A influência política dos grandes proprietários de terra no Brasil é de longa data. Passando pelo período colonial, imperial ou republicano, os latifundiários exerceram, ou ainda exercem, poder considerável. Alguns clássicos da literatura já procuraram demonstrar a amplitude do poderio desses indivíduos. A começar por Raymundo Faoro, autor de Os donos do poder (publicado em 1958), que aborda toda a história luso-brasileira desde 1385, argumentando como se formou uma estrutura de dominação no Estado patrimonialista português, que foi transferida para o Brasil. Durante grande parte desse período, ele argumenta que certo "estamento burocrático" fez o possível para ganhar ascendência sobre o resto da sociedade e que sua vitória parecia mais clara no reinado de Dom Pedro II, uma vez que, segundo Faoro, os conservadores venciam os liberais, os quais o autor identificava como os proprietários de terra. No entanto, a República inverteria essa lógica, colocando os fazendeiros no poder. A extensa obra de Raymundo Faoro tornou-se um clássico na historiografia, muito embora tenha sido criticada e questionada posteriormente. Um de seus críticos, Richard Graham, argumentou que as autoridades, fossem elas nacionais ou locais, sempre foram muito sensíveis aos interesses agrários, mesmo quando não eram elas próprias as proprietárias de terra.
Outro texto clássico acerca da influência dos donos de terra foi publicado em 1948 por Victor Nunes Leal. Coronelismo, enxada e voto é ainda hoje importante referência no debate sobre o coronelismo no Brasil. No entanto, diferentemente da abordagem mais ampla e nacional de Raymundo Faoro, Leal se dedicou ao estudo do poderio exercido por proprietários de terra em âmbito municipal. Os fazendeiros conquistaram legalmente o título de coronel ainda no Império, mesmo sem estarem vinculados à carreira militar, e, na República, foram elementos fundamentais no funcionamento de uma estrutura de dominação criada no governo do presidente Campos Sales chamada de "política dos governadores".
Esses exemplos bibliográficos apenas ilustram a produção acadêmica clássica sobre o poder acompanhado da posse de terra na história do Brasil. Uma leitura rápida de nosso passado já é capaz de nos oferecer uma compreensão satisfatória do poder da terra. Para isso, basta lembrar que o Brasil colônia foi dividido em capitanias hereditárias e que sua produtividade era fundamentada pelo sistema de plantation, ou seja, grandes latifúndios produzindo para a metrópole Portugal. Outro elemento já datado dessa época oferece uma compreensão também para os séculos seguintes: a monocultura. Se, no período colonial, a cana-de-açúcar era o principal produto dessas terras, o café seria o novo protagonista da monocultura durante o Império e a Primeira República. Ou seja, durante mais de quatro séculos nossa economia foi pautada pela produção agrária monocultora, nos revelando muito sobre o poder que esses proprietários de terra viriam a exercer até hoje no Brasil.
Muito embora a economia brasileira tenha se dinamizado a partir da era Vargas, a monocultura tenha sido superada e a industrialização tenha ganhado espaço, são as commodities que ainda representam grande parte das nossas exportações. Café, soja, laranja e gado estão entre os principais responsáveis pelo nosso crescimento econômico e pela inserção do país no mercado internacional. Ainda que a figura do coronel já não seja mais tão evidente na sociedade brasileira, os proprietários de terra mantiveram seu espaço político brigando por seus interesses e privilégios no Congresso Nacional. É isso que o livro do jornalista Alceu Luís Castilho, publicado em 2012 pela editora Contexto, vem demonstrar. Com base em quase 13 mil declarações de bens entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de políticos eleitos, Castilho fez um mapeamento preciso dos donos de terra no país, revelando dados e histórias surpreendentes de quem são, quanto eles têm e de como eles agem. Sua pesquisa considerou os políticos eleitos em 2008 e em 2010, ou seja, incorporou os níveis federal, estadual e municipal. Ainda que o autor declare não se tratar de uma obra acadêmica, sua pesquisa analisa uma grande quantidade de dados que são valiosos para a Ciência Política e também para a recente história brasileira, revelando casos de desigualdade, violência, abuso de poder, corrupção e de agressão ao meio ambiente.
O livro está dividido em cinco partes, com abordagens sobre o território, o dinheiro, a política, o ambiente e os que denomina excluídos. No decorrer de suas 240 páginas, a obra revela nomes e partidos que protagonizam casos de agressividade, desrespeito, exploração e, sobretudo, impunidade. Sua leitura expande consideravelmente nossa capacidade de interpretação da política atual e de seus bastidores. Entendemos também que os interesses pessoais estão, na maioria das vezes, acima de qualquer ideologia.
Partido da terra oferece muitas contribuições sobre a realidade que nos cerca. Em primeiro lugar, revela que o arco do desmatamento, que também inclui matança de camponeses e trabalho escravo, coincide com o arco de posse de terras dos políticos latifundiários. Esses políticos com muitas terras estão espalhados por quase todos os partidos, sejam eles mais afeitos à direita ou à esquerda. Nesse sentido, PMDB, PSDB e PR são os líderes dos proprietários com mais hectares no país. Uma tendência natural, uma vez que inclui partidos oriundos da extinta ARENA, que congregava no período de 1965 a 1979 grande parte dos latifundiários. No entanto, partidos criados em um contexto mais urbano e identificados com uma ideologia mais à esquerda, como PPS, PSB e PT, também passaram a contar em seus quadros com proprietários de terras, configurando uma nascente "esquerda latifundiária".
A primeira parte do livro apresenta uma radiografia, nas palavras do próprio Castilho, da posse de terra dos políticos. O autor levantou 2,03 milhões de hectares declarados no TSE, no valor de 1,37 bilhão de reais. Mas, segundo estimativas, cerca de mais 1 milhão de hectares não foi declarado, apresentando somente o valor total de 0,785 bilhão de reais. Em síntese, considera-se que os políticos eleitos em 2008 e em 2010 são proprietários de 3,3 milhões de hectares, o que resulta em 2,16 bilhão de reais. Ainda sim, esses dados são baseados apenas em declarações formais feitas ao TSE nos respectivos anos, já que, além daqueles que não declararam a extensão de suas propriedades, há políticos que declararam valores extremamente questionáveis de suas terras. Dentro desse grupo pesquisado, 31 políticos apareceram com propriedades de mais de 10 mil hectares cada e estão distribuídos da seguinte forma: seis do PSDB, seis do PR, seis do PMDB, três do PP, dois do DEM, dois do PPS, dois do PDT, um do PT, um do PSB e um do PTB.
Outro fenômeno curioso sobre a propriedade de terras é que os políticos brasileiros possuem mais de 375 mil hectares fora de suas respectivas Unidades da Federação. Essas informações revelam a ocupação do Norte e do Centro-Oeste por políticos de outras regiões do país, sejam eles deputados, governadores, senadores ou prefeitos. Uma das localidades mais exploradas é o estado do Pará, onde a pecuária ocupa posição central nos conflitos por terra e nas ameaças de desmatamento da Amazônia legal. E, particularmente, o estado possui um dono que é velho conhecido dos brasileiros, Jader Barbalho (PMDB). Este declarou ao TSE em 2010 uma fortuna de 4,58 milhões de reais, valor extremamente defasado porque o político não tem o hábito de atualizá-lo. Suas fazendas somam 13 mil hectares.
A segunda parte do livro define melhor os personagens que conquistaram o território brasileiro e como eles se comportam. Podemos conhecer algumas histórias pitorescas de políticos que declararam suas terras ao TSE com o valor de menos de 5 reais por hectare. São 46 propriedades nessa condição. Alguns políticos apresentaram tamanho nível de prosperidade que poderiam ser exemplo de empreendedorismo. Como é o caso de Newton Cardoso (PMDB), que teria um patrimônio de 150 milhões de reais, e de Renan Calheiros (PMDB), que justificou seu grande enriquecimento com o negócio do gado. Por sua vez, o livro relata as 25 maiores empresas do agronegócio no país, com atividades que passam pela criação de frango, pelo plantio de soja e de feijão, pela criação de gado e também pela mineração. O gado, em destaque, inclui 500 mil cabeças de propriedade dos políticos, estando um terço delas concentrado nas mãos de apenas 15 políticos. O "rei do gado" entre os políticos é Nilo Coelho (PP), seguido muito de perto de Humberto Coutinho (PDT).
A terceira parte do livro possui detalhes sobre a bancada ruralista, mostrando como ela vota, o financiamento de campanhas e o posicionamento perante o Código Florestal. Um levantamento de 2010 mostrou que um grupo de 266 deputados e senadores eleitos no mesmo ano compunham a chamada bancada ruralista, dos quais 59% estavam na base aliada do governo. Castilho critica aqueles que acreditam que a bancada ruralista é superestimada e defende seu argumento de que ela é, na verdade, subestimada. Ele a considera quase uma instituição com letra maiúscula que age em função de interesses privados, mais especificamente, do agronegócio. Em última instância, representam ainda algo pior, um "Congresso Ruralista", como reflexo de uma sociedade patrimonialista, clientelista e violenta. Mesmo deputados e senadores multados pelo Ibama participaram diretamente das decisões sobre as mudanças no Código Florestal brasileiro. Entre outras coisas, o resultado final reduziu a porcentagem da área impedida de desmatamento na Amazônia legal, reduziu o limite de exploração próxima a margens de rios de 30 para 15 metros e concedeu anistia a multas aplicadas pelo Ibama antes de julho de 2008.
Não bastassem todas essas conquistas da bancada ruralista, Castilho demonstra como famílias se perpetuam no poder, transmitindo propriedades e influências de geração para geração e dominando até municípios inteiros. Neste ponto, o autor utiliza o conceito de coronelismo para comentar sobre o poder local de políticos e de suas famílias, baseando-se na referência teórica de Victor Nunes Leal. Ao mesmo tempo que se constroem redes de influência e dominação com pessoas comuns, constrói-se também uma rede de relações com empresas que injetam rios de dinheiro nas campanhas. Essas empresas financiam políticos que são eleitos a cada dois anos nos diferentes níveis para representar seus interesses. Algumas delas já foram, inclusive, acusadas de crimes ambientais, trabalho escravo e outras irregularidades. São elas: a Xinguara Indústria e Comércio Ltda. e a COSAN, que, sozinha, financiou em 2010 a campanha de 22 candidatos à Câmara dos Deputados, 15 candidatos a deputados estaduais, dois governadores e dois senadores. O grupo FRIBOI investiu 30 milhões de reais em campanhas políticas de 2010. Entre os partidos mais beneficiados estavam PTB e PR, o que revela uma característica curiosa: os dois partidos estão entre os maiores proprietários de terras no Congresso Nacional, logo, quem tem mais terra recebe mais dinheiro das empresas.
A quarta parte do livro aborda a questão ambiental e aponta um levantamento inédito: 69 madeireiras e serrarias pertencem a mais de 60 políticos. Neste quesito, muitas dessas empresas não têm o menor pudor na exploração da Amazônia. Há casos graves no Pará, em Rondônia, no Mato Grosso e no estado do Amazonas. Como já comentado, o arco do desmatamento coincide com o arco de posses e de expansões das empresas de políticos brasileiros.
Por fim, a quinta parte do livro discorre sobre a exploração de seres humanos tratados como escravos. Lamentavelmente, a lista de políticos enquadrados em suspeitas ou que estão sendo julgados por esse tipo de crime é grande. Mais assustador ainda é saber que os casos se espalham por todas as regiões do país. Quando os interesses privados são diretamente questionados, a morte é um recurso não incomum. Há casos emblemáticos em nossa história recente como os assassinatos de Chico Mendes, da missionário Dorothy Stang, os massacres de Corumbiara e de Eldorado do Carajás e a execução de líderes camponeses na Paraíba. Todos casos narrados nessa parte do livro, revelando o envolvimento dos políticos em cada situação. E, completando o grupo daqueles que o autor chama de excluídos, estão os ameaçados, pessoas que estão sob a mira de jagunços de prefeitos e deputados.
Em suma, Alceu Luís Castilho narra uma história política e também de políticos que possuem parte considerável do território brasileiro. Seguindo uma linha já explorada em outras pesquisas acadêmicas, demonstra que a rede de poder começa no poder local e se estende até a capital federal. O autor defende a tese de que existe mais do que uma bancada ruralista no Brasil, existe, sim, um sistema político ruralista. Sua obra nos traz importantes dados e informações que enriquecem nosso conhecimento sobre as origens agrárias do Estado brasileiro, para recordar outro grande clássico da literatura brasileira de autoria de Octavio Ianni: Origens agrárias do Estado brasileiro, publicado em 1984.
Referências bibliográficas
- FAORO, Raymundo (2012 [1958]). Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo: Globo.
- IANNI, Octavio (1984). Origens agrárias do Estado brasileiro. São Paulo: Brasiliense.
- LEAL, Victor Nunes (2012 [1948]). Coronelismo, enxada e voto - o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2015
Histórico
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Recebido
28 Out 2014 -
Aceito
29 Nov 2014