Resumo:
Ao reexaminar os célebres ensaios de interpretação de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre, publicados originalmente entre os anos 1930 e meados da década de 1940, o artigo explora suas afinidades em torno de dois aspectos conexos: de um lado, as conotações que, implícita ou explicitamente, a categoria tempo assume em suas cogitações acerca da vida social brasileira; e, de outro, as maneiras pelas quais tais acepções prefiguram os horizontes de imaginação dos intérpretes a propósito do estatuto e da condição do Brasil na cena moderna. Ao final, discorro sobre as simetrias entre essas representações do país, alusivas a uma temporalidade apenas em parte sincronizada à cadência moderna, e certo imaginário social e político da modernidade.
Palavras-chave:
Caio Prado Jr.; Gilberto Freyre; Sérgio Buarque de Holanda; pensamento social brasileiro; modernidade no Brasil
Abstract:
By reexamining some of the most prestigious essays originally published by Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr and Gilberto Freyre between the early 1930s and the mid-1940s, the article probes into their interpretative affinities around two correlated questions: on the one hand, the conceptions of time that implicitly or explicitly underlie their views on the intricacies of Brazilian social life and, on the other hand, how such notions predetermine their ideas about the asymmetric place and the particular condition of this society in the modern world. I conclude by examining the correspondences and symmetries between these authors’ representations of Brazil, showing that they tend to allude to a temporality that is only partially in synchrony with social and political visions of modernity.
Keywords:
Caio Prado Jr.; Gilberto Freyre; Sérgio Buarque de Holanda; Brazilian social thought; modernity in Brazil
Introdução3 3 O presente artigo é fruto do projeto de pesquisa 303189/2019-3 (CNPq). Um agradecimento especial às/aos pareceristas anônimas/os da RBCP pelos valiosos comentários e sugestões, os quais busquei contemplar ao longo do trabalho.
Dentre os mais conceituados ensaios do pensamento social e político brasileiro que apareceram entre os anos 1930 e início da década de 1940, Raízes do Brasil, Casa-grande & Senzala e Formação do Brasil contemporâneo, ao lado de Sobrados e mucambos e História econômica do Brasil, figuram entre aqueles que, mesmo ao cabo de tantas polêmicas, continuam a suscitar imenso interesse de pesquisa. Nessa variegada constelação de ideias, é patente o zelo devotado à conjunção de fatores e às dinâmicas que desaguariam na formação nacional; mas também às transformações que, posteriormente, precipitaram a aproximação dessa experiência aos termos políticos, sociais e culturais da modernidade - destaque feito ao ordenamento político democrático-liberal, à economia urbano-industrial e à racionalização cognitiva e ético-moral. Para os propósitos deste artigo, importa sobremaneira o fato de tais obras partilharem uma agenda intelectual conexa a certa problemática cara à teoria social contemporânea, a saber, a questão da temporalidade distintiva da vida moderna.
Com efeito, não é nada fortuito que, já na Introdução de seu prestigiado trabalho de 1942, Caio Prado Jr. assevere que “Uma viagem pelo Brasil é muitas vezes [...] uma incursão pela história de um século e mais para trás” (PRADO JR., 2011PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011., p. 11). Essa famosa asserção, a seu modo sugestiva do desconforto quanto à pertinência da concepção contínua e progressiva do tempo ao itinerário nacional, traz a lume uma inquietude latente em toda a obra, qual seja, que fragmentos ou mesmo porções inteiras do passado insistiam em perpetuar-se no presente do país, condicionando seu devir de maneira contumaz. É certo que vários dos enunciados do ensaio guardam dessemelhanças marcantes com relação às proposições de Gilberto Freyre, à sua vez igualmente díspares das cogitações de Sérgio Buarque de Holanda acerca da gênese e modernização brasileiras. Considerada a magnitude de suas discórdias,4 4 Desavenças essas, nunca é demais recapitular, extensivas tanto às maneiras com que valoravam (negativa ou positivamente) as criações sociais da modernidade, quanto como cada um dos autores ansiava (ou não) sua aderência ao país. não seria exagero dizer que a fortuna crítica inclinou-se a tratá-los como responsáveis por empreendimentos interpretativos inconfundíveis em seus aspectos mais fundamentais (e.g., GRECO, 2001GRECO, Heloisa. O “passado que nos cerca” e a promessa do futuro: considerações sobre a questão da cidadania em Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Fronteiras: Revista de História, Campo Grande, MS, v. 5, n. 10, p 63-80, 2001., p. 73-78; MONTEIRO, 2015MONTEIRO, Pedro. Raízes rurais da família brasileira: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. In: Monteiro, Pedro. Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil. São Paulo: Hucitec, 2015. p. 54-77.; MOSCATELI, 2000MOSCATELI, Renato. Um redescobrimento historiográfico do Brasil. Revista de História Regional, v. 5, n. 1, p. 187-201, 2000.). Admitidas suas especificidades - normativo-ideológicas, é claro, mas também epistemológicas e teórico-metodológicas -, não se poderia, contudo, subestimar uma zona de confluência deveras importante: a noção segundo a qual além da demora com que aqui aportaram, os parâmetros societários e institucionais modernos - leia-se, o tipo de dominação racional-legal e seus expedientes e aparatos de administração característicos, as relações capitalistas de produção, visões de mundo secularizadas, os códigos impessoais de sociabilidade, a subjetivação, etc. - teriam enfrentado uma série de entraves para vicejar e, por fim, ganhar eficácia no tecido societário. Nas páginas que se seguem, ao revisitar esse cabedal intricado de ideias, em vez de debruçar-me uma vez mais sobre suas conhecidas divergências, almejo apurar as afinidades de Holanda, Freyre e Prado Jr. em torno de dois aspectos interligados: de um lado, as acepções que, de modo implícito ou explícito, o tempo assume em suas célebres lucubrações e, de outro, as maneiras pelas quais tais compreensões delimitam o escopo de percepção das obras a propósito do estatuto e da condição do país na modernidade.
A circunspeção dos autores pelos ingredientes e fisionomia pretensamente especiais da sociedade brasileira - isto é, por seus arranjos políticos e processos materiais alegadamente particulares, pelas faculdades mentais e comportamentais imputadas às suas gentes, bem como pelas propriedades físico-ambientais entrevistas no território nacional - é um dado bastante destacado por estudiosas/os. Pois bem, parece-me evidente que, malgrado as dimensões próprias a cada caso, os retratos do Brasil delineados nos ensaios supramencionados convergem em dois sentidos decisivos: refiro-me, em primeiro lugar, ao fato de que os atributos (políticos, culturais, econômicos, raciais, psíquicos, ambientais, etc.) no mais das vezes divisados nessa sociedade não raro adquirem conotações cronológicas em suas formulações; e, em segundo lugar, uma vez temporalizadas, tais propaladas qualidades diferenciais são sub-repticiamente convertidas em índices de decalagens vis-à-vis os cenários modernos modelares. Como pretendo desenvolver nas páginas que se seguem, imbricado com essa discussão, há um problema de pesquisa que, conquanto de modo algum desconhecido, permanece subavaliado pela crítica, qual seja, as simetrias e convergências entre tais representações da vida social brasileira e o imaginário social e político hegemônico da modernidade. Ao longo do artigo, ambiciono sustentar que, contabilizadas suas peculiaridades e discordâncias, os esforços de intelecção envidados pelos três pensadores mantêm-se presos a um quadro de referência cognitivo que Hans Gumbrecht (2015)GUMBRECHT, Hans. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp, 2015. nomeia de “cronótopo” do “pensamento/consciência histórica”,5 5 Também denominado por Gumbrecht (2015, p. 14-15; p. 65; p. 102-103) de “cronótopo do progresso” ou de “cronótopo historicista”, tratar-se-ia de um enquadramento cognitivo conforme o qual o tempo avança de forma contínua e “linear”, apartando-se cada vez mais do “passado” e nos colocando em permanente “transformação”. Disso advém a imagem de uma experiência histórica cujo “presente” é tênue e fugaz, a todo momento ofuscado pelas perspectivas de “futuro” distendidas pela ação racional. cujo suposto fundamental é uma concepção de-substancializada, uniforme e progressiva do tempo (CHAKRABARTY, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2000.; CHATTERJEE, 2008CHATTERJEE, Partha. La nación en tiempo heterogéneo: y otros estudios subalternos. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.; GIDDENS, 1991GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991.; GUMBRECHT, 2015GUMBRECHT, Hans. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp, 2015.; ZERUBAVEL, 1982ZERUBAVEL, Eviatar. The standardization of time: A sociohistorical perspective. American Journal of Sociology, v. 88, n. p. 1-23, 1982.). A meu ver, de maneira furtiva, tal pressuposto prefigura e orienta o entendimento das obras acerca do ordenamento temporal atribuído à experiência brasileira - como bem se sabe, a julgar por seus enunciados, apenas em parte amoldado pela e sincronizado à temporalidade moderna.6 6 Minha intenção aqui é adensar e desdobrar uma discussão que apenas iniciei alhures (TAVOLARO, 2021; TAVOLARO, 2020; TAVOLARO, 2017a; TAVOLARO, 2014).
Antes de iniciar a análise, há duas questões que precisam ser explicitadas: de um lado, o estatuto e a abrangência disciplinares dessas formulações e preocupações inscritas no pensamento brasileiro; de outro, a eventual redundância da investigação de obras a esta altura já tão profundamente discutidas. Quanto à primeira, é verdade que os trabalhos em tela tenderam a ganhar maior circulação no campo sociológico em comparação com a ciência política ou mesmo a antropologia. Seja como for, isso não constitui indício da relevância prioritária desses intérpretes e de suas ideias a esta ou àquela subárea das ciências sociais em virtude de eventuais convergências inerentes ou de quaisquer afinidades temáticas intrínsecas. Está claro que as assim denominadas interpretações do Brasil compreendem um universo difuso e multifacetado de elaborações que infringe fronteiras disciplinares estritas (BRANDÃO, 2007BRANDÃO, Gildo. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007., p. 21-27; BOTELHO; SCHWARCZ, 2009BOTELHO, André.; SCHWARCZ, Lília (orgs.). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Cia. das Letras, 2009., p. 11-17). Nesse particular, parece-me que as controvérsias em torno dos alicerces epistemológicos que circunscrevem e direcionam as imagens da vida nacional aqui examinadas trazem consigo uma valia especial: dada a impossibilidade de confinar o exercício em qualquer uma daquelas subáreas, o tratamento dessa matéria por si só representa um incentivo à transposição de balizas cognitivas convencionais que, não raro, obstam a elucidação das mudanças (político-institucionais, ético-normativas e econômico-culturais) que acompanharam a modernização do país. Mutatis mutandis, a despeito de sua presença marcante na sociologia, tampouco a problemática da temporalidade moderna poderia ser relacionada com exclusividade a essa disciplina. De outro modo, ao nos debruçamos sobre a produção a seu respeito, somos irremediavelmente transportados a uma agenda intelectual cujo alcance é mais amplo, concernente ao próprio imaginário político e social da modernidade.
No tocante à segunda questão, a densidade dos debates ainda hoje instigados pela fatura de Holanda, Prado Jr. e Freyre, figuras-chave da assim chamada geração de 1930, é um forte indicativo do vigor e da aderência continuada de suas imagens do Brasil. De todo modo, se é que o anseio por explorar suas afinidades respalda a percepção de que de fato contribuíram para uma guinada importante no pensamento brasileiro (CANDIDO, 1967/1994CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1967/1994. p. XXXIX-L; CARDOSO, 1993CARDOSO, Fernando H. Livros que inventaram o Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 37, p. 21-35, 1993.), nem por isso quer-se tão só reiterar, com outros termos, pontos de vista há muito sedimentados. É sintomático que o próprio status de “clássico” ou de “cânone”, antes incontroverso, encontre-se atualmente sob grande tensão; e que inúmeros trabalhos do passado, outrora aclamados, tenham se tornado foco crescente de escrutínios, preocupados tanto com suas condições de possibilidade quanto com os impasses, contradições e insuficiências de suas proposições. Animado por esse mesmo espírito e informado por programas de reflexão da teoria social contemporânea (e.g., CHAKRABARTY, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2000.; GUMBRECHT, 2015GUMBRECHT, Hans. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp, 2015.; HALL, 2011HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.; ROSA, 2013ROSA, Hartmut. Social acceleration: a new theory of modernity. New York: Columbia University Press, 2013.), o intuito do artigo é perscrutar, desde um viés crítico, uma faceta de suas ideias que, embora conhecida (e.g., SOUZA, 1998SOUZA, Jessé. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 38, 1998. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300006. Acesso em: 6 nov. 2021.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909199800...
; VIANNA, 1999VIANNA, Luís Werneck. Weber e a interpretação do Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 1, n. 53, p. 33-47, 1999.; VILLAS-BOAS, 2003VILLAS-BÔAS, Gláucia. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: KOSMINSKY, Ethel; LÉPINE, Claude; PEIXOTO, Fernanda (orgs). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru: Edusc, 2003. p. 115-134., e outros aqui interpelados), não me parece exaurida pela fortuna.
A imaginação político-social da modernidade e sua temporalidade
É preciso já de partida reconhecer que, longe de se restringirem a essa tríade de intérpretes, considerações a respeito das alardeadas discrepâncias e idiossincrasias nacionais são recorrentes em inúmeras coortes do pensamento brasileiro. Grosso modo, sobressai-se nessa produção o sentimento de descompasso ante o ritmo crescentemente progressivo da modernidade (LAGE, 2016LAGE, Victor. Interpretations of Brazil, contemporary (de)formations. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) - Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.; LIMA, 2013LIMA, Nísia. Um sertão chamado Brasil. São Paulo: Hucitec Editora, 2013.; TAVOLARO, 2021TAVOLARO, Sergio B. F. Interpretações do Brasil e a temporalidade moderna: do sentimento de descompasso à crítica epistemológica. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 36, n. 3, p. 1059-1081, 2021.; TAVOLARO, 2020TAVOLARO, Sergio B. F. Stasis, motion and acceleration: the senses and connotations of time in Raízes do Brazil and Sobrados and Mucambos (1936). Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 243-266, 2020.; TAVOLARO, 2017bTAVOLARO, Sergio B. F. Retratos não-modelares da modernidade: hegemonia e contra-hegemonia no pensamento brasileiro. Civitas - Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 17, n. 3, p. 115-141, 2017b.; VILLAS-BOAS, 2003VILLAS-BÔAS, Gláucia. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: KOSMINSKY, Ethel; LÉPINE, Claude; PEIXOTO, Fernanda (orgs). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru: Edusc, 2003. p. 115-134.). Não admira, pois, a ubiquidade da preocupação com o “atraso” (BASTOS, 2014BASTOS, Elide. A construção do debate sociológico no Brasil. Ideias - Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, v. 4, p. 287-300, 2014., p. 288; SOUZA, 1998SOUZA, Jessé. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 38, 1998. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300006. Acesso em: 6 nov. 2021.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909199800...
, n.p; VIANNA, 1999VIANNA, Luís Werneck. Weber e a interpretação do Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 1, n. 53, p. 33-47, 1999., p. 34-35), ditando agendas de reflexão que, com bastante regularidade, acentuam a sensação de dissonância do Brasil em comparação com as ditas “sociedades metropolitanas, centrais” (BASTOS, 2014BASTOS, Elide. A construção do debate sociológico no Brasil. Ideias - Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, v. 4, p. 287-300, 2014., p. 288; SCHWARZ, 1987SCHWARZ, Roberto. Que horas são? ensaios. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.; SOUZA, 1998SOUZA, Jessé. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 38, 1998. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300006. Acesso em: 6 nov. 2021.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909199800...
; VIANNA, 1999VIANNA, Luís Werneck. Weber e a interpretação do Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 1, n. 53, p. 33-47, 1999.).7
7
Nessa direção, Schwarz (1987, p. 30) refere-se ao “sentimento da contradição entre a realidade nacional e o prestígio ideológico dos países que nos servem de modelo.”
Isso posto, seria um erro se porventura presumíssemos ser esta uma matéria de nossa exclusividade. Trata-se, de outro modo, de um debate disseminado no próprio imaginário em torno da modernidade. Com enorme frequência, afirma-se que esse novo momento histórico inaugurou uma concepção inédita do tempo: cindida do passado e inclinada primordialmente para o devir - entendido agora como um “armazém de possibilidades” (LUHMANN, 1976LUHMANN, Niklas. The future cannot begin: temporal structures in modern society. Social Research, v. 43, n. 1, p. 130-152, 1976., p. 131) -, essa “época radicalmente ‘nova’” teria confiado ao presente a capacidade para renovar-se “a partir de si”, sem as amarras da tradição (HABERMAS, 1990HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990., p. 16-18). Convertido, a certa altura, na “forma em que todas as histórias se desenrolam”, o “próprio [tempo]” acabaria por assumir “uma qualidade histórica”, tornando-se “uma força” motriz da “história” (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006., p. 282-283).
Naquilo que toca a teoria social e política, é lícito afirmar que incontáveis narrativas dedicadas a examinar a cena moderna e suas diferentes instâncias de experiência servem-se dessas ideias para discernir aspectos (políticos, institucionais, subjetivos, econômicos, estéticos, ético-morais, epistemológicos, etc.) tomados por irredutíveis à modernidade (BERGMANN, 1992BERGMANN, Werner. The problem of time in sociology: an overview of the literature on the state of theory and research on the “Sociology of Time”, 1900-82. Time & Society, v. 1., n. 1, p. 81-134, 1992.; BERMAN, 1986BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.; GIDDENS, 1984GIDDENS, Anthony. The constitution of society. Berkeley: University of California Press, 1984.; HARVEY, 1995HARVEY, David. The condition of postmodernity. Cambridge: Blackwell, 1995.; ROSA, 2013ROSA, Hartmut. Social acceleration: a new theory of modernity. New York: Columbia University Press, 2013.). Já entre os “clássicos” das ciências sociais, instituições e padrões de sociabilidade forjados em circunstâncias históricas atribuídas à Europa aparecem, expressamente ou não, vinculados a uma nova temporalidade (MARX, 1972MARX, Karl. The German Ideology. In: TUCKER, Robert (ed.). The Marx-Engels Reader. New York: W.W. Norton & Company, 1972. p. 110-164.; WEBER, 1978WEBER, Max. Science as vocation. In: GERTH, Hans H.; MILLS, Charles W. (eds.). From Max Weber: essays in sociology. New York: Oxford University Press, 1978. p. 129-156.; DURKHEIM, 1995DURKHEIM, Émile. The elementary forms of religious life. New York: The Free Press, 1995.; SIMMEL, 1971SIMMEL, Georg. The metropolis and mental life. In: LEVINE, D. (ed.). Georg Simmel: on individuality and social forms. Chicago: The University of Chicago Press, 1971. p. 324-339.) - leia-se, um arranjo temporal abstrato e cronometricamente estimável (ANDERSON, 1991ANDERSON, Benedict. Imagined communities. London: Verso, 1991., p. 24; p. 33; GUMBRECHT, 2015GUMBRECHT, Hans. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp, 2015.).8 8 Nos dizeres de Anderson (1991, p. 24), “O que veio a tomar o lugar da concepção medieval de simultaneidade-ao-longo do tempo [simultaneity-along-time] é, para emprestar novamente de [Walter] Benjamin, uma ideia de ‘tempo homogêneo, vazio’, no qual a simultaneidade é, de certo modo, transversal, através-do-tempo, marcada [...] pela coincidência temporal e medida pelo relógio e pelo calendário.” Recorde-se que, em suas teses “Sobre o conceito da história”, Benjamin (1993, p. 229) refere-se à “idéia de um progresso da humanidade na história” e a seu vínculo com a noção “de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo.” Desde então, firmou-se na teoria social a convicção de que níveis sucessivos de complexidade societária, de racionalização e de progresso técnico, aliados ao aprofundamento da impessoalidade e da individuação/subjetivação - traços, em igual medida, também cingidos à vida moderna - ajudaram a promover a de-substancialização do tempo e sua gradativa disjunção em uma dimensão específica do social (HABERMAS, 1990HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990.; ROSA, 2013ROSA, Hartmut. Social acceleration: a new theory of modernity. New York: Columbia University Press, 2013.). Oriundas da “Europa ocidental”, tais inovações societárias e seus múltiplos desdobramentos teriam aos poucos alcançado “outros lugares, sob o impacto da mudança econômica, das ‘descobertas’ (social e científica) e do desenvolvimento de comunicações cada vez mais rápidas” (ANDERSON, 1991ANDERSON, Benedict. Imagined communities. London: Verso, 1991., p. 36) Abrigadas sob uma “estrutura temporal” que paulatinamente ambicionava-se universal, regiões diversas do mundo acabaram cotejadas e tipificadas à luz de seus propalados estágios desiguais de “progresso” (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006., p. 284-285).
Em certa medida, as proposições de Anthony Giddens (1991)GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991. são expressivas de esforços recentes efetuados com o fito de articular teórico-conceitualmente tais ideações. Recorde-se que, no entendimento do autor, a disseminação do uso do “relógio mecânico”, somada à uniformização “em escala mundial dos calendários” e, posteriormente, à “padronização do tempo através das regiões” concorreram para dois fenômenos cruciais à dinâmica moderna: de um lado, o “esvaziamento do tempo”, crescentemente abstrato e homogêneo; de outro, o “esvaziamento do espaço”, tornado um “lugar [...] cada vez mais fantasmagórico”, incólume a qualidades físicas circunscritas (GIDDENS, 1991GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991., p. 26-27). Ambos teriam convergido para potencializar o “‘deslocamento’ das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (GIDDENS, 1991GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991., p. 29).9 9 Stuart Hall (2006, p. 69-73), em referência explícita a Harvey (1995), afirma que tais transformações estariam conduzindo a um quadro de “compressão espaço-tempo”, com implicações políticas e identitárias das mais relevantes. Estou ciente de que esse debate guarda conexões com a vasta produção a respeito da dinâmica política e cultural da chamada pós-modernidade. Infelizmente, não poderei explorar o teor dessas interlocuções nos limites do artigo. Deixo, todavia, algumas indicações auspiciosas, sugestivas da riqueza do debate: Lyotard (2013), Huyssen (1991) e Aronowitz (1991). Veja-se, ademais, as estimulantes provocações de Heller e Fehér (1998, p. 11-26), obra que, ao situá-la “dentro do tempo e espaço mais amplos da modernidade” (p. 11), afirma que “A pós-modernidade é em todos os sentidos ‘parasítica’ da modernidade; vive e alimenta-se de suas conquistas e dilemas” (p. 23). É sugestivo que, a despeito de pretender refutar imputações finalistas ao desenrolar histórico, Giddens atribua a essa nova configuração espaço-temporal, bem como às principais instituições do Ocidente - “capitalismo”, “vigilância”, “poder militar” e “industrialismo” (GIDDENS, 1991GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991., p. 61-69) - um pendor “inerentemente globalizante” (GIDDENS, 1991GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991., p. 174-175).
Irradiadas em direções as mais diversas, essas imagens hegemônicas da modernidade e de seu ordenamento temporal conquistaram um escopo cognitivo considerável, incidindo-se numa ampla gama de contextos intelectuais. Tais concepções perenes auxiliam-nos a também distinguir alguns dos principais parâmetros que embasaram as interpretações de Prado Jr., Holanda e Freyre acerca do estatuto do Brasil na quadra moderna.
O peso do passado e as fontes extrassociais da experiência brasileira
Conforme tantas vezes sublinhado pela fortuna crítica, tão logo cotejamos os trabalhos de Holanda, Freyre e Prado Jr. com aqueles de gerações precedentes, uma diferença desde pronto salta aos olhos: refiro-me à proeminência de variáveis propriamente sociais em seus ensaios - fatores culturais, estruturas econômicas, configurações de poder e disposições comportamentais -, afastando-os de perspectivas analíticas anteriores (BASTOS, 2006BASTOS, Elide. As criaturas de prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. São Paulo: Global, 2006.; CANDIDO, 1967/1994CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1967/1994. p. XXXIX-L; CARDOSO, 1993CARDOSO, Fernando H. Livros que inventaram o Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 37, p. 21-35, 1993.; VILLAS-BÔAS, 2003VILLAS-BÔAS, Gláucia. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: KOSMINSKY, Ethel; LÉPINE, Claude; PEIXOTO, Fernanda (orgs). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru: Edusc, 2003. p. 115-134.). Ainda assim, não se poderia ignorar o apelo continuado de aspectos extrassociais nas obras (inclusive ambientais, psíquicos e orgânicos), chamados a cumprir importantes funções em seus empreendimentos interpretativos (ARAÚJO, 1994ARAÚJO, Ricardo. B. Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; BASTOS, 2006BASTOS, Elide. As criaturas de prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. São Paulo: Global, 2006.; CANDIDO, 1967/1994CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1967/1994. p. XXXIX-L; LARRETA; GIUCCI, 2007LARRETA, Enrique; GIUCCI, Guillermo. Raça e cultura em Casa-grande & senzala. In: Gilberto Freyre: uma biografia cultural - A formação de um intelectual brasileiro - 1900-1936. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 451-482.; LIMA, 2013LIMA, Nísia. Um sertão chamado Brasil. São Paulo: Hucitec Editora, 2013.; RICUPERO, 2012RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. como intérprete do Brasil. Sinais Sociais, v. 7, n. 19, p. 14-39, 2012.). Bem se sabe que ao inquirir sobre os lapsos do país em relação a padrões societários que teriam sido erigidos na Europa moderna, avulta em Raízes do Brasil a preocupação com nossas heranças ibéricas e com seus impactos duradouros na vida nacional: por sua participação extemporânea no “coro europeu”, Portugal e Espanha teriam permanecido por longo período descompassados dos parâmetros da modernidade, aferrados à “cultura da personalidade” - para o intérprete, a qualidade mais determinante no avanço daquelas nações (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 4). Além das implicações inestimáveis “em seus destinos, determinando muitos aspectos peculiares de sua história e de sua formação espiritual”, tal condição marginal haveria de deixar um legado substantivo também em suas colônias (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 4). Destarte, todo e qualquer esforço de compreensão do presente brasileiro e de suas potencialidades futuras parecia ao autor exigir um mergulho profundo no passado hispânico, em especial o português, fonte primordial da “forma atual de nossa cultura” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 11).
Tamanho realce dispensado a essa dimensão não deveria, contudo, velar outra ordem de discrepâncias também assinalada no ensaio, decorrente dos predicados físicos dos trópicos: logo no início da obra, afirma-se ter sido “o fato dominante e mais rico em consequências” nas gêneses do Brasil “A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 3). Havendo se originado “de outro clima e de outra paisagem”, adverte Buarque de Holanda, “aquelas formas de convívio, instituições e ideias” que tanto almejávamos assimilar depararam com um “ambiente muitas vezes desfavorável e hostil” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 3). Das incontáveis “resistências da natureza” impostas ao colonizador, expondo-o a “poderosos e inesperados obstáculos”, resultaria uma vida social deveras modesta, infensa a “progressos técnicos” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 19). Naquelas circunstâncias, não bastassem “os métodos rudimentares” de cultivo dos nativos, os reveses ditados pelo “meio tropical” teriam conduzido a “um retrocesso, em muitos pontos verdadeiramente milenar”, em comparação com as práticas agrícolas em voga no Velho Mundo (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 19; p. 18).
Admitida a precedência de determinantes econômicos na obra, os efeitos do ambiente físico voltam a ser ressaltados nas páginas de Formação do Brasil contemporâneo. Lembre-se que ao distinguir as colônias de “exploração” estabelecidas nas regiões tropical e subtropical das Américas daquelas à mesma época assentadas ao Norte, Caio Prado Jr. pondera sobre as ressonâncias imediatas e as repercussões sociais prolongadas de suas circunstâncias naturais díspares: ao contrário das primeiras, erguidas num “meio físico muito aproximado do da Europa”, as experiências meridionais teriam sido implantadas em “condições naturais” inconfundíveis com o “habitat de origem dos povos colonizadores” (PRADO JR., 2011PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011., p. 24). Ora, em lugar das motivações políticas e religiosas que impulsionaram o “povoamento” da área setentrional, ao Sul acabariam por prevalecer objetivos estritamente comerciais, para o que os atributos físicos extraordinários ali encontrados revelaram-se decisivos, incentivando a “obtenção de gêneros” in natura (PRADO JR., 2011PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011., p. 24-25). Para esse fim, buscaram os europeus mão de obra entre o que o autor denomina de “raças inferiores” - segundo ele, “indígenas da América e o negro africano, povos de nível cultural ínfimo comparado ao de seus dominadores” (PRADO JR., 2011PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011., p. 288). De tudo isso adviria “um tipo de sociedade inteiramente original”, um empreendimento fadado “a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu” (PRADO JR., 2011PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011., p. 27-28). Embora constituísse “uma realidade já muito antiga”, conforme Prado Jr., “aquele passado colonial” haveria de permanecer atuante por séculos, “presente em traços que não se deixam iludir” (PRADO JR., 2011PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011., p. 9).
É dispensável, a esta altura, discorrer sobre a primazia analítica que Casa-grande & senzala outorga às visões de mundo, às configurações de poder, aos valores tanto quanto aos códigos de sociabilidade sedimentados no convívio íntimo da “vida doméstica” - para Gilberto Freyre, “onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa continuidade social” (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000., p. 56). Estariam ali as sementes de padrões societários notadamente plásticos, ainda que vigorosos a ponto de sobreviver às inúmeras mudanças por que passaria essa “formação sui generis” (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000., p. 82). Dito isso, também nesse caso, não se poderia minimizar a persistência de aspectos raciais e físico-ambientais no ensaio, dando-nos a entender tratar-se de fatores capazes de condicionar ações humanas e de vergar instituições sociais às suas qualidades distintivas (ARAÚJO, 1994ARAÚJO, Ricardo. B. Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.; BASTOS, 2006BASTOS, Elide. As criaturas de prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. São Paulo: Global, 2006.; LARRETA; GIUCCI, 2007LARRETA, Enrique; GIUCCI, Guillermo. Raça e cultura em Casa-grande & senzala. In: Gilberto Freyre: uma biografia cultural - A formação de um intelectual brasileiro - 1900-1936. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 451-482.). Ao procurar melhor matizar imagens romantizadas da opulência tropical, Freyre preferia ressaltar os imensos desafios que o meio americano - “terra de alimentação incerta e vida difícil” - infligiu à empresa colonizadora (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000., p. 110). Se, ao cabo de longo e tortuoso percurso, “o esforço civilizador dos portugueses” (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000., p. 90) alcançou seus objetivos, para isso certamente teria concorrido uma extensa variedade de atributos culturais; mas, não menos importante, também predisposições psíquicas e biológicas especiais ao português, ao africano e ao nativo (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000., p. 80, p. 166, p. 357), convivendo “dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento de valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado” (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000., p. 163).10 10 Freyre sustenta que, desde a chegada do europeu ao continente americano, teve início “a degradação da raça atrasada ao contato da adiantada”. No caso particular da aventura portuguesa, “a colonização europeia vem surpreender [...] quase que bandos de crianças grandes; uma cultura verde e incipiente; ainda na primeira dentição” (FREYRE, 2000, p. 161. Grifo nosso).
Guardadas as preocupações e perspectivas de análise exclusivas a cada autor, são flagrantes as convergências entre os retratos do Brasil esboçados nas obras: evocados com o intento de ilustrar e explicar as presumidas idiossincrasias nacionais, os diferentes legados sociais (históricos, políticos, culturais, econômicos e comportamentais) das gentes que protagonizaram a colonização brasileira, combinados a seus pretensos traços psíquicos e biológicos e aos predicados físico-ambientais do trópico americano assumem conotações nitidamente cronológicas nas formulações. Afora o fato de se lhes conferir parcela considerável de responsabilidade pelas singularidades do itinerário brasileiro, insinua-se serem eles as fontes das vantagens e, de maneiras mais ou menos sutis, também das defasagens de nossa formação em comparação com outros percursos sócio-históricos. Nesse particular, não é de surpreender a atenção que os três intérpretes dedicam ao latifúndio agrícola e à sua extraordinária capacidade de resguardar-se do mundo exterior, sem deixarem igualmente de atinar para as implicações econômicas dos padrões produtivos “rudimentares” prevalecentes no domínio rural (PRADO JR., 2011PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011., p. 123-125; p. 127-130; FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000., p. 49; p. 91; HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 18-19; p. 48). Tais afinidades, frise-se uma vez mais, são extensivas às suas considerações acerca da ascendência da esfera doméstico-familiar e de seus códigos e normas característicos (privatistas e personalistas) sobre os espaços públicos e a ordem política do país (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000., p. 92-93; p. 96; p. 123; PRADO JR., 2011PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Cia. das Letras, 2011., p. 304-307; HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 47; p. 49-50).11 11 Vale observar, na apreciação de Souza (1998, n.p. Itálicos no original) a respeito de Raízes, “A falta de vínculo associativo horizontal, que possibilite as constelações de interesses de longo prazo, passa a ser percebida como a causa fundamental do nosso atraso social”. Reforçando-se mutuamente, todos esses aspectos concorrem para projetar a imagem de uma experiência social inconfundível com contextos alegadamente pioneiros da modernidade.
No fim das contas, as incongruências entre a cena brasileira e os padrões societários inaugurados na modernidade parecem-lhes iniludíveis (RICUPERO, 2000RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Usp; Fapesp; Editora 34, 2000., p. 135; VILLAS-BÔAS, 2003VILLAS-BÔAS, Gláucia. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: KOSMINSKY, Ethel; LÉPINE, Claude; PEIXOTO, Fernanda (orgs). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru: Edusc, 2003. p. 115-134., p. 129-130; WEGNER, 2000WEGNER, Robert. A conquista do oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000., p. 18). Instituições políticas, visões de mundo, valores, referências ético-morais, bem como relações econômicas e estruturas tecnológico-produtivas que, no entendimento de Holanda, Freyre e Prado Jr., dominaram a colônia durante séculos, colidem de maneira frontal com parâmetros tomados por distintivos da vida moderna - dentre eles a racionalização normativa, a diferenciação social, o progresso técnico, a impessoalidade e os processos de subjetivação (ROSA, 2013ROSA, Hartmut. Social acceleration: a new theory of modernity. New York: Columbia University Press, 2013.; TAVOLARO, 2005TAVOLARO, Sergio B. F. Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 20, n. 59, p. 5-22, 2005.; TAVOLARO, 2017bTAVOLARO, Sergio B. F. Retratos não-modelares da modernidade: hegemonia e contra-hegemonia no pensamento brasileiro. Civitas - Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 17, n. 3, p. 115-141, 2017b.). Isso posto, é preciso realçar que ao revisitarem os momentos iniciais da formação brasileira, a intenção dos intérpretes não se restringia a recobrar fenômenos há muito extintos. De outra forma, almejava-se estimar a profundidade e abrangência com que vários daqueles aspectos do passado encontraram meios para se prolongar no presente.
Caminhos da modernização brasileira: deficiências e oscilações
Como acima observado, além do zelo com os primórdios da formação brasileira, o interesse pelas dinâmicas sociais que impulsionaram o país em direção à modernidade é conspícuo nos principais trabalhos de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. A se considerar suas análises, a certa altura dos acontecimentos, modelos políticos e institucionais, padrões produtivos e materiais, preceitos ético-morais, parâmetros estéticos e referências cognitivas já cristalizados na Europa moderna acentuaram sua presença também em solo nacional. Não é outra a preocupação de Sobrados e mucambos ao discorrer sobre a transferência da família real para o Brasil, momento a partir do qual “o patriciado rural que se consolidara nas casas-grandes de engenho e de fazenda [...] começou a perder a majestade dos tempos coloniais” (FREYRE, 1996FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 2. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 1996., p. 3).
A bem da verdade, no entendimento de Freyre, prenúncios dessa metamorfose haviam se ensaiado já à época da “descoberta das minas”, quando se intensificara “o interesse da Coroa pela sua colônia americana”. Nada comparável, contudo, à “presença no Rio de Janeiro de um príncipe com poderes de rei”, acompanhado de “fidalgos para lhe beijarem a mão gordurosa, mas prudente, soldados para desfilarem em dia de festa diante do seu palácio, ministros estrangeiros, físicos, maestros para lhe tocarem música de igreja” - além das “palmeiras-imperiais a cuja sombra cresceriam as primeiras escolas superiores, a primeira Biblioteca, o primeiro Banco” (FREYRE, 1996FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 2. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 1996., p. 3). Importa ao ensaio o fato de todos esses eventos terem se combinado para reconfigurar “a fisionomia da sociedade colonial” de maneira pronunciada, transformando-a “nos seus traços mais característicos” (FREYRE, 1996FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 2. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 1996., p. 4). O autor quer nos fazer perceber que, sem demora, Inglaterra e França assumiram o prestígio outrora gozado por Portugal, tornando-se as principais referências de valores e códigos de sociabilidade que se disseminavam entre as elites urbanas. Na esteira desses processos, “o brasileiro do século XIX foi abandonando muitos de seus hábitos tradicionais [...] para adotar as maneiras, os estilos e o trem de vida da nova camada de europeus que foram se estabelecendo nas nossas cidades” (FREYRE, 1996FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 2. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 1996., p. 308). Vale dizer, longe de harmoniosas, tais modificações teriam desencadeado antagonismos de toda sorte, inquiridos em seus pormenores em cada uma das seções de Sobrados - embates entre as diferentes regiões do país, mas também entre os diversos setores da economia; tensões geracionais que colocaram em xeque a autoridade do pai, potencializadas pelas crescentes desavenças entre homens e mulheres; confrontos envolvendo os vários estratos, classes e segmentos “raciais” da população, ao que se somavam as rivalidades entre locais e estrangeiros. Ao termo dessas mudanças, as tênues fronteiras entre os espaços públicos e os âmbitos privados de sociabilidade adquiriram novos contornos e uma nova substância.
Sensível a essa mesma ordem de problemas, é principalmente nos capítulos finais de Raízes do Brasil que Buarque de Holanda ocupa-se dos impactos da modernização no tecido societário. Tal qual em Sobrados, o desembarque da Coroa no país é retratado como um ponto de inflexão crucial, ocasião em que a renitência “dos velhos padrões coloniais viu-se pela primeira vez seriamente ameaçada” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 120). Muito embora danos mais expressivos à “supremacia dos senhores agrários” tardassem a ocorrer, graças ao “crescente cosmopolitismo de alguns centros urbanos”, acabaríamos apresentados a “novos horizontes”, expostos a “ambições novas que tenderiam, com o tempo, a perturbar os antigos deleites e lazeres da vida rural” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 120). Esboçava-se, ali, um quadro verdadeiramente inédito, diverso da prostração colonial, exacerbado “sobretudo depois da Independência e das crises da Regência” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 120). Alerta às inúmeras discórdias germinadas a partir de então, Holanda chama atenção para a situação de instabilidade que se seguiu ao “desenvolvimento da urbanização”, cujos impactos se manteriam “vivos ainda hoje” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 105). Tratava-se, decerto, de uma transformação paulatina, não raro morosa; ainda assim, decidida e articulada, sendo sua expressão mais sonora o fim da escravidão (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 126). Para o intérprete, tais eventos tiveram o efeito de remover os principais obstáculos à emergência da nova ordem (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 127). Num dado momento, a dinâmica urbana, por longa data apenas um apêndice do campo, enfim declarou “sua vida própria e sua primazia” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 128). Se bem que timidamente, encetava-se ali “um estilo novo”, não mais atrelado às “raízes ibéricas de nossa cultura”, mas espelhado nos parâmetros da modernidade (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 127).
Dentre as principais obras de Prado Jr. daquele período, é em História econômica do Brasil que se pode encontrar uma análise mais sistemática da modernização nacional. Com ênfase em suas implicações econômicas, a transmissão da “monarquia portuguesa” e da burocracia reinol para a América é uma vez mais apontada como um episódio histórico capital: ao celebrar “o decreto que abre os portos da colônia a todas as nações, franqueando-os ao comércio internacional livre”, assevera-se que Dom João pôs abaixo, “de um só golpe, a base essencial em que assentava o domínio colonial português” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 127). Dali em diante, sustenta o autor, o país ingressaria “definitivamente na nova etapa do seu desenvolvimento”, ficando-lhe vedado “o retorno ao passado” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 128). Tais acontecimentos teriam desencadeado alterações fundamentais, inclusive nas “aspirações” e “necessidades” de certos setores da sociedade nascente, instigados pela “súbita transformação dos hábitos” e pela “introdução de um conforto e luxo desconhecidos ainda na colônia e trazidos por estrangeiros e seus costumes” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 137). Essas mudanças, a despeito de incongruentes e oscilantes, haveriam de promover uma “ampliação considerável das nossas forças produtivas e progresso material acentuado e rápido” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008. p. 140). Com o correr dos anos, “iniciativas em empresas comerciais, financeiras e industriais” multiplicaram-se, acompanhadas do aumento da “circulação monetária” e da implantação de infraestrutura de transporte e comunicação (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 154). Dentro de algumas décadas, cevando as ambições políticas do Centro-sul, o sucesso do café proporcionaria “uma ascensão sensível do padrão de vida da população”, a par com “o aparelhamento técnico do país” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 168). Na avaliação de História, “é nessa época que o Brasil tomará pela primeira vez conhecimento do que fosse o progresso moderno e uma certa riqueza e bem-estar material” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 168). Não tardaria para que a “República” despertasse no corpo social “um novo espírito”, condizente com “a fase de prosperidade material” então conquistada (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 209). Ao termo de todas essas transformações, já sem as resistências morais do passado monárquico, “a ambição do lucro e do enriquecimento” se converteria em “alto valor social” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 209).
Ora, como quero argumentar, igualmente nesse caso, peculiaridades temáticas e analíticas à parte, é patente a proximidade dos diagnósticos traçados nas obras: para os três intérpretes, as novas dinâmicas experimentadas durante o século XIX compeliram a sociedade brasileira a deixar para trás vários de seus contornos originários em favor de modelos político-institucionais, padrões produtivos, parâmetros cognitivos, preceitos ético-morais e referências estéticas previamente disseminados na Europa. Ao se ajustarem ao novo ritmo do mundo, setores do corpo social lograram, enfim, sincronizar-se com o tempo da modernidade. Apesar disso, conforme Holanda, Prado Jr. e Freyre também fazem por bem sublinhar, tais alterações não prosseguiram de maneira contínua e linear, antes enfrentando toda espécie de percalços, hesitações e resistências. É nesse exato sentido que Sobrados chama atenção para a resiliência de signos e elementos do passado na cena brasileira,12 12 Segundo Rezende (2001), p. 192-193), nas mais conhecidas obras de Freyre, “O passado dá o norte para o presente e para o futuro”. A seu ver, nas imagens traçadas pelo autor acerca do “semipatriarcalismo que tomava corpo no século XIX” é notória “a sobreposição de elementos velhos e novos em todas as esferas da vida social” (REZENDE, 2001, p. 196). indicativos de “atrasos de cinquenta, cem anos em estilos de habitação e de meios de transporte”, os quais expunham “os ridículos de moral e de etiqueta também atrasada um século, dois, às vezes três” - cabe frisar, segundo Freyre, “atrasos [que] variavam de região para região, dando ao país uma variedade pitoresca, mas às vezes dramática, de estilos e estágios de cultura” (FREYRE, 1996FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 2. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 1996., p. 30).
Percepções análogas dos déficits de nossa modernização frente às exigências da ordem moderna voltam a matizar as páginas de História econômica do Brasil. Caio Prado Jr. observa que, não obstante houvesse conquistado sua soberania política, o país permaneceu “um prolongamento da situação anterior”, servindo-se inclusive dos “mesmos quadros administrativos, na maior parte das vezes até [d]as mesmas pessoas” que haviam atuado no período colonial (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 138).13 13 Na visão de Rêgo (1998, p. 85), Prado Jr. teria buscado “mostrar [...] que o nosso percurso de desenvolvimento nem sempre, e mesmo raramente, resultou em uma ruptura essencial com esses padrões tradicionais”. Veja-se também Coutinho (2001, p. 107). Não deveria assombrar, pois, a lentidão com que atendeu ao problema da escravidão, cujas ramificações mantiveram-se vivas por longa data, aliás até “nossos dias” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 153). Em meados do século XIX, apesar de já modificada numa infinidade de aspectos, a sociedade brasileira continuava a oscilar entre duas épocas, justapostas uma à outra, a ponto de conviverem lado a lado, “nas lavouras de café, trabalhadores escravos e europeus livres” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 175). Estendendo-se para além daqueles anos, tais incongruências acabariam por atravancar o aprimoramento e a diversificação da estrutura econômica nacional. Destarte, no exato momento em que ensaiava tomar as primeiras medidas para o “estabelecimento da indústria moderna no país”, adversidades passadas e carências presentes vieram às claras (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 257) - dentre elas, “a deficiência dos mercados consumidores”, condição sine qua non à “produção em larga escala” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 258). A isso vinha somar-se a fragilidade do “Estado, sempre grandemente necessitado de recursos”, conjugada à escassez financeira da população, uma e outra impeditivas ao estabelecimento de “um mercado de capitais semelhante ao de todos os países industriais da atualidade” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 263). Naquelas circunstâncias, restou-nos implantar “uma indústria rotineira e de baixo nível qualitativo”, desprovida de “progresso técnico sustentado (uma das características essenciais da indústria moderna)” (PRADO JR., 2008PRADO. JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 263).
Da parte de Raízes, quiçá bastasse recobrar a célebre advertência de que “a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós”, antes permanecendo “um lamentável mal-entendido”: trazida do estrangeiro por obra de nossa “aristocracia rural e semifeudal”, acabou ajustada, “onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios”, aqueles que na Europa haviam há tempos constituído o foco “da luta da burguesia contra os aristocratas” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 119).14 14 Waizbort (2016, p. 466) ressalta que, para Holanda, existiria “uma incompatibilidade radical entre a estrutura da personalidade característica do ‘povo’ brasileiro - o personalismo - e uma estrutura social de caráter democrático”. De acordo com Buarque de Holanda, nem mesmo a decomposição do “mundo rural”, coroada com a Abolição da escravatura, logrou diluir por inteiro nossa herança “ibérica e lusitana”, algo indicativo das “insuficiências do ‘americanismo’” entre nós - por ora, tão somente o “exacerbamento de manifestações estranhas, de decisões impostas de fora, exteriores à terra” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 127). Acrescente-se a isso que, diante da persistência das “vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal”, a seu ver, apenas raramente tivemos um aparato burocrático equipado com servidores orientados exclusivamente por “interesses objetivos e fundados nesses interesses” (HOLANDA, 1994HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994., p. 106). Em suma, mesmo ao cabo das incontáveis mudanças que, desde ao menos o início do século XIX, nos distanciaram do passado colonial, os parâmetros (políticos, normativos, econômicos e comportamentais) típicos dos contextos pioneiros da modernidade continuariam a enfrentar uma série de percalços para se infundir no tecido social brasileiro, um desígnio com prazo incerto para se consumar.
Pensamento brasileiro e imaginação moderna: simetrias em torno do tempo
Tais imagens sugestivas das dissonâncias e desacertos entre o Brasil e o tempo da modernidade não deixaram de ser registradas pela fortuna crítica. Burke (2013, p. 206)BURKE, Peter. Tropicalização, tropicalismo, tropicologia: a contribuição de Gilberto Freyre. In: MOTTA, Roberto; FERNANDES, Marcionila (orgs.). Gilberto Freyre: região, tradição, trópico e outras aproximações. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2013. p. 198-212. observa que Freyre comprazia-se em contrastar “a ‘hora inglesa’ (precisa, mecânica, cronometrada) ao que chamava de ‘tempo hispânico’, menos preciso, enraizado nos ritmos da natureza.”15 15 Veja-se, também a esse respeito, a análise de Motta (2013). Por sua vez, Villas-Bôas (2003, p. 123)VILLAS-BÔAS, Gláucia. Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens. In: KOSMINSKY, Ethel; LÉPINE, Claude; PEIXOTO, Fernanda (orgs). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru: Edusc, 2003. p. 115-134. sustenta que o anseio por “retratar a singularidade da sociedade brasileira” acaba por conduzir o autor de Casa-grande & senzala “a renunciar ao pressuposto de um tempo universal”, tomado por incompatível com a experiência nacional. Por fim, Bastos (2008, p. 228)BASTOS, Elide. Raízes do Brasil - Sobrados e Mucambos: um diálogo. In: MONTEIRO, Pedro; EUGÊNIO, João (orgs.). Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campinas: Ed. Unicamp; Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2008. p. 227-244. alega que, nas formulações do intérprete pernambucano, “a tese do tempo tríbio - relação entre passado, presente e futuro -, de inspiração orteguiana, e a visão da importância do intra-histórico na constituição da sociedade, calcada nas ideias de Unamuno”, concorrem para revelar “tanto o descompasso existente entre as diferentes regiões do país, como a presença e a força de certos atores sociais que atravessam as diferentes ordens do tempo”. Por meio dessas noções, Freyre lograria oferecer uma perspectiva particular acerca da “articulação entre os elementos tradicionais e modernos na formação brasileira” (BASTOS, 2008BASTOS, Elide. Raízes do Brasil - Sobrados e Mucambos: um diálogo. In: MONTEIRO, Pedro; EUGÊNIO, João (orgs.). Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campinas: Ed. Unicamp; Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2008. p. 227-244., p. 228).
Quanto às proposições de Raízes do Brasil, Vecchi (2005, p. 165)VECCHI, Roberto. Atlas intersticial do tempo do fim: nossa revolução. In: PESAVENTO, Sandra (org.). Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. p. 161-193. identifica uma “combinação complexa e incindível de presente e passado, na dobra do passado no presente” (VECCHI, 2005VECCHI, Roberto. Atlas intersticial do tempo do fim: nossa revolução. In: PESAVENTO, Sandra (org.). Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. p. 161-193., p. 165). Nos mesmos passos, Cavalcante (2008, p. 151)CAVALCANTE, Berenice. História e modernismo: herança cultural e civilização nos trópicos. In: MONTEIRO, Pedro; EUGÊNIO, João (orgs.). Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campinas: Ed. Unicamp ; Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2008. p. 137-154. assevera que a obra consuma “a reconstituição histórica que se funda numa noção de temporalidade em que o passado e o presente se articulam com vistas a uma reflexão sobre o futuro, o futuro de nossa revolução”. Já, na avaliação de Waizbort (2016, p. 467-468)WAIZBORT, Leopoldo. Raízes do Brasil: inércia e transformação lenta. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil - edição crítica. São Paulo: Cia. das Letras, 2016. p. 465-470., apesar de “sensível a processos de mudança”, Holanda rechaça “parâmetros estranhos ao que é ‘nosso’” - “o ‘nosso’ ritmo, a ‘nossa’ estrutura da personalidade e a ‘nossa’ estrutura social”, os quais parecem-lhe ter que “evoluir, em suas lógicas próprias”. No tocante a Caio Prado Jr., Ricupero (2012, p. 26-27RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. como intérprete do Brasil. Sinais Sociais, v. 7, n. 19, p. 14-39, 2012.; 2000, p. 180)RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Usp; Fapesp; Editora 34, 2000. destaca a inclinação do intérprete para minimizar as “mudanças” e “modificações” em favor da atenção à “continuidade entre o passado e o presente brasileiro”, o que se justificaria pelo fato de jamais ter existido no Brasil qualquer “ruptura significativa com o passado” (RICUPERO, 2000RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Usp; Fapesp; Editora 34, 2000., p. 161).16 16 Ricupero (2000, p. 173) sustenta que, posteriormente, em Diretrizes para uma política econômica brasileira, Prado Jr. aludiria ao “convívio ente situações características de tempos históricos variados” para tratar da especificidade desse fenômeno no país. À sua vez, Iumatti (2017, p. 89-90)IUMATTI, Paulo. Historiographical and conceptual exchange between Fernand Braudel and Caio Prado Jr. in the 1930s and 1940s: a case of unequal positions in the intellectual space between Brazil and France. Storia della Storiografia, v. 71, n. 1, p. 89-110, 2017. salienta que “o entendimento da temporalidade de Prado rompeu com a linearidade típica de historiadores de seu tempo e deu a impressão da multiplicidade do tempo histórico”.17 17 Assim como Ricupero (2000, p. 161-162, nota 7), Iumatti (2017) oferece um retrato detalhado da atmosfera intelectual da USP na década de 1930 onde a problemática do tempo era objeto de grande interesse, envolvendo figuras-chave na trajetória intelectual de Prado Jr (dentre elas, Pierre Deffontaines e Fernand Braudel). Segundo ele, “historiadores como Braudel e Caio Prado nos anos 1930, inspirados por estudos na Geografia Humana, já estavam pensando através de múltiplas temporalidades, rompendo com o tempo linear e reconsiderando as relações entre passado e presente” (IUMATTI, 2017, p. 97). Finalmente, ao verificar que “A coexistência do presente e do passado no Brasil contemporâneo é reafirmada em muitos momentos” de Formação, Lage (2016, p. 224, p. 219)LAGE, Victor. Interpretations of Brazil, contemporary (de)formations. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) - Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. defende haver nos trabalhos do autor a articulação de “uma concepção de história linear e progressiva [...] com uma periodização alternativa que imbrica mutuamente o velho e o novo, o colonial e o nacional”.
A despeito de avançarem uma senda de investigação auspiciosa, a meu ver, essas apreciações não se debruçam a contento sobre um problema de pesquisa conexo e fundamental, qual seja: as continuidades e simetrias entre, de um lado, tais retratos da sociedade brasileira e de seu ordenamento temporal e, de outro, o imaginário social e político da modernidade. Decerto, como a fortuna das obras já teve oportunidade de observar, na avaliação dos intérpretes, mesmo sob o impacto crescente da modernização, modelos institucionais e referências estéticas e cognitivas sedimentados no passado, assim como preceitos ético-morais e visões de mundo engendrados nos momentos iniciais da formação nacional conservaram-se por longa data ativos entre nós, na contramão dos padrões societários já então predominantes na Europa. Eis, no entanto, o que é preciso advertir: apesar de tencionarem especificar os traços que afastariam o país dos cenários precursores e vanguardistas da modernidade, os parâmetros analíticos de que se servem os autores não são, de modo algum, estranhos àquele imaginário hegemônico. Pelo contrário, convergem sobremaneira com ideias e noções com frequência mobilizadas no seio da própria teoria social e política para codificar os ditos contextos modelares: como bem sabemos, é à luz do Estado moderno e de seus procedimentos racionais que os três autores malsinam os disparates do aparato político-administrativo brasileiro, a seu ver, capturado por interesses privados e enredado em métodos organizacionais e expedientes herdados de outras épocas; mutatis mutandis, é a ordem capitalista urbano-industrial que lhes fornece os critérios para caracterizar a estrutura econômica nacional, em sua percepção, ancorada em técnicas obsoletas, em práticas produtivas ineficientes e em relações de trabalho anacrônicas; ademais, é em contraste com os contornos universalistas e impessoais da normatividade moderna que os ensaios seminais de Prado Jr., Freyre e Holanda remetem-se à primazia de valores tradicionais no tecido social brasileiro, regulado por preceitos oriundos, em sua maioria, de círculos de convívio íntimo e/ou pessoal; por fim, as seguidas referências às concepções encantadas da realidade, à estreiteza de horizontes culturais e ao acanhamento das condições materiais de inúmeros segmentos da população tornam explícitas as suas propaladas incompatibilidades com os requisitos psíquicos e as exigências comportamentais das percepções de mundo e das instituições da modernidade (o pensamento científico, as noções de liberdade, autonomia e igualdade, a sociedade civil, a democracia liberal, a economia de mercado, etc.).18 18 A respeito dessas caracterizações, que nos apartariam dos ditos contextos centrais, veja-se os traços também assinalados nas análises de Souza (1998, n.p.) e Vianna (1999, p. 35-36). Além de tomados amiúde por distintivos da vida social brasileira, bem se sabe que vários desses aspectos são reiteradamente convertidos em índices da condição desviante do país na quadra moderna.
Pois bem, quero argumentar que tais simetrias com o imaginário da modernidade possuem alicerces bem mais profundos: refiro-me a certo enquadramento da experiência social por meio do qual predicados de variada espécie (políticos, institucionais, culturais, econômicos, cognitivos, estéticos, ético-morais, naturais, etc.) discernidos em contextos específicos acabam codificados como diferenças societárias que, ao fim e ao cabo, adquirem sentidos e conotações cronológicos. Como é de amplo conhecimento, nesse caso, prevalece a inclinação para atribuir-se precedência (anterioridade) histórica a um grupo reduzido de sociedades europeias, cujos processos formativos singulares responderiam pelos padrões de sociabilidade inaugurados na era moderna (PARSONS, 1971PARSONS, Talcott. The system of modern societies. Englewood Cliffs; Prentice-Hall Inc, 1971.; ROSTOW, 1978ROSTOW, Walt W. As etapas do desenvolvimento econômico (um manifesto não-comunista). Rio de Janeiro: Zahar, 1978.).19 19 Nos termos de Chakrabarty (2000, p. 6-7), ao apreender a modernidade (e suas instituições políticas, econômicas, sociais e culturais características) como um fenômeno intrínseca e singularmente europeu, essa “modalidade de pensamento” que o autor denomina de historicista, inextricável de certa “ideologia do progresso”, posicionou a Europa/Ocidente na vanguarda de um “tempo histórico global” - sendo as demais sociedades concebidas como suas tributárias na ordem política e social então inaugurada. Veja-se também Chatterjee (2008). Uma vez conformados e estabelecidos em seus leitos originários, com o transcorrer do tempo, esses padrões teriam transmigrado para outros cenários sociais, onde seriam temperados e modificados sob o impacto de novas condições de existência - leia-se, sob a influência de aspectos políticos, injunções econômicas, legados culturais, condicionantes ambientais e fatores populacionais de sua particularidade (ANDERSON, 1991ANDERSON, Benedict. Imagined communities. London: Verso, 1991., p. 36; CHAKRABARTY, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2000., p. 7; CHATTERJEE, 2008CHATTERJEE, Partha. La nación en tiempo heterogéneo: y otros estudios subalternos. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008., p. 57-88; HALL, 2011HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011., p. 106).
Parece óbvio o suposto que subjaz esse quadro analítico (CHAKRABARTY, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2000.): trata-se de uma concepção de-substancializada da temporalidade moderna, ancorada na ideia de um “tempo homogêneo, vazio” e linear (ANDERSON, 1991ANDERSON, Benedict. Imagined communities. London: Verso, 1991., p. 33; CHATTERJEE, 2008CHATTERJEE, Partha. La nación en tiempo heterogéneo: y otros estudios subalternos. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008., p. 62-63). Amparado nas formulações de Reinhart Koselleck, Gumbrecht (2015, p. 64-65)GUMBRECHT, Hans. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp, 2015. sustenta que, nos limites estritos desse enquadramento epistemológico, a experiência humana é situada “no tempo, constantemente deixando para trás o passado como ‘esferas de experiência’ e caminhando a passos largos para a frente, na direção de sempre novos futuros, moldados pelos ‘horizontes abertos de possibilidades’”. Espremido “[e]entre estes futuros e aqueles passados, o presente” delineia-se “como ‘mero momento de transição’”, suscetível ao manejo consciente e ao agenciamento racional.20 20 Segundo Gumbrecht (2014, p. 63), tal “‘construção social do tempo’ - este cronótopo - emergiu nos primórdios do século XIX e, como pré-condição institucional para o comportamento e as ações humanas, teve consequências de tal monta que foi simplesmente confundida com o ‘tempo’ e a ‘história’”. Ora, tendo em conta as preocupações norteadoras do artigo, há dois pontos cruciais que precisam ser destacados: por um lado, é verdade que ao permitir a “diferentes povos medir a passagem do tempo de uma maneira idêntica”, o predomínio universal dessa “referência temporal padronizada” concorreu para “sincronizar” e tornar coetâneas uma multiplicidade de configurações societárias ao redor do globo (ZERUBAVEL, 1982ZERUBAVEL, Eviatar. The standardization of time: A sociohistorical perspective. American Journal of Sociology, v. 88, n. p. 1-23, 1982., p. 2-3; p. 6). Ocorre que, ao torná-las reciprocamente comparáveis, essa mesma compreensão particular do tempo também contribuiu para que “povos, estados, continentes, ciências, corporações ou classes” os mais diversos, irredutíveis numa infinidade de aspectos, fossem dispostos ao longo de uma escala contínua e assimétrica, definida consoante seus níveis pretensamente desiguais de adiantamento (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006., p. 284-285). Desse modo, ficaram estabelecidas as condições de possibilidade para a percepção e codificação das dessemelhanças sob a marca da “contemporaneidade do não-contemporâneo” - ou, se assim se preferir, do “não-contemporâneo no contemporâneo” (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006., p. 317).
Encapsuladas nos confins desse mesmo enquadramento, é sobre o pano de fundo de tal acepção abstrata, uniforme e contínua do tempo característica do “cronótopo da consciência histórica” (GUMBRECHT, 2015GUMBRECHT, Hans. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp, 2015.) que as formulações de Holanda, Prado Jr. e Freyre aludem não apenas às presumidas idiossincrasias temporais do país como também a seu estatuto tributário na modernidade21 21 É digno de nota que, para Larreta e Giucci (2007, p. 465), apesar de não reputar “a cultura europeia dos países mais adiantados como uma norma”, o autor de Casa-grande & senzala “não rompe totalmente com a narrativa do progresso”. Longe disso, “Sua própria dependência do vocabulário das ciências sociais modernas o torna propenso a pensar as diversas culturas em termos de adiantadas e atrasadas”. : aqui, em contraste com o que teria prevalecido nos chamados contextos modelares, o tempo social jamais teria chegado a constituir-se numa dimensão própria, conservando-se suscetível às pressões e movimentos de uma ampla gama de condicionantes (culturais, econômicos, políticos, institucionais e também físico-ambientais). Outrossim, uma vez que imagens de mundo, referências estéticas e preceitos ético-morais cristalizados no passado continuariam a se incidir no presente - com intensidade suficiente para conformar valores, comportamentos e instituições em concomitância com processos de modernização -, as obras em tela dão-nos a entender que o fluxo do tempo seguiu um curso sinuoso e intermitente no Brasil, entrecortado por vaivéns e vacilações que em muitos momentos entravaram o devir da sociedade. Atravessada por uma pluralidade de tempos confusamente sobrepostos, seria esta uma experiência fraturada por padrões societários advindos de épocas diversas - donde os incontáveis desajustes, ambiguidades e conflitos a tensionar o tecido social, seja em seus planos político, cultural, e ético-moral, seja em suas dimensões econômica, simbólica e institucional.
Seguramente, as insinuações nostálgicas de Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos com relação às tradições e circunstâncias particulares que, no entendimento de Gilberto Freyre, teriam desaguado na formação nacional não encontram paralelo em História econômica do Brasil. Por outro lado, é certo que a atenção especial que Formação do Brasil contemporâneo dedica à posição subalterna do país na ordem capitalista mundial conduz Caio Prado Jr. a lidar com questões diversas daquelas contempladas de maneira prioritária em Raízes. Esses e outros aspectos não deixam margem de dúvidas quanto ao fato de se tratar de juízos díspares das invenções modernas - de suas visões de mundo, instituições políticas, valores, gostos, referências comportamentais, dispositivos técnicos, relações econômico-produtivas, etc. Ainda assim, naquilo que toca o estatuto e as possibilidades do país na cena contemporânea, os diagnósticos traçados nos ensaios caminham em ao menos algumas direções notadamente convergentes: mesmo sob o impacto dos padrões europeus, e conquanto premida pelo ritmo avassalador da modernidade, a vida social brasileira teria se conservado permeada por toda sorte de dissonâncias temporais, somente em parte alinhada às grandes tendências do mundo. Quiçá a identificação de tais afinidades e simetrias intelectuais, bem como dos supostos epistemológicos que circunscrevem essas perspectivas de análise também nos auxiliem a elucidar a pertinácia de certas agendas de reflexão e de um conjunto de preocupações que, desde longa data, afligem distintas gerações de nosso pensamento - destaque feito à inclinação disseminada para retratar tal experiência em flagrante contraste com os chamados países modernos centrais.
Referências
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- BASTOS, Elide. A construção do debate sociológico no Brasil. Ideias - Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, v. 4, p. 287-300, 2014.
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O presente artigo é fruto do projeto de pesquisa 303189/2019-3 (CNPq). Um agradecimento especial às/aos pareceristas anônimas/os da RBCP pelos valiosos comentários e sugestões, os quais busquei contemplar ao longo do trabalho.
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Desavenças essas, nunca é demais recapitular, extensivas tanto às maneiras com que valoravam (negativa ou positivamente) as criações sociais da modernidade, quanto como cada um dos autores ansiava (ou não) sua aderência ao país.
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Também denominado por Gumbrecht (2015, p. 14-15; p. 65; p. 102-103)GUMBRECHT, Hans. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Ed. Unesp, 2015. de “cronótopo do progresso” ou de “cronótopo historicista”, tratar-se-ia de um enquadramento cognitivo conforme o qual o tempo avança de forma contínua e “linear”, apartando-se cada vez mais do “passado” e nos colocando em permanente “transformação”. Disso advém a imagem de uma experiência histórica cujo “presente” é tênue e fugaz, a todo momento ofuscado pelas perspectivas de “futuro” distendidas pela ação racional.
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Minha intenção aqui é adensar e desdobrar uma discussão que apenas iniciei alhures (TAVOLARO, 2021TAVOLARO, Sergio B. F. Interpretações do Brasil e a temporalidade moderna: do sentimento de descompasso à crítica epistemológica. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 36, n. 3, p. 1059-1081, 2021.; TAVOLARO, 2020TAVOLARO, Sergio B. F. Stasis, motion and acceleration: the senses and connotations of time in Raízes do Brazil and Sobrados and Mucambos (1936). Sociologia e Antropologia. Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 243-266, 2020.; TAVOLARO, 2017aTAVOLARO, Sergio B. F. Gilberto Freyre e o tempo-espaço brasileiro: uma crítica ao cronótopo da modernidade. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 32, n. 2, p. 411-438, 2017a.; TAVOLARO, 2014TAVOLARO, Sergio B. F. A tese da singularidade brasileira revisitada: desafios teóricos contemporâneos. Dados, Rio de Janeiro, v. 57, n. 3, p. 633-673, 2014.).
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Nessa direção, Schwarz (1987, p. 30)SCHWARZ, Roberto. Que horas são? ensaios. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. refere-se ao “sentimento da contradição entre a realidade nacional e o prestígio ideológico dos países que nos servem de modelo.”
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Nos dizeres de Anderson (1991, p. 24)ANDERSON, Benedict. Imagined communities. London: Verso, 1991., “O que veio a tomar o lugar da concepção medieval de simultaneidade-ao-longo do tempo [simultaneity-along-time] é, para emprestar novamente de [Walter] Benjamin, uma ideia de ‘tempo homogêneo, vazio’, no qual a simultaneidade é, de certo modo, transversal, através-do-tempo, marcada [...] pela coincidência temporal e medida pelo relógio e pelo calendário.” Recorde-se que, em suas teses “Sobre o conceito da história”, Benjamin (1993, p. 229)BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. p. 222-232. refere-se à “idéia de um progresso da humanidade na história” e a seu vínculo com a noção “de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo.”
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Stuart Hall (2006, p. 69-73)HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006., em referência explícita a Harvey (1995)HARVEY, David. The condition of postmodernity. Cambridge: Blackwell, 1995., afirma que tais transformações estariam conduzindo a um quadro de “compressão espaço-tempo”, com implicações políticas e identitárias das mais relevantes. Estou ciente de que esse debate guarda conexões com a vasta produção a respeito da dinâmica política e cultural da chamada pós-modernidade. Infelizmente, não poderei explorar o teor dessas interlocuções nos limites do artigo. Deixo, todavia, algumas indicações auspiciosas, sugestivas da riqueza do debate: Lyotard (2013)LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013., Huyssen (1991)HUYSSEN, Andreas. Mapeando o pós-moderno. In: HOLLANDA, H. B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 15-80. e Aronowitz (1991)ARONOWITZ, Stanley. Pós-modernismo e política. In: HOLLANDA, Heloísa B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 151-175.. Veja-se, ademais, as estimulantes provocações de Heller e Fehér (1998, p. 11-26)HELLER, Agnes. e FEHÉR, Ferenc. A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998., obra que, ao situá-la “dentro do tempo e espaço mais amplos da modernidade” (p. 11), afirma que “A pós-modernidade é em todos os sentidos ‘parasítica’ da modernidade; vive e alimenta-se de suas conquistas e dilemas” (p. 23).
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Freyre sustenta que, desde a chegada do europeu ao continente americano, teve início “a degradação da raça atrasada ao contato da adiantada”. No caso particular da aventura portuguesa, “a colonização europeia vem surpreender [...] quase que bandos de crianças grandes; uma cultura verde e incipiente; ainda na primeira dentição” (FREYRE, 2000FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000., p. 161. Grifo nosso).
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11
Vale observar, na apreciação de Souza (1998, n.p. Itálicos no original)SOUZA, Jessé. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 38, 1998. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300006. Acesso em: 6 nov. 2021.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909199800... a respeito de Raízes, “A falta de vínculo associativo horizontal, que possibilite as constelações de interesses de longo prazo, passa a ser percebida como a causa fundamental do nosso atraso social”. -
12
Segundo Rezende (2001), p. 192-193)REZENDE, Maria José de. A obra Sobrados e mocambos e a mudança social no Brasil. Revista USP, São Paulo, v. 51, p. 190-207, set.-nov. 2001., nas mais conhecidas obras de Freyre, “O passado dá o norte para o presente e para o futuro”. A seu ver, nas imagens traçadas pelo autor acerca do “semipatriarcalismo que tomava corpo no século XIX” é notória “a sobreposição de elementos velhos e novos em todas as esferas da vida social” (REZENDE, 2001REZENDE, Maria José de. A obra Sobrados e mocambos e a mudança social no Brasil. Revista USP, São Paulo, v. 51, p. 190-207, set.-nov. 2001., p. 196).
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13
Na visão de Rêgo (1998, p. 85)RÊGO, Rubem. Caio Prado Jr.: sentimento do Brasil. Revista USP, São Paulo, v. 38, p. 78-87, jun.-ago. 1998., Prado Jr. teria buscado “mostrar [...] que o nosso percurso de desenvolvimento nem sempre, e mesmo raramente, resultou em uma ruptura essencial com esses padrões tradicionais”. Veja-se também Coutinho (2001, p. 107)COUTINHO, Carlos N. O desafio dos que pensaram bem o Brasil. Lua Nova, São Paulo, n. 54, p. 103-113, 2001..
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14
Waizbort (2016, p. 466)WAIZBORT, Leopoldo. Raízes do Brasil: inércia e transformação lenta. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil - edição crítica. São Paulo: Cia. das Letras, 2016. p. 465-470. ressalta que, para Holanda, existiria “uma incompatibilidade radical entre a estrutura da personalidade característica do ‘povo’ brasileiro - o personalismo - e uma estrutura social de caráter democrático”.
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15
Veja-se, também a esse respeito, a análise de Motta (2013)MOTTA, Roberto. Tempo, desenvolvimento e (in)correção histórica: a propósito da lusotropicologia de Gilberto Freyre. In: MOTTA, Roberto; FERNANDES, Marcionila (orgs.). Gilberto Freyre: região, tradição, trópico e outras aproximações. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2013. p. 213-242..
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16
Ricupero (2000, p. 173)RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Usp; Fapesp; Editora 34, 2000. sustenta que, posteriormente, em Diretrizes para uma política econômica brasileira, Prado Jr. aludiria ao “convívio ente situações características de tempos históricos variados” para tratar da especificidade desse fenômeno no país.
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17
Assim como Ricupero (2000, p. 161-162, nota 7)RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Usp; Fapesp; Editora 34, 2000., Iumatti (2017)IUMATTI, Paulo. Historiographical and conceptual exchange between Fernand Braudel and Caio Prado Jr. in the 1930s and 1940s: a case of unequal positions in the intellectual space between Brazil and France. Storia della Storiografia, v. 71, n. 1, p. 89-110, 2017. oferece um retrato detalhado da atmosfera intelectual da USP na década de 1930 onde a problemática do tempo era objeto de grande interesse, envolvendo figuras-chave na trajetória intelectual de Prado Jr (dentre elas, Pierre Deffontaines e Fernand Braudel). Segundo ele, “historiadores como Braudel e Caio Prado nos anos 1930, inspirados por estudos na Geografia Humana, já estavam pensando através de múltiplas temporalidades, rompendo com o tempo linear e reconsiderando as relações entre passado e presente” (IUMATTI, 2017IUMATTI, Paulo. Historiographical and conceptual exchange between Fernand Braudel and Caio Prado Jr. in the 1930s and 1940s: a case of unequal positions in the intellectual space between Brazil and France. Storia della Storiografia, v. 71, n. 1, p. 89-110, 2017., p. 97).
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18
A respeito dessas caracterizações, que nos apartariam dos ditos contextos centrais, veja-se os traços também assinalados nas análises de Souza (1998, n.p.)SOUZA, Jessé. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 38, 1998. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300006. Acesso em: 6 nov. 2021.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909199800... e Vianna (1999, p. 35-36)VIANNA, Luís Werneck. Weber e a interpretação do Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 1, n. 53, p. 33-47, 1999.. -
19
Nos termos de Chakrabarty (2000, p. 6-7)CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2000., ao apreender a modernidade (e suas instituições políticas, econômicas, sociais e culturais características) como um fenômeno intrínseca e singularmente europeu, essa “modalidade de pensamento” que o autor denomina de historicista, inextricável de certa “ideologia do progresso”, posicionou a Europa/Ocidente na vanguarda de um “tempo histórico global” - sendo as demais sociedades concebidas como suas tributárias na ordem política e social então inaugurada. Veja-se também Chatterjee (2008)CHATTERJEE, Partha. La nación en tiempo heterogéneo: y otros estudios subalternos. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008..
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20
Segundo Gumbrecht (2014, p. 63), tal “‘construção social do tempo’ - este cronótopo - emergiu nos primórdios do século XIX e, como pré-condição institucional para o comportamento e as ações humanas, teve consequências de tal monta que foi simplesmente confundida com o ‘tempo’ e a ‘história’”.
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21
É digno de nota que, para Larreta e Giucci (2007, p. 465)LARRETA, Enrique; GIUCCI, Guillermo. Raça e cultura em Casa-grande & senzala. In: Gilberto Freyre: uma biografia cultural - A formação de um intelectual brasileiro - 1900-1936. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 451-482., apesar de não reputar “a cultura europeia dos países mais adiantados como uma norma”, o autor de Casa-grande & senzala “não rompe totalmente com a narrativa do progresso”. Longe disso, “Sua própria dependência do vocabulário das ciências sociais modernas o torna propenso a pensar as diversas culturas em termos de adiantadas e atrasadas”.
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Bolsista Pesquisador CNPq.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Mar 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
02 Jun 2021 -
Aceito
24 Nov 2021