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Em busca das causas perdidas

PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020

No âmbito da Ciência Política, a sugestão do declínio, recessão ou crise das democracias tem ocorrido pelo menos desde 20151 1 Ver a íntegra da edição especial “Is Democracy in Decline?” publicada em janeiro de 2015 no Journal of Democracy (PLATTER, 2015). . No ano seguinte, os resultados do referendo popular sobre o Brexit na Inglaterra e, principalmente, da eleição presidencial que elegeu Donald Trump nos Estados Unidos, potencializaram a difusão desse diagnóstico. Desde então, uma literatura acadêmica internacional, sobretudo norte-americana e europeia, tem sido produzida e, rapidamente, traduzida e publicada no Brasil da crise (Levitsky & Ziblatt, 2018LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. (2018), Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar.; Runciman, 2018RUNCIMAN, David. (2018), Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia.; Castells, 2018CASTELLS, Manuel. (2018), Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar.; Brown, 2019BROWN, Wendy. (2019), Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia.; Mounk, 2019MOUNK, Yascha. (2019), O povo contra a democracia: porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras.; Geiselberger, 2019GEISELBERGER, Heinrich (ed.). (2019), A grande regressão: um debate internacional sobre os novos populismos – e como enfrentá-los. São Paulo: Estação Liberdade.; Przeworski, 2020PRZEWORSKI, Adam. (2020), Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar.). Voltando-se para uma audiência ampla e recorrendo a uma linguagem acessível, essas publicações pretendem alertar e intervir no debate público, chamando a atenção para a morte democrática das democracias e a revolta populista contra o regime do povo. Na conjuntura, também crescem as produções acadêmicas sobre a ascensão da extrema-direita, o populismo antiliberal, o retorno do fascismo, a polarização política e a racionalidade neoliberal (Brown, 2015BROWN, Wendy. (2015), Undoing the demos: neoliberalism’s stealthy revolution. New York: Zone Books: 2015., 2019BROWN, Wendy. (2019), Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia.; Stanley, 2018STANLEY, Jason. (2018), How fascism works: the politics of us and them. New York: Random House.; Traverso, 2019TRAVERSO, Enzo. (2019), The new faces of fascism: populism and far right. London: Verso.). Novos conceitos também são sugeridos – pós-democracia, desdemocratização, desconsolidação, legalismo autocrático – para caracterizar o fenômeno em curso, cujos impactos questionam a forma, a substância e a hegemonia ocidental daquilo que vem a ser comumente descrito como democracia liberal. Em questão de poucos anos, seja de uma perspectiva crítica ou liberal, já se tem disponível uma considerável literatura sobre a crise democrática, suas causas, processos e epifenômenos.

É nesse contexto internacional e nacional que a publicação do livro “Crises da democracia” de Adam Przeworski se insere, procurando analisar os termos em que esse debate tem sido travado e organizar metodicamente algumas de suas principais perguntas. Docente da New York University, Adam Przeworski é um dos mais prestigiados cientistas políticos em atividade no mundo. Pesquisador rigoroso do funcionamento e classificação dos regimes democráticos, Adam Przeworski representa o mainstream da Ciência Política, mas não deve ser reduzido a ele. Nesse sentido, o livro Crises da democracia é duplamente bem-vindo, seja porque reafirma a importância singular das leituras do autor sobre a democracia, seja porque ele se destaca entre seus pares pela prudência na qualificação e busca de explicações para sua crise atual. Ao mesmo tempo em que é a análise mais consistente e rigorosa da qual se dispõe até o momento sobre a crise democrática em curso, Przeworski é didático com seu público leitor, cuidadoso no tratamento da crise como novidade e humilde em reconhecer a limitações de suas conclusões. Nesse sentido, pondera a importância científica de um olhar mais detido e vagaroso sobre o momento em que vivemos, ao mesmo tempo em que não se permite ser distante ou indiferente a ele. É nesse movimento narrativo que Przeworski alia preocupação metodológica de um lado e humanística de outro, lembrando-nos que a boa Ciência Política não deve deixar de fazer perguntas, reconhecer seus limites e, tampouco, isolar a política em nome de um purismo disciplinar. Przeworski é, sobretudo, um intelectual: “a beleza de estudar filosofia política é que você se lembra das grandes questões. (...). E temo que tenhamos perdido isso” (PRZEWORSKI, 2014PRZEWORSKI, Adam. (2014), “Entrevista com Adam Przeworski”. Fernando Lattman-Weltman. Outubro de 2012, Nova York. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 27, 53: 207-214., p. 213).

A relação com o marxismo analítico2 2 “Marxismo para mim é uma análise das consequências das formas de propriedade para os processos históricos. Qualquer marxismo, em minha opinião, é uma teoria da história, talvez não necessariamente da humanidade, (...) mas da reprodução e transformação das relações sociais de acordo com leis (...). Uma explicação marxista, da história, de qualquer maneira, origina-se em pressupostos que dizem respeito à estrutura de propriedade dos recursos produtivos alienáveis: os ‘meios de produção’” (Przeworski, 1988, p. 6). , a orientação pela economia política3 3 “O instinto manda começar pela economia, e é por onde eu vou” (Przeworski, 2020, p. 131). e o oportunismo metodológico4 4 Em uma passagem clássica, Przeworski se autodefine como um “oportunista metodológico” e “sem princípios” (apud Kohli et al. 1995, p. 16), uma vez que utiliza e combina abordagens distintas na tentativa de explicar determinados fenômenos – por exemplo, teoria da escolha racional e teoria marxista da história (Przeworski, 1988). possibilitam que o mainstream representado por Przeworski seja também peculiar, isto é, marcado por uma originalidade característica e reconhecível em sua produção científica. Em Crises da democracia, o autor é capaz de validar conceitos e leituras marxistas com uma das definições mais provocativamente minimalistas de que dispomos na disciplina: “democracia é simplesmente um sistema no qual ocupantes do governo perdem eleições e vão embora quando perdem” (Przeworski, 2020PRZEWORSKI, Adam. (2020), Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar., p. 29). Amparado por minuciosas análises quantitativas, primárias e secundárias, o autor em nenhum momento abandona a importância da história para a explicação de fenômenos e processos políticos; pelo contrário, convoca-a para a mirada retrospectiva do papel que o conflito, os procedimentos e as instituições desempenharam em crises políticas que foram ou não convertidas em dramáticas crises da democracia, logo na primeira parte do livro – Alemanha (1928-33); Chile (1970-73); França (1954-62 e 68); Estados Unidos (1964-76). No decorrer de sua leitura, a centralidade do trabalho para a organização do mundo social e político é revelada na forma de como a classe trabalhadora ainda importa para a estruturação da representação política: “à medida que os partidos democráticos vão se aburguesando, os partidos de direita se proletarizam” (Przeworski, 2020, p. 166). Ao reconhecer que o maior desafio das democracias é a desigualdade econômica (Przeworski, 2014PRZEWORSKI, Adam. (2014), “Entrevista com Adam Przeworski”. Fernando Lattman-Weltman. Outubro de 2012, Nova York. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 27, 53: 207-214., p. 210) – delas decorrem consequências para a igualdade e o conflito político –, o autor se coloca em um patamar diferenciado do neoinstitucionalismo desalmado e cartorial, dado sua ciência de que o capitalismo “é um sistema de desigualdade econômica” (Przeworski, 2020, p. 41) que surpreendente e desconfortavelmente convive com a democracia. “A coexistência do capitalismo com a democracia sempre foi problemática e delicada” (Przeworski, 2020PRZEWORSKI, Adam. (2020), Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar., p. 13), mas Przeworski lê criticamente sua fase neoliberal ofensiva, cujos efeitos podem ser vistos tanto na desarticulação dos sindicatos, quanto no contínuo deslocamento à direita inclusive dos partidos políticos de esquerda, desde os anos 1980. Interessante é sua leitura sobre como esse fenômeno aliena, afasta e frustra o eleitor mediano – “principal motor da economia política contemporânea” (Przeworski, 2020, p. 13) –, impossibilitado de identificar e distinguir propostas partidárias de fato adversárias. Em diferentes momentos do livro, a desigualdade e/ou desigualdade de renda aparece como variável importante para interpretar a crise, dado que “as pessoas perderam em consequência da globalização e não foram compensadas por políticas redistributivas ou de outra natureza” (Przeworski, 2020, p. 137). Em seu esquema analítico, a observação do crescimento econômico e da renda per capita são variáveis que atuam na sobrevivência dos regimes democráticos (Przeworski, 2020, p. 59). O aumento da desigualdade é fator observável em muitos países que observam a “retrogressão autoritária” (Przeworski, 2020, p. 200).

A organização institucional do conflito, tarefa central da democracia, é árdua, complexa e vulnerável a um conjunto de variáveis pouco controláveis5 5 “A contingência e a incerteza são aspectos inerentes a conflitos complexos” (Przeworski, 2020, p. 77). : “a democracia é um mecanismo para processar conflitos” (Przeworski, 2020, p. 31), sendo a eleição seu ponto mais alto (p. 196). Este aspecto talvez seja o responsável por atrair Przeworski tão fortemente a uma noção minimalista de democracia, mais do que uma defesa normativa ou apriorística da democracia de baixa intensidade. Uma de suas muitas frases espirituosas ao longo do livro é relacionada exatamente com o reconhecimento deste ponto: “a democracia funciona quando alguma coisa está em jogo nas eleições, mas não quando coisas demais estão em jogo” (Przeworski, 2020, p. 33). Contudo, se a normatividade liberal não necessariamente fundamenta o eclético positivismo do autor, é seu realismo político que parece desempenhar este papel.6 6 “A democracia é uma minúscula partícula da história humana, recente e ainda rara” (Przeworski, 2020, p. 40) ou ainda “A democracia talvez ainda seja, e acho que é, a maneira menos pior de organizarmos nossa vida como coletividade, mas todo arranjo político enfrenta limites com relação ao que é capaz de alcançar” (Przeworski, 2020, p. 226). Por tradição filosófica e vocação disciplinar, afinal, a Ciência Política reserva pouco espaço para os que sonham; a impossibilidade da democracia está na política, assim como a impossibilidade da previsão é constitutiva da disciplina, a despeito de sua colonização racionalizadora. Um realismo político movido pela ética de mercado entende que governos devem ser eficientes e competentes, normalizando esse interesse pelo eleitorado. É nesse tipo de defesa que Przeworski lembra mais Schumpeter (Przeworski, 2020, p. 162) do que Marx, argumentando pela razoabilidade da crítica (populista) às instituições tradicionais (Przeworski, 2020, p. 12). Entendida como produto, a política não estaria fazendo suas entregas a contento.

Composto por dez capítulos divididos em três partes que remetem ao tempo (passado, presente e futuro), a tradução de Crises da democracia ainda traz um importante Prefácio à edição brasileira como um “exercício de humildade” (Przeworski, 2020, p. 11), nas palavras do próprio autor. Estudioso da realidade política brasileira, Przeworski reconhece a fraca justificativa para a ausência do Brasil como caso representativo de desconsolidação democrática7 7 O caso brasileiro traz de volta o problema militar, não considerado pelo autor para pensar os casos de desdemocratização atual (cf. nota na p. 167). , assim por ele descrito: “um processo de decadência gradual (mas, em última análise, substancial) dos três atributos básicos da democracia – eleições competitivas, direitos de expressão e associação assegurados por lei e Estado de direito” (Przeworski, 2020, p. 17-18). Citando os casos da Turquia, Venezuela, Hungria, Polônia, Índia e Estados Unidos, observa que a desconsolidação democrática envolve a incapacidade de instituições democráticas em conter sua subversão por governantes eleitos, em especial através do “populismo delegativo” (Przeworski, 2020, p. 15), o qual desfruta de apoio popular considerável. Apesar de considerar bem-vindo o “populismo participativo” (Przeworski, 2020, p. 15), algo digno de atenção, a discussão sobre populismo no livro é telegráfica e superficial, assim como na maior parte da literatura internacional recente (norte-americana e europeia) sobre a crise. Nessas análises, sobretudo as de cunho institucionalista-liberal, o populismo é considerado uma variável independente da crise democrática, uma vez que está associado a lideranças personalistas com vocação autoritária e desrespeito às instituições políticas liberais. Observa-se que o Brasil não estava na rota de Przeworski por sua confiança no funcionamento das nossas instituições, assim como grande parte da Ciência Política brasileira (Przeworski, 2020, p. 11). Segundo ele próprio, essa percepção foi alterada a partir da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais em 2018.

Przeworski insere e descarta hipóteses para a explicação da crise democrática atual, através de um raciocínio metódico e contínuo ao longo do livro, problematizando a própria noção de crise logo no seu início. Crises podem ser econômicas, culturais e políticas, sendo que relações de causa e efeito entre elas, quando existem, são contingentes e ocasionais. Muitas variáveis podem influenciar o desencadeamento de uma crise política, nem sempre convertida em crise democrática. Neste aspecto, a tradição de ciência social que influencia Przeworski combina história e economia política para identificar os sinais da crise, geralmente menosprezados quando começam a aparecer. Obviamente, instituições políticas, sistemas de governo – a baixa longevidade das democracias presidencialistas é reiterada, apesar de ser tema controverso na literatura especializada – e desenhos constitucionais possuem papel importante para sua eclosão ou contenção, mas não são capazes de sozinhos a determinar. Por exemplo, manifestações e mobilizações sociais fazem parte do conflito democrático, mas esse será suscetível ao grau de polarização ou à disposição ao confronto físico que determinado antagonismo político pode assumir. Em diferentes momentos históricos do século XX, as forças armadas entravam com mais frequência na equação, evidenciando rupturas democráticas violentas, como a chilena em 1973. Porém, a força atribuída por Przeworski ao acaso, ao imponderável e ao acidental não habilita o registro histórico como guia para o futuro.

Na segunda parte do livro, Przeworski inverte a lógica da primeira ao buscar os sinais no presente que sugerem a existência de uma crise democrática, oferecendo possíveis explicações econômicas, culturais e políticas. A morte lenta dos sistemas partidários tradicionais e sua não substituição (Przeworski, 2020, p. 114), o declínio dos índices de apoio à democracia, o aumento da abstenção eleitoral, a desconfiança institucional generalizada e o crescimento das forças de extrema-direita são alguns dos seus principais, ainda que não sejam propriamente achados originais do autor. A origem do comportamento hostil da direita radical permanece nebulosa e pouco compreensível para o autor (Przeworski, 2020, p. 158), mesmo que seus seguidores possam ser eventualmente reconhecidos como perdedores do processo de globalização. Essa ideia, associada ao peso que a crise migratória e o multiculturalismo ganham para entender a radicalização da direita reacionária, é recorrente na literatura recente sobre a crise, fazendo com que o autor traga pontualmente o debate sobre racismo, identidade e pós-verdade. Dificilmente, a espoliação da globalização, a intensificação da migração e os dilemas multiculturais nas sociedades ricas do Atlântico Norte poderiam ser considerados fenômenos significativos para explicar a reabilitação da direita no Sul Global, na América Latina ou no Brasil – apesar da transnacionalização de seus repertórios e discursos. De forma semelhante, o declínio na crença no progresso material a partir de dados da OCDE-2000 também precisaria ser relativizado, assim como o pessimismo sobre o futuro das futuras gerações (Przeworski, 2020, p. 164-165). Não obstante a produção de fenômenos semelhantes e comuns ser observável em realidades nacionais díspares que enfrentam a crise, as características nacionais e regionais dos Estados Unidos e Europa Ocidental não deveriam ser tomadas como padrão universalizável, dado que as rupturas democráticas da democracia não têm se limitado àquelas tidas como maduras ou avançadas. Pelo contrário.

Assim, na última parte do livro Przeworski se dedica a teorizar a principal novidade ou diferencial da crise que, se bem procurada, já poderia ter sido encontrada nas jovens democracias paraguaia e brasileira, respectivamente em 2012 e 2016. Como institucionalista, Przeworski entende que instituições políticas administram ordeiramente, estruturam, absorvem e regulam conflitos de acordo com regras (Przeworski, 2020, p. 178). Nesse contexto, os partidos políticos são atores fundamentais; entretanto, permanecem funcionando eleitoralmente, sem a mesma capacidade integradora, mobilizadora e conectora de outrora. Da mesma forma, sindicatos e associações vêm perdendo sua função na vida associativa. Instituições e eleições têm perdido sua utilidade na mediação entre conflito, associação e esperança: “eleições fracassam como mecanismo de processar conflitos quando seus resultados não têm consequência na vida das pessoas” (Przeworski, 2020, p. 198).

A noção de “subversão sub-reptícia8 8 “A sub-repção é um processo pelo qual o governo adota certas medidas, nenhuma delas, manifestamente inconstitucional ou antidemocrática, mas que acumuladas destroem pouco a pouco a capacidade da oposição de tirá-lo do cargo ou ampliam sua liberdade de formulação política” (Przeworski, 2020, p. 211). Seu efeito obscurece “o perigo a longo prazo” (Przeworski, 2020, p. 217). ” intitula o penúltimo capítulo, constituindo o fenômeno de descaracterização da democracia através do seu desgaste gradual e sua captura imperceptível, sem violação de constitucionalidade ou ruptura institucional. É justamente aí que reside a dificuldade em identificar o momento exato em que a democracia colapsou e quando seus limites foram ultrapassados. Nessa descrição, o autor avança na teorização das novas rupturas democráticas, ainda que o protagonismo institucional, a aparência de normalidade e a noção de processo (lento) para entender a novidade da crise, não sejam dele um conjunto diagnóstico original.9 9 Os conceitos de pós-democracia e desdemocratização, por exemplo, já capturam esse estado de coisas, cf. Ballestrin, 2018. O movimento de buscar aspectos institucionais e constitucionais da República de Weimar e do Chile de Allende é necessário e inibe a ênfase de ineditismo quanto ao papel das instituições na crise – Przeworski sequer cita o livro de Levitsky e Ziblatt (2018)LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. (2018), Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar., desdenhando o tom alarmista e definitivo de certas abordagens sobre a crise. A questão, contudo, é quando as instituições promovem o conflito, desestabilizando a máxima institucionalista de seu papel canalizador e neutralizador.

Polônia, Hungria, Venezuela e Turquia são quatro países que exemplificam o fenômeno da sub-repção, ainda que contextos nacionais periféricos europeus e latino-americanos não ocupem o principal espaço do esforço interpretativo do livro. Neste aspecto em particular, a insistência em olhar principalmente para os Estados Unidos e Europa Ocidental desconsidera o fato de que uma análise comparada de “crises” também necessita pluralizar “democracias”, isto é, considerar que a ordem internacional pós-colonial procurou globalizar a democracia e o neoliberalismo sob as ruínas imperiais. Isso não deve servir para a exclusão, e sim inclusão analítica; sabe-se que com o aumento do número de democracias na sociedade internacional de Estados nacionais, principalmente após a descolonização e a democratização do Terceiro Mundo, o eurocentrismo conceitual e etnocentrismo metodológico passaram a ser problematizados (cf. Badie e Hermet, 1993BADIE, Bertrand; HERMET, Guy. Política Comparada. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.). Assim, olhar para as “crises das democracias” não fundacionais significa também considerar um universo ampliado de “democracias realmente existentes”, permeado por outras ordens de desigualdades e, ao mesmo tempo, resistência e inovação democrática. Especificamente, as desigualdades pós-coloniais em uma dimensão de globalidade podem ser consideradas nos processos de desdemocratização no Sul Global, de modo a atenuar o anglo-eurocentrismo analítico, entrelaçar as histórias (pós)coloniais e incorporar democracias não modelares no quadro comparativo global. Tal perspectiva impõe novos desafios à metodologia comparada em nível internacional para o estudo das democracias, possibilitando pensar diferentes dimensões analíticas e interpretativas para compreender nossos problemas e superar nossos desafios comuns.

Como todo realista, Przeworski é pessimista e conclui sobre a profundidade das origens da crise política, econômica e social, preocupando-se mais com a “humanidade” do que com a própria democracia (Przeworski, 2020PRZEWORSKI, Adam. (2020), Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar., p. 23). É isso que faz com que caminhemos, junto à Przeworski, em busca das causas perdidas.

  • 1
    Ver a íntegra da edição especial “Is Democracy in Decline?” publicada em janeiro de 2015 no Journal of Democracy (PLATTER, 2015PLATTER, Marc. (2015), Is Democracy in Decline? Journal of Democracy, 46, 1: 5-10.).
  • 2
    “Marxismo para mim é uma análise das consequências das formas de propriedade para os processos históricos. Qualquer marxismo, em minha opinião, é uma teoria da história, talvez não necessariamente da humanidade, (...) mas da reprodução e transformação das relações sociais de acordo com leis (...). Uma explicação marxista, da história, de qualquer maneira, origina-se em pressupostos que dizem respeito à estrutura de propriedade dos recursos produtivos alienáveis: os ‘meios de produção’” (Przeworski, 1988PRZEWORSKI, Adam. (1988), Marxismo e Escolha Racional, Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 6, vol. 3, fev., p. 6).
  • 3
    “O instinto manda começar pela economia, e é por onde eu vou” (Przeworski, 2020, p. 131).
  • 4
    Em uma passagem clássica, Przeworski se autodefine como um “oportunista metodológico” e “sem princípios” (apud Kohli et al. 1995KOHLI, Atul; EVANS, Peter; KATZENSTEIN, Peter; PRZEWORSKI, Adam; RUDOLPH, Susanne H.; SCOTT, James C; SKOCPOL, Theda. (1995), The Role of Theory in Comparative Politics: a Symposium. World Politics, vol. 48, n. 1, oct., pp. 1- 49. , p. 16), uma vez que utiliza e combina abordagens distintas na tentativa de explicar determinados fenômenos – por exemplo, teoria da escolha racional e teoria marxista da história (Przeworski, 1988PRZEWORSKI, Adam. (1988), Marxismo e Escolha Racional, Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 6, vol. 3, fev.).
  • 5
    “A contingência e a incerteza são aspectos inerentes a conflitos complexos” (Przeworski, 2020, p. 77).
  • 6
    “A democracia é uma minúscula partícula da história humana, recente e ainda rara” (Przeworski, 2020, p. 40) ou ainda “A democracia talvez ainda seja, e acho que é, a maneira menos pior de organizarmos nossa vida como coletividade, mas todo arranjo político enfrenta limites com relação ao que é capaz de alcançar” (Przeworski, 2020, p. 226).
  • 7
    O caso brasileiro traz de volta o problema militar, não considerado pelo autor para pensar os casos de desdemocratização atual (cf. nota na p. 167).
  • 8
    “A sub-repção é um processo pelo qual o governo adota certas medidas, nenhuma delas, manifestamente inconstitucional ou antidemocrática, mas que acumuladas destroem pouco a pouco a capacidade da oposição de tirá-lo do cargo ou ampliam sua liberdade de formulação política” (Przeworski, 2020, p. 211). Seu efeito obscurece “o perigo a longo prazo” (Przeworski, 2020, p. 217).
  • 9
    Os conceitos de pós-democracia e desdemocratização, por exemplo, já capturam esse estado de coisas, cf. Ballestrin, 2018BALLESTRIN, Luciana. O debate pós-democrático no século XXI. Revista Sul-Americana de Ciência Política, Pelotas, vol. 4, n. 2, 2018..
  • DOI: 10.1590/3710814/2022

Bibliografia

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2022
  • Aceito
    12 Abr 2022
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