Open-access O liberalismo à luz do antitotalitarismo: Revisitando a crítica schmittiana da despolitização liberal nas leituras de Rosanvallon e Gauchet sobre o liberalismo clássico

Liberalism in Light of Antitotalitarianism: Revisiting the Schmittian critique of liberal depoliticization in Rosanvallon and Gauchet’s readings of classical liberalism

Resumo:

Este artigo procura conferir maior complexidade à compreensão do chamado “momento antitotalitário francês” dos anos 1970, impactado pela publicação de Arquipélago Gulag, de Aleksandr Soljenítsyn, e pela proeminência intelectual alcançada pela crítica do totalitarismo. A questão levantada é como essa crítica do totalitarismo informa as interpretações do liberalismo clássico formuladas, na sequência, por autores como Pierre Rosanvallon e Marcel Gauchet. A hipótese é que essas interpretações são marcadas por uma ambiguidade: por um lado, o liberalismo é acusado, como o totalitarismo, de tender à supressão da autonomia do político - aspecto pelo qual Rosanvallon e Gauchet revisitam a crítica schmittiana da despolitização liberal. Por outro lado, certa tradição liberal aparece como fecunda para pensar o primado do político na instituição do social.

Palavras-chave: liberalismo; totalitarismo; Pierre Rosanvallon; Marcel Gauchet; teoria política francesa contemporânea; democracia

Abstract:

This paper seeks to complexify the comprehension of the so-called “French antitotalitarian moment” of the 1970s, marked by the publication of Aleksandr Solzhenitsyn’s The Gulag Archipelago and by the intellectual prominence reached by the critique of totalitarianism. The question I raise is how this critique of totalitarianism shapes the interpretations of classical liberalism formulated by authors such as Pierre Rosanvallon and Marcel Gauchet. The hypothesis is that those interpretations are characterized by an ambiguity: in the first instance, both liberalism and totalitarianism are accused of tending towards the suppression of the autonomy of “the political” - an aspect that leads Rosanvallon and Gauchet to revisit the Schmittian critique of liberal depoliticization. Nevertheless, a certain liberal tradition appears as fruitful for exploring the primacy of “the political” in the institution of the social.

Keywords: liberalism; totalitarianism; Pierre Rosanvallon; Marcel Gauchet; contemporary French political theory; democracy

Introdução

As décadas de 1970 e 1980 presenciam uma transformação profunda no cenário intelectual francês. O ponto de partida dessa mutação intelectual é constituído pelas críticas do totalitarismo (especialmente de sua versão comunista) veiculadas na segunda metade dos anos 1970, tendo por marco a publicação, em 1974, da tradução francesa de Arquipélago Gulag, de Aleksandr Soljenítsyn - “uma obra que produz o efeito de uma bomba nuclear” (DOSSE, 2018, p. 240, tradução nossa).

Dosse (2018, p. 261) sugere a existência de “duas vias do antitotalitarismo” nesse contexto. A primeira é a dos chamados “novos filósofos” (nouveaux philosophes), com destaque para André Glucksmann e Bernard-Henri Lévy, que provocam uma enorme polêmica ao traçar uma linha direta entre Karl Marx e o Gulag. Apesar do sucesso midiático alcançado na segunda metade dos anos 1970, a filosofia que eles propõem, baseada em uma recusa pessimista da política e da História em nome de um retorno à individualidade e à moralidade, não tem um desenvolvimento importante nos anos seguintes. A segunda vertente do antitotalitarismo, a qual desenvolve um pensamento muito mais sofisticado e influente no longo prazo, é a da “segunda esquerda” (deuxième gauche) - constelação político-intelectual que agrupa “personalidades vindas de horizontes diversos” (DOSSE, 2018, p. 280, tradução nossa): dos fundadores de Socialismo ou Barbárie, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, a intelectuais como Marcel Gauchet, Marc Richir, Pierre Rosanvallon, Pierre Clastres, Edgar Morin, Paul Thibaud, Olivier Mongin, Miguel Abensour, entre outros. Uma terceira corrente intelectual que se destaca no debate antitotalitário francês dos anos 1970 é a do “círculo aroniano”, formada por Raymond Aron e seus seguidores. É no início dos anos 1970 que esse “círculo aroniano” se consolida como grupo coeso, em torno da revista Contrepoint, e depois Commentaire (CHÂTON, 2016).

Segundo as principais narrativas sobre a mutação intelectual desencadeada na França dos anos 1970 e 1980, a crítica do totalitarismo comunista teria levado a um enfraquecimento do marxismo como orientação teórica dominante nas ciências humanas e a um resgate do liberalismo político.3 Essa passagem do marxismo ao liberalismo teria se refletido no novo impulso conferido aos estudos sobre os liberais franceses da primeira metade do século XIX, com autores como Benjamin Constant, François Guizot e Alexis de Tocqueville sendo tirados do esquecimento parcial a que haviam sido submetidos desde o fim do século XIX. O principal líder desse movimento de recuperação intelectual do liberalismo clássico francês teria sido o historiador François Furet, considerado por Perry Anderson como “um organizador institucional e ideológico sem igual” no front antitotalitário (ANDERSON, 2005, p. 43, tradução nossa). Um dos fundadores, em 1975, da prestigiada École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), a partir da transformação estatutária da VI Seção da École Pratique des Hautes Études (EPHE), Furet a dirige de 1977 a 1985, reunindo, em seu interior, um grupo de estudos informal que mudaria a configuração da vida intelectual francesa. Esse grupo de estudos juntava Lefort, Castoriadis e Furet a membros proeminentes da “geração 1968” já engajados no debate antitotalitário, notadamente Gauchet, Rosanvallon, Pierre Manent e Bernard Manin. “Esse seminário informal se tornou o núcleo do que tem sido chamado nos Estados Unidos de ‘Novo Pensamento Francês’ [‘New French Thought’]” (JAINCHILL; MOYN, 2004, p. 116, tradução nossa). Em 1984, esse grupo, que já se reunia informalmente desde 1977, adquire um contorno institucional mais nítido, por meio da fundação do Institut Raymond Aron, matriz do atual Centre d’Études Sociologiques et Politiques Raymond Aron (CESPRA), um dos laboratórios da EHESS. As reflexões suscitadas nesse ambiente adquirem grande notoriedade na França do final dos anos 1970 e do início dos anos 1980, sendo vocalizadas principalmente por revistas como Esprit, Textures, Libre e, em um momento mais avançado do debate, Commentaire (fundada sob a liderança de Aron, em 1978) e Le Débat (fundada em 1980 por Pierre Nora, e editada por Gauchet).

Os primeiros comentadores externos dessa mutação da vida intelectual francesa, Tony Judt, Sunil Khilnani e Mark Lilla, escrevendo no início dos anos 1990, tenderam a atribuir-lhe um sentido positivo: após dois séculos de uma cultura política iliberal que remontaria ao jacobinismo e atingiria seu auge no culto da política revolucionária no período 1945-1975, os intelectuais franceses teriam finalmente começado a apreciar o justo valor do liberalismo na política moderna (JUDT, 1992; KHILNANI, 1993; LILLA, 1994). No início dos anos 2000, Michael Scott Christofferson e Perry Anderson respondem com uma visão negativa sobre essa mudança de posição da intelectualidade francesa, vendo como o resultado de longo prazo do movimento intelectual antitotalitário uma adoção acrítica do liberalismo, ou mesmo do neoliberalismo, como o único modelo político aceitável (CHRISTOFFERSON, 2004; ANDERSON, 2005).

Estudos mais recentes, como os reunidos na coletânea In search of the liberal moment: democracy, anti-totalitarianism, and intellectual politics in France since 1950, de 2016, buscam ir além da polêmica sobre o caráter positivo ou negativo do “momento antitotalitário francês”, questionando o relato usual de uma súbita mudança de posição da intelectualidade francesa em bloco, e aprofundando questões como a das raízes mais longevas desse momento antitotalitário, a da heterogeneidade dos autores identificados a esse movimento e a de sua relação com a recuperação da tradição liberal em outros países no mesmo período (SAWYER; STEWART, 2016, p. 2-3). Este artigo se enquadra nessa tentativa de conferir maior complexidade à compreensão do “momento antitotalitário francês”, levantando uma questão diferente das tratadas nos artigos incorporados a In search of the liberal moment: trata-se da questão de como a crítica do totalitarismo dos anos 1970 informa as interpretações dos liberais clássicos formuladas pouco tempo depois, entre o final dos anos 1970 e a primeira metade dos anos 1980.

Estudiosos como Samuel Moyn e Noah Rosenblum já salientaram a inadequação de compreender as reflexões desse círculo francês ligado ao Institut Raymond Aron como um simples retorno do liberalismo, uma vez que, mesmo em seus trabalhos tardios sobre o liberalismo e a questão dos “direitos do homem”, autores como Lefort e Gauchet baseiam-se em uma ontologia social que continuaria devendo mais ao marxismo, e eventualmente ao pós-modernismo e aos antifundacionalistas franceses, do que ao liberalismo (MOYN, 2012; ROSENBLUM, 2016). O presente artigo se soma aos esforços de Moyn e Rosenblum, no sentido de contestar o relato usual de um simples “retorno do liberalismo” na sequência da crítica do totalitarismo. No entanto, diferentemente de Moyn e Rosenblum, que se concentram em outros aspectos do pensamento de Lefort e Gauchet, meu objetivo é discutir as ambiguidades das leituras do liberalismo clássico promovidas por Gauchet e Rosanvallon entre 1979 e 1985. Meu objeto reside menos na ontologia social subjacente ao pensamento desses autores (o objeto de Moyn e de Rosenblum) do que na avaliação específica que eles fazem do liberalismo, questionando de que modo essa avaliação é informada pela crítica do totalitarismo desenvolvida nos anos anteriores.

Um dos traços principais da interpretação do totalitarismo desenvolvida por Lefort e seus seguidores reside na compreensão do projeto totalitário como uma tentativa de suprimir a autonomia da esfera do político, de modo que a acusação de desprezo teórico pelo político logo se torna um objeto de crítica ao marxismo, cuja aspiração à supressão do Estado na sociedade comunista futura seria um embrião do totalitarismo. Ora, o ponto a ser notado é que essa crítica estava longe de ter por alvo exclusivo o marxismo. Em suas leituras do liberalismo clássico, Rosanvallon e Gauchet se deparam com a mesma ameaça de uma ideologia que tende à supressão da esfera do político, revisitando implicitamente a hipótese de Carl Schmitt sobre o caráter eminentemente despolitizante do liberalismo. O que procurarei demonstrar é o caráter ambíguo do liberalismo, tal como reinterpretado por Gauchet e Rosanvallon. Apesar de sua tendência intrínseca (ora contornável, ora incontornável) à despolitização, ele seria uma das tradições mais fecundas para pensar o primado do político na instituição do social.

Após uma primeira seção destinada a introduzir essa interpretação do totalitarismo centrada na tentativa de suprimir a esfera do político, este artigo concentrar-se-á nas leituras de Rosanvallon e Gauchet sobre o liberalismo clássico. A segunda seção procurará mostrar como a interpretação do totalitarismo como uma tentativa de suprimir o político serviu para formular uma crítica da própria tradição liberal, acusada de protototalitária. Essa seção terá por foco a obra Le capitalisme utopique: critique de l’idéologie économique, publicada por Rosanvallon em 1979. A terceira seção terá por objeto a leitura de Gauchet sobre Constant e Tocqueville, ao passo que a quarta seção abordará a leitura de Rosanvallon sobre Guizot. Em ambos os casos, o objetivo será sublinhar as ambiguidades que esses autores contemporâneos imputam aos liberais do século XIX. Nas Considerações Finais, refletirei sobre a contribuição que a reflexão francesa dos anos 1970 sobre o totalitarismo trouxe para o estudo do liberalismo.

O totalitarismo como supressão do político

A interpretação de Lefort sobre o totalitarismo remonta a seus artigos para a revista Socialismo ou Barbárie na década de 1950, especialmente “Le totalitarisme sans Staline: L’U.R.S.S. dans une nouvelle phase”, de 1956 (LEFORT, 1979, p. 155-235). É a partir desse ensaio que o totalitarismo se torna o conceito central para a interpretação do regime soviético e adquire seus principais contornos teóricos.4 Em 1956, o autor ainda não define o totalitarismo como um regime político, mas antes como uma forma de sociedade, a qual se caracteriza pela negação da “separação característica do capitalismo burguês entre os diversos domínios da vida social; do político, do econômico, do jurídico, do ideológico etc.” (LEFORT, 1979, p. 190 , tradução nossa), tendo por consequência principal o fato de que “o político cessa de existir como esfera separada” (LEFORT, 1979, p. 190-191, tradução nossa).

Nas décadas seguintes, a interpretação lefortiana do totalitarismo passa por mudanças e aprofundamentos, alcançando o auge de sua repercussão intelectual e política no “momento antitotalitário francês” da segunda metade da década de 1970, quando é publicado, em 1976, Un homme en trop: Réflexions sur L’Archipel du Goulag, o livro de Lefort sobre O Arquipélado Gulag de Soljenítsyn (LEFORT, 2015). No mesmo ano, Gauchet publica “L’expérience totalitaire et la pensée de la politique”, na revista Esprit (republicado em La condition politique, em 2005). O ensaio “Sur la démocratie: le politique et l’institution du social”, publicado por Lefort e Gauchet em 1971, na revista Textures, com base em curso de Lefort de 1966-67, já havia constituído para ambos os autores uma oportunidade de sistematizar sua maneira de relacionar e opor a democracia e o totalitarismo a partir da dimensão do político, concebido como lugar simbólico do reconhecimento ou da denegação da divisão social e do conflito (LEFORT; GAUCHET, 1971). A partir dessa elaboração, a supressão do político como esfera separada e a denegação do conflito tornam-se os principais critérios definidores do totalitarismo, em uma interpretação que será crucial para os autores reunidos no Institut Raymond Aron, e que receberá sua versão mais acabada em textos de maturidade de Lefort, como “L’image du corps et le totalitarisme”, de 1979, e “La logique totalitaire” e “Staline et le stalinisme”, de 1980, republicados em L’invention démocratique: les limites de la logique totalitaire, de 1981.

Nesses textos de maturidade de Lefort, o totalitarismo é definido como uma representação simbólica do povo como identificado ao partido, rompendo com a distinção entre Estado e sociedade e, mais profundamente, com “o princípio mesmo de uma distinção entre o que depende da ordem do poder, da ordem da lei e da ordem do conhecimento. Opera-se, então, na política, uma espécie de imbricação do econômico, do jurídico, do cultural” (LEFORT, 2011, p. 93). Uma vez dissolvida a fronteira entre Estado e sociedade, essa sociedade homogênea e transparente em relação a si mesma apareceria, na representação totalitária, como fundida ao poder legítimo, constituindo um “poder social” (LEFORT, 2011, p. 97). Em suma, “o processo de identificação entre o poder e a sociedade, o processo de homogeneização do espaço social, o processo de fechamento da sociedade e do poder encadeiam-se para constituir o sistema totalitário” (LEFORT, 2011, p. 98).

Assim, de “Le totalitarisme sans Staline” aos ensaios reunidos em L’invention démocratique, a definição do totalitarismo repousa sobre a supressão do domínio do político, por meio da fusão entre Estado e sociedade. Nessa temática, é possível notar uma surpreendente convergência do pensamento de Lefort com o de Carl Schmitt. Em O conceito do político, de 1932, este havia notado um movimento histórico em direção à interpenetração entre Estado e sociedade, resultando em um “Estado total”. Este “Estado total” havia sido apresentado como “um conceito polêmico voltado contra essas neutralizações e despolitizações de importantes domínios” (SCHMITT, 2007, p. 22, tradução nossa) - neutralizações e despolitizações resultantes da própria fusão entre Estado e sociedade, a qual apresentaria o risco de colonizar o político por domínios não políticos. Como comenta Moyn (2016, p. 293, tradução nossa): “Onde tudo é político, pode-se seguir que nada o é. O objetivo analítico de Schmitt, ao especificar a essência do político, é determinado, portanto, por uma ansiedade valorativa de que ele pode desaparecer”.

A relação entre “o político” de Schmitt e o de Lefort e seus discípulos permanece um objeto de investigação e debate. Autores como Moyn (2016) e Cintra (2022, p. 23-24, nota 11) insistem nas diferenças entre os conceitos do político de ambos os autores, ao passo que Sawyer e Stewart notam que “a natureza e a extensão da influência schmittiana sobre a recuperação do ‘político’ pela esquerda antitotalitária ainda está para ser totalmente explorada” (SAWYER; STEWART, 2016, p. 9-10, tradução nossa). O que se sabe é que Schmitt - que, durante algum tempo, havia sido um autor marginal na França, lido apenas em pequenos círculos de extrema direita - passa a ter uma maior influência no pensamento político francês a partir do livro de Julien Freund, L’Essence du politique, de 1965, fruto de tese de doutorado orientada por Aron (STEINMETZ-JENKINS, 2016). O próprio Aron havia sido um estudioso de Schmitt desde sua estadia na Alemanha no início dos anos 1930, estabelecendo uma longeva troca de correspondências com o jurista alemão nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial e traduzindo O conceito do político e Teoria do partisan no início dos anos 1970. Steinmetz-Jenkins (2014) chega a argumentar que o pensamento de Aron se tornou ainda mais dependente do de Schmitt a partir da década de 1970, em função da guinada conservadora provocada pelos eventos de maio de 1968 e de seu livro sobre a obra de Carl von Clausewitz, o que teria levado o sociólogo liberal francês a rever suas reservas iniciais quanto ao passado nazista do pensador alemão e a escrever em suas Memórias, de 1983, que Schmitt nunca foi nazista. Steinmetz-Jenkins (2014, p. 572-574) sugere ainda que a influência oculta de Schmitt permanece em importantes pensadores oriundos do “liberal revival” francês, como Manent. Independentemente da aceitação das teses de Steinmetz-Jenkins, é preciso levar em consideração que um dos primeiros autores franceses a insistir no primado do político, Aron, travou um diálogo complexo com Schmitt.

É verdade que, ao teorizar “o primado da política” (ARON, 1965, p. 26, tradução nossa), Aron inaugura uma via diferente da do autor d’O conceito do político. Este havia definido o político pela intensidade da polarização entre amigo e inimigo, uma polarização que, no limite, poderia conduzir à guerra. Sua preocupação era apreender a especificidade do domínio político em relação a esferas como a economia, a moral, a religião e a estética, definidas pela prevalência de outras antíteses: o bem e o mal, o belo e o feio etc. Aron, por sua vez, inaugura o ponto de vista que, no Brasil, será associado à “escola francesa do político” (LYNCH, 2010; CUNHA; LYNCH, 2021), ao distinguir dois sentidos da palavra “política” (os dois sentidos que, posteriormente, servirão de base à distinção entre “a política” e “o político”): “designa-se pela mesma palavra ‘política’, por um lado, um setor particular do conjunto social e, por outro lado, o próprio conjunto social, observado de certo ponto de vista” (ARON, 1965, p. 24, tradução nossa). Como argumenta Moyn (2016), Aron inaugura, por meio dessa distinção, uma concepção fundacional do político, a qual não estava presente em Schmitt e que influenciará Lefort, quem acrescentará às intuições de Aron uma teoria da dimensão simbólica do político, oriunda de sua formação na fenomenologia.

É pelo prisma dessa dimensão simbólica fundacional do político que Lefort e Gauchet interpretam o totalitarismo nos anos 1970, atualizando e sofisticando “o primado da política” anunciado por Aron. Segundo Lefort e Gauchet, o totalitarismo não pode ser apreendido por uma análise empírica, mas por meio da interrogação a respeito de como a sociedade totalitária se autorrepresenta simbolicamente, sendo o político justamente o lócus de formulação dessa representação da sociedade sobre si mesma. Nesse sentido, a necessidade de interpretar o totalitarismo teria trazido novamente a centralidade do político, menosprezado por tradições intelectuais que haviam colocado o fenômeno político em um lugar subalterno: “O totalitarismo não é mais, em certo sentido, do que o retorno do recalcado político. Renascem nele e com ele a questão da natureza do político e a questão do lugar do político no social” (GAUCHET, 2005a, p. 434, tradução nossa, itálicos do autor).

Ao mesmo tempo, o totalitarismo seria uma tentativa (no limite impossível) de suprimir a esfera do político, por meio da fusão entre o poder e a sociedade referida acima. Dessa maneira, apesar da divergência com a concepção schmittiana do político, a preocupação de Schmitt com a possível despolitização causada pelo “Estado total” é retomada de maneira implícita. O jurista alemão via no liberalismo o principal projeto de despolitização da sociedade moderna: “De modo muito sistemático, o pensamento liberal evade ou ignora o Estado e a política, movendo-se, em vez disso, em torno de uma típica e sempre recorrente polaridade de duas esferas heterogêneas, a saber, a ética e a economia” (SCHMITT, 2007, p. 70, tradução nossa). No totalitarismo teorizado por Lefort e Gauchet, não se trata de reduzir a política à ética ou à economia, como Schmitt acusa os liberais de fazer, mas de recusar o lugar do poder como uma esfera autônoma, fazendo do social, concebido sob a imagem do corpo, uma instância sem exterioridade: “A tentativa de incorporação do poder na sociedade, da sociedade no Estado, implica, de alguma maneira, que não há nada que possa se fazer o indício de uma exterioridade ao social e ao órgão que o figura, dele se destacando” (LEFORT, 2011, p. 147).

Quais seriam as origens dessa tentação pela sociedade emancipada do político, por essa ordem social harmônica e transparente que dispensa um poder político separado para representá-la? Para o grupo intelectual aqui concernido, é impossível responder a essa pergunta sem uma interrogação mais ampla sobre a modernidade política. É especialmente o processo moderno de secularização (ou de “saída da religião”, na conceituação de Gauchet) que passa a ser problematizado em sua relação com o totalitarismo. Isso porque a possibilidade totalitária existe justamente a partir do momento em que a sociedade não tem mais uma origem transcendente, de modo que a lei, o conhecimento e o poder se tornam criações da própria comunidade humana, sendo forte a tentação de remeter essa origem humana do Direito, do saber e do poder a uma sociedade que se confunde com o poder, a um “poder social” que nega a autonomia do político.

Decorre dessa reinterpretação da modernidade à luz do totalitarismo o interesse dos pesquisadores reunidos no Institut Raymond Aron pelo liberalismo, definido por Rosanvallon como “a cultura em trabalho do mundo moderno” (ROSANVALLON, 1999, p. X, tradução nossa). A questão a ser examinada a partir de agora é o impacto que essa leitura particular do totalitarismo, centrada na tentação pela supressão do político, exerce sobre os novos estudos sobre o liberalismo. Como veremos, o liberalismo é confrontado por esses autores principalmente a partir do problema schmittiano da despolitização.

Os germes totalitários do liberalismo

Tanto Lefort como Gauchet remetem a denegação da divisão social, característica do totalitarismo, não apenas à sociedade comunista futura imaginada pelo marxismo, mas também a uma “ideologia burguesa” preocupada em ocultar o conflito de classes produzido pelo capitalismo. No já referido ensaio conjunto de 1971, “Sur la démocratie: le politique et l’institution du social”, os autores se esforçam para refutar simultaneamente o “racionalismo liberal”, que dissimula a dominação burguesa pelo véu de um conjunto de regras dissociadas das condições reais de sua aplicação, e a teoria marxista, que faz do político um fenômeno derivado, e da democracia um simples apêndice do capitalismo (LEFORT; GAUCHET, 1971, p. 7-8). Em “La logique totalitaire”, de 1980, Lefort estabelece uma continuidade entre essas duas ilusões de superação da divisão social, a “denegação liberal do antagonismo das classes na realidade efetiva do capitalismo” e a aposta marxista em uma supressão desse conflito na sociedade comunista futura:

A ficção de uma organização da produção sob a direção dos trabalhadores associados, isto é, de fato, de seus representantes, veio substituir a de um mercado que conciliaria os interesses e satisfaria as necessidades por autorregulação. Assim, à denegação liberal do antagonismo das classes na realidade efetiva do capitalismo respondeu a ilusão de uma abolição desse antagonismo num futuro mais ou menos próximo, graças a uma revolução ou à abolição progressiva da propriedade privada (LEFORT, 2011, p. 90).

Ou seja, ao definir o totalitarismo fundamentalmente pela denegação da divisão social, Lefort e Gauchet encontram um primeiro germe da lógica totalitária em uma “ideologia burguesa” associada ao liberalismo econômico clássico e à crença na capacidade de autorregulação do mercado, antes mesmo de o marxismo projetar o ideal de uma sociedade harmônica e transparente em relação a si mesma para a revolução comunista futura. Contudo, será Rosanvallon que, nesse mesmo momento de fim dos anos 1970, desenvolverá a tese dos germes totalitários do liberalismo econômico clássico de modo mais sistemático, notadamente em sua obra Le capitalisme utopique: Critique de l’idéologie économique, publicada em 1979, e resultante de uma tese de doutoramento orientada por Lefort.5

Revisitando as intenções por trás desse livro, em Notre histoire intellectuelle et politique 1968-2018, Rosanvallon afirma:

minha abordagem havia sido determinada, de algum modo, por minha preocupação de alargar minha compreensão do totalitarismo. No momento em que alguns colocavam Marx no banco dos réus e o responsabilizavam pelo Gulag, parecia-me importante sublinhar que era, mais largamente, a modernidade que era preciso interrogar para compreender as patologias do presente (ROSANVALLON, 2018, p. 112-113, tradução nossa).

Ou seja, o autor radicaliza a intuição de Lefort e Gauchet, segundo a qual é necessário buscar as origens teóricas do totalitarismo nos primórdios da modernidade política. É com esse espírito que Rosanvallon se debruça sobre os filósofos do Iluminismo escocês, com destaque para Adam Smith, investigando neles a formação de uma utopia que eleva o mercado a um princípio de organização social. Em sua leitura, o liberalismo econômico não faz do mercado simplesmente uma técnica de organização da atividade econômica, mas um modelo de sociedade, uma representação simbólica a respeito de como a sociedade se institui e se autorregula. Nessa investigação, o autor encontra correspondências entre essa representação do social como sociedade de mercado e o imaginário totalitário estudado por Lefort. Em ambos os casos, a sociedade é concebida como desprovida de divisão interna e como uma entidade transparente em relação a si mesma, a qual prescinde de uma instância política separada para forjar sua identidade. Nos totalitarismos do século XX, a sociedade prescinde de uma instância política separada, porque o poder se encontra fundido à própria sociedade. Já no ideal de sociedade de mercado analisado por Rosanvallon, a instância do político é negada, uma vez que as necessidades e os interesses entrariam em harmonia espontaneamente se o mercado fosse deixado a si mesmo, sem a necessidade da regulação do Estado. É por isso que o autor considera Smith como “o teórico do deperecimento da política” (ROSANVALLON, 1999, p. IV, tradução nossa), como “um verdadeiro antiMaquiavel” (ROSANVALLON, 1999, p. 61, tradução nossa, itálicos do autor): na esteira de Lefort, Rosanvallon pensa Maquiavel como o autor que reconheceu em seu mais alto grau o caráter incontornável da política e da divisão social.

A tese de Rosanvallon é sugestiva, na medida em que propõe que esse germe totalitário não estaria restrito ao liberalismo econômico de Smith. Pelo contrário, a utopia de uma sociedade autoinstituída e autorregulada com base no paradigma do mercado teria se tornado um ideal político extremamente influente na modernidade, para além da acepção estritamente econômica da ideia de mercado. Com efeito, o autor procura mostrar que a palavra “comércio”, no século XVIII, começa a se aplicar ao conjunto das relações sociais (“comércio de ideias”, “comércio do amor”, “comércio dos homens” etc.), de modo que um modelo inicialmente apenas econômico se torna um paradigma de todas as relações pacíficas e equilibradas, baseadas na livre comunicação (ROSANVALLON, 1999, p. 64-65). Nesse sentido, Rosanvallon sugere que, antes de ser apropriado pelo liberalismo estritamente econômico no século XIX, Smith esteve na base do liberalismo político do fim do século XVIII, o qual realizaria um prolongamento de sua utopia da sociedade de mercado para o terreno da filosofia política. Os autores centrais para essa tese são Thomas Paine e William Godwin, representativos do radicalismo político inglês do fim do século XVIII. Segundo Rosanvallon, Paine e Godwin baseiam-se na utopia de Smith para projetar uma sociedade que não precisaria mais do governo nem da política, uma vez que, em um estado de igualdade e de difusão das luzes, os interesses tenderiam espontaneamente a se harmonizar, e o campo político poderia ser reduzido “à gestão das atividades necessárias para a busca do interesse econômico de cada um dos indivíduos” (ROSANVALLON, 1999, p. 157, tradução nossa). O comércio, tomado no sentido amplo que ele adquire no século XVIII, tornar-se-ia “o arquétipo das novas relações sociais a instaurar”, “o instrumento da convivência entre os homens e da paz entre as nações” (ROSANVALLON, 1999, p. 146, tradução nossa).

Rosanvallon designa de “liberalismo utópico” essa transposição do ideal da sociedade de mercado para o liberalismo político do fim do século XVIII, e vê nele o principal germe totalitário engendrado pelo pensamento liberal, com sua obsessão pela supressão da esfera política: “É esse liberalismo utópico que me parece perigoso, e é a partir dele que se deve compreender a reversão possível da democracia em totalitarismo” (ROSANVALLON, 1999, p. 159, tradução nossa). Paine e Godwin seriam pensadores da democracia, mas eles a teriam reduzido a um estado social marcado pela igualdade e pela liberdade dos indivíduos, o qual chegaria a seu mais alto grau de perfeição por meio do processo de desaparecimento gradual do Estado e da política. Ora, inspirando-se em Lefort, Rosanvallon concebe o totalitarismo como “o produto de um esforço político insensato para dissolver a política” (ROSANVALLON, 1999, p. 160, tradução nossa). O autor contemporâneo é particularmente severo em seu julgamento do ideal político de Godwin, em que o olho atento e censor da opinião pública esclarecida substitui o governo e a lei positiva na regulação da sociedade:

Seu “olho de julgamento público” faz da sociedade inteira uma vasta prisão, à imagem do panóptico com que sonhava Bentham. Seu anarquismo democrático se transforma diretamente em um totalitarismo de face humana: o da coerção invisível, onipresente, sem limites, que a sociedade inteira faz pesar sobre si mesma, apagando toda fronteira entre o domínio privado e o domínio público (ROSANVALLON, 1999, p. 152, tradução nossa).

A tese defendida por Rosanvallon em Le capitalisme utopique - a qual desenvolve intuições já presentes na interpretação do totalitarismo proposta por Lefort e Gauchet - deixa claro que, se a crítica do totalitarismo pela “escola francesa do político” leva a uma retomada dos estudos sobre o liberalismo, essa retomada está longe de significar uma conversão ao liberalismo, como é muitas vezes sugerido. Pelo contrário, o liberalismo é estudado, em primeiro lugar, como um primeiro germe do projeto totalitário de negação do político e da divisão social - um germe que teria influenciado os potenciais totalitários do próprio marxismo.6 Embora sem mencioná-lo, Rosanvallon retoma, de algum modo, a crítica de Schmitt à tendência do liberalismo à despolitização.

É importante sublinhar que uma posição como a de Rosanvallon não poderia ser entendida como uma crítica específica do liberalismo econômico, a qual pouparia o liberalismo político. O autor não considera a distinção entre liberalismo econômico e político como verdadeiramente operacional (ROSANVALLON, 1999, p. 158), uma vez que o ideal de uma sociedade autorregulada pelo paradigma do mercado, prescindindo de uma instância política separada, pode ser transposto para o liberalismo político, como ilustram Paine e Godwin (representantes de um liberalismo político progressista e radical, vale destacar). Dentro do liberalismo político, seria preciso distinguir entre um “liberalismo positivo”, baseado na defesa dos direitos do homem contra formas de dominação econômica, política ou social inscritas na História, e um “liberalismo utópico”, o qual “dá-se, ao contrário, como objetivo realizar uma sociedade de mercado que representaria a idade adulta da felicidade da humanidade. Ele tende, assim, a fechar a História” (ROSANVALLON, 1999, p. 159, tradução nossa).

No prefácio da terceira edição de Le capitalisme utopique, “Le marché et les trois utopies libérales”, escrito em 1998, Rosanvallon propõe que o liberalismo econômico, o liberalismo político e o liberalismo moral remetem a uma mesma utopia da sociedade fundada e autorregulada sobre o princípio da autonomia individual, sem a intervenção voluntarista do poder estatal. Ao passo que o mercado pode ser apresentado como uma simples técnica econômica, e o Estado de Direito como um simples meio de proteção dos indivíduos e das minorias, ambos remetem, se levados a sua consequência lógica, à utopia de uma sociedade que dispensa a esfera política, uma vez que o Direito e o mercado bastariam para regular as relações sociais (ROSANVALLON, 1999, p. VII-X). Assim, se mesmo o Estado de Direito liberal pode envolver implicitamente uma utopia que tende à supressão do político e, portanto, ao totalitarismo, a pergunta a ser colocada é a seguinte: que tipo de “resgate” do liberalismo é possibilitado por essa crítica do totalitarismo?

Gauchet leitor de Constant e Tocqueville: lucidez e ilusões sobre a sociedade moderna

Apesar desse apontamento dos germes totalitários do liberalismo utópico, Rosanvallon, Gauchet e mesmo Lefort, em sua fase madura, são conhecidos por terem operado uma espécie de “resgate” do liberalismo político clássico em chave positiva - resgate louvado por autores como Judt, Khilnani e Lilla, e criticado por autores como Christofferson e Anderson. Podemos mesmo falar em um resgate da tradição liberal em chave positiva? Nas próximas seções, abordarei as ambiguidades da leitura de Gauchet e Rosanvallon sobre os clássicos liberais normalmente associados a esse “resgate”, Benjamin Constant, François Guizot e Alexis de Tocqueville. Esta seção tratará da leitura de Gauchet sobre Constant e Tocqueville.

Minha hipótese é que, se esses autores do século XIX interessam a Gauchet, é porque eles são percebidos como afastados do “liberalismo utópico” criticado por Rosanvallon,7 no sentido de não aspirarem a uma supressão da esfera política. Pelo contrário, seria possível encontrar neles noções implícitas ou explícitas do político como instância de instituição do social. Por outro lado, argumentarei que, embora interessado no que afasta Constant e Tocqueville do “liberalismo utópico”, Gauchet não vê esse afastamento como total, enxergando alguns dos vícios do “liberalismo utópico” nos liberais franceses oitocentistas que lhe interessam. Na seção seguinte, procurarei mostrar que algo muito similar ocorre com a leitura de Rosanvallon sobre Guizot, a qual deve ser estudada paralelamente à “redescoberta” dos liberais por parte de Gauchet.

Em “Benjamin Constant: l’illusion lucide du libéralisme”, de 1980, Gauchet afirma buscar, em Constant, “um começo de resposta às aporias devastadoras da modernidade” (GAUCHET, 1997, p. 28, tradução nossa). Constant é retratado como um autor particularmente importante para pensar o fenômeno totalitário, uma vez que sua crítica do Terror jacobino e do despotismo napoleônico têm por ponto central a denúncia das apropriações tirânicas do princípio da soberania do povo, levantando a questão de como o poder derivado puramente da comunidade humana, e que pretende se confundir com ela, pode se voltar contra a liberdade (GAUCHET, 1997, p. 28).

É interessante observar que Gauchet confere importância ao empreendimento de esclarecer a relação de Constant com Paine e Godwin, o que pode ser interpretado como uma tentativa de entender até que ponto o autor franco-suíço se aproxima, apesar de sua relevância para pensar o fenômeno totalitário no século XX, das tendências protototalitárias daquilo que Rosanvallon havia chamado de “liberalismo utópico”. Segundo o autor contemporâneo, Constant segue Paine na “confiança primordial no poder autoconstituinte do laço social” (GAUCHET, 1997, p. 62, tradução nossa), ou seja, na crença de que a sociedade possui um princípio autônomo de coesão, não precisando da coerção de uma autoridade exterior para se manter unida. Não obstante, Gauchet enfatiza a divergência de Constant em relação à visão negativa de Paine e Godwin sobre o Estado - ou seja, em relação à visão do governo como um mal necessário, segundo a formulação de Paine em Common Sense, ou à previsão de Godwin, segundo a qual o Estado desapareceria no futuro, quando as luzes estivessem mais difundidas. Assim, Gauchet destaca o comentário de Constant no artigo “De Godwin et de son ouvrage sur la justice politique”, em que o autor franco-suíço contesta a visão de Godwin (e de Paine) do governo como um mal:

O governo tem uma esfera que lhe é própria. Ele é criado pelas necessidades da sociedade, e para impedir que seus membros se prejudiquem mutuamente; enquanto permanece nessa esfera, ele só pesa sobre os cidadãos na medida em que eles se prejudicam. Portanto, ele não é um mal (CONSTANT, 1829 apudGAUCHET, 1997, p. 61, tradução nossa).

Segundo Moyn, Gauchet vê na “correção” de Constant a Paine e Godwin uma analogia da própria correção que ele queria fazer à obra de Pierre Clastres (cuja noção de “sociedade contra o Estado” o havia inspirado durante sua juventude) e a certas críticas ingênuas do Estado em nome da sociedade civil, típicas do “momento antitotalitário francês” dos anos 1970. “Constant é retratado como seguindo e corrigindo Paine e Godwin, exatamente no mesmo sentido em que Gauchet seguia e corrigia Clastres e o nascente movimento da sociedade civil: realizando suas aspirações antiestatistas por meio da ação benéfica do Estado constitucional” (MOYN, 2005, p. 177, tradução nossa). Moyn faz referência à evolução do pensamento de Gauchet, a qual o leva a abandonar suas inclinações anarquistas iniciais e a entender a sociedade como devendo ser instituída simbolicamente por uma fonte exterior, de modo que se torna infrutífero reivindicar a autonomia da sociedade contra o Estado. Se a autonomia continua sendo um valor central, ela deve ser buscada por meio do Estado constitucional, o qual tem em si os mecanismos de sua própria contenção, não por meio da ausência de um domínio político exterior à sociedade.

Podemos interpretar que Gauchet se interessa por Constant porque encontra nele uma conciliação entre a sociedade que se constitui independentemente do Estado (como postula Paine) e o reconhecimento de uma exterioridade política que não é somente negativa e contingente, mas constitutiva do próprio viver em comunidade. É nessa chave que Gauchet lê a famosa teoria constantiana do “poder neutro”. Se, por um lado, Constant teria compreendido o governo como um simples instrumento da sociedade para impedir que os indivíduos se prejudicassem mutuamente, ele teria, por outro lado, levado a sério a reivindicação, de origem monarquista, segundo a qual, “ao lado ou além do poder produzido pelos homens [...], é necessário dar figura e corpo a um lugar de poder exterior à vontade dos homens, em referência ao qual a sociedade se produz, constitui-se como um conjunto capaz de corresponder consigo mesmo” (GAUCHET, 1997, p. 104, tradução nossa). Esse lugar de poder exterior à vontade dos indivíduos, e responsável pela instituição simbólica do social, seria ocupado, na teoria de Constant, pelo poder neutro - uma instituição de inspiração monárquica, mesmo quando o autor a concebe, inicialmente, sob forma republicana (GAUCHET, 1997, p. 105). Com essa ênfase na instituição da sociedade por um lugar de poder externo, Constant escaparia do ideal protototalitário de uma sociedade transparente em relação a si mesma, a qual dispensaria a dimensão do político para forjar sua identidade.

Vale ressaltar, contudo, que Gauchet não apresenta Constant simplesmente como uma fonte de inspiração para pensar o primado do político na instituição do social, mas como um autor atravessado pelas tensões e contradições da própria modernidade liberal. Ao mesmo tempo em que o autor contemporâneo enfatiza a divergência de Constant em relação a Paine e Godwin, ele atribui ao autor franco-suíço a mesma “ilusão liberal” segundo a qual o processo de autonomização dos indivíduos e da sociedade civil significaria um retraimento do poder do Estado. Ora, segundo Gauchet, o crescimento do Estado, de suas atribuições e de sua penetração na sociedade civil é correlativo do movimento moderno de autonomização da sociedade civil e de expansão da zona de independência individual. “A emancipação liberal da sociedade civil foi e permanece sendo o vetor mesmo da estatização no seio de nosso mundo” (GAUCHET, 1997, p. 98, tradução nossa). Na medida em que não perceberia esse fenômeno, a teoria de Constant teria dificuldade para compreender a instituição simbólica da sociedade moderna pelo Estado, recaindo em uma ilusão da sociedade autorregulada análoga à do “liberalismo utópico” tratado por Rosanvallon. Em livro posterior, La Révolution des pouvoirs, Gauchet chega a alterar sua interpretação do poder neutro constantiano, acusando Constant de não conseguir sair da lógica liberal da dedução dos poderes a partir dos direitos do indivíduo, o que impediria uma compreensão adequada do político (GAUCHET, 1995, p. 239-255). Em suma, mesmo ressaltando as diferenças de Constant em relação a Paine e Godwin, parte da crítica que Rosanvallon havia formulado ao “liberalismo utópico” é dirigida por Gauchet a Constant.

É verdade que, no próprio ensaio sobre Constant, Gauchet apresenta Tocqueville como uma espécie de sucessor do liberal franco-suíço que teria sido capaz de superar suas ilusões, percebendo que a tendência das sociedades modernas residia no fortalecimento, não no retraimento, do poder estatal, e que essa extensão do Estado ocorria paralelamente à expansão da independência individual. Moyn chega a argumentar, com base nisso, que Gauchet considera Tocqueville intelectualmente superior a Constant, invertendo a hierarquização entre os dois autores que será proposta por Stephen Holmes (MOYN, 2005, p. 179-180). No entanto, se nos voltarmos para o artigo “Tocqueville, l’Amérique et nous: Sur la genèse des sociétés démocratiques”, publicado na revista Libre no mesmo ano de 1980 (republicado em La condition politique, em 2005), percebemos que Tocqueville interessa a Gauchet, assim como Constant, tanto por sua lucidez quanto por suas ilusões sobre o desenvolvimento da modernidade democrática.8

Nesse intrincado artigo, Gauchet desenvolve uma série de considerações sobre a democracia e o totalitarismo a partir da “ilusão americana” [“leurre américain”] (GAUCHET, 2005a, p. 312, tradução nossa, itálico do autor) de Tocqueville. Ao eleger os Estados Unidos como a referência principal para pensar a democracia, pelo fato de o princípio igualitário ter se desenvolvido lá sem o conflito entre os partidos revolucionário e contrarrevolucionário que afligia a Europa do século XIX, Tocqueville veria a sociedade democrática como uma “sociedade que tende a um acordo moral e espiritual fundamental consigo mesma” (GAUCHET, 2005a, p. 316, tradução nossa) - acordo consolidado pela unidade intelectual e pelo “freio intelectual ante os decretos da inteligência divina” (GAUCHET, 2005a, p. 321, tradução nossa), determinado pelo império da religião entre os americanos. Ora, para Gauchet, essa visão tocquevilliana da democracia, com base no modelo americano, seria fruto de uma ilusão. A verdadeira alma da democracia não residiria na correspondência entre princípios igualitários proclamados e sua realidade social - correspondência entre princípios e realidade que corresponde mais ao fechamento histórico do totalitarismo do que à indeterminação democrática -, mas naquilo que Tocqueville via como acidentes infelizes do desenvolvimento democrático na Europa: o conflito implacável entre visões inconciliáveis da boa ordem social e a abolição de toda interdição religiosa sobre a imaginação política. “A democracia, ao contrário do que poderia dar a pensar sua primeira versão americana, não é o acordo profundo dos espíritos, mas a dilaceração do sentido e o antagonismo implacável dos pensamentos” (GAUCHET, 2005a, p. 323, tradução nossa). Em suma, se Tocqueville teria sido mais lúcido do que Constant sobre o futuro da soberania estatal, o autor d’A Democracia na América ainda seria refém de um ideal de transparência social que não captaria o sentido profundo da democracia moderna: o de uma sociedade baseada na livre e indeterminada expressão do conflito.

Rosanvallon leitor de Guizot: do “poder social” à gestão da sociedade pós-revolucionária

No mesmo ano de 1980 em que Gauchet publica seus ensaios sobre Constant e Tocqueville, Rosanvallon deposita o projeto de uma segunda tese de doutorado sob a orientação de Lefort, a qual culmina no livro Le moment Guizot, de 1985. Por trás do projeto, havia a intuição de que o liberalismo utópico, analisado em seu livro anterior, “havia ocupado apenas um lugar secundário na história das ideias francesas” (ROSANVALLON, 2018, p. 117, tradução nossa). Com efeito, uma das teses centrais do livro de Rosanvallon de 1985 é a diferença fundamental entre o liberalismo político de Guizot e o “liberalismo utópico” de Smith, Paine e Godwin,9 com a consideração adicional de que esse liberalismo de Guizot se enraizaria duravelmente na França como “cultura de governo”. Minha hipótese é que, mesmo mudando de objeto em relação a seu livro de 1979, Rosanvallon continua tendo como problema teórico a relação entre liberalismo e totalitarismo. Sua leitura de Guizot espelha as ambiguidades da leitura de Gauchet sobre Constant e Tocqueville: ao mesmo tempo em que Guizot auxilia a reflexão sobre o político ao se distinguir do liberalismo utópico, Rosanvallon continua lhe dirigindo parte da crítica aos germes totalitários do liberalismo clássico, embora de maneira reformulada.

Segundo Rosanvallon (1985, p. 45, tradução nossa), o problema comum de todo o liberalismo do início do século XIX é “pensar a constituição do laço social, sem recorrer à noção de contrato e sem retornar a uma visão orgânica da sociedade de ordens”. Em sua resposta a esse problema, a filosofia política dos doutrinários (o grupo político a que pertence Guizot) se distinguiria do liberalismo utópico, o qual, como explorado em Le capitalisme utopique, erigia o mercado como fundamento da instituição e da regulação da sociedade, no lugar do contrato. A filosofia de Guizot se afastaria do liberalismo utópico ao rejeitar a perspectiva de um deperecimento da política e de uma autorregulação da sociedade, e ao sugerir que o poder político estaria unido à sociedade, na forma de um “poder social”. O poder político seria pensado como “a cabeça de uma sociedade à qual está completamente incorporado” (ROSANVALLON, 1985, p. 49, tradução nossa). O que tornaria possível essa incorporação do poder à sociedade seria uma identidade material entre a sociedade civil e a sociedade política, ambas sendo constituídas pelo interesse da classe social dirigente - na sociedade moderna, a burguesia. “É, portanto, sobre o terreno da sociologia, não de uma filosofia política indiferenciada, que eles [os doutrinários] ultrapassam os limites do liberalismo utópico” (ROSANVALLON, 1985, p. 49, tradução nossa).

Rosanvallon se interessa vivamente por essa postura “realista” de Guizot e dos doutrinários, a qual, longe de buscar a utopia de um definhamento da política e de uma autorregulação da sociedade, pensa a interconexão entre o governo e a sociedade por meio das paixões, interesses e opiniões efetivamente existentes no seio desta última. Ao contrário do liberalismo utópico, e mesmo de figuras como Constant ou Tocqueville, os doutrinários abordariam as bandeiras liberais clássicas, como a liberdade de imprensa, a publicidade dos debates e das decisões e a descentralização administrativa, não como instrumentos de proteção da sociedade contra o Estado, mas, ao contrário, como “meios de governo”, destinados a fortificar o poder e enraizá-lo na sociedade. Rosanvallon não poderia senão se entusiasmar com essa descoberta de um liberalismo que não apenas não tende à utopia da dissolução da política, mas faz da consciência do caráter político da sociedade seu vetor central.

Nesse “resgate” de Guizot, não é de menor importância o diálogo travado entre Rosanvallon e Michel Foucault a partir de 1977, quando os dois intelectuais se cruzam no “Forum sur l’expérimentation sociale”, organizado pelas revistas Faire e Le Nouvel Observateur. A partir de 1979, quando a publicação de Le capitalisme utopique coincide com o curso “Naissance de la Biopolitique”, proferido por Foucault no Collège de France, esse diálogo passa a ter por núcleo a interpretação do liberalismo, um terreno em que ambos começam a se aventurar mais ou menos no mesmo momento. “Se você tiver razão, eu estou errado”, teria dito Foucault a Rosanvallon (ROSANVALLON, 2018, p. 101, tradução nossa), perante o contraste entre suas interpretações do liberalismo: ao passo que Rosanvallon concebe o liberalismo como uma utopia de esmorecimento da política, Foucault o define como “princípio e método de racionalização do exercício do governo” (FOUCAULT, 2004, p. 323, tradução nossa). Até certo ponto, o contraste entre essas duas interpretações do liberalismo decorre de divergências teórico-metodológicas profundas e, no limite, insuperáveis.10 Apesar do interesse de ambos os autores pela gênese e pela evolução das racionalidades políticas e sociais, Foucault declara que “nada me irrita mais do que essas questões - metafísicas por definição - sobre os fundamentos do poder em uma sociedade ou sobre a autoinstituição da sociedade” (FOUCAULT, 1994, p. 277, tradução nossa), rejeitando as fontes lefortianas e castoriadisianas do pensamento de Rosanvallon. Para Foucault, não faz sentido pensar o liberalismo como uma representação global da sociedade por meio da qual o social se autoinstitui segundo o modelo do mercado. Partindo sempre da questão de como o poder se exerce (FOUCAULT, 1994, p. 232-235), o filósofo não vê o liberalismo como uma utopia de superação da política, mas antes como uma tecnologia particular de governo.

Apesar dessa divergência, Rosanvallon buscou se aproximar da interpretação de Foucault sobre o liberalismo. Afinal, como argumenta Behrent (2016), a relação entre ambos os autores não era marcada apenas por discordâncias, mas também por uma convergência de afinidades políticas, relacionadas, no essencial, à preocupação com uma “nova cultura política” que tirasse o Estado do centro e pensasse as relações de poder em um nível mais cotidiano e societal (ver ROSANVALLON; VIVERET, 1977). O estudo de Guizot - o qual foi incentivado por Foucault tanto quanto por Lefort - revela um esforço de Rosanvallon para se aproximar da abordagem foucaultiana do liberalismo como uma arte de governar, já que “essa questão da governamentalidade liberal (...) estava totalmente ausente de meu trabalho sobre o Iluminismo escocês” (ROSANVALLON, 2018, p. 385, tradução nossa).11 Assim, ao passar de Smith a Guizot, Rosanvallon passa de uma intepretação do liberalismo como utopia de uma sociedade apolítica a uma interpretação do liberalismo como arte de governar fundada na comunicação e na interpenetração constantes entre Estado e sociedade, algo que se tornará central para a teoria da democracia do próprio Rosanvallon (JAINCHILL; MOYN, 2004, p. 135-136; CINTRA, 2022, p. 18), sendo retomado também por Lefort, em seu ensaio sobre Guizot (LEFORT, 1988).

Apesar desse entusiasmo pela descoberta de um liberalismo que reconhece a centralidade do político e sua imbricação com o social, minha hipótese é que Rosanvallon continua buscando na obra de Guizot germes totalitários do liberalismo clássico. A própria noção de “poder social”, que, como vimos, é central na interpretação de Rosanvallon sobre Guizot, remete à teoria lefortiana do totalitarismo, a qual define o regime totalitário como aquele em que o lugar simbólico do poder é ocupado por um poder fundido com a sociedade. Mas o potencial totalitário desse “poder social” guizotiano só se torna claro quando Rosanvallon analisa a “degradação” do pensamento de Guizot após a Revolução de 1830. Trata-se de um dos momentos fundamentais do livro, pois um dos objetivos do autor é justamente entender as causas dessa degradação:

O que havia me fascinado em Guizot era também o processo de estreitamento de uma inteligência, a degradação de um pensamento liberal afiado em uma ideologia banal, a conversão de um intelectual crítico em um conservador limitado. Eu havia me dedicado a apreender precisamente os mecanismos que provocavam insensivelmente esse tipo de reviravolta (ROSANVALLON, 2018, p. 118, tradução nossa).

A causa dessa degradação do pensamento de Guizot estaria no fato de que, a partir da Monarquia de Julho (1830-1848), seu horizonte político teria passado a residir na “gestão de uma sociedade pós-revolucionária” (ROSANVALLON, 1985, p. 277, tradução nossa, itálicos do autor). Longe de ser uma particularidade de Guizot, esse horizonte político, que Rosanvallon chama de conservador, seria o de todos os pensamentos revolucionários do século XIX, tanto liberais como socialistas. Todos eles apostariam em uma revolução que terminaria a História e levaria a humanidade a uma era de harmonia, sem conflito social e sem política. A única diferença estaria na datação da verdadeira revolução: para liberais como Guizot, uma revolução como a de 1830, ao estabilizar a obra política da Revolução Francesa, já poderia ser considerada como uma espécie de fim da História; já para Marx, apenas a revolução comunista conduzida pelo proletariado poderia levar a esse estágio final de emancipação da humanidade.

Se Marx certamente não concorda com Guizot sobre a datação do fechamento da Revolução, ele próprio define o comunismo como um conservadorismo. Com efeito, o comunismo é autenticamente conservador, no sentido de que ele abole o político como esfera do conflito, para fazer a humanidade entrar na ordem da administração das coisas, ou seja, da gestão (ROSANVALLON, 1985, p. 278, tradução nossa).

Essa aproximação entre Guizot e Marx sobre a perspectiva da abolição do político como esfera do conflito se assemelha à aproximação entre Smith e Marx proposta em Le capitalisme utopique. Em ambos os casos, Rosanvallon sugere que tanto o liberalismo clássico como o marxismo contêm uma tendência ao totalitarismo, uma vez que projetam a utopia de uma sociedade situada no fim da História, a qual seria transparente em relação a si mesma, não possuiria mais divisão interna e poderia substituir a política pela simples gestão. A degradação do pensamento de Guizot teria se tornado evidente, porque o doutrinário teria se defrontado com conflitos e contestações que ele não podia compreender no quadro de uma sociedade pós-revolucionária, respondendo a essa situação com uma “derrapagem moralizadora” (ROSANVALLON, 1985, p. 303, tradução nossa) de seu discurso. Mas o problema iria muito além de Guizot, residindo no projeto de fundar o poder político legítimo sobre uma classe social portadora do sentido da História. Se a imbricação entre o social e o político pensada por Guizot pode servir para conceituar a democracia moderna, ela pode pavimentar também o caminho para o totalitarismo.

Considerações Finais

Partindo de uma compreensão do totalitarismo como fundado sobre a negação da divisão social e da autonomia do político, autores como Lefort, Gauchet e Rosanvallon se debruçam sobre o liberalismo não como uma ideologia a ser colocada no lugar do socialismo em crise, mas como um campo problemático a ser aprofundado para compreender as origens desse empreendimento totalitário de negação do conflito e da exterioridade do domínio político. É por essa razão que, nas interpretações de autores liberais clássicos reconstruídas neste artigo, a questão da negação ou da afirmação do político adquire uma importância tão grande.

Embora o conceito do político mobilizado por Lefort, Gauchet e Rosanvallon seja distinto do proposto por Carl Schmitt, a preocupação em relação à negação do político no liberalismo clássico, acusado de antecipar o imaginário totalitário da sociedade transparente e unificada, ecoa a crítica schmittiana da despolitização liberal. Em linha com essa crítica schmittiana, Rosanvallon, desenvolvendo uma intuição de Lefort e Gauchet, apresenta, em Le capitalisme utopique, o liberalismo clássico como uma negação da política baseada em um paradigma econômico de instituição e regulação da sociedade.

Por outro lado, os pesquisadores ligados ao Institut Raymond Aron vão além da crítica de Schmitt ao liberalismo, demonstrando que a negação do político não é um traço de toda a tradição liberal, mas de uma porção específica dela, chamada por Rosanvallon de “liberalismo utópico”. Liberais como Constant, Guizot e Tocqueville seriam autores fundamentais para pensar a dimensão do político e seu papel na instituição do social, fornecendo instrumentos teóricos importantes para refletir sobre a democracia e o totalitarismo na contemporaneidade. Mesmo assim, eles não escapam totalmente de certas acusações derivadas da crítica do totalitarismo, as quais recolocam a suspeita de uma inclinação liberal a suprimir a autonomia do político. Constant ainda seria refém de uma “ilusão liberal” sobre o retraimento do poder estatal, Tocqueville veria o desenvolvimento conflituoso da democracia na Europa como um acidente infeliz ante o “acordo moral e espiritual” da sociedade americana consigo mesma, e Guizot acreditaria que, após a Revolução de 1830, a simples gestão de uma sociedade pós-revolucionária poderia suprimir a política.

Isto posto, que contribuições podemos afirmar que a reflexão francesa dos anos 1970 sobre o totalitarismo trouxe para os estudos sobre o liberalismo? Por um lado, é possível criticar como anacrônica a ideia de que autores liberais dos séculos XVIII e XIX poderiam esclarecer algo sobre os regimes totalitários do século XX, ou mesmo prefigurar em germe alguns dos traços desses regimes. Por outro lado, se a reflexão sobre o totalitarismo abalou profundamente as concepções filosóficas sobre o político e a modernidade, é natural que esse abalo tenha gerado novas perguntas a respeito da tradição liberal, cuja história se confunde em parte com a da própria modernidade. Neste sentido, as leituras de Gauchet e Rosanvallon interessam por apresentar o liberalismo como um aspecto inescapável da herança moderna, sobre cujos potenciais despolitizantes devemos estar sempre alertas para não recairmos na tentação totalitária da sociedade transparente que dispensa o político, mas que também fornece aportes intelectuais imprescindíveis para uma era em que a consciência do caráter político do viver em comum se tornou incontornável.

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  • LILLA, Mark. The other velvet revolution: continental liberalism and its discontents. Daedalus, v. 123, n. 2, p. 129-157, 1994.
  • LYNCH, Christian Edward Cyril. A democracia como problema: Pierre Rosanvallon e a escola francesa do político. In: ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010. p. 9-35.
  • MELO, Bruno Victor Parreiras Soares. Uma coluna ausente: Lefort leitor de Merleau-Ponty. Filosofia existencial e o pensamento do político. Tese (Doutorado em Filosofia) - Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.
  • MOYN, Samuel. Savage and modern liberty: Marcel Gauchet and the origins of New French Thought. European Journal of Political Theory, v. 4, n. 2, p. 164-187, 2005.
  • MOYN, Samuel. The politics of individual rights: Marcel Gauchet and Claude Lefort. In: GEENENS, R.; ROSENBLATT, H. (orgs.). French liberalism from Montesquieu to the present day. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. p. 291-310.
  • MOYN, Samuel. Concepts of the political in twentieth-century European thought. In: MEIERHENRICH, J.; SIMONS, O. (orgs.). The Oxford handbook of Carl Schmitt. Nova York: Oxford University Press, 2016. p. 291-311.
  • ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Paris: Gallimard, 1985.
  • ROSANVALLON, Pierre. Le capitalisme utopique: histoire de l’idée de marché. Paris: Éditions du Seuil, 1999.
  • ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010.
  • ROSANVALLON, Pierre. Notre histoire intellectuelle et politique 1968-2018. Paris: Éditions du Seuil, 2018.
  • ROSANVALLON, Pierre; VIVERET, Patrick. Pour une nouvelle culture politique. Paris: Éditions du Seuil, 1977.
  • ROSENBLUM, Noah. Rethinking the French liberal moment: some thoughts on the heterogeneous origins of Lefort and Gauchet’s social philosophy. In: SAWYER, S. W.; STEWART, I. (orgs.). In search of the liberal moment: democracy, anti-totalitarianism, and intellectual politics in France since 1950. Nova York: Palgrave Macmillan, 2016. p. 61-83.
  • SAWYER, Stephen W.; STEWART, Iain. Introduction: new perspectives on France’s “liberal moment”. In: SAWYER, S. W.; STEWART, I. (orgs.). In search of the liberal moment: democracy, anti-totalitarianism, and intellectual politics in France since 1950. Nova York: Palgrave Macmillan, 2016. p. 1-16.
  • SCHMITT, Carl. The concept of the political: expanded edition. Chicago/Londres: University of Chicago Press, 2007.
  • SIEDENTOP, Larry. Two liberal traditions. In: RYAN, A. (org.). The idea of freedom: essays in honour of Isaiah Berlin. Oxford: Oxford University Press, 1979. p. 153-174.
  • STEINMETZ-JENKINS, Daniel. Why did Raymond Aron write that Carl Schmitt was not a Nazi? An alternative genealogy of French liberalism. Modern Intellectual History, v. 11, n. 3, p. 549-574, 2014.
  • STEINMETZ-JENKINS, Daniel. Plettenburg not Paris: Julien Freund, the new right, and France’s liberal moment. In: SAWYER, S. W.; STEWART, I. (orgs.). In search of the liberal moment: democracy, anti-totalitarianism, and intellectual politics in France since 1950. Nova York: Palgrave Macmillan, 2016. p. 39-59.
  • 3
    Cunha e Lynch (2021) falam de um “retorno do liberalismo nos ciclos intelectuais franceses” nesse contexto.
  • 4
    Assim Melo caracteriza a inovação do artigo de 1956 em relação aos ensaios anteriores de Lefort: “os ensaios anteriores a 1956, embora sejam perspectivas radicais de crítica ao regime soviético, principalmente a partir dos fenômenos do partido e burocracia, não são suficientes para alargar os horizontes e perceber o fenômeno soviético em sua espessura. A descrição do fenômeno da burocracia não alcança sozinha o caráter integral do totalitarismo, pelo qual busca solapar a divisão dos níveis de existência: da Lei, do Poder e do Saber” (MELO, 2022, p. 103).
  • 5
    O livro recebeu títulos diferentes nas edições seguintes: Le libéralisme économique: Histoire de l’idée de marché, em 1989, e Le capitalisme utopique: Histoire de l’idée de marché, em 1999.
  • 6
    O Capítulo 8 de Le capitalisme utopique (“Marx et le retournement du libéralisme”) apresenta o projeto marxiano de supressão do Estado e da política na sociedade comunista futura como uma herança do ideal da sociedade de mercado autorregulada formulado por Smith.
  • 7
    Quando escreve os textos que estou analisando, Gauchet já havia lido Le capitalisme utopique de Rosanvallon e estava familiarizado com seu argumento, tendo-o comentado no artigo “De l’avènement de l’individu à la découverte de la société”, de 1979 (GAUCHET, 2005a, p. 405-431).
  • 8
    Em entrevista a François Azouvi e Sylvain Piron publicada originalmente em 2003, Gauchet enfatiza que seu foco interpretativo, nos artigos de 1980, residia nas ilusões de Constant e Tocqueville: “Tudo o que escrevi sobre Constant ou Tocqueville tinha o objetivo de circunscrever o erro de perspectiva que os enganou sobre o mundo em que eles viviam” (GAUCHET, 2005b, p. 341, tradução nossa). A frase se encontra em passagem da entrevista em que o autor distingue entre estudar o liberalismo e ser liberal, afirmando em seguida não ser liberal para além do sentido em que todo não-totalitário é liberal.
  • 9
    A distinção fundamental entre os liberalismos inglês e francês já havia sido defendida em SIEDENTOP, 1979.
  • 10
    Sobre a distinção entre o método de Rosanvallon e o de Foucault, ver: ROSANVALLON, 2010, p. 60-61.
  • 11
    Em 1980, os primeiros resultados da pesquisa de Rosanvallon sobre o liberalismo doutrinário são apresentados no seminário público de Foucault no Collège de France, a noção guizotiana de “meios de governo interiores” adequando-se perfeitamente à discussão foucaultiana sobre a governamentalidade liberal.
  • 2
    Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que financia a pesquisa de pós-doutorado de que este artigo é resultante, por meio do processo nº 2021/03135-0, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Versões anteriores deste artigo foram apresentadas e debatidas no Grupo de Trabalho “Teoria e pensamento político - democracia e autoritarismo” do 45º Encontro Anual da ANPOCS, realizado em formato online, de 19 a 27 de outubro de 2021, no Núcleo de Teoria e Pensamento Político do CEDEC, em 7 de março de 2022, no Grupo de Estudos de Filosofia Política do Departamento de Filosofia da UFSCar, em 14 de junho de 2022, e no V Encontro de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro, realizado no IESP-UERJ, de 6 a 8 de julho de 2022. Agradeço todas as contribuições que recebi nesses debates, muitas das quais resultaram em modificações nas primeiras versões do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2022
  • Aceito
    10 Jan 2023
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