTODO

O protocolo deste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Vale do Sapucaí, sob o número 169/02, em 20 de agosto de 2002, e os procedimentos foram conduzidos no período de 2002 a 2012.

Cinco casos de pacientes sucessivos portadores de neoplasia maligna na região superior do dorso (Tabela 1) foram submetidos a biópsia incisional diagnóstica.

Tabela 1
Pacientes.

Por consentimento pós-informado aderiram ao protocolo e foram individualmente submetidos a extirpação do tumor.

Os procedimentos consistiram na confecção de uma ilha triangular de pele e subcutâneo à vizinhança do defeito e com uma parte de sua extensão sobre o músculo trapézio do lado escolhido, preservando as perfurantes da extremidade inferior provenientes da artéria dorsal da escápula. Em cada caso o músculo foi dissecado em sua parte descendente, liberado de suas origens vertebrais e inserções escapulares. Os vasos intercostais posteriores foram ligados com fio 4-0 de poliglactina 910 e seccionados sem o uso de termocautério. O músculo foi rebatido da margem medial para a lateral para permitir a identificação e preservação da ADE que penetra pela face profunda (Figuras 1 a 20).

Figura 1
(Caso 1): Carcinoma basocelular em região superior do dorso.

Figura 2
(Caso 1): Defeito de 8 x 8cm com exposição de vértebras.

Figura 3
(Caso 1): Ilha de pele e subcutâneo sobre a porção inferior do músculo trapézio esquerdo.

Figura 4
(Caso 1): Músculo rebatido e artéria dorsal da escápula preservada. A ilha de pele ultrapassa as dimensões do músculo e a linha média.

Figura 5
(Caso 1): Rotação do músculo com transferência da ilha de pele para o defeito. A seta indica a artéria dorsal da escápula no pivô da rotação.

Figura 6
(Caso 1): Retalho transferido e área doadora fechada em V-Y.

Figura 7
(Caso 2): Carcinoma basocelular em transição toracocervical.

Os retalhos foram transferidos por rotação do músculo de modo a promover, num movimento pendular, o avanço da ilha de pele para o defeito e fechamento em V-Y. Os descolamentos foram drenados com aspiração contínua por três dias.

RESULTADOS

Todos os espécimes foram estudados e apresentaram margens livres de tumor.

Não houve complicações relativas à anestesia nem ao procedimento operatório, exceto pela ocorrência de seroma que foi constatado e drenado ambulatorialmente na segunda semana de pós-operatório nos dois primeiros casos, a despeito do uso do dreno.

Os pontos da pele foram removidos entre o 10º e o 15º dias.

Nos cinco casos, os retalhos evoluíram sem sofrimento e foram suficientes para tratar defeitos de grandes dimensões (Tabela 1).

DISCUSSÃO

Os pedículos foram facilmente identificados nos dois padrões anatômicos da ADE e preservados11 Mathes SJ, Nahai F. Reconstructive surgery: principles, anatomy and technique. 1st ed. New York: Churchill Livingstone; 1997. p. 651-77.,33 Weiglein AH, Haas F, Pierer G. Anatomic basis of the lower trapezius musculocutaneous flap. Surg Radiol Anat. 1996;18(4):257-61.,44 Yang D, Morris SF. Trapezius muscle: anatomic basis for flap design. Ann Plast Surg. 1998;41(1):52-7..

A preservação da ADE não dificultou o arco de rotação do retalho, uma vez que os retalhos foram desenhados distalmente aos defeitos e mobilizados no sentido cefálico, aproximando-se da origem dos vasos22 Horch RE, Stark GB. The contralateral bilobed trapezius myocutaneous flap for closure of large defects of the dorsal neck permitting primary donor site closure. Head Neck. 2000;22(5):513-9.,44 Yang D, Morris SF. Trapezius muscle: anatomic basis for flap design. Ann Plast Surg. 1998;41(1):52-7.

5 Netterville JL, Wood DE. The lower trapezius flap. Vascular anatomy and surgical technique. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 1991;117(1):73-6.

6 Cormack GC, Lamberty BGH. The arterial anatomy of skin flaps. 2nd ed. New York: Churchill Livingstone; 1994. p. 324.
-77 Rocha JLBS, Paiva GR, Rocha LCS. A artéria dorsal da escápula no terço inferior do músculo trapézio. Rev Bras Cir Plást. 2021;36(2):151-5..

Em todos os casos o território cutâneo ultrapassou os limites longitudinal e transverso, diferentemente das recomendações desencorajadoras descritas na literatura como características dos retalhos baseados na ACT. A viabilidade ficou demonstrada muito além dos 5cm caudais à ponta da escápula e da dimensão do músculo trapézio e, até mesmo, além da linha média do dorso22 Horch RE, Stark GB. The contralateral bilobed trapezius myocutaneous flap for closure of large defects of the dorsal neck permitting primary donor site closure. Head Neck. 2000;22(5):513-9.,44 Yang D, Morris SF. Trapezius muscle: anatomic basis for flap design. Ann Plast Surg. 1998;41(1):52-7.,66 Cormack GC, Lamberty BGH. The arterial anatomy of skin flaps. 2nd ed. New York: Churchill Livingstone; 1994. p. 324.,77 Rocha JLBS, Paiva GR, Rocha LCS. A artéria dorsal da escápula no terço inferior do músculo trapézio. Rev Bras Cir Plást. 2021;36(2):151-5..

A extensão do território cutâneo obtido com a preservação da ADE permitiu a confecção da ilha de pele com formato alongado, conveniente para o fechamento em V-Y, atenuando a tensão na área doadora e as dimensões do pedículo permitiram a mobilização da ilha para defeitos até a quarta vértebra cervical e acima da espinha da escápula (Figuras 8, 9, 10, 18, 19, 20).

Figura 8
(Caso 2): Defeito de 9 x 9cm com exposição de vértebras.

Figura 9
(Caso 2): Retalho com ilha de pele que ultrapassa os limites do músculo. A seta indica a artéria dorsal da escápula penetrando a face profunda do músculo.

Figura 10
(Caso 2): Retalho suturado no defeito e área doadora fechada em V-Y.

Figura 11
(Caso 3): Dermatofibrossarcoma em região superior do dorso.

Figura 12
(Caso 3): Defeito de 10 x16cm com exposição de vértebras e escápula direita.

Figura 13
(Caso 3): Retalho com ilha de pele que ultrapassa os limites do músculo e a linha média. A seta indica a artéria dorsal da escápula penetrando a face profunda do músculo.

Figura 14
(Caso 3): Terceiro dia pós-operatório. Retalho suturado no defeito e área doadora fechada em V-Y.

Figura 15
(Caso 4): Carcinoma basocelular em transição toracocervical.

Figura 16
(Caso 4): Defeito de 10 x 9cm com exposição de vértebras.

Figura 17
(Caso 4): Terceiro mês pós-operatório.

Figura 18
(Caso 5): Carcinoma basocelular semeado por tatuagem ornamental.

Figura 19
(Caso 5): Defeito de 10 x 14cm com remoção da porção transversa do músculo trapézio e da artéria cervical transversa (ACT), sendo preservada somente a artéria dorsal da escápula (ADE).

Figura 20
(Caso 5): Quarta semana pós-operatória.

O retalho em V-Y tem a virtude de transferir grande território cutâneo e tratar a área doadora simultaneamente, pela redistribuição da ilha cutânea, diferentemente dos retalhos de transposição, habitualmente confeccionados com o músculo trapézio.

A inervação motora, pelo XI nervo craniano, da porção ascendente do músculo foi preservada e manteve o movimento de elevação da escápula em todos os casos.

CONCLUSÃO

O retalho musculocutâneo ilhado do trapézio baseado na ADE é seguro e pode ser transferido em V-Y com fechamento primário da área doadora para os casos de defeito com exposição óssea na região superior do dorso.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Mathes SJ, Nahai F. Reconstructive surgery: principles, anatomy and technique. 1st ed. New York: Churchill Livingstone; 1997. p. 651-77.
  • 2
    Horch RE, Stark GB. The contralateral bilobed trapezius myocutaneous flap for closure of large defects of the dorsal neck permitting primary donor site closure. Head Neck. 2000;22(5):513-9.
  • 3
    Weiglein AH, Haas F, Pierer G. Anatomic basis of the lower trapezius musculocutaneous flap. Surg Radiol Anat. 1996;18(4):257-61.
  • 4
    Yang D, Morris SF. Trapezius muscle: anatomic basis for flap design. Ann Plast Surg. 1998;41(1):52-7.
  • 5
    Netterville JL, Wood DE. The lower trapezius flap. Vascular anatomy and surgical technique. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 1991;117(1):73-6.
  • 6
    Cormack GC, Lamberty BGH. The arterial anatomy of skin flaps. 2nd ed. New York: Churchill Livingstone; 1994. p. 324.
  • 7
    Rocha JLBS, Paiva GR, Rocha LCS. A artéria dorsal da escápula no terço inferior do músculo trapézio. Rev Bras Cir Plást. 2021;36(2):151-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2023
  • Aceito
    04 Fev 2024
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