Resumos
Este artigo analisa de que maneira sujeitos sociais heterogêneos, que possuem divergências ou hostilidade entre si, se mobilizaram conjuntamente para a realização de um bloqueio de rodovia no Sudoeste do Pará. Por meio dessa forma de briga contra o governo, demandaram a redelimitação de um assentamento e uma unidade de conservação criados pelo Plano BR-163 Sustentável, que “mudou as regras” de acesso à terra e recursos naturais. Em diálogo com questões teóricas sobre ética, sociabilidade e conflitos sociais e com base nas narrativas de trabalhadores rurais, produtores rurais, garimpeiros, madeireiros e comerciantes sobre suas histórias de vida e o protesto, argumentamos que compartilham valores e refletem eticamente sobre as relações de dominação com o governo e entre si. Com isso, demonstramos que está em jogo não só a flexibilização de regulamentações ambientais e fundiárias, mas disputas por modos de governar recursos naturais, sujeitos, mobilizações e políticas públicas.
Mobilização social; Ação coletiva; Assentamentos rurais; Áreas protegidas; Políticas públicas; Moralidades
This paper analyses how different social subjects, who are even hostile to each other, mobilized themselves in a highway blockade in the Southwest of Pará, Brazil. Through this specific manner of struggle against the government, they demanded changes in the delimitations of a rural settlement and a conservation unit created by the BR-163 Sustainable Plan, which has “changed the rules” of access to land and natural resources. Debating theoretical issues regarding ethics, sociability andsocial conflicts, we base ourselves on the narratives of rural workers, rural producers, gold prospectors, timber merchants and traders about their life stories and the protestin order to argue that they share values and reflect ethically on the relations of domination with the government and between themselves. Thus, we demonstrate that not only the flexibilization of environmental and land regulations are at stake, but also disputes concerning ways of governing natural resources, subjects, mobilizations and public policies.
Social mobilization; Collective action; Rural settlements; Protected areas; Public policies; Moralities
Cet article examine de quelle façon les acteurs sociaux hétérogènes, qui sont en désaccord ou hostiles entre eux, se sont mobilisés, de façon conjointe, en vue de mettre en place un blocus sur une autoroute dans le sud-ouest de l’État du Pará. Grâce à cette forme de lutte contre le gouvernement, ils ont revendiqué une nouvelle délimitation d’une colonie rurale et d’une unité de conservation créées par le Plan BR-163 Durable, qui « changea les règles » d’accès à la terre et aux ressources naturelles. Par un dialogue à propos de questions théoriques sur l’éthique, la socialité et les conflits sociaux et ayant pour base les récits des ouvriers agricoles, des producteurs ruraux, des orpailleurs, les marchands de bois et des commerçants sur leurs histoires de vie et la manifestation, nous défendons qu’ils partagent des valeurs et reflètent éthiquement sur les relations de domination avec le gouvernement et entre eux. Nous démontrons, ainsi, que ce qui est en jeu est la flexibilisation de la règlementation environnementale et foncière mais, aussi, les disputes à propos des façons de gouverner les ressources naturelles, les personnes, les mobilisations et les politiques publiques.
mobilisation sociale; Action collective; Colonies rurales; Aires protégées; Politiques publiques; Moralités
Introdução
Este artigo analisa como sujeitos sociais heterogêneos, que já mostraram divergências ou hostilidade entre si, se mobilizaram conjuntamente para a realização de um bloqueio da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) na cidade de Novo Progresso (Pará) em 2013, no qual demandaram a redelimitação do assentamento Projeto de Desenvolvimento Sustentável Terra Nossa (PDSTN) e da floresta nacional (Flona) do Jamanxim.1 Esses territórios, ainda não regularizados, foram criados nos marcos do Plano BR-163 Sustentável, o qual “mudou as regras do jogo”, isto é, os termos pelos quais esses sujeitos concebiam a mediação do governo no acesso às terras públicas e aos recursos florestais e minerais na região.2
Diferentemente da literatura regional que implícita ou explicitamente supõe haver “manipulação” daqueles com maior capital político e econômico na mobilização para manifestações como a de 2013,3 argumentamos que seus participantes se constituem como sujeitos éticos ao refletirem sobre as relações de poder nas quais se situam (Laidlaw, 2014) e compartilharem um conjunto de valores e categorias (Bailey, 1971). Desse modo, a construção de uma moralidade comum ao que identificam como “sociedade progressense” possibilitou, por um lado, a articulação de diferentes lutas e de sujeitos vistos como desiguais em uma mesma briga contra o governo e, por outro lado, disputas entre sujeitos associados à mesma luta.
Como recurso metodológico, empregamos as narrativas dos sujeitos que atuaram na manifestação sobre suas histórias de vida e suas versões desse protesto,4 por meio de: entrevistas concedidas em trabalhos de campo;5 reportagens; e discursos públicos de lideranças. Na primeira parte do artigo, apresentamos a manifestação, suas motivações associadas à “mudança das regras do jogo” e as diferenciações sociais entre os manifestantes. Na segunda parte, enfocamos as alianças e disputas, as relações com os líderes e com o governo, tendo em vista analisar como essa forma de brigar, como uma performance ritual no sentido de Lambek (2011; 2015), (re)produziu critérios éticos a partir dos quais foram constituídas, avaliadas e orientadas práticas cotidianas que dizem respeito a saber brigar, lutar e governar.
A briga, as lutas e as regras
Em outubro de 2013, sujeitos que se autoclassificam como garimpeiros,6 trabalhadores rurais (assentados ou não),7 produtores rurais,8 comerciantes,9 madeireiros10 e suas entidades de representação bloquearam por oito dias consecutivos a rodovia BR-163 na cidade de Novo Progresso. A manifestação foi noticiada de maneiras variadas por meios de comunicação nacionais, estaduais, regionais e locais, os quais destacaram a paralisação do fluxo de caminhões que transportavam grãos de Mato Grosso para o porto de Santarém. Em síntese, foram divulgadas as seguintes pautas:
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o livre acesso à Flona do Jamanxim, pois a recém-instalada guarita de fiscalização do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)11 vinha impedindo o trânsito de combustível para garimpos e aumentando a fiscalização sobre a extração ilegal de madeira;
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a redução dessa Flona pelo mesmo instituto, de modo que os produtores rurais das áreas desafetadas pudessem obter o título de propriedade;
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a regularização do assentamento PDSTN pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pela sua demarcação, de modo a resolver o “impasse entre assentados e posseiros” em torno da terra.
A primeira pauta era associada pela imprensa aos garimpeiros representados pelo Sindicato dos Garimpeiros (Siganp) e aos madeireiros. A segunda pauta era vinculada especialmente ao Sindicato dos Produtores Rurais (Sinprunp), às associações de produtores rurais da Flona e, por vezes, aos trabalhadores rurais contratados por esses e representados pelo Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Novo Progresso (STTR/NP). A terceira pauta era apresentada como ligada aos assentados, também representados pelo STTR/NP. Apesar de não mencionados pela imprensa, os manifestantes assinalaram ainda a atuação do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Sinttraf) na defesa dos assentados e do Sinprunp na defesa da desafetação de áreas reivindicadas por produtores rurais dentro do assentamento PDSTN. Ademais, os meios de comunicação – em especial a rádio local usada para a convocação de mais participantes – destacaram que os comerciantes, por meio de suas associações, apoiaram a ação.
Tanto o PDSTN (149.842 hectares) quanto a Flona do Jamanxim (1.301.120 hectares), unidade de conservação (UC) de uso sustentável, foram criados em 2006 como parte das ações do Plano BR-163 Sustentável de combate ao desmatamento através da regularização fundiária, demarcação de áreas protegidas e mecanismos de participação social. Contudo, desde a instituição desses territórios houve aumento de desmatamento12 e contestações – judiciais, legais e por meio de ações coletivas – dirigidas ao governo e centradas na crítica à sobreposição a garimpos e a posses de produtores rurais, que raramente possuem títulos de propriedade13. Em suma, se desenrolaram as seguintes disputas:
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de garimpeiros, representados pelo Siganp, pela regularização de sua atividade diante da crescente competição com grandes mineradoras pela aprovação de requerimentos de lavra em UCs que possuem zonas previstas para a mineração, como a Flona do Jamanxim;
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de trabalhadores rurais através do STTR/NP, mas sobretudo produtores rurais (Sinprunp e associações da Flona) que defendem a anulação ou redução da Flona pelo ICMBio;
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de madeireiros clandestinos, pela legalização de sua atividade diante dos órgãos de fiscalização ambiental através da regularização fundiária;
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entre assentados (por meio do STTR, Sinttraf e associações) e os fazendeiros (com o Sinprunp) que reivindicam a posse de determinadas áreas do PDS pela (re)delimitação do assentamento, e deles com o Incra.14
Essas contestações, chamadas de brigas, eram relatadas principalmente pelas lideranças como episódios de uma briga comum contra o governo – nesse caso, o governo federal15 –, vivenciada como lutas por pautas e direitos justificados com base em legislações ou em critérios morais partilhados, relativos ao que se entende como direitos de trabalhar e de produzir. A ideia de governo é expressa através de seus órgãos particulares – como o Incra, o ICMBio e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) –, dos servidores com quem lidam diretamente no cotidiano ou ainda de seus escritórios em Brasília, Belém ou Santarém.
Lutar possui um significado mais abrangente que brigar, sendo uma categoria mais referida nessa situação a lutas que se prolongavam por anos, no sentido de “luta da Flona” (para produtores), “luta do Terra Nossa” e “luta para ficar” (para assentados) e “luta por uma terra” (quando se referem à luta dos fazendeiros do entorno do PDSTN). Cabe ressaltar que o termo luta é polissêmico, possuindo diversos sentidos conforme quem o enuncia e o contexto, o que remete à análise de Comerford (1999) referente ao seu uso por um sindicato de trabalhadores rurais de Minas Gerais, pois pertence a um universo de representações que abrange noções de sofrimento, trabalho e direitos. Assim, abarca desde práticas cotidianas no presente ou no passado à mobilização de sujeitos coletivos no seu fazer-se nas lutas – seja um setor específico (por exemplo, produtores), suas entidades representativas (por exemplo, um sindicato, uma associação) ou, mais genericamente, a “sociedade progressense”.
Já a ação coletiva de fechar a BR-163, também chamada de greve ou manifesto, é entendida como uma forma de brigar baseada na pressão coletiva ao governo para que cumpra acordos previamente estabelecidos.16 Além do manifesto, assentados falavam sobre a “briga na Justiça” entre os fazendeiros do entorno do PDS e o Incra, parte da sua luta para permanecer no assentamento. Um produtor rural que reivindica ter posse na Flona mencionou ainda a “briga no Congresso” se referindo a dois projetos de decreto legislativo (PDL) que buscaram sustar os decretos de fevereiro de 2006 que criaram UCs no Pará, entre elas a Flona do Jamanxim.
Em poucas palavras, a briga significa uma situação de enfrentamento com algum agente específico. No caso aqui analisado, o repertório de brigas com o governo é marcado espacialmente (rodovia, Congresso, Justiça, Brasília, Belém), bem como temporalmente, pela durabilidade delimitada, evocação de episódios passados (outros manifestos e reuniões com o governo) e projeção de episódios futuros (promessas, ameaças de bloqueio da rodovia, reuniões agendadas). Ademais, como argumentamos ao longo do trabalho, a noção de briga é fabricada eticamente, nas práticas de autorreflexão feitas nas relações entre os sujeitos das lutas da Flona e do PDSTN. A (in)existência da briga é pensada nas relações com o governo, mas também entre pequenos e grandes, assentados e produtores rurais, garimpeiros e mineradoras.
As motivações da briga: a “mudança das regras do jogo”
Os produtores rurais, empresários e comerciantes que reivindicam posses na Flona do Jamanxim e no PDSTN passaram predominantemente pelas regiões Sul, Centro-Oeste e Sudeste do país e por diversas ocupações, entre as quais se destacavam: o trabalho em fazenda, especialmente como administradores do proprietário; a mineração, sobretudo como donos de garimpo; como donos ou trabalhadores de serrarias; a construção civil; como motoristas de caminhão; como taxistas; o comércio. Daqueles considerados como tendo mais condição, destacam-se os membros de famílias sulistas reconhecidas como pioneiras, as quais no período da abertura da BR-163 pelo Exército – do fim dos anos de 1970 a meados dos anos de 1980 – chegaram com poucos recursos em povoados que compõem o atual município de Novo Progresso, visto como local de terras abundantes e baratas. Eles se dizem pioneiros porque teriam permanecido apesar do sofrimento, ilustrado pelas histórias dos que foram embora ou morreram, além de terem construído a própria cidade apesar do “abandono do governo”. Naquele tempo, afirmavam seguir as “regras do jogo”, isto é, a comprovação de ocupação pelo desmatamento de 50% da área, para terem suas posses reconhecidas pelos documentos conferidos pelo Incra de 1982 a 2004.
Os garimpeiros que se encontravam na região nesse período e que se consideram pioneiros,17 por seu turno, eram principalmente ex-seringueiros ou pequenos agricultores nordestinos que desde a década de 1970 se voltaram para a extração de ouro. Em seus relatos, também enfatizavam que o próprio governo teria incentivado e regulamentado essa atividade, o que se expressou na criação da Reserva Garimpeira do Tapajós Ministério de Minas e Energia (MME) em 1983 e, logo em seguida, na construção da rodovia Transgarimpeira, que deu acesso a vários garimpos da região.
Já as famílias vindas durante a “febre da madeira” e a “fofoca do ouro”, em especial do fim dos anos de 1990 até 2004 e que em sua maioria estavam saindo do Mato Grosso, apresentam uma diversidade de situações, de trabalhadores, agricultores e garimpeiros a madeireiros e empresários. Embora alguns tenham chegado no período anterior, muitos assentados chegaram nesse momento após “andarem” com suas famílias por diversos locais do país antes de irem para Novo Progresso, com destaque para cidades do Pará, Maranhão, Mato Grosso e Paraná. Além do trabalho na terra, os assentados recorreram no passado e às vezes ainda recorrem a: garimpo, como cozinheiras ou na extração de ouro; trabalho em fazenda, geralmente como peão; trabalho em serraria; professor(a); pequeno comércio; empregada doméstica e babá.
Nesse momento de febre, Novo Progresso era recomendado como um “estouro de cidade”, com grande oferta de empregos e potencial de “desenvolvimento”, o que foi possível graças à alta do preço internacional do ouro, à permissão da atividade garimpeira pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e pelo Ibama, bem como às autorizações emitidas pelo último para a ativi- dade madeireira em posses. Porém, em dezembro de 2004, a Portaria Conjunta n. 10 do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Incra, uma das medidas emergenciais do Plano BR-163 Sustentável, invalidou qualquer direito atrelado a documentos cadastrais expedidos pelo Incra em terras públicas federais. Os progressenses apontam que isso teria retirado os “direitos de todo mundo”, pois “todos viraram criminosos”, o que teria iniciado a crise no município. Isso afetou diretamente o setor madeireiro, pois todos os planos de manejo florestal foram suspensos e as empresas passaram a depender de áreas com título de propriedade para conseguirem a aprovação de novos planos, o que levou a maioria para a situação de clandestinidade.18 O Sindicato da Indústria Madeireira do Sudoeste do Pará (Simaspa), cuja sede é em Novo Progresso, foi o primeiro a brigar contra isso, organizando bloqueios de rodovias ao longo da BR-163 em 2005. Mesmo assim, das sessenta madeireiras que movimentaram a “febre da madeira” restaram somente dez licenciadas em 2013 no município.19
Na perspectiva de produtores rurais, de suas associações e do Sinprunp, assim como na de parte dos comerciantes que partilham de trajetórias semelhantes, a portaria de 2004 foi apenas o início da “mudança das regras do jogo”. Para eles, o seu agravamento foi a criação da Flona do Jamanxim – criada, segundo eles, sem a consulta prévia exigida pela lei do SNUC (Lei n. 9.985/2000) –, a qual teria se sobreposto a posses que, por estarem em área protegida, não podem mais ser tituladas. Para os garimpeiros e o presidente do Siganp, o problema era a Flona ter se sobreposto à Reserva Garimpeira do Tapajós, que havia sido criada pelo governo para amenizar o conflito entre os pequenos garimpeiros e as grandes mineradoras, mas passou a acentuá-lo ao privilegiar as últimas na permissão de pesquisa e lavra na UC.
Além disso, foi intensificada a fiscalização ambiental, considerada iniciativa do Ibama, que teria passado a brigar com produtores, madeireiros e garimpeiros. Isso piorou em 2013, quando começou a realizar operações com a Força Nacional, a Polícia Federal e o ICMBio que resultaram no embargo de milhares de áreas ocupadas e cabeças de gado, assim como na apreensão e destruição de equipamentos usados para atividades ilegais. Apesar de não realizar a fiscalização sozinho, o Ibama é o órgão responsabilizado socialmente pela destruição de maquinário, motos e caminhões. Esses são vistos sobretudo como meios de produção para os grandes envolvidos nessas atividades (fazendeiros, donos de garimpo e de serrarias) e instrumentos de trabalho por aqueles que se consideram pequenos (assentados, trabalhadores rurais e garimpeiros), bem como para a maioria dos madeireiros clandestinos que, diferentemente das indústrias madeireiras sindicalizadas, não acreditavam ser possível seguir as novas regras. Paralelamente, a instalação da guarita do ICMBio na entrada da Flona em abril do mesmo ano passou a impedir a circulação do combustível necessário para o maquinário de extração de ouro e significou o aumento da fiscalização da extração de madeira pelos madeireiros sem planos de manejo.
Já para os assentados, a “mudança das regras” significou a destinação de terras públicas federais para o assentamento e simultaneamente a sua não demarcação. Como demonstra Torres (2012), o PDSTN fez parte da criação de uma centena de assentamentos da modalidade PDS no Oeste do Pará, decorrente do pacto ilegal entre o Incra, o Ibama e o Simaspa que buscava florestas primárias de fácil aprovação de planos de manejo após a portaria de 2004. Somado à falta de licença ambiental, isso gerou a indefinição judicial que o PDSTN enfrenta desde 2007, quando o Ministério Público Federal (MPF) suspendeu esses assentamentos. Assim, os assentados relatam sofrer desde que chegaram ao PDS devido à infraestrutura precária e à falta de crédito: “[...] o maior problema é o Incra, que não regulariza. Não cumpriu também o que combinaram com os fazendeiros. [...] desenha um círculo com o Incra no centro, os assentados de um lado e os fazendeiros no lado oposto. Cada um tá brigando pelo o que acha que é direito seu” (assentado, entrevista, 28 out. 2013, grifos nossos).
Esse acordo não cumprido do Incra diz respeito à promessa de desafetação das posses comprovadas de fazendeiros, ou seja, à sua retirada do perímetro do assentamento para que pudessem ser tituladas pelo Programa Terra Legal, conforme determinou a Justiça Federal em 2010. Para piorar, no início de 2013 a Justiça decidiu pela regularização das terras de fazendeiros que processaram o Incra, determinando a paralisação da demarcação do assentamento e a expulsão de quinze famílias de assentados que se encontram na área das posses. Apesar de o Incra ter recorrido com base no fato de que esses fazendeiros concentram terra ilegalmente, o recurso foi negado, mantendo a situação indefinida.20 Se os assentados resistiram até então à desafetação de áreas do PDS – principalmente daquelas que incidem na área que chamam de comunidade, onde construíram a escola –, após as decisões favoráveis aos fazendeiros se inclinaram mais a negociar a redução do assentamento.
De todo modo, uma narrativa comum perpassava as entrevistas e discursos públicos ao buscarem estabelecer a causalidade dos problemas e, logo, a motivação das brigas: a denúncia do governo, formado por órgãos reconhecidamente autônomos, que não cumprem acordos e são responsabilizados pela privação de direitos que regras atuais ou anteriores dizem assegurar ou promover.21 Esses direitos dizem respeito ao acesso à terra e aos recursos naturais e são reivindicados por argumentos baseados na legislação vigente que trata da criação de UCs e assentamentos, como a não realização de consulta pública e de licenciamento ambiental. Dizem respeito também a argumentos morais, pois para os progressenses as novas regras significavam “a estagnação do desenvolvimento do município”, visto que teriam prejudicado as “vocações regionais” (madeira, garimpo e gado). Significavam ainda a criação do “impasse” entre a livre apropriação privada de terras públicas e recursos naturais – antes promovida abertamente pelo governo, considerada trabalho e produção –, bem como o direito dos assentados à regularização do PDSTN para que pudessem realizar o que valorizam como trabalho: a agricultura e criação de animais em pequena escala.
Como a noção de economia moral de Thompson (1998) permite observar, esse sentimento de desrespeito a normas sociais (inclusive legais) produziu o consenso – não só entre esses agentes, mas na sociedade mais ampla – acerca da ilegitimidade da forma de implantação pelo governo das novas políticas fundiárias e ambientais que “mudaram as regras do jogo”. Esse sentimento compartilhado de injustiça, por sua vez, possibilitou brigas conjuntas como o bloqueio de 2013, que mobilizou milhares de progressenses, conforme foi reiteradamente afirmado pelas lideranças em entrevistas à imprensa e à pesquisadora, sendo a adesão mais ampla medida pelas refeições servidas durante a manifestação.
Diferentes condições e humilhações
Os posseiros da Flona e do assentamento, os garimpeiros e os madeireiros avaliavam que aqueles com mais condições foram os que melhor conseguiram se adaptar às novas “regras do jogo”. Por poderem realizar outras atividades enquanto esperam o problema ser resolvido, não precisam “desmatar para sobreviver” ou não sentem tão duramente os efeitos da nova regulamentação ambiental, conseguindo permanecer mais facilmente nas lutas da Flona e do PDSTN. Por outro lado, diante das penalidades do Ibama e do ICMBio (multas, embargos e/ou destruição de equipamentos), aqueles com menos condições se viram obrigados a: vender a terra e se mudar para outros lugares, ou morar e trabalhar na cidade; ficar na terra e parar temporariamente a produção agrícola; continuar criando gado, extraindo madeira e ouro ilegalmente, correndo o risco de perderem seus meios de produção em operações de fiscalização. Para esses agentes, essas medidas “repressivas” representavam humilhações do governo, que ferem o direito moral de produzir e trabalhar, fundamentado nas lutas de famílias que seguiram as “regras do jogo” anteriores de ocupação de uma terra inóspita a mando do governo. Ao governo de ontem contrapõem o de hoje, que os humilharia a mando do meio ambiente e parece, ao seu ver, querer “esvaziar a Amazônia”.
Embora o Ibama também fosse visto como injusto pelos assentados,22 para estes a humilhação era associada sobretudo às ameaças verbais e agressões físicas perpetradas por fazendeiros por meio de jagunços. Por exemplo, um assentado contou ter vivenciado a humilhação quando tinha posse de terra tanto em Mato Grosso quanto no Paraná. Após ameaças de morte, ele se mudou com a esposa para o Paraguai, onde ocupou uma terra até ela falecer, quando foi sozinho para Colíder (MT), onde “sofri uma humilhação, jagunçada”. Em outros contextos etnográficos, com relação a garimpeiros em Goiás (Guedes, 2011) ou assentados em Mato Grosso (Desconsi, 2011), nas suas ações no presente, esses agentes sociais acionam um conhecimento elaborado em torno de suas experiências nos deslocamentos já realizados, bem como histórias e informações compartilhadas em suas redes de relações sociais. De forma semelhante, os assentados do PDSTN buscavam mostrar com suas histórias que aprenderam a brigar ao lidarem com ameaças à sua reprodução social no passado e que se atualizavam na situação atual por meio de humilhações de fazendeiros, se valorizando nas narrativas como “guerreiros”.
O direito moral e legal de desafetação das áreas de fazendeiros do PDSTN era debatido pelos assentados. Enquanto alguns acreditavam que tinham direito a manter as fazendas, pois desenvolveram relações de amizade ou de trabalho com determinados fazendeiros e/ou não se viam ameaçados pela desafetação (seus lotes não coincidiam com as fazendas), os demais denunciavam condutas dos mesmos fazendeiros por encrencarem, humilharem e iniciarem a “briga na Justiça” mesmo sem título. Uma das maneiras de resistirem era a evocação nas conversas da memória de Otávio,23 um fazendeiro que foi assassinado, não se sabia por quem, por sempre “arrumar encrenca” não só com assentados, mas também com madeireiros e a polícia. Com isso, enfatizavam o que poderia acontecer se outros fazendeiros ultrapassassem limites ao intimidarem assentados na luta pela sua terra.
Conforme contam, depois da morte de Otávio, outros fazendeiros que encrencavam e humilhavam – contrastados com os fazendeiros ditos “humildes”24 –, “se acalmaram” e se voltaram para a disputa judicial com o Incra, o que também surtiu efeitos desfavoráveis para os assentados. Esse foi o caso do fazendeiro Daniel, considerado o mais agressivo e cuja posse se situa na área da escola do PDS construída por mutirão. A história mais propagada sobre ele antes de ter se “acalmado” dizia respeito ao dia em que conduziu um trator na direção dessa escola em 2008. Quando tentou avançar para derrubá-la, foi impedido pelas assentadas: “as mães e crianças ficaram na frente e falaram pra ele derrubar, que aí é que elas derrubavam ele do trator”, conforme um assentado descreveu, destacando a coragem dessas mulheres.25
A encrenca cotidiana de iniciativa de alguns fazendeiros que humilhavam e, no caso de Daniel em particular, que também pagava para que saíssem do que reclama ser sua posse, não necessariamente leva a brigas. Guardadas as devidas proporções, seu uso remete à análise de Ayoub (2016) acerca da noção de encrenca entre famílias de posseiros sob a vigilância de guardas, pistoleiros e jagunços que trabalhavam para uma madeireira no Paraná. Nesse contexto, encrenca significava um “estado de tensão em aberto entre pessoas” que possuem uma relação de proximidade (Idem, p. 28). No PDSTN, essa proximidade era descrita em todas as narrativas, uma vez que, além de terem relações de amizade, de trabalho ou amorosa com assentados, os fazendeiros faziam visitas recorrentes aos seus barracos para encrencar. Dependendo de como os envolvidos lidavam com isso, podiam ocorrer brigas, humilhações e mortes.26
Do mesmo modo em que os assentados reconheciam um certo saber-fazer27 dos pequenos na luta cotidiana contra a humilhação, ao lembrarem humilhações já vividas no passado, observavam que alguns grandes têm acesso a conhecimentos que os pequenos não têm, o que lhes conferiria vantagens para impedir a regularização do PDS, mesmo quando possuíam áreas griladas segundo o Incra. Enquanto Otávio extrapolou os limites das encrencas e foi assassinado, o fazendeiro Daniel teria adquirido em sua vida o saber necessário para manter sua posição, que integra o seu estado de ter condições. Condições de: acessar instâncias estatais; não sofrer consequências por concentrar terras públicas e humilhar assentados; vender madeira do assentamento apesar das denúncias; ser ouvido e reconhecido pela Justiça, que não ouviria assentados (além de ter dado liminar favorável aos fazendeiros representados por um advogado que é filho de Daniel). Ou seja, na avaliação dos assentados, Daniel tinha a habilidade de humilhar sem sofrer consequências e de usar sua posição privilegiada na luta pela redução do assentamento, o que teria faltado a Otávio.
Em suma, ao narrarem suas histórias de vida, os manifestantes em geral justificavam suas ações nas lutas do presente e revelavam os constrangimentos e oportunidades que se apresentaram a suas famílias ao longo do tempo, o que relacionavam às suas diferentes condições associadas às distinções entre grandes e pequenos.28 Estas atravessam a categoria de produtores rurais e diferenciam os empresários dos comerciantes, bem como os donos de garimpos dos garimpeiros. Portanto, os relatos expressavam um reconhecimento das diferenciações internas, além de uma valorização de suas experiências no passado, com base nas quais julgam as ações dos outros e de si mesmos nas lutas.
As lideranças e o governo
Apoios, ajudas e lados: como brigar
À primeira vista, a coordenação entre agentes tão heterogêneos no bloqueio da BR-163 nos surpreendeu e influenciou a pesquisa, visto que a literatura regional e o trabalho de campo anterior indicavam conflitos entre eles, em especial entre grandes produtores rurais e assentados. Por exemplo, não parecia coerente sindicatos que representam trabalhadores rurais e agricultores familiares se unirem ao Sinprunp, sindicato que representa os produtores rurais, pois meses antes da interdição uma liderança dos assentados afirmara que “os grandes falam que apoiam os pequenos, mas são como massa de manobra, a pauta dos pequenos nem aparece”. E, ao passo que essa liderança e assentados diferenciavam o Sinprunp como sindicato dos grandes, o presidente desse sindicato, Agamenon Menezes, reiterava “representar todos os produtores rurais, grandes e pequenos” – o que, segundo ele, pode incluir os assentados que “comprovem a produção”.
Essa aparente contradição para observadores externos se desfaz ao questionarmos, inspirados em Simmel (1955), a pressuposição de que discordâncias seriam incompatíveis com o sentido amplo do conceito de unidade social. Afinal, forças divergentes e convergentes são partes constitutivas da sociabilidade agonística (Comerford, 2003) que podem ser vividas de forma coerente pelos próprios agentes. Ao longo das entrevistas essa coerência foi se evidenciando e pode ser traduzida pela expressão do presidente do Sinttraf de que “tava cada um brigando pela sua pauta, mas todo mundo junto no mesmo manifesto”. Como um casal de assentados explicou:
A1: Chamaram nós pra fechação de estrada porque era um meio de apoio. O Agamenon sabia que a gente era quente [...] usou a gente de laranja, só falava em Flona, não falava da gente, mas Agamenon ajudou muito nós. É o dono do sindicato dos fazendeiros [...].
A2: [...] Pegaram nós do assentamento porque nós segurava lá. Nós não queria Flona, nós tava apoiando só eles. Mas nós tava pro Incra vir (assentados, entrevista, ٣١ out. ٢٠١٣, grifos nossos).
Logo, quem ajuda e quem apoia não está necessariamente na mesma luta ou no mesmo lado da luta29 e não briga entre si, como um assentado também indicou ao mencionar que um dos fazendeiros que fica “arrumando encrenca com assentados” participou do bloqueio, “mas não brigando com a gente”, e sim para “lutar por uma terra que sabe que não vai ser dele”. Nas narrativas sobre o protesto, apesar de reconhecerem condições e lados diferentes, as brigas são direcionadas ao governo que, diferentemente desses agentes que se apoiam ou ajudam em certas circunstâncias, não ajudaria ninguém. A ênfase na unidade é ressaltada por Agamenon Menezes (Sinprunp): “O Incra e o MDA queriam causar briga entre pequenos e grandes [produtores]. Mas eu cortei isso em Novo Progresso. Quem mais precisa do sindicato é os pequenos. A Fetraf [Sinttraf] tava junto com nós na audiência [pública],30 assim como [o STTR/NP]”31 (Agamenon Menezes, entrevista, 21 out. 2013, grifos nossos).
O presidente do Siganp também negou brigas na manifestação, enquanto Agamenon afirmou ter que manter a “manifestação pacífica”: “Tá nos meus ombros qualquer incidente que tiver, apesar de que o incidente é que vai dar a pressa pro governo agir. Viraram o caminhão de milho de um cara lá [...]. Chegava quatrocentos caminhões por dia. Abria de doze em doze horas pra aliviar. Aí brigava feio [...] Tinha uma equipe que queria quebrar o Ibama, não tavam aguentando” (Agamenon Menezes, entrevista, 21 out. 2013).
Conforme um assentado contou, sua vontade era de ter “colocado fogo naquela carreta lá de milho, sorte que os presidentes dos sindicatos me tiraram porque a turma ia linchar ele” (entrevista, 31 out. 2013). Como Champagne (1984) identifica, ao tomarem as decisões, os organizadores da manifestação buscam controlar a representação que um público mais amplo, através da imprensa, fará dos manifestantes. Ao mesmo tempo que as lideranças contornaram os “incidentes” – o que gerou um tom crítico à sua atuação por parte dos assentados –, reconheceram que esses são eficazes para a publicização da interdição e pressão ao governo. A iminência de briga com caminhoneiros foi sendo contornada, o que é ilustrado em relatos sobre a necessidade da ajuda desses para conseguirem manter a BR-163 fechada à noite. Assentados contaram que caminhoneiros teriam sido compreensivos e que compartilharam a comida e a água fornecidas por comerciantes e fazendeiros. De acordo com um assentado, “tinha comerciante que deu apoio em comida [...], os fazendeiros sem supermercado mandavam um boi por dia” (entrevista, 28 out. 2013).
Assim, as categorias apoio e ajuda remetem à noção de troca elaborada por Simmel (1955), admitindo antagonismos e distâncias sociais (pequenos e grandes), ao passo que são distinguidas das brigas com o governo. Contudo, a assimetria de determinadas trocas abriu margem para julgamentos negativos por agentes externos a elas, como foi o caso da acusação por parte de quem não aderiu à manifestação de que Agamenon estaria apenas usando os assentados para promover a pauta dos produtores rurais da Flona. Estes ou concordam com isso ou acreditam que, apesar de terem sido usados, também foram ajudados ou, até mesmo, usaram os demais – uma vez que, por serem “fracos de condições”, dependiam dos demais participantes para efetivar a briga, que além de custosa demanda conhecimentos.
À medida que a adesão à manifestação implicava um compromisso com seus integrantes, isso não anulava a existência de tensões, como as ocorridas na própria manifestação, nem as diferenciações qualitativas desses apoios, que podiam se expressar com doações de alimentos e declarações públicas, que apesar de serem reconhecidas, não eram equivalentes a estar na briga. Como funcionários de uma associação de comerciantes explicaram, por mais que o Sinprunp e Siganp tivessem pedido ajuda do comércio para “aumentarem o impacto” do bloqueio, a briga era dos assentados, produtores e garimpeiros. Ademais, era comum a constatação entre assentados de que muitos apoiadores “iam lá só pra comer, de noite iam embora” e, portanto, eles é que teriam sido os principais responsáveis pelo fechamento da BR-163, inclusive por terem cozinhado e dormido no local todos os dias.
Já a não adesão a essa forma de brigar significava a negação de determinadas reciprocidades e a afirmação de outras. O presidente do sindicato dos madeireiros (Simaspa), ao contrário dos madeireiros clandestinos, não aderiu. Justificou que o sindicato não tinha interesse naquele momento em fazer reivindicações contra as novas regras, porque estava se adequando às mesmas, apesar de já ter organizado ou participado de bloqueios no passado contra o governo e embora concordasse que as pautas continuavam sendo legítimas.
Paralelamente, quando a não adesão se expressou na crítica pública ao bloqueio da rodovia, ela contribuiu para a reconfiguração do que é visto como o outro lado das lutas, havendo uma reavaliação das práticas de determinados sujeitos baseada nas suas performances nesse evento. Nesse sentido, dois presidentes de associações do PDS foram criticados pelos assentados por não terem aderido e ainda por cima terem agido para o término do bloqueio, o que reforçou o seu não pertencimento ao grupo daqueles que se afirmam publicamente como assentados e que aderiram ao bloqueio. Um desses presidentes era Gustavo:
Gustavo é o mais errado daqui. Falou que nós era posseiro e não assentado, que por isso que não tinha que abrir estrada. Ele tem acordo com fazendeiro. Por culpa dele é que a estrada do nosso sítio não saiu. O nosso presidente é Nilson, é batalhador. Quando Nilson arruma benefícios, Gustavo vai por trás e tira benefício da gente. Gustavo é estudado e é mais inteligente que a gente, mas só engana. Ele recebe dinheiro de Daniel [fazendeiro]. Ele chegou no início e tava do nosso lado, depois foi recebendo propina. [...] Ele evita falar comigo, porque sabe que eu falo. Ele manipula todos da associação dele. Tem quatro associações unidas aqui. Tem dois rebeldes [...] (assentada, entrevista, 29 nov. 2013, grifos nossos).
É importante ressaltar que ter “acordo com fazendeiro” não significava somente receber “propina” de fazendeiros. Outra presidente de associação era julgada negativamente pelos assentados por suspeitarem que teria beneficiado outro fazendeiro, com quem mantinha um relacionamento amoroso e que estava desmatando o assentamento diariamente. Ainda assim, continuava sendo considerada como “estando do nosso lado”, o que ela demonstrava na briga ao falar publicamente a favor do assentamento na imprensa e em eventos e por usar seus contatos com o prefeito – de quem observavam que tinha apoio – para visibilizar a pauta dos assentados. Já Gustavo, pela sua oposição aberta à manifestação, reforçava o julgamento de ser traidor, por ter cruzado a linha do “nosso lado”, “unido”. Dessa forma, as lideranças eram objeto de acusações e expectativas diferenciadas a partir de suas posições ambivalentes, entre os assentados e “gente de fora”, entre seus interesses públicos e privados vinculados aos lados em jogo.32
É ainda no sentido do acordo com o outro lado que os assentados que integraram a briga criticaram o fato das duas associações “rebeldes” terem se reunido justamente com o ex-prefeito, empresário e “fazendeirão” Neri Prazeres, que discordou da adesão ao protesto por parte da associação de comerciantes, da qual fazia parte. Frequentemente citado pelos interlocutores, Neri se mostrou publicamente crítico ao bloqueio, pois essa ação “não ajuda em nada” na resolução dos problemas, defendendo para isso o “diálogo com o governo”, forma de brigar que em sua visão já se mostrou eficaz no passado, principalmente por meio de seus contatos “políticos”. Aderiu assim à posição manifestada pelo jornal local Folha do Progresso, que, ao contrário dos meios de comunicação (sobretudo locais) que afirmavam haver apoio do comércio ao protesto, ressaltou em suas reportagens que esse setor não era unânime e condenou o suposto uso dos assentados. Estes, por seu turno, criticaram Neri por nunca ter ajudado ninguém do assentamento e narraram, em contrapartida, a presença de outras lideranças municipais que costumavam ajudar, visitar suas casas e comer com eles, como os presidentes do STTR/NP, do Sinttraf e do Siganp, além de enfatizarem toda a ajuda dada por Agamenon.
Na leitura de um assentado, os presidentes “rebeldes” teriam ligado “pra Brasília dizendo que eram contra a greve, e Neri ligou pro Incra” para tentar chegar a um acordo. Neri confirmou que ligou para o então superintendente do Incra em Santarém, com quem ele era “muito bem relacionado” por ser indicação de seu partido (então Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB), mas disse que o STTR/NP e o Sinttraf também se encontravam nessa reunião. Na conversa por telefone, o empresário contou ter aconselhado o superintendente a fazer um ofício com a assinatura do presidente do Incra se comprometendo a atender as demandas dos assentados de forma a resolver tanto o “litígio dos pecuaristas com os assentados” através da desafetação, quanto a necessidade de transferência de supervisão do PDSTN para uma unidade em Itaituba.33 Depois conversou com o prefeito e “é dessa forma [que] acabamos com o manifesto, foi a minha participação”, concluiu. Deixou claro ainda que só interveio depois que vereadores lhe chamaram para resolver o desacordo entre manifestantes, pois os assentados queriam continuar o bloqueio, ao passo que os comerciantes já não queriam mais apoiá-lo – momento em que Agamenon teria ameaçado publicamente os comércios, segundo Neri. Esse atribuía ainda às atitudes “conflituosas” daquele sindicalista sua motivação para ter concorrido à direção do Sinprunp em 2009; porém, perdeu a eleição.
Podemos observar que todas essas situações revelam avaliações sobre como se deve brigar e concorrências pela imposição de determinadas narrativas relacionadas com disputas pela representação política dos grupos sociais (Bourdieu, 2007). Enquanto Neri, a Folha do Progresso e os presidentes “rebeldes” do PDSTN defendiam o que o jornal chama de “acordo político”, as lideranças que bloquearam a BR-163 consideravam ser positivo o caráter briguento de Agamenon (que o próprio orgulhosamente reconheceu ser), vendo os protestos como mecanismos legítimos e eficazes de fazer pressão, complementares a outros modos de brigar.34
Cabe mencionar que tanto Neri quanto Agamenon são lideranças reconhecidas como pioneiras em livros sobre a história local, uma vez que suas famílias chegaram na região entre o fim dos anos de 1970 e meados dos anos de 198035 e contribuíram para a fundação de Novo Progresso no contexto de “abandono do governo”. Ao relatarem o período em que as regras do jogo eram desmatar para ocupar, ambos contaram em tons épicos o quanto circularam por outras cidades paraenses para brigar pra levar policiamento, posto de saúde, produtos, pista de pouso para aviões do garimpo, motor de luz para fornecer energia e serviço de telefonia para a cidade. Ambos valorizaram ainda suas diferentes atuações no desfecho da luta pela redução da terra indígena (TI) Baú dos Kayapós, em Altamira, declarada com 1.850.000 hectares em 1991, mas homologada com 1.540.930 hectares em 2008. Neri afirmou que convenceu “os índios que eles tinham que lutar contra” a demarcação da TI na parcela que incidia em Novo Progresso, porque “ia inviabilizar o município”. Já Agamenon assegurou que foi o bloqueio da BR-163 em 2003, do qual colaborou na organização, que resolveu o “problema indígena”, especialmente “quando fizemos bagunça, quando queimamos ônibus”. Em ambos os casos, os apoios que foram sendo adquiridos nessas circulações e brigas do passado, para além dos indígenas Kayapó e dos progressenses que teriam se beneficiado dessas “vitórias”, foi se estendendo a prefeitos, vereadores, sindicalistas, governadores, servidores públicos, deputados estaduais e federais.
Dessa forma, essas personagens da história local conseguiram uma distinção política ao se formarem como lideranças, podendo ou não ser admiradas, mas sempre comentadas e recomendadas36 em conversas como homens poderosos,37 em narrativas que são parte da construção da hierarquia na vida social (Gilsenan, 1996). Com isso, são avaliados por produtores e progressenses como importantes elos externos:
[Neri] é bem recebido em Brasília, em Belém, é uma pessoa de nível político muito bom. Quer dizer, o povo queima ele por certa parte da administração dele [...] mas em termos de buscar recursos, de lutar pela região, acho que ele é a pessoa principal aqui ó. Respeito muito ele [...] até porque admiro a coragem dele também né, de brigar... no bom sentido [...] pela região. [...] o Agamenon é um cara que tem lutado muito pela população da região aqui ó, não só Novo Progresso, mas toda essa região aqui. É um que tá indo sempre pra cima, resolvendo. [...] Hoje é ele e Neri que mais tem contato, que chega lá e não enfrenta fila (produtor da Flona, entrevista, 1 nov. 2013, grifos nossos).
Entretanto, o reconhecimento mútuo implicado na disputa entre os líderes associados aos produtores rurais não excluía acusações, feitas inclusive por Neri, de que Agamenon não seria produtor nem “pioneiro”, tendo em vista deslegitimá-lo como representante dos produtores rurais. Por outro lado, o presidente do Sinprunp afirmou que não deixa as críticas intervirem nas suas amizades, considerando o ex-prefeito seu amigo; porém, alfinetou que “muita gente me critica por inveja, por não conseguir fazer, ou por política porque trata política como partido político”.
Assim, divisões entre os produtores em torno desse evento acionaram certos valores que são definidos continuamente nas suas interações sociais, conformando disputas por reputações que constituem “comunidades morais”, nas quais a competição se dá primordialmente entre quem possui um status semelhante (Bailey, 1971). O bloqueio da BR-163 foi um evento oportuno para rivalizarem pela solução dos problemas legítimos, tendo em vista ao mesmo tempo fixar relações e suas reputações. Enquanto Agamenon conseguiu cristalizar a percepção de que tem capacidade de articular produtores, garimpeiros, assentados e comerciantes para brigarem juntos num bloqueio de rodovia de oito dias, Neri é aquele reconhecido por ter fabricado acordos por meio de reuniões com vereadores, sindicatos e associações do assentamento e de contatos no Incra. Com isso, é atribuído a Neri o papel central no fim da interdição e a Agamenon no seu início. Uma vez que a reputação depende dos outros, inclusive dos adversários (Campbell, 1973), há muitas possibilidades para as avaliações morais que são feitas na construção de suas respectivas famas – condutas estereotipadas que geram previsibilidade para relações futuras, como define Marques (2002). No caso aqui exposto, a fama de briguento é disputada como boa ou ruim para fins das brigas a serem enfrentadas, o mesmo valendo para a fama de político de Neri – que como Agamenon ressalta, remete à “política dos partidos políticos”.
Portanto, as disputas pela imposição de narrativas sobre modos de briga mais eficientes, fundamentadas em versões de histórias de brigas do passado que fabricavam um conhecimento partilha- do sobre o assunto, constituíam as próprias relações de concorrência não só entre lados, mas entre lideranças vistas como pertencentes ao mesmo lado das lutas: o dos produtores rurais. As atuações de ambos nessa briga se deram como meio de afirmar compromissos a certas relações de reciprocidade (lados, apoios e ajudas) ao passo que demonstravam sua força mobilizadora para os progressenses e para o governo, sendo julgados negativamente ou positivamente por isso, conforme sua performance na briga e o lado daquele que os julga.
De forma semelhante, os assentados consideram legítimo o apoio, a ajuda e os acordos entre assentados e fazendeiros, como na organização de brigas conjuntas que contribuam para a luta do PDSTN, desde que não beneficiem apenas a liderança e o outro lado da luta. Ao se pedir ajuda e se dar apoio, são feitas concessões que dão fim ou evitam conflitos, bem como se instauram reciprocidades que geram reconhecimento e prestígio a quem ajuda e recursos e favores a quem se apoia. Além disso, ao se falar sobre ajudas e apoios, são reafirmadas as qualidades morais das partes envolvidas nas trocas ou na sua negação. Lados, ajudas e apoios são formas de julgamento atualizadas no evento ritual, fazendo parte de um processo de reciprocidades cotidianas passadas e expectativas futuras. Pertencer a um lado supõe adesões a determinadas coletividades ligadas à solidariedades e disputas preexistentes que continuam sendo reformuladas.
Entre ameaças e acordos com o governo
Além do já enunciado consenso sobre a ilegitimidade das medidas governamentais, seria possível indagar, com a curiosidade de Thompson perante a persistência dos motins da fome na Inglaterra do século XVIII como forma de ação: “até que ponto ela era bem sucedida, seja em que sentido for?” (Thompson, 1998, p. 186)? E, seguindo a indagação de Sigaud (1986) ao se referir a um ciclo de greves de trabalhadores rurais produzido no jogo de lutas com seus patrões: por que continuam se manifestando se houve descumprimento de acordos conquistados em cada protesto?
No caso dos produtores, suas reivindicações geraram ao longo do tempo respostas consideradas positivas por parte do ICMBio, que chegou a propor a redução de 35 mil hectares da Flona do Jamanxim em 2009, proposta que foi rejeitada pelas associações e pelo Sinprunp. Posteriormente, um grupo de trabalho do ICMBio de Brasília passou a analisar a desafetação de cerca de 200 mil hectares dessa UC, e desde dezembro de 2016 se aponta a possibilidade de conseguirem quase os 400 mil hectares de redução que defenderam na audiência pública de 2013.38
Já no caso dos assentados, a unidade do Incra voltou para Itaituba somente em meados do ano seguinte, mas ainda não foi solucionado o problema da regularização do PDS, que continuou sendo sua pauta principal em novo bloqueio da BR-163 em fevereiro de 2016, realizado com indígenas Kayapó, cuja terra indígena (a TI Baú) se localiza no entorno do assentamento.39 Na audiência pública que discutiu as pautas do bloqueio, em especial a de redução da Flona do Jamanxim, lideranças enfatizavam a não resolução dos problemas após tentativas de acordo e diálogo com o governo:
[...] assim como nós fechamos em [2011] e 2013 a BR, se o Incra não vir pra regularizar nossa situação, nós tamos prontos pra fechar novamente a BR-163. Porque em [2011] veio servidor do Incra, fez acordo com nós, nós temos documento em mãos, pra ele vim resolver a situação, até hoje tamos esperando e nada. Então fizemos de novo outro manifesto e tamos esperando novamente. Se isso não acontecer, nós vamos voltar pra BR [...] (presidente de uma associação do PDSTN, audiência pública, 18 out. 2013).
Ao mesmo tempo, era comum observarem conquistas ao explicarem por que bloquearam a rodovia:
[...] Fomos mais de vinte vezes pra Superintendência [do Incra] de Santarém, fomos pro Ministério Público, que jogou prum tribunal em Brasília. Tá lá. Por isso teve o fechamento da BR, pra ver se recebia algo do Incra, mas até agora nada. [...] Já fechamos a BR na entrada do assentamento [em 2011]. Conseguimos a estrada e umas casas. Conseguimos botar firma aqui pra fazer estrada, 52 créditos e 28 casas. Esse fechamento agora é a mesma coisa. Ver se conseguimos alguma coisa. Mas o documento veio sem nada, sem data (presidente de uma associação do PDS, entrevista, 28 out. 2013, grifos nossos).
Além de remeterem sempre a episódios passados das brigas e seus efeitos, projetavam incertezas quanto ao futuro, ameaçando sempre com novos bloqueios cada vez que cogitavam a possibilidade de não terem seus problemas resolvidos. A ameaça é realizada em conversas informais e discursos públicos – como em reuniões com representantes governamentais – e bastante divulgada em periódicos locais. Para compreender essa recorrência da ameaça é pertinente a interpretação de Lambek (2015) sobre os enunciados performativos a partir da conceituação de Austin, visto que a ameaça pública de um protesto é, ela mesma, uma ação performativa e não apenas sua descrição – a não ser que algum acordo seja cumprido. Seu efeito será considerado “feliz” se convencer o interlocutor, nesse caso o governo, a mover-se em uma direção. A persuasão, por seu turno, é produzida pela rememoração de ações passadas que demonstram a capacidade de mobilização dos sujeitos que já organizaram as brigas. Dessa forma, como Thompson aponta ao ressaltar a importância da ameaça dos motins por gerar uma expectativa entre os agentes do campo de forças em questão: “os benefícios que se pode ter com a ameaça de guerra talvez sejam consideráveis, mas a ameaça nunca vai inspirar terrores se nunca for feita de fato a guerra” (Thompson, 1998, p. 187).
Diante dessas performances, os agentes estatais reagem com o que os próprios interlocutores identificam como acordos, firmados com as lideranças das lutas. No caso da Flona do Jamanxim e do PDSTN, o Incra e o ICMBio buscaram responder sempre em suas notas oficiais o seu compromisso em buscar soluções para os problemas levantados, mesmo quando não concordavam totalmente com a proposta defendida pelos manifestantes. A produção do acordo, assim, é um ato que busca gerar previsibilidade frente à imprevisibilidade, criando expectativas e possíveis sanções caso a promessa implicada nele não seja cumprida.40 Essa sanção, explicitada nas ameaças dos manifestantes, é a continuidade do ciclo, dessa relação de briga construída com o governo, na qual não dá pra ser um “povo pacífico” por muito tempo e na qual o “acordo político” para muitos soa pouco eficaz, pois, como relembram, o governo já quebrou acordos (e as próprias regras do jogo). Justificam sua adesão à manifestação por não poderem só esperar, havendo a necessidade de novas ameaças e bloqueios da rodovia.
Para todos os manifestantes, essas ações coletivas são formas de atualizar demandas conforme a correlação de forças num dado momento e de fabricar acordos, para que possam recorrer a eles posteriormente na luta, possibilitando gradualmente melhorias de vida. Isso talvez valha especialmente para os assentados que, de forma parecida com os trabalhadores rurais de Pernambuco analisados por Sigaud (1986), entendem possuir menos condições no jogo de lutas enfrentadas e continuam protestando mesmo sem terem sido cumpridas todas as conquistas dos protestos anteriores. Não protestar é arriscar perder a própria noção de direitos reconhecidos nos acordos, o que possibilita a luta.
Conhecer para governar
Em suas narrativas sobre a manifestação, os sujeitos individuais e coletivos mencionados refletiam sobre si mesmos na elaboração de modos de avaliar as práticas governamentais, cruzando-se de certa forma julgamentos referentes ao governo de si, o go- verno dos coletivos conformados nas lutas, e o gover- no que conduz a sociedade como um todo.41 As avaliações morais sobre como o governo deveria governar apontaram para a necessidade de conhecimento da região ou da realidade particular de cada grupo. Nisso pareceu residir a insistência dos produtores, garimpeiros e assentados em “mostrarem a realidade” para uma pesquisadora vinda do Sudeste, para onde poderia ser transmitido esse conhecimento que adquiriram conforme suas condições e experiências de vida e de luta.
Paralelamente, na manifestação e nas ameaças de manifestos havia a exigência recorrente da presença física de agentes estatais que têm poder decisório, em especial do Incra, mas também de outros representantes do governo, para que “conheçam a realidade da região”. Por outro lado, uma parte dos produtores denunciava de forma abstrata o Ibama e o ICMBio, bem como determinados servidores específicos que se tornaram mais presentes nas brigas da Flona, pela mesma falta de conhecimento, ainda que tivessem realizado estudos científicos sobre sua situação. A causa disso era atribuída ao peso da pauta do meio ambiente na formulação de políticas públicas e no retrato produzido da região pela imprensa nacional, o qual enfatizaria a ilegalidade das atividades lá realizadas, sem considerar as injustiças causadas pela perda do que os produtores concebiam ser seus direitos. Para vencerem as brigas, entendiam ser necessário mostrar a realidade para o governo: “[...] agora há possibilidade de avançar. Senão, vamos fechar de novo a BR, em definitivo [aplausos], fazer que o governo olhe pra isso aqui de forma diferente. Acredito que a Dilma não sabe o que tá acontecendo, o Ibama não deixa, manipula o que chega lá” (Agamenon Menezes, audiência pública, 18 out. 2013, grifo nosso).
Saber circular por Brasília, Belém e Santarém, conhecer (a “realidade da região”, a legislação, parlamentares, políticos e demais apoiadores), saber brigar (com acordos e/ou protestos) e ajudar eram fatores contrastados, nas narrativas, com as ações de órgãos governamentais que, dessa forma, comprometeriam a gestão sustentável dos recursos naturais. A despeito dos mecanismos de participação estabelecidos nos seus programas de desenvolvimento, como o Plano BR-163 Sustentável, para esses sujeitos o governo não levaria em consideração suas histórias de luta. Pelo contrário, criaria documentos e leis cujo efeito seria a perda de seus direitos legais e morais, o que prejudicaria todos, mas principalmente quem tem menos condições.
Por fim, o conhecimento era visto como fundamental para governar os grupos sociais que se formam em meio às lutas e brigas. Agamenon sugeriu isso ao valorizar o próprio papel de representante, que “tem que conhecer legislação pra fazer manifestação pacífica” e que, diferente dos demais sindicatos e lideranças da região, tem “conhecimento dos deputados, autoridades federais e estaduais”. Enquanto o governo não teria conhecimento ou não saberia usá-lo de modo apropriado, algumas lideranças são avaliadas e se avaliam como tendo conhecimento e o poder de saber usá-lo nas suas relações, beneficiando sua própria reputação ao buscarem solucionar os problemas reconhecidos como comuns. Em síntese, saber lutar e saber brigar se vinculam às suas concepções sobre o uso adequado do conhecimento da(s) realidade(s) que compartilham como coletivos associativos ou progressenses.
Conclusão
A aliança entre esses sujeitos socialmente distantes e/ou em disputa vem acumulando forças com o objetivo de redefinir tanto o PDSTN quanto a Flona do Jamanxim. Para um observador externo, isso poderia parecer apenas uma tentativa de flexibilização de regulamentações ambientais e fundiárias promovida por setores dominantes dessa sociedade, que usariam os dominados para fins de apropriação privada de terras públicas e de recursos naturais. Porém, a ideia de manipulação subestima a reflexividade dos dominados, além de reproduzir a narrativa de sujeitos, inclusive dominantes, inseridos nas lutas sociais, em vez de explicar como e por que se mobilizam conjuntamente.42
Como buscamos demonstrar, o exercício do poder se dá no seu sentido foucaultiano, pela “condução de condutas” de outros sujeitos, as quais são livres, conscientes e reflexivas (Laidlaw, 2014). Não só a dominação pelo governo é questionada por ter gerado um problema visto como comum a todos, mas a dominação dos grandes ou daqueles que possuem maiores condições é avaliada cotidianamente nas lutas, avaliação que é atualizada em eventos rituais como as brigas contra o governo. Na briga aqui analisada, esses sujeitos acionaram saberes elaborados em experiências de vida adquiridas no passado e em valores que continuavam construindo coletivamente. Esses saberes, por sua vez, se configuraram como conhecimento da região e da realidade compartilhada, isto é, no conhecimento dos critérios que justificam suas lutas, brigas e as formas como decidem conduzi-las.
Se todos responsabilizavam o governo por injustiças decorrentes da “mudança das regras do jogo” ao narrarem a manifestação, justificavam-se de formas bastante variadas, vinculadas às suas posições na configuração social que disputa a destinação de terras públicas. Enquanto os garimpeiros afirmavam estar em desvantagem com relação às grandes mineradoras, os assentados entendiam depender dos grandes, inclusive daqueles que os humilham e que possuem maiores condições para lutar, não só para terem acesso a estradas e renda no assentamento até hoje não demarcado, mas também para organizar mobilizações que pressionem o governo a lhes garantir o acesso à terra. Os madeireiros, por sua vez, se diferenciavam entre os poucos sindicalizados que negaram publicamente a participação no ato, porque já estavam seguindo as novas regras. A maioria dos que se encontravam em situação de clandestinidade justificava suas ações a partir de acusações de repressão do Ibama. Já os produtores rurais se diferenciavam entre si não apenas pelas diferentes condições, mas também por meio de disputas simbólicas, expressas pelas famas concorrentes de duas lideranças: Neri, o político que defende os acordos; e Agamenon, o briguento que recorre ao bloqueio de rodovia como forma de briga.
Por meio da adesão ou não ao protesto, esses diversos sujeitos se posicionaram em diferentes lados da comunidade moral mais ampla dos progressenses, manifestando concorrências que atravessam a briga, bem como as condições e as lutas. No confronto das regras atuais com as anteriores e entre acordos com o governo e ameaças de protesto, estavam em jogo não só a disputa por terra, madeira e ouro, mas também pela imposição de modos de conduzir esses recursos, sujeitos, mobilizações e regras.
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O PDSTN se situa nos municípios de Altamira e Novo Progresso, no lado leste da BR-163. A Flona do Jamanxim se situa em Novo Progresso, a oeste dessa rodovia.
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O itálico no corpo do texto introduz os termos nativos relativos ao objetivo do artigo
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Nossa pesquisa deve muito a essa literatura que enfatiza os antagonismos entre dominantes e dominados, os quais são complexados na presente análise. Ver Correa, Castro e Nascimento (2013), Castro, Monteiro e Castro (2005), Torres (2012) e Torres, Doblas e Alarcon (2017).
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A partir das diferentes versões sobre esse evento, foi possível mapear as posições e oposições sociais em jogo, seguindo Bourdieu (2004) e Heredia (1983).
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Foram feitas duas visitas a Novo Progresso em 2013 (fevereiro, outubro e novembro) com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
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Os garimpeiros são os trabalhadores que extraem ouro na bacia do Tapajós, no caso aqui analisado.
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Os assentados neste trabalho correspondem às famílias com perfil de beneficiários da reforma agrária que ocupam lotes no PDSTN (a maioria sem registro oficial), onde plantam e criam pequenos animais. Podem trabalhar ainda como trabalhadores nas fazendas e/ou como garimpeiros para donos de garimpos.
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Os produtores rurais, além da agropecuária, podem ter comércio, serraria e/ou atuar no garimpo.
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Os comerciantes maiores são chamados de empresários. Podem ter fazenda e/ou atuar no garimpo.
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Extraem e comercializam madeira, muitas vezes clandestinamente, da terra que ocupam ou por meio do arrendamento de terras de produtores e da anuência de associações de assentamentos.
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Órgão responsável pela administração de áreas protegidas federais desde 2007.
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Nessas contestações, se apresentam como posseiros. Do ponto de vista legal e conforme servidores entrevistados do Incra, uma parte praticou grilagem, visto que concentram terras públicas por meio da declaração de áreas menores em nome de parentes ou “laranjas”. Ver Torres (2012).
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“Fazendeiros” é o termo empregado por outros agentes para se referirem sobretudo a grandes produtores rurais – que na maioria das vezes se autodenominam pecuaristas, quando possuem centenas a milhares de cabeças de gado. Já os autodenominados sitiantes são pequenos produtores.
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Embora as contestações se dirijam mais diretamente ao governo federal e a seus órgãos, o Plano BR-163 Sustentável foi elaborado com a participação de governos estaduais, prefeituras e organizações da sociedade civil da área de influência da BR-163 (Araújo, 2007).
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Ver Esterci (2008) para o uso do termo “greve” por peões enquanto enfrentamento físico a empresas ou fazendas que os prejudicam ou rompem contratos. Na presente pesquisa, assentados e pequenos produtores usam mais “greve” do que os grandes, o que sinaliza suas diferentes trajetórias sociais.
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Há diferentes versões sobre quem é “pioneiro”, podendo englobar ou não os nordestinos que chegaram na mesma época que os sulistas.
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Segundo Torres (2012), a portaria não invalidou os requerimentos de regularização fundiária expedidos até aquela data, muitos oriundos de grilagem, que continuaram a valer no já aquecido mercado de terras.
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Silva (2011) aponta como isso ocasionou grande perda de oferta de empregos. Conforme o IBGE, Novo Progresso contava com 37.067 habitantes em 2005 e 21.598 em 2007. Dos trabalhadores que ficaram, muitos passaram a se dedicar ao garimpo ou pecuária.
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Em 2015, a superintendência do Incra reduziu o assentamento para 13,4% de seu tamanho original. Após denúncias essa decisão foi revogada (Torres, Doblas e Alarcon, 2017, pp. 111-112).
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Ver Comerford (2003, p. 68) sobre como a noção de briga entre os sitiantes da zona da mata mineira associa as motivações e os antagonistas de um episódio ou sequência de episódios narrados como de aberta hostilidade ou de tensão latente.
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Por exemplo, denunciavam o Ibama por multar assentados por desmatamentos feitos por fazendeiros.
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Os nomes citados são fictícios, exceto os de Agamenon Menezes e Neri Prazeres.
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Isto é, aqueles que tentaram entrar em acordo com o Incra e não encrencavam com assentados.
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Como nota Comerford (2003), a narrativa sobre episódios de conflito atualizam uma configuração de oposições conforme a situação presente. No caso dos assentados, tratava-se de justificar a necessidade de um acordo de regularização do PDS que os favorecesse frente às tentativas contrárias dos fazendeiros.
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Houve ao menos dois assassinatos de assentados do PDSTN até 2013, segundo periódicos locais. Porém, os assentados entrevistados só fizeram menção nesse momento à morte do fazendeiro Otávio.
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O saber-fazer é o que, “levando em conta princípios gerais, [guia] a ação no seu próprio momento, de acordo com o contexto e em função de seus próprios fins” (Foucault, 2010, p. 59).
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Ver Olwig (2007), que demonstra como as histórias de vida apresentam os valores e normas sociais de quem as narra, visto que nelas relacionam suas vidas às dos outros e aos imprevistos decorrentes das estruturas sociais, políticas e legais.
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Isto é, mesmo estando em diferentes lados de um problema gerado pelo Incra, fazendeiros e assentados podem se apoiar e se ajudar.
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Audiência pública que discutiu o projeto de redução de 400 mil hectares da Flona do Jamanxim em 18 de outubro de 2013, dez dias depois do fim da manifestação.
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Disputam a representação dos pequenos: o STTR, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri-PA); o Sinttraf, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Estado do Pará (Fetraf-PA); o Sinprunp, da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa).
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Assim, os “lados” enquanto princípios divisores denotavam adesões eventuais e avaliações cotidianas sobre os perigos e virtudes da vida coletiva e de indivíduos que a integram. Para uma análise nesse sentido em comunidades rurais de Minas Gerais, ver Dainese (2011).
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Na nota, o Incra assume o compromisso de reestruturar a sua unidade de Itaituba e informa que os dados referentes aos investimentos em infraestrutura e créditos neste assentamento seriam enviados à prefeitura de Novo Progresso.
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Essa complementaridade remete às práticas de variados movimentos sociais que empregam ações diretas e ações por vias institucionais (Leite Lopes e Heredia, 2014).
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A família do paranaense Neri chegou no povoamento local em 1980, vinda de Alta Floresta (MT), enquanto a família de Agamenon chegou em 1985 de Campo Grande (MS).
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Ambos foram muito recomendados para a pesquisa, para falarem sobre a história de Novo Progresso e a interdição da BR-163.
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Isto é, aqueles que possuem o poder de agir sobre as ações dos outros (Foucault, 2010).
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A MP n. 756 assinada por Michel Temer em 20 de dezembro de 2016 retirou 57% da Flona do Jamanxim. Uma versão dessa medida provisória, vetada em junho de 2017, tramita desde julho do mesmo ano no Congresso Nacional na forma de projeto de lei (PL 8.107/2017).
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Em reunião com os assentados o Incra se comprometeu no dia 2 de março de 2016 a realizar um estudo de redefinição do PDSTN (excetuando a área que continua sub judice).
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Ver Lambek (2011) em sua análise da dimensão ética dos atos de parentesco – marcados no fluxo das práticas cotidianas –, os quais criam para os atores envolvidos determinados critérios de julgamento e o reconhecimento de seu compromisso a esse ato em práticas futuras e suas consequências.
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Ver Laidlaw (2014) para uma análise da subjetivação foucaultiana que discute como sujeitos éticos individuais podem se autoconstituir no decorrer da autoconstituição de sujeitos éticos coletivos, como movimentos e grupos sociais.
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Em sentido semelhante, ao analisar uma greve de trabalhadores rurais em Pernambuco, Sigaud (1980) argumentou que interpretações centradas na ideia de manipulação dos dominantes (dos “patrões”) na greve apenas reiteravam que esses sempre buscarão tirar proveito dos dominados.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Fev 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
09 Maio 2018 -
Aceito
14 Out 2018