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Legitimidade democrática: análise qualitativa da percepção do eleitorado no governo Bolsonaro

Democratic legitimacy: a qualitative analysis of voter perceptions during the Bolsonaro government

Resumo:

A eleição de Jair Bolsonaro em 2018, marcada pela ascensão global de líderes populistas de extrema direita, coincidiu com o declínio dos indicadores de apoio e satisfação com a democracia na América Latina. Diante desse contexto, este estudo explora o estado atual da legitimidade democrática no Brasil, introduzindo a abordagem qualitativa na agenda de pesquisas nacionais sobre o tema. Por meio de grupos focais online conduzidos em abril de 2021 com 62 eleitores da cidade do Rio de Janeiro, o objetivo foi verificar quatro dimensões da legitimidade: apoio aos princípios fundamentais do regime; apoio às instituições do regime; avaliação do desempenho do regime; e apoio aos atores políticos. Os resultados revelam que, embora a maioria dos participantes valorize o voto, as eleições e a participação política, grande parte demonstra atitudes negativas em relação aos partidos políticos, instituições políticas e eleitorais, especialmente quanto ao processo eleitoral. A percepção de corrupção se destaca como um fator determinante para as opiniões negativas. Além disso, observou-se que partidários de Bolsonaro e Haddad apresentam diferentes níveis de avaliação do governo. De forma geral, os resultados corroboram a literatura que aponta para altos níveis de apoio difuso aos princípios do regime entre os eleitores, contrastando com baixos níveis de apoio específico às instituições e autoridades políticas.

Palavras-chave:
democracia; governo Bolsonaro; percepção do eleitorado; metodologia qualitativa

Abstract:

The election of Jair Bolsonaro in 2018, marked by the global rise of far-right populist leaders, coincided with a decline in indicators of support and satisfaction with democracy in Latin America. In this context, this study explores the current state of democratic legitimacy in Brazil, introducing a qualitative approach to the national research agenda on the topic. Through online focus groups conducted in April 2021 with 62 voters from the city of Rio de Janeiro, the objective was to verify four dimensions of legitimacy: support for the fundamental principles of the regime; support for the regime’s institutions; assessment of the regime’s performance; and support for political actors. The results reveal that, while most participants value voting, elections, and political participation, a large part of them demonstrate negative attitudes towards political parties, political and electoral institutions, especially regarding the electoral process. The perception of corruption stands out as a determining factor for negative opinions. In addition, it was observed that supporters of Bolsonaro and Haddad have different levels of evaluation of the government. In general, the results corroborate the literature that points to high levels of diffuse support for the principles of the regime among voters, in contrast to low levels of specific support for political institutions and authorities.

Keywords:
democracy; Bolsonaro government; electorate perception; qualitative methodology

Introdução

A eleição de 2018 no Brasil foi o culminar de cinco anos de turbulência política, iniciada por massivas manifestações de rua em 2013. Em 2015, o país foi tomado por protestos contra o governo Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), e a favor do lavajatismo. Inúmeros escândalos de corrupção nos anos que antecederam tal eleição, noticiados amplamente pela mídia, um golpe institucional contra Dilma e a consequente agenda de austeridade adotada por Michel Temer, altas taxas de desemprego, o sucessivo processo de judicialização da política, além de inúmeros outros fatores, ampliaram a concepção de um Congresso totalmente descredibilizado e um forte sentimento de rejeição ao PT.

A crise política em paralelo à crise econômica instaurada no país culminou em uma sensação de desamparo e insatisfação geral com o sistema representativo. Com dados do Latinobarômetro, Botelho, Okado e Bonifácio (2020)BOTELHO, J. C. M.; OKADO, L. T. A.; BONIFACIO, R. O declínio da democracia na América Latina: diagnóstico e fatores explicativos. Revista de Estudios Sociales, Bogotá, n. 74, p. 41-57, dez. 2020. constataram que indicadores como apoio e satisfação com o regime democrático e confiança nas instituições atingiram ou voltaram a apresentar no ano de 2018 os piores níveis das suas séries históricas na América Latina. A eclosão do bolsonarismo no Brasil diante do diagnóstico da crise das democracias contemporâneas junto a ascensão de movimentos e líderes neopopulistas apontam para a pertinência de se produzir interpretações sobre a legitimidade democrática no país.

A questão central que se apresenta é: qual a percepção do eleitorado sobre o funcionamento da democracia no Brasil? A percepção dos que votaram em Bolsonaro no segundo turno de 2018 diverge dos que optaram pelo seu oponente? Partindo da estrutura multidimensional (Booth; Seligson, 2009BOOTH, J. A.; SELIGSON, M. A. The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.; Norris, 1999NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999.), o objetivo é verificar quatro dimensões da legitimidade pelos eleitores: apoio aos princípios fundamentais do regime; apoio às instituições do regime; avaliação do desempenho do regime; e apoio aos atores políticos. A metodologia utilizada é qualitativa com aplicação de grupos focais online. Conduzida em abril de 2021, foram realizados oito grupos de discussão com 62 eleitores da cidade do Rio de Janeiro. Os resultados convergem com a literatura que revela que a adesão é mais consistente em algumas dimensões de legitimidade do que em outras.

O artigo está organizado da seguinte forma: a primeira seção apresenta as variáveis explicativas do apoio à democracia por múltiplas dimensões; a segunda discorre sobre as pesquisas que dimensionam o estado da legitimidade no Brasil; a pesquisa é apresentada e discutida na terceira seção e, por fim, as considerações finais sintetizam os resultados.

As dimensões do apoio à democracia

A literatura trata recorrentemente de três aspectos ao analisar a adesão à democracia3 3 Uma vez que o conceito de “democracia” é aberto a múltiplos significados, não há consenso sobre quais valores devem ser indicados como representativos desse tipo de apoio. Norris (1999, p. 11), por exemplo, discorre que estudos empíricos sobre o que as pessoas entendem pelo termo sugerem que ele pode significar “coisas diferentes para pessoas diferentes em sociedades diferentes”. Mas supõe, com base na mesma literatura, que os princípios básicos dos regimes democráticos são comumente associados a valores como liberdade, participação, tolerância, respeito aos direitos institucionais e ao Estado de Direito. pelo eleitorado: as variáveis que influenciam as diferentes dimensões de legitimidade;4 4 O conceito de legitimidade empregado se refere a um “tipo ideal associado à noção de que a política democrática e as instituições sobre as quais se estabelece são a forma apropriada para o sistema político se constituir” (Meneguello, 2010, p. 63). os problemas metodológicos quanto sua medição e equivalência em pesquisas transnacionais; e os efeitos que a perda de legitimidade pode ter para a estabilidade do regime. O primeiro ponto parte da premissa de que os indivíduos podem aderir a diferentes princípios subjacentes à democracia. Isso porque a adesão é mais bem mensurada em termos de atitudes do que pela mera manifestação de preferência por esse regime (Booth; Seligson, 2009BOOTH, J. A.; SELIGSON, M. A. The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.). A conceptualização multidimensional de legitimidade - que foi inicialmente sugerida por Easton (1975)EASTON, D. A Re-assessment of the concept of political support. British Journal of Political Science, v. 5, n. 4, p. 435-457, out. 1975. e retificada por outros autores - estabeleceu-se como um marco teórico no campo.

Easton (1975)EASTON, D. A Re-assessment of the concept of political support. British Journal of Political Science, v. 5, n. 4, p. 435-457, out. 1975. procurou demonstrar que há uma justificativa teórica e empírica para manter uma distinção entre “apoio específico” e “apoio difuso” ao regime. Essa distinção parte do seguinte pressuposto: o apoio específico está na relação de satisfação que os membros de um sistema percebem do desempenho das autoridades e instituições políticas. Já o apoio difuso é independente dos resultados e do desempenho a curto prazo. Por exemplo, os membros do sistema podem julgar o desempenho do Congresso como muito baixo, mas não exigem mudanças fundamentais nele ou na Constituição.

Baseado nesta estrutura conceitual, Norris (1999)NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999. distingue cinco dimensões que são objeto de apoio ao regime democrático: 1) os sentimentos mais gerais e fundamentais dos cidadãos em relação à ideia de pertencimento a uma comunidade política (manifestação de orgulho e identidade nacional); 2) apoio aos princípios do regime (atitudes e valores democráticos); 3) avaliação geral de desempenho (satisfação com o funcionamento do regime); 4) satisfação e confiança nas instituições do Estado (que seriam os governos, parlamentos, partidos, tribunais e forças armadas); e 5) satisfação e confiança nos titulares de cargos eleitos e nomeados (autoridades políticas).

O primeiro nível diz respeito ao apoio difuso à comunidade política, e é entendido como um apego básico à nação para além das instituições de governo e uma vontade geral de cooperar politicamente. É considerado uma pré-condição essencial para a fundação de qualquer Estado-nação estável. Aqui podemos dialogar com várias obras publicadas nos últimos anos que destacam como o “populismo autoritário” (Norris; Inglehart, 2019NORRIS, P.; INGLEHART, R. Cultural backlash: Trump, Brexit and authoritarian populism. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.) ou “populismo nacional” (Eatwell; Goodwin, 2018EATWELL, R.; GOODWIN, M. National populism: a revolt against liberal democracy. London: Pelican Books, 2018.) são demarcados por significantes de “nós contra eles”, geralmente definidos de forma ampla por laços de nacionalidade e cidadania. Ou mais estreitamente por significantes de identidade social que fornecem ligações simbólicas de pertencimento para o grupo interno e barreiras para grupos externos, representados, por exemplo, por raça, religião, etnia, partido, gênero ou sexo.

Para Norris e Inglehart (2019)NORRIS, P.; INGLEHART, R. Cultural backlash: Trump, Brexit and authoritarian populism. Cambridge: Cambridge University Press, 2019., a retórica populista faz duas afirmações centrais sobre como as sociedades devem ser governadas. Primeiro, ele desafia a autoridade legítima do sistema e questiona as crenças pluralistas sobre a localização correta do poder e da autoridade. Seus alvos favoritos incluem a grande mídia (que são consideradas tendenciosas), as eleições (que são fraudulentas) e os políticos (que são corruptos). Em segundo lugar, afirmam que a única fonte legítima de autoridade política e moral reside no “povo”, os “cidadãos comuns”. O que corrói a confiança nos representantes eleitos nas democracias liberais. Assim, a retórica populista compromete o apoio difuso à comunidade política, ao fomentar uma visão excludente e autoritária, contribuindo para a perda de identidade e de coesão nacional.

A segunda dimensão proposta refere-se ao apoio aos princípios do regime que representam os valores do sistema político. Esta dimensão se refere ao que Rose (2002)ROSE, R. Medidas de democracia em surveys. Opinião Pública, Campinas, v. 8, n. 1, p. 1-29, 2002. chamou de definições “idealistas” de democracia, derivadas da teoria liberal clássica. Já Moisés (2008)MOISÉS, J. A. Cultura política, instituições e democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 23, n. 66, p. 11-44, 2008. apresenta como “abordagem culturalista”, em que a cultura política é analisada de forma a encontrar uma variedade de atitudes, crenças e valores democráticos - como participação, interesse por política, tolerância política, além de confiança interpessoal e institucional.

As outras três dimensões propostas em Norris (1999)NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999. se concentram no “apoio específico” nos termos de Easton, explorando o que Rose (2002)ROSE, R. Medidas de democracia em surveys. Opinião Pública, Campinas, v. 8, n. 1, p. 1-29, 2002. denominou de uma visão “realista” de democracia. Entram nesse contexto as avaliações do desempenho do regime, que é comumente medido pela “satisfação com o desempenho da democracia”, isto é, como ela funciona efetivamente em oposição ao ideal. Essa medida é colocada como ambígua e passível de interpretações alternativas: ela aproveita tanto o apoio à democracia como um valor (que pode ser esperado que cresça gradualmente ao longo do tempo), e também a satisfação com o governo em exercício (que pode ser esperado que flutue ao longo do tempo).

Por esse ângulo, analisando a legitimidade das democracias no início de suas transições na Europa pós-comunista, Mishler e Rose (1995)MISHLER, W.; ROSE, R. Trajectories of fear and hope: support for democracy in post-communist Europe. Comparative Political Studies, v. 28, p 553-581, 1995. propuseram um modelo de “medo e esperança” para explicar as fontes de apoio aos novos regimes. Acreditam que o apoio é inerentemente dinâmico e argumentam que tais sentimentos podem mudar à medida que as memórias do regime se desvanecem ou por variações nas expectativas econômicas pelos cidadãos. Encontraram que o apoio aos regimes pós-comunistas era maior, em média, do que o apoio aos antigos regimes. Entre os determinantes desse suporte estavam as esperanças econômicas (avaliações prospectivas), que tiveram uma influência consideravelmente maior do que as avaliações das condições econômicas atuais ou passadas (avaliação retrospectiva). Os autores perceberam que, se as percepções sobre a economia vigente e as expectativas para o futuro começarem a se desgastar, a esperança pode dar lugar ao medo, o que pode corroer seriamente o apoio popular ao regime.

A quarta dimensão proposta em Norris (1999)NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999. procura medir o apoio generalizado às instituições políticas. Por exemplo, o apoio a partidos em vez de líderes partidários específicos - embora, na prática, a linha divisória entre o cargo e os titulares seja muitas vezes confusa. Além disso, também dimensiona a dinâmica de apoio a instituições individuais, como o Congresso e os tribunais, tendo em vista que o público distingue suas ações. Por último, utilizam o indicador de apoio específico às autoridades, incluindo avaliações de políticos como uma classe e o desempenho de determinados dirigentes. A confiança política é então dividida entre instituições e atores políticos. Leva-se em consideração que é possível desconfiar profundamente de determinadas autoridades políticas e, ainda assim, continuar a ter confiança nas estruturas institucionais ou em representantes particulares.

Após fornecer e discutir uma ampla gama de indicadores de suporte ao regime, Norris (1999)NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999. chega a importante conclusão de que os cidadãos podem manifestar insatisfação para com o desempenho do regime, instituições e atores políticos, mas, ao mesmo tempo, apoiar em altos níveis os princípios democráticos e a comunidade política. É o que intitulam de “cidadãos críticos”. Esses cidadãos possuem as habilidades cognitivas para ponderar sobre o contexto político e aspiram mais à democracia do que conseguem. Por isso, apoiam veementemente a democracia, ao passo que são profundamente céticos ao avaliarem como ela funciona em seus países.

O trabalho comparativo de Booth e Seligson (2009)BOOTH, J. A.; SELIGSON, M. A. The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. envolvendo oito países da América Latina segue as concepções anteriores de que a legitimidade existe como dimensões múltiplas e distintas. Assim, o apoio ao sistema político continua a ser entendido como um fenômeno multidimensional que vai desde os sentimentos mais generalizados de apego e pertença a um Estado-nação, passando pela confiança no regime e nas suas instituições, até a aprovação específica das autoridades políticas. A hipótese corroborada por esses autores é de que a legitimidade é uma função do contexto macrossocial, das experiências e atitudes microssociais e dos atributos individuais dos cidadãos.

As fontes macrossociais incluem os fatores institucionais e de desempenho ao nível nacional ou contextual que formam a base para o desenvolvimento de normas de legitimidade de uma pessoa. Por exemplo, avaliações otimistas do desempenho do regime e das autoridades políticas, assim como nações com uma história democrática mais longa, se mostraram variáveis favoráveis à adesão à democracia pelo eleitorado. Já os fatores microssociais são exclusivos dos indivíduos, incluindo suas características socioeconômicas e demográficas: exposição à mídia, confiança social, educação e conhecimento político foram todos associados a um maior compromisso com os princípios democráticos (Booth; Seligson, 2009BOOTH, J. A.; SELIGSON, M. A. The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.).

As teorias explicitadas até aqui estabeleceram as bases para os estudos que dimensionam a legitimidade democrática. A próxima seção discute o que dizem as pesquisas no contexto brasileiro e latino-americano de forma geral.

As pesquisas que mensuram o apoio à democracia no Brasil

Surveys realizados na América Latina na penúltima década (2000-2010) apontavam o predomínio da democracia como regime preferível (Meneguello, 2013MENEGUELLO, R. As bases do apoio ao regime democrático no Brasil. In: MOISÉS, José A.; MENEGUELLO, Rachel (eds.). A desconfiança política e seus impactos na qualidade da democracia - o caso do Brasil. São Paulo: Unesp, 2013, p. 71-93.; Moisés, 2008MOISÉS, J. A. Cultura política, instituições e democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 23, n. 66, p. 11-44, 2008.). Em pesquisas recentes, os resultados são menos positivos (Botelho; Okado; Bonifácio, 2020BOTELHO, J. C. M.; OKADO, L. T. A.; BONIFACIO, R. O declínio da democracia na América Latina: diagnóstico e fatores explicativos. Revista de Estudios Sociales, Bogotá, n. 74, p. 41-57, dez. 2020.). Mesmo o indicador de “democracia churchilliana” - na qual os eleitores dizem se concordam ou não com a afirmação de que “a democracia pode ter problemas, mas é a melhor forma de governo”, frase de Winston Churchill - sofre declínio se compararmos dados do Latinobarômetro de 2010 e 2020 (LATINOBARÓMETRO, 2023LATINOBARÓMETRO. Banco de Dados do Latinobarómetro (1995-2020). Corporación Latinobarómetro, Chile, 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.latinobarometro.org/latContents.jsp . Acesso em: 22 abr. 2024.
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). O ápice da oposição à democracia no Brasil foi registrado em 2018, quando apenas 33,9% concordavam com a declaração.

Botelho, Okado e Bonifácio (2020)BOTELHO, J. C. M.; OKADO, L. T. A.; BONIFACIO, R. O declínio da democracia na América Latina: diagnóstico e fatores explicativos. Revista de Estudios Sociales, Bogotá, n. 74, p. 41-57, dez. 2020. exibem que a satisfação com o regime e confiança nas instituições também atingiram ou voltaram a apresentar, em 2018, os piores níveis das séries históricas do Latinobarômetro, que se iniciaram em 1995. Quanto à satisfação com a democracia, a tendência é descendente a partir de 2010, com uma queda acentuada, ainda que não ininterrupta, que vai de 44,25% a 24,5% em 2018. A confiança nas instituições sofreu um declínio evidente: os partidos políticos, o Poder Legislativo e governos voltaram aos níveis mais baixos de confiança já registrados.5 5 Vale destacar que segundo o Índice de Confiança da Justiça Brasileira da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o grau de confiança da população no Poder Judiciário chegou a 40% em 2021, um dos maiores registrados (Ramos et al., 2021). Tal tendência pode ser analisada à luz do combate à corrupção através do espetáculo midiático lavajatista. A queda é acentuada e contínua entre 2013 e 2018, com a soma de “muita” e “alguma” confiança nos partidos passando de 23,06% para 13,07%.

Meneguello (2013)MENEGUELLO, R. As bases do apoio ao regime democrático no Brasil. In: MOISÉS, José A.; MENEGUELLO, Rachel (eds.). A desconfiança política e seus impactos na qualidade da democracia - o caso do Brasil. São Paulo: Unesp, 2013, p. 71-93. destaca que, no Brasil, os resultados eram crescentemente positivos ao longo do período pós-1985. Não obstante, os dados também indicavam desconfiança nas instituições representativas, baixos índices de interesse e participação na política convencional, bem como desconfiança interpessoal. Conforme a autora, para os países da América Latina, sobretudo do Cone Sul, que experimentaram ditaduras militares nas décadas de 1960, 1970 e 1980, a herança autoritária teve peso definitivo sobre a definição de parâmetros democráticos pela população.

Com base na suposição de que traços de sobrevivência de concepções autoritárias ainda fossem fortes na região, Moisés (2008)MOISÉS, J. A. Cultura política, instituições e democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 23, n. 66, p. 11-44, 2008. construiu uma tipologia para verificar as orientações dos indivíduos quanto à democracia, separando-os em democratas, ambivalentes e autoritários.6 6 Com dados do Latinobarômetro dos anos de 2002, 2003 e 2004 (LATINOBARÓMETRO, 2023). Os entrevistados que concordavam com a afirmação de que “a democracia é o melhor sistema de governo” e que “a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo” foram considerados democratas. Os que discordam da primeira afirmação e que preferem um “governo autoritário em algumas circunstâncias” foram considerados autoritários. E ambivalentes os que concordando que “a democracia é o melhor sistema de governo”, preferiram, no entanto, as alternativas relativas a um “governo autoritário em algumas circunstâncias” e “tanto faz um regime democrático ou autoritário”. No Brasil, os resultados identificaram 53,7% de eleitores ambivalentes, 40% de democratas e 9,9% de autoritários. Importante notar que o país apresentou mais ambivalentes se comparado com toda a América Latina.

Nesse sentido, Fuks et al. (2016)FUKS, M.; CASALECCHI, G. A.; GONÇALVES, G. Q.; DAVID, F. F. Qualificando a adesão à democracia: quão democratas são os democratas brasileiros? Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 19, p. 199-219, jan./abr. 2016. 7 7 Baseando-se no Barômetro das Américas de 2006 a 2012 (LAPOP, 2024). dimensionaram a consistência das atitudes dos democratas brasileiros e mostraram que eles têm atitudes que não estão em sintonia com normas, valores e princípios inerentes à democracia. Apontam, por exemplo, que estão dispostos a aceitar um regime militar num cenário de muito desemprego, crime ou corrupção, e acreditam que os partidos políticos não são necessários para a democracia. A conclusão é de que os democratas aderem com maior intensidade à dimensão participativa da democracia, em detrimento da procedimental e da representativa. Uma leitura dos pesquisadores é de que essa inconsistência indica que apenas o democrata “sofisticado” compreendeu e internalizou o conjunto de atributos que constituem a legitimidade democrática, o que faz com que suas atitudes sejam coerentes.8 8 Fuks, Casalecchi e Ribeiro (2019) chamam de “coesão democrática” a formação de um “sistema de crenças” democrático coerente, no qual as atitudes convergem para o apoio aos princípios democráticos. Um sistema de crenças democrático é coeso apenas quando todas as atitudes de um indivíduo são democráticas, ou seja, quando ele apoia as eleições, a participação, a independência dos poderes, o Estado de Direito e quando é tolerante.

Mas, por que alguns cidadãos possuem um sistema de crenças democrático coeso e outros não? Fuks, Casalecchi e Ribeiro (2019)FUKS, M.; CASALECCHI, G.; RIBEIRO, E. Determinantes contextuais da coesão do sistema de crenças democrático: evidências a partir da América Latina. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 28, p. 7-32, jan./abr. 2019. 9 9 Utilizando o Barômetro das Américas de 2010 (LAPOP, 2024). encontraram que, no nível individual, quanto mais anos de estudo e quanto maior o interesse por política, maiores são as chances de um indivíduo ser um democrata coeso. Outro efeito relevante refere-se à idade: as chances de ser um democrata coeso aumentam à medida que as faixas etárias se elevam. Ademais, a confiança interpessoal e a avaliação otimista da economia tiveram efeitos positivos sobre a coesão das crenças. Quanto às variáveis contextuais, o desenvolvimento econômico (medido pelo PIB) e anos ininterruptos de democracia no país tiveram um efeito significativo. De forma geral, os resultados apontam um sistema de crenças democrático pouco coeso entre os latino-americanos, em que os cidadãos endossam alguns princípios democráticos e rechaçam outros.

Observando o impacto de variáveis sociodemográficas sobre a adesão à democracia, Moisés e Carneiro (2008)MOISÉS, J. A.; CARNEIRO, G. P. Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil. Opinião Pública, Campinas, v. 14, n. 1, p. 1-42, 2008. 10 10 Tendo por base a série histórica do Latinobarômetro entre 1995 e 2002 (LATINOBARÓMETRO, 2023). apontam que os indivíduos com baixa escolaridade preferem menos a democracia, são mais indiferentes quanto ao regime e preferem o autoritarismo em detrimento daqueles com nível superior.11 11 Similarmente, Veiga et al. (2017) com dados do Lapop de 2010 (LAPOP, 2024) encontraram que a escolaridade exerce uma influência positiva no apoio aos princípios democráticos, apoio às instituições políticas e desempenho do regime. No entanto, exerce uma influência negativa na dimensão de apoio a autoridades e atores políticos. Além disso, são os homens com 35 anos ou mais, em relação às mulheres e aos mais jovens, os que mais preferem a democracia e são menos indiferentes ou autoritários. Nesse seguimento, Fuks, Paulino e Casalecchi (2018)FUKS, M.; PAULINO, R.; CASALECCHI, G. Socialization and political regimes: the impact of generation on support for democracy in Latin America. Brazilian Political Science Review, v. 12, n. 1, p. 1-22, 2018. confirmam que gerações que viveram sob regimes autoritários têm maior probabilidade de apoiar a democracia. Além disso, mais anos de escolaridade, interesse por política e avaliação positiva da economia do país foram todos associados ao apoio à democracia, bem como encontraram Booth e Seligson (2009)BOOTH, J. A.; SELIGSON, M. A. The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. e Fuks, Casalecchi e Ribeiro (2019)FUKS, M.; CASALECCHI, G.; RIBEIRO, E. Determinantes contextuais da coesão do sistema de crenças democrático: evidências a partir da América Latina. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 28, p. 7-32, jan./abr. 2019..

Veiga et al. (2017)VEIGA, L. F.; RIBEIRO, E.; NICOLÁS, M. A.; BRAGATTO, R. C. El efecto de la experiencia democrática en la estructura de la legitimidad en América Latina y el Caribe. Opinião Pública, Campinas, v. 23, n. 2, p. 289-315, 2017. também avaliaram como os anos de experiência democrática em cada país influenciam as disposições individuais em relação à democracia. Utilizando as dimensões de apoio difuso e específico de Easton (1975)EASTON, D. A Re-assessment of the concept of political support. British Journal of Political Science, v. 5, n. 4, p. 435-457, out. 1975., eles expuseram que o número de anos de democracia ininterrupta impacta positivamente o apoio à comunidade política e aos princípios centrais do regime. Em relação à avaliação do regime, o resultado foi negativo: quanto maior a idade, mais críticos são os cidadãos ao avaliarem o contexto político e econômico. Quanto à manifestação de insatisfação com o regime, Moisés e Carneiro (2008)MOISÉS, J. A.; CARNEIRO, G. P. Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil. Opinião Pública, Campinas, v. 14, n. 1, p. 1-42, 2008. encontraram que apenas as variáveis relativas à escolaridade e sexo se mostraram significantes. Homens e pessoas com mais escolaridade apresentam maior insatisfação com a democracia. A baixa escolaridade - relacionada diretamente pelos autores como baixa cognição - mostrou-se associada com uma perspectiva acrítica quanto ao funcionamento do sistema.

Outro fator que se destaca quando analisamos o “cidadão democrático” é sua adesão a um conjunto de valores e crenças democráticas, em que a tolerância política é indissociável. Avançando na discussão presente na segunda dimensão da legitimidade de Norris (1999)NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999., Ribeiro e Borba (2019)RIBEIRO, E.; BORBA, J. Tolerância política no Brasil recente: evolução de indicadores e condicionantes. Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 87, p. 641-657, set./dez. 2019. explicitam como a tolerância parece ser produto da mobilização cognitiva, de modo que os eleitores mais escolarizados e mais aderentes à democracia são os mais tolerantes politicamente.12 12 Utilizando a série histórica do Lapop de 2006 a 2014 (LAPOP, 2024). Nessa perspectiva, Ribeiro e Fuks (2019)RIBEIRO, E.; FUKS, M. Tolerância política no Brasil. Opinião Pública, Campinas, v. 25, n. 3, p. 531-555, set./dez. 2019. 13 13 Utilizando dados do Lapop de 2017 (LAPOP, 2024). dimensionaram a antipatia e tolerância política dos brasileiros quanto a quatro grupos: pessoas que defendem a legalização do aborto, pessoas que defendem o regime militar, comunistas, simpatizantes do PT e do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira). Encontraram que os defensores da legalização do aborto (31,8%) e os comunistas (19,9%) são os principais alvos de antipatia. Já os “militaristas” tiveram a menor ocorrência de rejeição (11%).

Quanto aos partidos políticos, o PT (18,8%) e o PSDB (18,5%) tiveram percentuais muito próximos de desafeição popular. Somados, 37% dos brasileiros nutrem profunda rejeição pelos simpatizantes desses dois partidos. Para os autores, os dados indicam que, em contexto de crise política e polarização, são os partidos políticos que se tornam os principais alvos de intolerância. Complementam dizendo: “parece, então, que o que hoje percebemos como polarização política, no nível da elite política, começa a assumir, na opinião pública, a forma de antipartidarismo” (Ribeiro; Fuks, 2019RIBEIRO, E.; FUKS, M. Tolerância política no Brasil. Opinião Pública, Campinas, v. 25, n. 3, p. 531-555, set./dez. 2019., p. 548). Vale destacar que em Fuks et al. (2016)FUKS, M.; CASALECCHI, G. A.; GONÇALVES, G. Q.; DAVID, F. F. Qualificando a adesão à democracia: quão democratas são os democratas brasileiros? Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 19, p. 199-219, jan./abr. 2016. a dimensão da adesão ao princípio da representação política é a menor encontrada entre os diversos princípios democráticos analisados.

Como visto até aqui, a grande maioria dos estudos sobre legitimidade é baseada em métodos quantitativos destinados a pesquisas comparativas internacionais. Borba e Cardoso (2021)BORBA, J.; CARDOSO, G. R. Legitimidade democrática e apoio político: inovações recentes no debate internacional. Opinião Pública, Campinas, v. 27, n. 2, p. 333-359, 2021. trazem perspectivas recentes que têm trazido inovações relevantes aos estudos sobre o tema. Em termos metodológicos, destacam três avanços importantes: melhorias contínuas nas medidas diretas e indiretas de apoio à democracia nos surveys; novas técnicas de análise de dados; e o terceiro foi a incorporação de novos desenhos de pesquisa, como estudos qualitativos e experimentais. A proposta presente neste trabalho é analisar a percepção do eleitorado sobre o funcionamento da democracia no Brasil a partir de um esforço inicial para introduzir a abordagem qualitativa na agenda de pesquisas nacionais sobre legitimidade e apoio político.

Metodologia e resultados

A partir de uma metodologia qualitativa com aplicação de grupos focais, essa seção busca descrever a percepção do eleitorado a respeito do regime democrático. Partindo da estrutura multidimensional (Booth; Seligson, 2009BOOTH, J. A.; SELIGSON, M. A. The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.; Norris, 1999NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999.) e do apoio mais difuso ao mais específico nos termos de Easton (1975)EASTON, D. A Re-assessment of the concept of political support. British Journal of Political Science, v. 5, n. 4, p. 435-457, out. 1975., o objetivo é verificar quatro dimensões da legitimidade: apoio aos princípios fundamentais do regime; apoio às instituições do regime; avaliação do desempenho do regime; e apoio aos atores políticos.

Os estudos amparados por dados de survey não tem como propósito abranger a justificativa por trás da ponderação dos eleitores e podem deixar passar aspectos qualitativos fundamentais para explicar a legitimidade do regime. Por exemplo, eles não captam como as motivações, os valores e emoções dos cidadãos influenciam na sua adesão ou rejeição ao sistema político. Também não revelam as expectativas e frustrações em relação ao funcionamento das instituições e desempenho dos governantes. Dados qualitativos, por outro lado, permitem explorar essas percepções com mais profundidade e riqueza de detalhes a partir de uma perspectiva mais ampla e dinâmica.

Nesse sentido, o presente artigo traz uma abordagem relativamente nova para analisar a legitimidade democrática ao utilizar grupos focais. Esse método parte da premissa de que as pessoas são mutuamente influenciadas pelo jogo de forças que vai se constituindo no processo de discussão, o que acaba por potencializar nossas conclusões sobre os consensos e dissensos quanto aos tópicos debatidos. Também, parte-se da premissa de que esses pequenos grupos tendem a reproduzir durante a conversação o discurso presente em suas relações macrossociais. É preciso reconhecer, contudo, alguns fatores de interferência, como a ativação cognitiva simultânea do pensar e ouvir, o medo da desaprovação social e a persuasão, ainda que existam técnicas utilizadas pelo moderador para amenizar tais limitações (Veiga; Gondim, 2001VEIGA, L. F.; GONDIM, S. M. G. A utilização de métodos qualitativos na Ciência Política e no Marketing Político. Opinião Pública, Campinas, v. 7, n. 1, p. 1-15, 2001.).

A pesquisa foi conduzida entre os dias 8 e 20 de abril de 2021 na cidade do Rio de Janeiro.14 14 É importante ressaltar que o contexto local do Rio de Janeiro, onde foi realizada a pesquisa, pode influenciar o perfil dos bolsonaristas entrevistados. A cidade é considerada o berço eleitoral de Jair Bolsonaro, seus filhos e apoiadores importantes, como o pastor Silas Malafaia e o ex-juiz Wilson Witzel. Nas eleições de 2018, Bolsonaro obteve 59,79% dos votos válidos no estado, sendo o mais votado em 90 dos 92 municípios. Foram realizados oito grupos focais por meio da plataforma virtual gratuita Google Meet, com aproximadamente duas horas de duração cada e média de oito participantes por grupo, totalizando 62 pessoas. A distribuição geográfica dos entrevistados cobriu as quatro zonas da cidade: Central (ZC), Norte (ZN), Sul (ZS) e Oeste (ZO). Todos os grupos foram mistos, isto é, compostos por homens e mulheres, com idade entre 25 e 55 anos e classe C de rendimento mensal.15 15 A diversidade etária e de gênero permite captar diferentes percepções e experiências, e a classe C de rendimento mensal representa o “eleitor comum”, também um dos mais afetados pelas mudanças econômicas e sociais dos últimos anos.

O voto em 2018 foi classificado de acordo com as atitudes dos participantes em relação a Bolsonaro, enquanto candidato e presidente. Assim, aqueles que optaram por Fernando Haddad (PT) serão considerados “não simpatizantes”. O eleitorado que optou por Bolsonaro será dividido em três grupos diferentes considerando suas opiniões acerca do governo: os fiéis (aqueles que mantêm um apoio constante); os apoiadores críticos (aqueles que fazem críticas ao governo, mas podem optar por Bolsonaro novamente diante da falta de alternativas ou um possível segundo turno contra o PT); e os arrependidos (que se arrependeram do voto em 2018 ou que não votariam em Bolsonaro numa próxima eleição). Essa classificação é baseada em Rocha e Solano (2020)ROCHA, C.; SOLANO, E. Bolsonarismo em crise? São Paulo: Fundação Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil, jun. 2020..

Apoio aos princípios fundamentais do regime

A primeira dimensão está associada a participação política e eleitoral. Assim, a importância dada ao voto, o apoio a manifestações e o interesse pela política serão ponderados. À primeira vista, percebe-se que a adesão normativa ao voto é predominante em todos os grupos. A maioria dos participantes - independente das características sociais e escolha em 2018 - reconhece-o como uma ferramenta essencial para mudar a realidade social onde vivem. A palavra “esperança” é recorrente quando demonstram que escolher seus representantes é a única via para visualizar um futuro melhor. Apesar de muitos depoimentos evidenciarem uma constante insatisfação com o desempenho dos atores políticos, esses eleitores não rejeitam o voto, pelo contrário, o valorizam como uma forma de tentar “fazer a diferença”. Não optar por um candidato também é considerado uma omissão, em que os eleitores não poderão reclamar no futuro, visto que se abstiveram. Assim, procurar pelo concorrente “menos pior” seria uma alternativa para não votar nulo ou em branco:

Sou uma jovem de 24 anos, então eu votando eu já viso lá na frente, o futuro. O Brasil que eu quero para os meus filhos, para os meus sobrinhos, então eu penso nas próximas gerações depois de mim. [...] É quem vai estar lá que pode visar pelas coisas que eu acredito que sejam boas, uma boa saúde, uma boa educação, uma boa administração, é muito importante. Eu votando e podendo escolher essa pessoa que tem essa posição política para poder me representar lá, é muito importante eu vou votar (Mulher, 24, ZN, não simpatizante).

Anular o voto é ser omisso, é você não cumprir com seu papel de cidadão, é basicamente você chegar e dizer “não faz diferença para mim, tá bom do jeito que tá” (Homem, 28, ZC, arrependido).

A valorização do voto também é expressa como um sentimento de “fazer valer a cidadania”, como um direito conquistado e um ato de respeito ao passado. O sufrágio feminino e o fim da Ditadura Militar são mencionados para representar o voto como um dever cívico. Também, o ambiente político no Brasil é por vezes comparado a um ambiente de guerra, onde o voto se apresenta como a “arma do povo” para mudar os rumos da sociedade:

Principalmente para mim que sou mulher, um direito adquirido depois de muita luta, e eu fico entristecida de ver muitas mulheres falando que “ah é uma obrigação, é um dever, uma coisa que devia ser optativa”. Eu discordo, é um direito que a gente adquiriu depois de muita luta e é extremamente importante, é privilégio hoje em dia a gente poder tá votando. [...] Eu não me sinto obrigada, eu agradeço por poder votar. Eu tenho esse direito de escolher presidente, prefeito, isso é liberdade, você tá expressando o seu voto (Mulher, 34, ZN, não simpatizante).

A arma do bandido é o revólver e a pistola, e a nossa arma é o papel e o nosso voto. [...] Porque a cidadania que eu estou exercendo é o maior valor que eu tenho na minha vida (Homem, 45, ZN, não simpatizante).

Apesar disso, a adesão ao voto não é algo generalizada, sobretudo entre os eleitores da Zona Central e Zona Oeste. Essas pessoas demonstram profunda insatisfação com os governos e atestam que nada muda no cenário político, econômico e social do país. A descrença com o sistema também parte da profunda insatisfação com os políticos, considerados uma classe corrupta e não dignos de um “voto de confiança”. Devido às constantes decepções, anular o voto se apresenta como a única solução. Essa desvalorização do voto é maior nas eleições municipais ou para cargos legislativos. O voto para presidência é considerado de maior relevância e dimensão:

Já fiquei 12 anos sem votar, anos seguidos. [...] Porque com tantas coisas que eles falam na hora do horário eleitoral, fala que vai fazer isso e aquilo, e as coisas só ia piorando, então eu mesmo falava “eu não vou sair da minha casa, não vou gastar meu dinheiro de passagem para chegar lá e votar numa pessoa que tem que estar dentro da cadeia”, esse era o meu pensamento. Que não vai fazer nada por ninguém, só falam, falam e mais nada, promete e rouba. Então eu falava assim... que eu não ia sair do meu conforto para chegar lá e ser mais um brasileiro a ser enganado (Mulher, 32, ZO, não simpatizante).

Os participantes foram perguntados se votariam caso o voto não fosse obrigatório no Brasil. Assim como a valorização do voto, a predominância das respostas era de um apego à cidadania, em que a participação era necessária e afirmaram que votariam mesmo nesse cenário. De outro modo, aqueles cidadãos mais apáticos e insatisfeitos disseram que não participariam. Já a discussão sobre a necessidade da obrigatoriedade do voto é colocada sobre dois pontos de vista. As pessoas que são a favor acreditam que muitos brasileiros deixariam de participar da vida política caso não fossem obrigados a ir votar, também acreditam que a multa é irrisória e aqueles que decididamente não querem participar teriam essa opção. Os que são contra entendem que a compulsoriedade não é uma característica da democracia, mas sim uma ofensa à liberdade. Acreditam que se não fosse obrigatório o voto seria mais consciente e até estimularia os políticos a cativar e educar o eleitorado.

Na maioria dos grupos, mesmo aqueles eleitores que demonstraram muita importância ao ato de votar se mostraram contrários ao voto obrigatório. É recorrente a comparação do Brasil com outros países considerados de “primeiro mundo”, onde existiria uma real democracia. Supõem que mesmo diante da não obrigatoriedade os eleitores desses países votariam massivamente pelo “bem público” ou “amor à pátria”:

Eu sou a favor do voto obrigatório porque senão as pessoas não vão, ninguém vai. Infelizmente. Eu acho importante ir, é um direito que nós temos, é um direito que nós conquistamos com muita luta e com muito esforço, conquistamos nosso direito de votar. Só que infelizmente o povo brasileiro é muito acomodado, então se não for obrigatório ninguém vai votar e a gente nunca vai ter uma mudança. O voto é necessário para que a gente tenha que mudar, é a nossa voz, então se a gente não for lá o Brasil nunca vai mudar (Mulher, 43, ZO, não simpatizante).

É um direito meu eu vou exercê-lo, mas porque a obrigatoriedade? Que se eu não votar eu tenho que pagar uma multa? Está errado, é uma democracia e eu tenho que votar se eu quiser. [...] Eu particularmente vou, mas a palavra democracia não existe quando você é obrigado a ir (Mulher, 48, ZN, fiel).

A discussão sobre política é concentrada no período eleitoral, onde os participantes relataram se informar sobre os candidatos pelos debates, internet e entre seus pares. O entendimento é de que o eleitor brasileiro é pouco educado para discutir sobre o assunto. Mas acreditam que a conversa é saudável e importante para educar as futuras gerações. A participação política para além da esfera eleitoral foi expressa positivamente como um modo de manifestar insatisfação e união popular, assim como o poder do voto. Por outro lado, ele foi considerado não genuíno quando associado ao financiamento por determinados partidos ou organizações:

Eu me considero um analfabeto político. [...] A maioria hoje eu considero analfabeto político de fato nesse país, porque a gente não tem um estudo bom, e com isso a gente também não consegue se preparar politicamente para melhorar o nosso país. A gente tem que estudar, a gente tem hoje as ferramentas para estudar que é a internet (Homem, 50, ZO, crítico).

Se a gente pega isso aí e vai para rua, seja você de direita ou seja de esquerda, ou se você é do centrão, se junta todo mundo e vai para rua para poder manifestar e cobrar. [...] Cadê que ninguém se manifesta para acabar com isso tudo? A gente que tem que se unir, não ficar brigando com um e com outro por causa deles não (Homem, 39, ZN, fiel).

Em conclusão, a valorização do voto e a consideração do mesmo como um direito cívico retrata um apego básico à nação para além das instituições, o que é considerado uma condição indispensável para a constituição de um Estado-nação estável, como descrito em Norris (1999)NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999.. A fala que destaca a importância do voto para moldar o Brasil para as futuras gerações também revela um forte sentimento de pertencimento a uma comunidade política. Assim como o uso da expressão “a gente que tem que se unir” reflete uma noção de responsabilidade coletiva. Ao mesmo tempo, o ceticismo em relação à eficácia do sistema político vigente, evidenciado pelo comportamento de alguns eleitores em anular o voto, sugere uma preocupação com a incapacidade percebida do sistema em cumprir suas promessas e atender às necessidades da população. Essa interseção entre valorização do voto e ceticismo demonstra a complexidade das atitudes dos eleitores em relação à primeira dimensão analisada.

Apoio às instituições do regime

Essa dimensão se refere às atitudes dos cidadãos em relação às instituições políticas. Levaremos em consideração o apoio e confiança depositada nos partidos políticos, no processo eleitoral, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal (STF). A princípio, ressalta-se que as organizações partidárias carecem de credibilidade perante os participantes. As percepções predominantes são céticas e negativas. A explicação para a baixa confiança sempre aparece relacionada aos episódios de corrupção. As falas também apontam para o baixo desempenho: às expectativas criadas e consequentes frustrações. O questionamento sobre o repasse de verba pública aos partidos feito por um eleitor é um ponto a ser destacado, o entendimento é que o fundo partidário favorece legendas “nanicas” ou “de aluguel” que sobrevivem sem apoio popular. E, além disso, acredita que os partidos deveriam se autossustentar:

Não tem para onde correr, é difícil. Hoje são organizações criminosas que roubam o povo, esses partidos aí quase nenhum presta, se tiver, é um ou outro que talvez tenha (Homem, 50, ZN, crítico).

O antipartidarismo mencionado nos grupos foi integralmente direcionado ao PT. A forte rejeição ao partido foi manifestada principalmente como justificativa para o voto em Bolsonaro em 2018, como uma reação à “roubalheira generalizada”. Houve duas menções a outros partidos: o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido Novo. Sob outra vertente, aqueles que defenderam o voto no PT não esboçaram necessariamente um sentimento de afeição em relação à legenda:

Não sou PT doente, mas é o que eu falo: a gente vai em um para evitar o pior. Não é que a gente aposta muito em um, porque todos eles têm seus problemas, mas a gente vai naquele que possa trazer menos problemas (Mulher, 39, ZO, não simpatizante).

O processo eleitoral brasileiro nos últimos anos foi tomado pelo debate sobre a segurança das urnas eletrônicas. Essa contestação foi protagonizada pelo próprio Jair Bolsonaro. Um levantamento anterior já estimava que 76,5% dos eleitores cariocas não confiam ou têm pouca confiança na urna (Guatimosim, 2020GUATIMOSIM, P. Pesquisa na UniRio revela: se o voto não fosse obrigatório, mais de 50% dos cariocas não votariam. Notícias FAPERJ, Rio de Janeiro, 29 dez. 2020. Disponível em: Disponível em: https://siteantigo.faperj.br/?id=4128.2.6 . Acesso em: 12 jan. 2022.
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). Os grupos focais permitiram compreender que essa desconfiança se estende a todo processo político e eleitoral. A ideia prevalecente é de que no Brasil tudo pode ser corrompido e a maioria das opiniões era de que “é preciso confiar desconfiando”. Em geral, a falta de segurança no mundo digital foi descrita para fundamentar a desconfiança. As explicações passavam pela alusão de que é possível hackear tudo hoje em dia - ainda que a urna não tenha conexão com a internet - e também pela sensação de que os candidatos, presumivelmente corruptos, fariam de tudo para se eleger.

Vale destacar que os participantes da Zona Norte e Zona Oeste foram os que mais manifestaram desconfiança. Os bolsonaristas fiéis foram mais enfáticos ao questionar a urna e defender o voto em papel. Na visão deles, o equipamento eletrônico é extremamente vulnerável a fraudes e o voto em papel proporciona o acompanhamento da contagem “voto a voto”. A alternativa de ter comprovante impresso do voto também é colocada:

Confio desconfiando. [...] Mas como sempre tem uma falcatrua, sempre tem aquele jeitinho brasileiro que é impressionante, apavorante, esse jeitinho brasileiro, a gente acaba desconfiando de algumas coisas. É inevitável não desconfiar (Mulher, 30, ZO, fiel).

Se um hacker invade a NASA, não vai invadir um negócio brasileiro? Então eu não confio em nada disso (Homem, 40, ZN, crítico).

Demorava para caramba contagem de votos no papel, as eleições demoravam para caramba, as urnas adiantaram bastante, porém eu não acho que é seguro. [...] Voto em papel podia demorar uma semana, mas ia ser contado voto a voto (Homem, 39, ZN, fiel).

Muitos daqueles que afirmaram que o processo de votação é seguro e confiável relataram a experiência de trabalhar nas eleições. Os não simpatizantes de Bolsonaro ou aqueles arrependidos do voto em 2018, assim como os participantes da Zona Sul demonstraram uma maior confiança. Cabe ressaltar que um estudo de Borba e Ross (2021)BORBA, F.; ROSS, S. D. Integridade eleitoral e confiança nas urnas eletrônicas. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPOCS, 45., Anais eletrônicos [...] GT08 Comportamento político, opinião pública e cultura política, 2021. Disponível em: Disponível em: https://shorturl.at/kxWX6 Acesso em: 12 jan. 2022.
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apontou que as pessoas com maior confiança são do sexo masculino, mais velhas, com alta renda e escolaridade. Para além da discussão sobre o sistema de votação, o processo eleitoral também foi questionado por outros aspectos, como a distribuição do Fundo Eleitoral e do HGPE, a conversão de votos em mandatos políticos e o uso de “robôs” para disparo automatizado de mensagens pelo WhatsApp. Quando perguntados sobre a efetividade da Justiça Eleitoral, a resposta comum é de que no Brasil tudo parece ser mais complicado de se fiscalizar, além de que, dentro do órgão, também pode haver corrupção.

A atuação do Congresso Nacional e do STF foi lembrada constantemente para mencionar os atritos com o então Presidente da República. Entre os apoiadores de Bolsonaro, críticos ou fiéis, o argumento era de que esses poderes ultrapassam suas competências e sabotam a agenda do governo federal. A performance do STF também foi questionada por “favorecer bandidos” e praticar “militância política”. Por outro lado, os não simpatizantes do ex-presidente não criticaram com tanta frequência a atuação dos outros poderes, e concordam que a política, por essência conflituosa, requer necessidade de se fazer alianças para obter maioria:

O país só não está melhor por culpa da tentativa de derrubar o presidente de todas as formas, a oposição, o STF, a Câmara. [...] Eu estou gostando muito do governo e eu acho que o país não está melhor porque tem pessoas que querem derrubar o governo, que não ajudam o país a subir, porque perderam a mamata (Homem, 46, ZC, fiel).

Ele não tá sabendo ser político, eu acho que a questão do Bolsonaro é essa. Ele não tá sabendo articular com quem precisa, porque mal ou bem ele depende do STF, da Câmara, de um monte de gente, dos senadores, então se ele não articular vai ser complicado ele passar alguma coisa (Mulher, 34, ZN, não simpatizante).

Outro tema relevante diz respeito ao compromisso com a democracia por parte do Poder Executivo Federal. Bolsonaro possui um histórico robusto de discursos antidemocráticos destinados a enfraquecer instituições como o Congresso e a Suprema Corte que são reconhecidos pelos eleitores, assim como sua apologia da Ditadura Militar. De modo geral, os entrevistados identificam o ex-capitão como uma ameaça à democracia e supõem que ele aspira um governo militar. Mas acreditam que as instituições seriam fortes o suficiente para conter a ameaça e que o próprio Bolsonaro não teria apoio suficiente - seja apoio popular, político ou dos militares - para tal empreendimento. Os bolsonaristas fiéis enxergam com outros olhos esse padrão de ações e discursos antidemocráticos. Pensam que se Bolsonaro fosse contra a democracia as Forças Armadas já teriam sido “convocadas”:

Em alguns momentos eu achei que encaminharia para um golpe militar, mas eu acho que hoje eu tô mais tranquilo quanto a isso, eu acho que os militares não querem golpe também, eu acho que isso existe só na cabeça dele, dos filhos dele, que são mais loucos. Eu não acho que ele representa uma ameaça para a democracia. Eu acho que o país hoje é muito bem blindado em relação a isso, e ele não tem maioria nem dentro das forças armadas nem da população brasileira para conseguir dar um golpe (Homem, 25, ZN, arrependido).

Escutei falar aí que ele é ditador, contra a democracia, mas se ele fosse contra a democracia o exército já tinha tomado conta de tudo, já tinha decretado nos artigos da Constituição. Ditador que não proíbe ninguém de ir e vir? [...] Aí se eu falar alguma coisa contra o STF eu sou punido. E o ditador é o presidente? Cada um com sua opinião, a gente respeita, a gente vive num país que dizem que é democrático (Homem, 46, ZC, fiel).

A crítica ao Congresso Nacional e ao STF, especialmente entre os apoiadores de Bolsonaro, ressoa à ideia de que esses poderes ultrapassam suas competências. A legitimidade dos representantes eleitos é questionada pelas manifestações de desconfiança em relação ao processo eleitoral e à segurança das urnas eletrônicas. A ampla descrença e as atitudes céticas e negativas em relação aos partidos constituem uma contestação sobre a autoridade legítima do sistema político. Em suma, os resultados apresentados nesta seção corroboram com aspectos discutidos na literatura sobre populismo nacional ou autoritário, que, por sua vez, proporcionam uma interpretação sobre as percepções e atitudes dos participantes em relação às instituições e às dinâmicas políticas contemporâneas no Brasil.

Avaliação do desempenho do regime

O desempenho prático do regime é outro indicador que mede a satisfação com a democracia e busca avaliar a aprovação do governo e principalmente da economia. A diferença entre uma opinião positiva ou negativa sobre a performance é muito nítida quando visualizamos quem a emite: os “vencedores” ou “perdedores” do pleito de 2018. Braga e Casalecchi (2016)BRAGA, M. do S. S.; CASALECCHI, G. A. Vencedores e perdedores nas eleições presidenciais de 2014: o efeito da derrota nas urnas sobre a satisfação e o apoio em relação à democracia no Brasil. Opinião Pública, Campinas, v. 22, n. 3, p. 550-568, 2016. já nos antecipam que os perdedores das eleições são mais insatisfeitos com o desempenho da democracia do que os vitoriosos. Em conformidade, os grupos demonstraram que os apoiadores de Jair Bolsonaro, sejam críticos ou fiéis, fazem uma avaliação positiva. Creem que ele quer o melhor para o país e tenta governar, mas é impedido pela oposição (que barra a agenda governista), pela mídia (que o ataca e distorce suas falas) e pela pandemia (que atrasa o cenário econômico).

Também relataram que “os anos de roubo” durante as últimas gestões do PT tiveram consequências sobre a governabilidade. Ademais, destacaram alguns pontos que consideram positivos no mandato, como melhorias na segurança pública, obras de grande porte e acordos internacionais. Não creditam a Bolsonaro a má avaliação econômica, culpam os impactos mundiais provocados pela Covid-19 e asseguram que a economia brasileira estava “em plena decolagem” no primeiro ano de governo. O Ministro da Economia, inclusive, ganha elogios entre esses eleitores:

O canal que leva água para o Nordeste... eles já estão produzindo trigo no Ceará. Nunca se produziu nada lá, ele conseguiu terminar uma obra que Lula ficou lá a 20, 30 anos para terminar, o governo Dilma e o governo Lula, seja lá onde começou a transposição do Rio São Francisco. Ele terminou e já está se produzindo trigo. É disso que o Brasil precisa (Homem, 53, ZN, fiel).

Pô, Selic a 2,7%, quando isso aconteceu no Brasil? Nunca! Umas das melhores taxas de juros no banco do mundo, os investidores da Bolsa de Valores aumentaram mais do que 44% se eu não me engano, abrimos capital no mercado estrangeiro, agora você pode comprar ações de empresas que você não conseguiria antes dentro do Brasil, questão de investimento, outros recursos, as privatizações, por aí vai. O próprio controle dele no auxílio emergencial foi muito bom (Homem, 30, ZN, crítico).

A responsabilidade atribuída à pandemia pelo colapso econômico não é só comum entre os eleitores de Bolsonaro, os não simpatizantes também entendem que o então presidente “pouco pôde fazer” nessa conjuntura. Uma questão que se apresenta aqui é o conceito de responsabilização: até que ponto os eleitores conseguem discernir “sorte” (choques externos) de “competência” (qualidade das políticas) quando avaliam seus governantes (Campello; Zucco, 2020CAMPELLO, D.; ZUCCO, C. The Volatility curse: exogenous shocks and representation in resource-rich democracies. New York: Cambridge University Press, 2020.). Assim, a avaliação da economia, como parte da avaliação de desempenho do regime, pode não implicar, necessariamente, na legitimidade democrática. É válido mencionar um depoimento que descreve que na época do Governo Lula, mesmo diante de crises econômicas internacionais a situação era controlada:

Eu acho que, assim, na época do Lula, não tem como não comparar né, também tinha crise econômica com aquilo que aconteceu nos Estados Unidos, a Grécia quebrou, enfim... e a gente conseguia, era voo doméstico barato, comia muito mais carne, a gasolina não era tão absurdamente cara do jeito que tá (Mulher, 34, ZN, não simpatizante).

Apesar da não imputação ao então presidente pelo cenário econômico, os que optaram por Haddad são extremamente críticos em relação a outras áreas do governo Bolsonaro. Desaprovam sua postura, as denúncias de corrupção envolvendo sua família, a tentativa de interferência na Polícia Federal para acobertar os filhos, a má gestão da pandemia, a instabilidade política, entre outras coisas:

Dez mil mortes e ele falava “e daí? não sou o coveiro”. Toda vez que ele se pronunciava era de uma forma agressiva, de uma forma que “não estou nem aí, é só uma gripezinha”. E essa gripezinha hoje já fez mais de 300 mil mortes. É algo muito pesado. [...] Ele simplesmente não se importa. Se você perdeu um parente seu, se seu amigo muito próximo faleceu, ele diz “problema é seu” (Mulher, 25, ZS - Copacabana, não simpatizante).

A gestão da pandemia pode ser considerada um divisor de águas entre aqueles que votaram no candidato do PSL e continuam o apoiando, e os que votaram e estão arrependidos. A avaliação econômica também foi determinante para o arrependimento:

Eu vinha de uma certa forma tapando o sol com a peneira para várias situações que eu via envolvendo Bolsonaro. Eu tentava burlar as informações e a me boicotar na verdade, em não acreditar nas coisas que eu estava vendo e ouvindo. Hoje eu acho que classificaria o Bolsonaro como um genocida, junto a ele o nosso governador Witzel. Se o Lula voltasse ele seria um mártir, e ele vai fazer o Lula ser eleito. [...] Foi justamente no auge da pandemia onde as vacinas estavam sendo testadas e estudadas e o Brasil teve a oportunidade de fazer a compra e ele foi totalmente negligente em relação a isso. Ele negligenciou o povo que o elegeu, aquelas pessoas que acreditavam nele. Foi ali que a minha visão em relação a ele... foi ali que de fato eu acordei e pensei realmente “não é esse o cara” (Mulher, 45, ZS, arrependida).

Já me incomodava a imperícia econômica e a falta de traquejo nas questões de relações internacionais, a maneira como o nosso chanceler tratava antes até da pandemia, essa coisa de você isolar o país economicamente. Eu comecei a me incomodar com a questão das políticas econômicas do Paulo Guedes, uma pessoa que eu confiava muito, e tá se mostrando somente um marqueteiro (Homem, 40, ZS, arrependido).

Por outro lado, os eleitores fiéis não criticaram a gestão da pandemia, entendem que Bolsonaro era contra as medidas de isolamento social pois se preocupava com os impactos financeiros, os danos que poderia causar na renda e empregos. A dicotomia “cuidar da saúde” versus “cuidar da economia” foi constantemente enunciada. Discorrem que ele enviou recursos para os estados e municípios, mas estes fizeram mal uso ou desviaram o dinheiro. E que, na verdade, o STF “retirou o poder” do governo federal e deu aos governadores e prefeitos os poderes sobre combate à pandemia. Da mesma forma, não o culpam por sua conduta individual em relação à Covid-19, isto é, entendem que cada pessoa deve tomar suas próprias decisões (como utilizar máscaras e tomar vacina) independente do que faz o presidente. Alguns bolsonaristas fiéis demonstraram acreditar em teorias conspiratórias e negacionistas ao concordarem com o “tratamento precoce” e cloroquina para remediar a Covid-19 e que os hospitais recebem dinheiro por cada óbito registrado pela doença:

É muito triste a pandemia? É muito triste. Só que é inevitável, muitas pessoas vão morrer, muitas pessoas vão pegar e muitas pessoas vão sobreviver. É frio falar isso? É frio. É calculista? Parece calculista. Mas gente, é uma pandemia. E eu não sei o que é pior: a pessoa morrer de covid ou morrer de fome, sabe? (Mulher, 30, ZO, fiel).

Tiraram o poder dele e jogaram na mão dos prefeitos e governadores, ele liberou verba, muita gente roubou, muita gente usou para pagar salário atrasado, muita gente utilizou o dinheiro e não direcionou o dinheiro para o lugar certo que deveria ir e agora ficam botando a culpa nele (Homem, 44, ZO, crítico).

A cloroquina e todos aqueles medicamentos que deveriam ter sido tomados antes mesmo do vírus tá atacando, que todo mundo não levou a sério, eu acho que isso foi válido. Porque logo depois muita gente começou a fazer o uso do medicamento e viu que teve solução (Mulher, 48, ZN, fiel).

Além disso, o debate sobre o combate à corrupção foi predominante nos grupos. Os eleitores fiéis asseguram que não há nenhuma denúncia contra a presidência, já os não simpatizantes recordam os escândalos envolvendo Bolsonaro e sua família. Importante mencionar que os arrependidos demonstram profunda insatisfação com essa pauta e fizeram referência ao desmantelamento da Operação Lava Jato:

Eu acho que ele tá tentando tirar corrupção, pelo que eu tô vendo ele é uma pessoa correta. [...] Porque até agora eu não tô vendo nada, não tá sendo divulgado nada contra ele (Mulher, 43, ZC, fiel).

O que ele fez foi um grande estelionato eleitoral. Ele se elegeu em cima de uma pauta anticorrupção e foi o principal inimigo da Lava-jato [...] Ou seja, eu lembro da frase do Romero Jucá, lá atrás daquele áudio de “estancar a sangria”. Sangria estancada! Antes do Bolsonaro entrar a gente tava vendo políticos sendo presos, políticos sendo indiciados, quem que a Polícia Federal prendeu depois do Bolsonaro? Ninguém! (Homem, 34, ZS, arrependido).

A evolução que eu acreditava era a Lava-Jato, políticos sendo preso, isso gerava esperança, gerava um certo conforto para nós enquanto brasileiros de ver que a justiça estava sendo feita. Eu imaginei que ele fosse dar seguimento a isso, que a gente ia começar a ver os crimes de colarinho branco atrás das grades, que a gente fosse de fato acabar com essa rede de corrupção (Mulher, 45, ZS, arrependida).

As percepções dos participantes sobre o desempenho prático do regime revelam complexidades distintas entre apoiadores e arrependidos. Mesmo diante de uma avaliação econômica desfavorável, os apoiadores não apenas atribuem a responsabilidade a fatores externos, mas também conectam essa má avaliação a “anos de roubo” durante as gestões do PT, evidenciando uma intrincada relação entre as memórias do passado e as avaliações presentes. Mishler e Rose (1995)MISHLER, W.; ROSE, R. Trajectories of fear and hope: support for democracy in post-communist Europe. Comparative Political Studies, v. 28, p 553-581, 1995. destacam a influência preponderante da esperança econômica sobre o apoio político em comparação com as avaliações das condições atuais ou passadas. Tal abordagem pode não oferecer uma compreensão abrangente das oscilações no apoio político em nosso contexto específico. Isso sugere a necessidade de considerar outros elementos que moldam as percepções e atitudes dos participantes diante do desempenho do regime.

Apoio aos atores políticos

Essa dimensão considera o apoio específico a atores políticos, incluindo avaliações dos políticos como uma classe ou avaliação de lideranças particulares. Os resultados indicam uma desconfiança generalizada nos políticos e essa percepção independente dos atributos sociais ou voto em 2018. Os participantes relataram uma sensação de cansaço de “serem enganados”, uma frustração com as repetidas investidas e uma falta de perspectiva. Essa situação pode ser analisada à luz do cidadão crítico de Norris (1999)NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999., que é capaz de questionar e fiscalizar os governantes, mas também pode gerar um risco de desengajamento e apatia política, se não houver alternativas viáveis e confiáveis para a mudança. Portanto, a teoria sugere que é necessário fortalecer o vínculo entre o apoio difuso e o apoio específico, por meio de mecanismos de accountability, transparência, participação e representatividade.

As causas da desconfiança são claramente associadas aos episódios de corrupção. Com efeito, a busca pela “ficha-limpa” aparece como um dos principais norteadores para decidir o voto. No entanto, acreditam que o “sistema” corrompe essas pessoas:

Eu não vejo confiança em nada do que eles falam, independente que seja deputado federal, prefeito, governador, presidente, qualquer um deles. De um tempo atrás para cá eu desacreditei deles. Porque a gente cansa, a gente não vê nada mudar, nada vai para frente, e só vê na verdade muito roubo, roubo, nada anda. Então o meu pensamento é de que mesmo avaliando cada um a gente sempre se decepciona (Mulher, 39, ZO, arrependida).

O político aparece todo bonzinho, igual na novela, no meio da novela vira um bruxo, acontece tudo de ruim. E vem o arrependimento de ter votado nele lá atrás (Mulher, 47, ZN, não simpatizante).

A pessoa entra ficha limpa, ainda não participou, ainda não tá envolvido. A questão é quem se mantém limpo né, porque é difícil se manter. Mas tem candidatos que são ficha limpa, alguns não conseguem se manter né, quando entra lá o negócio fica bem complicado, acho que as pessoas cedem a corrupção (Mulher, 21, ZN, não simpatizante).

Muitos participantes disseram que, durante o processo eleitoral, os candidatos fazem muitas promessas infundadas. Alguns também relataram que não enxergam propostas políticas efetivas e descrevem uma falta de identificação e diferenciação entre os concorrentes. Isso indica que os políticos, assim como os partidos, não estão cumprindo com suas funções de agregação de interesses e atalhos de informação que seus papéis implicam. A percepção comum é de que não há “renovação”, que são sempre os mesmos candidatos concorrendo. Estes seriam beneficiados por um aparato de campanha e financiamento ou um capital político familiar:

Os políticos jogam muito sujo no final quando eles querem voto, eles pegam as categorias de baixo, oferecem mundos e fundos, como lhe falei, é um país que não é preparado politicamente, como não é preparado na educação, então não vai ser preparado politicamente. Eu acho que ali eles conseguem pegar muitos votos, que podem com isso, com certeza, cada vez mais jogar nosso país no buraco (Homem, 50, ZO, crítico)

Dessa vez eu fiquei muito incomodada com a propaganda política da televisão porque a gente não consegue mais por ali discernir as propostas, você só vê guerra. É um querendo alfinetar o outro e trazer pontos negativos, eles não se propõem a se apresentar ou apresentar suas propostas, mas sujar a imagem do outro (Mulher, 37, ZN, não simpatizante).

A gente nunca vê uma mudança, são sempre as mesmas caras, porque são sempre as mesmas pessoas que tem o tempo de televisão, são sempre as mesmas pessoas que tem apoio de empresários, e botam jato, avião, equipe marqueteiro, gente pra percorrer o país inteiro (Homem, 40, ZS, arrependido).

Diante desse cenário, a intenção de votar no candidato outsider aparece com frequência, mas pela ineficiência administrativa ele também acaba decepcionando. A situação política do estado do Rio foi constantemente associada à desilusão e arrependimento do voto no “novo”. O ex-governador Wilson Witzel foi eleito em 2018 por meio do discurso lavajatista contra o crime e corrupção e na onda da “nova política”. Ele sofreu impeachment em abril de 2021 acusado de desvios na saúde em meio à pandemia. Vale ressaltar que outros cinco governadores eleitos pós-redemocratização - Luiz Fernando “Pezão”, Sérgio Cabral, Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho e Moreira Franco - já foram indiciados em processos que envolvem crimes de corrupção, crimes eleitorais, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Os depoimentos ainda mencionaram que devido ao enfrentamento da crise sanitária, na Eleição Municipal de 2020 a procura foi por candidatos com experiência política anterior:

A pessoa opta pelo novo e o novo sempre traz problema. Ele [Marcelo Crivella, ex-prefeito do Rio de Janeiro] trouxe problema, o governador [Wilson Witzel] trouxe problema. Votei nele mais me arrependi amargamente porque era uma pessoa nova. [...] E no final deu no que deu né, todo mundo já sabe o que aconteceu. E a gente às vezes tenta dessa forma, e acaba se arrependendo. É muito complicado, a gente vai em busca do que já fez, uma coisinha que ele já tenha feito de bom pra poder a gente se agarrar naquilo ali e tentar ter uma esperança pra melhorar, por que tá bem difícil (Mulher, 36, ZN, arrependida).

Se a pessoa for nova, de não ter uma carreira política, no atual momento que a gente está vivendo agora de tanta bagunça, não pode ser uma pessoa leiga, que tá chegando agora, muito novinho na idade, muito novinho de estrada e não conhece quase nada, não vai conseguir resolver (Mulher, 21, ZN, não simpatizante).

Os participantes expressam descontentamento não apenas com a corrupção, mas também com a falta de identificação com os candidatos. A intenção de votar em outsiders, apesar de frequente, também revela uma desilusão. Essa dinâmica reflete um desafio persistente. Em Booth e Seligson (2009)BOOTH, J. A.; SELIGSON, M. A. The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009., a avaliação positiva dos atores políticos fortalecem as atitudes que sustentam os regimes democráticos, aumentando o respeito à lei e reduzindo o apoio à rebelião. Em contraste, um cenário propício ao aumento do apoio às táticas políticas de confronto pode sobrecarregar a capacidade do Estado, onde é provável que protestos frequentes convençam forças de segurança a violar princípios democráticos fundamentais.

Os autores mencionam que é a partir de tal ação e reação que a estabilidade democrática pode, em última análise, começar a se desintegrar. Recordam, ainda, que a América Latina se destaca como uma região do mundo marcada por repetidos ciclos de democracia e ditadura. É válido ressaltar que em janeiro de 2023, após a vitória de Lula (PT) na corrida presidencial, manifestantes bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes clamando por intervenção militar.

Conclusão

Desde a transição para a democracia, o Brasil não vivenciou tantas turbulências quanto na década recente. A soma de eventos significativos desde a eclosão das Manifestações de Junho de 2013 formou um quadro permanente de deterioração institucional. A cada crise política - desde a contestação dos resultados eleitorais de 2014, passando pelo golpe institucional de 2016, pela retirada juridicamente arquitetada de Lula como candidato em 2018 à eleição inesperada de Jair Bolsonaro no mesmo ano - experimentamos um desgaste democrático. A polarização alimentada pelo lavajatismo, a economia continuamente fragilizada e a grave crise sanitária de Covid-19 foram outras circunstâncias que desafiaram a situação política nos últimos anos.

A democracia brasileira enfrenta ainda outro óbice: a baixa adesão, satisfação e confiança no regime devido ao desencanto com nosso sistema político. Diante dessa conjuntura, torna-se imperativo incorporar novos métodos na agenda de pesquisas sobre legitimidade, onde a pesquisa qualitativa pode desempenhar um papel crucial ao permitir uma maior flexibilidade e profundidade ao analisar os valores, crenças e percepções do indivíduo sobre o regime.

Nesse sentido, este trabalho teve como objetivo analisar a percepção do eleitorado sobre o funcionamento da democracia no país sob uma perspectiva multidimensional da legitimidade (Booth; Seligson, 2009BOOTH, J. A.; SELIGSON, M. A. The legitimacy puzzle in Latin America: political support and democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.; Norris, 1999NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999.) e por meio de uma abordagem qualitativa com aplicação de grupos focais. O objetivo foi verificar quatro dimensões: apoio aos princípios fundamentais do regime; apoio às instituições do regime; avaliação do desempenho do regime; e apoio aos atores políticos.

As atitudes dos brasileiros em relação ao regime democrático foram descritas pela literatura como ambivalentes. As pesquisas constantemente apontam que os eleitores não aderem com a mesma intensidade às diferentes dimensões da democracia e possuem um sistema de crenças pouco coeso. Também descrevem que a cultura política desde a redemocratização é uma cultura autoritária, afeita ao personalismo e não às instituições, onde permanece um antipartidarismo reativo e cultural e elevados níveis de intolerância política.

Os resultados dos grupos indicam que embora a maioria dos participantes aponte uma forte valorização do voto, das eleições e da participação política, grande parte não mantém atitudes positivas sobre os partidos e políticos. Ainda, a mesma valorização não foi vista quanto às instituições políticas e eleitorais, principalmente quanto ao processo eleitoral. A percepção sobre a corrupção demonstrou ser determinante para as avaliações negativas. Por exemplo, a maior parte dos eleitores quando indagados sobre a confiança na urna eletrônica afirmaram que “no Brasil tudo é corruptível”. A percepção geral é de um descontentamento, desesperança e de uma decepção mais profunda com o funcionamento da democracia.

Além disso, mostraram níveis moderados de uma avaliação positiva do desempenho do governo e da economia. Os partidários de Bolsonaro demonstram uma maior satisfação com a performance, e também uma maior desconfiança no processo eleitoral e críticas à atuação do Congresso Nacional e do STF. Por sua vez, os eleitores de Haddad no segundo turno da eleição de 2018 desaprovam veementemente o governo, mas não imputam a ele a má avaliação da economia devido ao caráter internacional da crise. Vale lembrar que essa percepção considera a situação econômica do país no primeiro trimestre de 2021. Um ponto a destacar é que os eleitores arrependidos do voto em Bolsonaro constantemente apontam a frustração com Paulo Guedes, a desilusão com o desmantelamento da Lava-jato e um ressentimento com a postura desumana de Bolsonaro em relação à pandemia.

De maneira geral, os grupos convergiram com a literatura que revela que os eleitores manifestam altos níveis de apoio difuso aos princípios do regime e baixos níveis de apoio específico às instituições e às autoridades políticas. No entanto, em vez de simplesmente validar essas descobertas, nosso estudo buscou explorar essas percepções com mais profundidade e riqueza de detalhes. Cabe ressaltar que a insatisfação dos cidadãos com o funcionamento da democracia não indica necessariamente uma deslegitimação do regime, embora estudos apontem que, no caso brasileiro, existe uma relação de causalidade entre descontentamento e atitudes autoritárias e ambivalentes (Meneguello, 2013MENEGUELLO, R. As bases do apoio ao regime democrático no Brasil. In: MOISÉS, José A.; MENEGUELLO, Rachel (eds.). A desconfiança política e seus impactos na qualidade da democracia - o caso do Brasil. São Paulo: Unesp, 2013, p. 71-93.; Moisés, 2008MOISÉS, J. A. Cultura política, instituições e democracia. Lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 23, n. 66, p. 11-44, 2008.; Moisés; Carneiro, 2008MOISÉS, J. A.; CARNEIRO, G. P. Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil. Opinião Pública, Campinas, v. 14, n. 1, p. 1-42, 2008.).

Um estudo de Avritzer e Rennó (2021)AVRITZER, L.; RENNÓ, L. The pandemic and the crisis of democracy in Brazil. Journal of Politics in Latin America, v. 13, n. 3, p. 442-457, 2021. concluiu que o bolsonarismo e autoritarismo “andam de mãos dadas” e ser partidário do PT, ainda que seja um forte preditor negativo de bolsonarismo, não é de autoritarismo. O contexto de múltiplas crises e a percepção de que a classe política é corrupta contribui para que os eleitores desconfiem das instituições e deslegitimem sua representação. Esses fatores estão diretamente ligados ao sucesso eleitoral de líderes outsiders e neopopulistas. Um processo contínuo de descontentamento e deslegitimação das instituições tem potencial para, a longo prazo, continuar a fomentar crenças e atitudes antidemocráticas no eleitorado brasileiro, onde movimentos e líderes que endossam esses valores não encontrarão muita resistência.

Referências

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  • 3
    Uma vez que o conceito de “democracia” é aberto a múltiplos significados, não há consenso sobre quais valores devem ser indicados como representativos desse tipo de apoio. Norris (1999, p. 11)NORRIS, P. (ed.). Critical citizens: global support for democratic governance. Oxford: Oxford University, 1999., por exemplo, discorre que estudos empíricos sobre o que as pessoas entendem pelo termo sugerem que ele pode significar “coisas diferentes para pessoas diferentes em sociedades diferentes”. Mas supõe, com base na mesma literatura, que os princípios básicos dos regimes democráticos são comumente associados a valores como liberdade, participação, tolerância, respeito aos direitos institucionais e ao Estado de Direito.
  • 4
    O conceito de legitimidade empregado se refere a um “tipo ideal associado à noção de que a política democrática e as instituições sobre as quais se estabelece são a forma apropriada para o sistema político se constituir” (Meneguello, 2010MENEGUELLO, R. Cidadãos e política: diagnóstico da adesão democrática, comportamento e valores. Brasília: CEPAL-IPEA, 2010. , p. 63).
  • 5
    Vale destacar que segundo o Índice de Confiança da Justiça Brasileira da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o grau de confiança da população no Poder Judiciário chegou a 40% em 2021, um dos maiores registrados (Ramos et al., 2021RAMOS, L. de O.; CUNHA, L. G.; OLIVEIRA, F. L. de; SAMPAIO, J. de O. Relatório ICJ Brasil. São Paulo: FGV Direito, 2021.). Tal tendência pode ser analisada à luz do combate à corrupção através do espetáculo midiático lavajatista.
  • 6
    Com dados do Latinobarômetro dos anos de 2002, 2003 e 2004 (LATINOBARÓMETRO, 2023LATINOBARÓMETRO. Banco de Dados do Latinobarómetro (1995-2020). Corporación Latinobarómetro, Chile, 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.latinobarometro.org/latContents.jsp . Acesso em: 22 abr. 2024.
    https://www.latinobarometro.org/latConte...
    ). Os entrevistados que concordavam com a afirmação de que “a democracia é o melhor sistema de governo” e que “a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo” foram considerados democratas. Os que discordam da primeira afirmação e que preferem um “governo autoritário em algumas circunstâncias” foram considerados autoritários. E ambivalentes os que concordando que “a democracia é o melhor sistema de governo”, preferiram, no entanto, as alternativas relativas a um “governo autoritário em algumas circunstâncias” e “tanto faz um regime democrático ou autoritário”.
  • 7
    Baseando-se no Barômetro das Américas de 2006 a 2012 (LAPOP, 2024LAPOP. Brazil Data (2006-2012). Latin American Public Opinion Project, Nashville: Vanderbilt University, 2024. Disponível em: Disponível em: https://www.vanderbilt.edu/lapop/brazil.php . Acesso em: 22 abr. 2024.
    https://www.vanderbilt.edu/lapop/brazil....
    ).
  • 8
    Fuks, Casalecchi e Ribeiro (2019)FUKS, M.; CASALECCHI, G.; RIBEIRO, E. Determinantes contextuais da coesão do sistema de crenças democrático: evidências a partir da América Latina. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 28, p. 7-32, jan./abr. 2019. chamam de “coesão democrática” a formação de um “sistema de crenças” democrático coerente, no qual as atitudes convergem para o apoio aos princípios democráticos. Um sistema de crenças democrático é coeso apenas quando todas as atitudes de um indivíduo são democráticas, ou seja, quando ele apoia as eleições, a participação, a independência dos poderes, o Estado de Direito e quando é tolerante.
  • 9
    Utilizando o Barômetro das Américas de 2010 (LAPOP, 2024LAPOP. Brazil Data (2006-2012). Latin American Public Opinion Project, Nashville: Vanderbilt University, 2024. Disponível em: Disponível em: https://www.vanderbilt.edu/lapop/brazil.php . Acesso em: 22 abr. 2024.
    https://www.vanderbilt.edu/lapop/brazil....
    ).
  • 10
    Tendo por base a série histórica do Latinobarômetro entre 1995 e 2002 (LATINOBARÓMETRO, 2023LATINOBARÓMETRO. Banco de Dados do Latinobarómetro (1995-2020). Corporación Latinobarómetro, Chile, 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.latinobarometro.org/latContents.jsp . Acesso em: 22 abr. 2024.
    https://www.latinobarometro.org/latConte...
    ).
  • 11
    Similarmente, Veiga et al. (2017)VEIGA, L. F.; RIBEIRO, E.; NICOLÁS, M. A.; BRAGATTO, R. C. El efecto de la experiencia democrática en la estructura de la legitimidad en América Latina y el Caribe. Opinião Pública, Campinas, v. 23, n. 2, p. 289-315, 2017. com dados do Lapop de 2010 (LAPOP, 2024LAPOP. Brazil Data (2006-2012). Latin American Public Opinion Project, Nashville: Vanderbilt University, 2024. Disponível em: Disponível em: https://www.vanderbilt.edu/lapop/brazil.php . Acesso em: 22 abr. 2024.
    https://www.vanderbilt.edu/lapop/brazil....
    ) encontraram que a escolaridade exerce uma influência positiva no apoio aos princípios democráticos, apoio às instituições políticas e desempenho do regime. No entanto, exerce uma influência negativa na dimensão de apoio a autoridades e atores políticos.
  • 12
    Utilizando a série histórica do Lapop de 2006 a 2014 (LAPOP, 2024LAPOP. Brazil Data (2006-2012). Latin American Public Opinion Project, Nashville: Vanderbilt University, 2024. Disponível em: Disponível em: https://www.vanderbilt.edu/lapop/brazil.php . Acesso em: 22 abr. 2024.
    https://www.vanderbilt.edu/lapop/brazil....
    ).
  • 13
    Utilizando dados do Lapop de 2017 (LAPOP, 2024LAPOP. Brazil Data (2006-2012). Latin American Public Opinion Project, Nashville: Vanderbilt University, 2024. Disponível em: Disponível em: https://www.vanderbilt.edu/lapop/brazil.php . Acesso em: 22 abr. 2024.
    https://www.vanderbilt.edu/lapop/brazil....
    ).
  • 14
    É importante ressaltar que o contexto local do Rio de Janeiro, onde foi realizada a pesquisa, pode influenciar o perfil dos bolsonaristas entrevistados. A cidade é considerada o berço eleitoral de Jair Bolsonaro, seus filhos e apoiadores importantes, como o pastor Silas Malafaia e o ex-juiz Wilson Witzel. Nas eleições de 2018, Bolsonaro obteve 59,79% dos votos válidos no estado, sendo o mais votado em 90 dos 92 municípios.
  • 15
    A diversidade etária e de gênero permite captar diferentes percepções e experiências, e a classe C de rendimento mensal representa o “eleitor comum”, também um dos mais afetados pelas mudanças econômicas e sociais dos últimos anos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2022
  • Aceito
    23 Jan 2024
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