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Apresentação: Feminismo e antirracismo

Os dois polos do dossiê deste número da RBCP - antirracismo e feminismo - têm muito em comum, como movimentos transformadores e como elaborações críticas. A luta política contra formas de preconceito e discriminação que atingem mulheres, negras/os e não brancas/os de forma mais ampla marca a produção sistemática de conhecimento nos dois casos. A crítica aos limites da igualdade formal nas democracias contemporâneas está, também, na base da ação política e da construção do conhecimento em ambos.

Dessa conjunção entre luta política e produção acadêmica, vieram contribuições de grande impacto para a crítica da democracia, que ganharam corpo e presença na área de Ciências Sociais e na Ciência Política, mais especificamente, sobretudo a partir dos anos 1960. Nas últimas décadas, o feminismo, em sua heterogeneidade, se afirmou como uma das principais correntes entre as teorias da democracia e o antirracismo se estabeleceu, também em sua heterogeneidade, como crítica incontornável para o pensamento democrático e a busca de ampliação da cidadania e da igualdade por meio da construção de instituições e políticas sensíveis às formas correntes de exclusão e marginalização da população negra.

As correntes de pensamento aqui discutidas expõem a fragilidade da percepção, presente nas matrizes liberais da teoria política, de que a universalidade dos direitos se afirma a partir da abstração das particularidades dos indivíduos. A elaboração teórica e também um conjunto de pesquisas realizadas em diversas partes do mundo expõem os mecanismos que produzem cotidianamente desigualdades e condições de vulnerabilidade diferenciadas para os indivíduos de acordo com o gênero e a raça. Tais estudos, que iluminam a diversidade, a sofisticação e a resiliência dos obstáculos à ampliação da igualdade e da participação política de mulheres e não-brancas/os nas sociedades contemporâneas, produziram deslocamentos que tiveram grande impacto na Ciência Política, como a atenção aos grupos sociais em vez do foco nos indivíduos e a compreensão de como se definem vantagens e desvantagens cumulativas, segundo sistemas ou estruturas que atuam seletivamente.

Nos dois casos, há desafios importantes que são parte da produção teórica e empírica contemporânea. Um deles é a compreensão de como gênero e raça se articulam com as desigualdades e desvantagens fundadas na classe social e/ou na renda dos indivíduos. Trata-se, ao mesmo tempo, de entender como se dão as conexões e causalidades, mas também de expor como e em que medida gênero e raça atuam como variáveis independentes de classe e renda, incidindo como tal nas oportunidades e no horizonte das possibilidades dos indivíduos. Assim, se a crítica aos limites da democracia formal tem muito em comum com aquela que foi elaborada pelo pensamento marxista, há aqui uma perspectiva que não foi necessariamente levada em conta por ele: aquela que se torna possível apenas quando ganham proeminência a posição social, as perspectivas e os interesses das mulheres e das/os negras/ os nas relações de poder.

Levando em conta esse ponto de partida, permanece como desafio a compreensão de como diferentes formas de dominação e de opressão se articulam. As análises sobre interseccionalidade, que vêm se ampliando nas últimas décadas, são um exemplo de esforços para compreender de que modo gênero e raça, ou gênero, raça e classe, estão articulados na produção das vantagens e das desvantagens que organizam potencialmente as trajetórias dos indivíduos. Para a análise dessas articulações, são expostos os limites dos coletivos que resultam do deslocamento do foco nos indivíduos para o foco nos grupos sociais, mencionado antes: a opressão de gênero atinge mulheres de diferentes maneiras, o que mostra a heterogeneidade desse grupo segundo a condição e a identidade distinta dessas mulheres. Mulheres brancas e mulheres negras, burguesas e trabalhadoras, têm suas vidas marcadas pelo sexismo, pela divisão sexual do trabalho e pela violência de gênero de diferentes maneiras. O racismo, por outro lado, não tem o mesmo impacto na vida dos indivíduos se são mulheres ou se são homens, o que não enfraquece os entendimentos do racismo como mecanismo ou sistema de opressão específico.

Os artigos deste número da Revista Brasileira de Ciência Política são representativos de como abordagens e construções dos problemas que se definem nas articulações entre gênero, raça e democracia ganham forma no pensamento feminista e antirracista. Roger Raupp Rios e Rodrigo da Silva tratam da inadequação do sistema jurídico de combate à discriminação e proteção dos direitos humanos quando não leva em conta o fato da interseccionalidade. São necessárias medidas que atinjam os padrões de opressão sofridos especificamente pelas mulheres negras.

O texto seguinte, de Paula Cristina da Silva Barreto, volta seu foco para uma política pública específica, o acesso ao ensino superior. A partir do início do século XXI, o movimento negro conquistou reserva de vagas em universidades públicas brasileiras, sendo a Universidade Federal da Bahia, objeto do texto, uma das pioneiras. Já as mulheres se tornaram, já no final do século XX, maioria entre os estudantes da educação universitária, embora muitas vezes concentradas nos cursos de menor prestígio social e menor renda esperada. Levando em conta as duas dimensões, raça e gênero, o texto indica os desafios que ainda restam para a efetiva superação das desigualdades na universidade brasileira. Em seguida, Marcolino Gomes de Oliveira Neto aborda um tema recorrente nos estudos sobre gênero e raça, que é a representação estereotipada dos grupos subalternos nos discursos públicos, em particular da mídia. O artigo se debruça sobre três personagens de quadrinhos no Brasil do começo, do meio e do fim do século XX. As personagens são mulheres negras e os autores, homens brancos, revelando a persistência do estereótipo num espaço que se quer lúdico e humorístico.

Já Daniela Peixoto Ramos se ocupa mais da relação entre gênero e classe, estudando, a partir de pesquisa de campo, qual a relação que mulheres pobres ou abastadas estabelecem com a política. Ela observa uma estrita vinculação entre a casa e a política, com uma marcante importância da socialização de gênero para a articulação dos discursos políticos. A concepção que funda a divisão sexual do trabalho aparece como guia para o entendimento de todo o mundo social. O artigo de Luiz Augusto Campos e Carlos Machado trata de participação política em sentido mais estrito, analisando as fortunas diferenciadas de candidatos negros e brancos, de ambos os sexos, às eleições municipais das duas maiores cidades do país. Os dados mostram que candidatos pretos e pardos têm grande dificuldade para ascender ao diminuto estrato daqueles que possuem maior financiamento e maior visibilidade durante a campanha, levando os autores à conclusão de que, no sistema político brasileiro, "o efeito negativo da raça se torna comparável ao efeito de se ser mulher".

Andreas Hofbauer discute a relação entre discriminação e raça/cor em outro contexto, estudando dois grupos indianos em posição de inferioridade social. Em relação aos chamados intocáveis, que ocupam a posição mais baixa no sistema de castas, há uma tradição discursiva que busca vincular casta a raça e cor. Mas no caso dos sid(d)is, cuja origem africana não é questionável, tal tradição parece ausente. O dossiê se encerra com a tradução de um texto de bell hooks, uma das autoras centrais do feminismo negro estadunidense, que só aos poucos vem sendo conhecida no Brasil. De forma enfática, ela critica o pensamento feminista dominante, que considera como sendo comuns a todas as mulheres as experiências e as ambições das profissionais brancas de classe média. Publicado pela primeira vez há mais de trinta anos, o livro de onde extraímos o texto de hooks balançou o feminismo ocidental, levando a uma maior preocupação com as assimetrias entre as próprias mulheres. Mas seus alertas continuam atuais.

Brasília, fevereiro de 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015
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