Resumos
Esta glosa discute a questão do dinheiro/moeda em Marcel Mauss e François Simiand, sua caracterização e fundamento. São abordados os textos principais em que discorrem sobre a questão, com vistas aos usos da moeda e ao problema da confiança. Conclui apontando alguns desenvolvimentos necessários para se pensar moeda e confiança em sociedades complexas.
Palavras-chave:
Mauss; Simiand; Dinheiro; Moeda; Confiança
This paper discusses the money/currency issue in Marcel Mauss and François Simiand, its characterization and foundation. It considers the primary texts in which these authors discuss the issue, looking for the uses of the money/currency and the problem of trust. It concludes by pointing out some developments necessary to think about money/currency and trust in complex societies.
Keywords:
Mauss; Simiand; Money; Currency; Trust
Ce texte présente une brève explication de la question de l’argent/de la monnaie dans l’œuvre de Marcel Mauss et de François Simiand, de sa caractérisation et de son fondement. Nous étudions ainsi les principaux textes dans lesquels ils abordent la question en vue de l’utilisation de la monnaie et du problème de la confiance. Nous concluons en indiquant quelques développements nécessaires à une réflexions à propos de la monnaie et de la confiance dans des sociétés complexes.
Mots-clés:
Mauss; Simiand; Argent; Monnaie; Confiance
Leitores do Essai sur le don talvez se lembrem de uma extensa nota de rodapé, intitulada por seu autor “Nota de princípio sobre o emprego da noção de moeda.” (2012 [1925], pp. 105-107), em que Marcel Mauss debate com François Simiand e Bronislaw Malinowski acerca da propriedade, ou não, em falar de moeda em “sociedades arcaicas”. Já a terminologia envolvida pede cuidado, pois Mauss utiliza o termo monnaie, assim como, supõe-se, seu interlocutor oral Simiand, ao passo que Malinowski emprega os termos money e currency.1 1 Decerto a utilização dos termos monnaie (utilizado) e argent (evitado) varia em função de campos disciplinares e interesses cognitivos. Um léxico plurilingual seria oportuno; este texto, contudo, não explora essa questão. Destarte, acompanho Orléan (2009, p. 209). Ver ainda Ould-Ahmed (2008). Aproveito para assinalar que todas as traduções são do autor; do contrário, os nomes dos tradutores das edições brasileiras citadas encontram-se indicados na bibliografia.
Malinowski, analisando a circulação de talismãs, objetos mágicos, afirma não serem eles dinheiro, por seu valor ser variável, oscilando em função da variação do prestígio de seus possuidores.2 2 Malinowski (1932 [1922], p. 499). Ver, em especial, Malinowski (1921, pp. 13, 15). Mauss cita incorretamente o artigo de Malinowski de 1921, referindo-se a um inexistente texto intitulado “Primitive currency”, pretensamente publicado no mesmo The Economic Journal, em 1923. Até o presente, as edições do texto de Mauss repetem o erro de referência. Sustenta, por exemplo: “Vaygu’a is never used as medium of exchange or as measure of value, which are the two most important functions of currency or money” (Malinowski, 1932MALINOWSKI, Bronislaw. (1932 [1922]), Argonauts of The Western Pacific. Londres, Routledge. [1922], p. 511, 516). Ambos, Simiand e Malinowski, reservam o termo moeda, ou seja, dinheiro, para situações em que as funções de meio de troca e de estalão de medição de valor (ou seja: unity of account) fazem-se presentes. Mauss, por seu lado, entende que a realização dessas funções cabe ao “nosso” dinheiro, mas não a todo e qualquer dinheiro; isto é, na sociedade moderna e no dinheiro moderno essas duas funções são presentes e, quiçá, indispensáveis.
Dinheiro, em sentido amplo, como pensado por Mauss, precede o amoedamento do metal; objetos variados podem servir como meio de troca e como meio de pagamento. Ocorre que, amiúde, tais objetos não têm apenas um sentido econômico e um valor econômico, mas estão ainda vinculados a dimensões extraeconômicas, ocasionalmente mágicas. Não obstante sua circulação – e Mauss nomeia a circulação interna à sociedade, assim como a circulação intersociedades –, tais objetos detêm laços de pessoalidade, que os vinculam a pessoas e/ou grupos (p. ex., clãs). “Seu valor ainda é subjetivo e pessoal”, diz ele (Mauss, 2012MAUSS, Marcel. (2012 [1925]), Essai sur le don. Paris, Puf. [1925], p. 105).
Desse modo, não surpreende que sejam instáveis e que lhes falte a função unity of account, que justamente fixa uma medida. A seguir, Mauss afirma: “Mas, por outro lado, de dois pontos de vista, essas coisas preciosas têm as mesmas funções que a moeda de nossas sociedades […]. Elas são um poder de compra e esse poder é quantificado. […] Além disso, tal poder de compra é realmente liberatório” (2012 [1925], p. 106). Um poder de compra especificado e um instrumento liberatório. A primeira função pode ser equivalida ao dinheiro como meio de troca e meio de pagamento: ele permite a um comprar, e ao outro vender. Ademais, é passível de quantificação, constituindo, portanto, mesmo que de modo incipiente, um estalão de medida. Por outro lado, como instrumento liberatório, ele libera: de uma dívida, de um dever, de uma obrigação. Funciona, pois, como reprodução de vínculos sociais, ou melhor: como vínculo social constituído novamente a cada vez – ou seja, a cada trocar, a cada dar, receber, retribuir. A função de instrumento liberatório diz respeito à capacidade do dinheiro de saldar dívidas, liquidar débitos, livrar a pessoa de uma obrigação pendente. Estando quitada a dívida, cumprido o dever, estabelecem-se, contudo, novas dívidas, novos deveres, novas obrigações, como Mauss nos ensina. Dar, receber, retribuir. A aliança é feita e refeita continuadamente. É desnecessário enfatizar que ambas as funções se realizam no processo da troca.3 3 O que nos permite, ademais, compreender porque Simmel afirmava, um quarto de século antes de Mauss, ser o processo de troca o “universal concreto”, o que Mauss viria a denominar “fato social total” da troca (Simmel, 1907 [1900], pp. 60-61; Mauss, 2012 [1925], p. 64, passim). O fato de Mauss, aliás, não mencionar Simmel nem incorporar suas reflexões revela muito das lutas de poder intradisciplinares, da concorrência acadêmica (nacional e internacional), da dinâmica dos campos intelectuais. Porém, não é esse nosso assunto.
Uma vez esclarecidos esses pontos, Mauss apresenta, de modo muito sucinto, como cabe a uma nota de rodapé, um esquema do desenvolvimento histórico do dinheiro – e uma questão central e aberta é se esse esquema é também um esquema do desenvolvimento lógico do dinheiro. Para Mauss, o desenvolvimento da moeda pode ser visto em três fases ou estágios. No primeiro deles, atribui-se poder de compra a objetos específicos, usualmente poderosos, ou seja, mágicos. No segundo estágio, em virtude da circulação ampla e crescente desses objetos, “a humanidade descobriu que esses instrumentos de compra poderiam servir como meio de numeração e de circulação de riquezas” (Mauss, 2012MAUSS, Marcel. (2012 [1925]), Essai sur le don. Paris, Puf. [1925], p. 106). Surge, assim, a função unidade de medida, pois a circulação de riquezas, a rigor, já ocorria com a instituição do poder de compra. O terceiro e último estágio de desenvolvimento do dinheiro implica a desconexão dos objetos de seus usos particulares e de seus vínculos a pessoas e grupos particulares, tornando-os “instrumentos permanentes de medida de valor, e mesmo de medida universal” (Idem, p. 106). Chegado a esse estágio, estamos no universo do dinheiro moderno: impessoalizado, medida geral, equivalente universal, unidade contábil, meio de compra, meio de pagamento, expressão e depositário de valor.
A argumentação desenvolvida nessa nota de rodapé oferece as bases do que vai se afirmar, ao final do Essai, nas “Conclusões de sociologia econômica e de economia política”, onde lemos:
O emprego da moeda poderia sugerir outras reflexões. Os vaygu’a dos trobriandeses, braceletes e colares, bem como os cobres do noroeste americano ou os wampun iroqueses, são ao mesmo tempo riquezas, signos de riquezas, meios de troca e de pagamento e também coisas que é preciso dar, ou mesmo destruir. Só que são, ainda, penhores/cauções [gages] vinculados às pessoas que os empregam, e esses penhores/cauções as vinculam. Mas como, por outro lado, eles já servem de signos monetários, há interesse em dá-los para poder possuir outros novamente, transformando-os em mercadorias ou em serviços que, por sua vez, voltarão a se transformar em moedas. Dir-se-ia realmente que o chefe trobriandês ou tsimshian procede em um grau remoto à maneira do capitalista que sabe desfazer-se de sua moeda em tempo útil, para reconstituir, em seguida, seu capital móvel. Interesse e desinteresse explicam igualmente essa forma da circulação de riquezas e da circulação arcaica dos signos de riqueza que as acompanham (Mauss, 2012 [1925], p. 227).
Há, portanto, uma continuidade entre o chefe trobriandês e o capitalista parisiense do século passado, que não passou desapercebida ao sociólogo vindo dos Vosges – que, evidentemente, conhecia a fórmula apresentada em Das Kapital: D-M-D’ (Marx, 1966MARX, Karl. (1966 [1867]), Das Kapital. Berlim, Dietz, vol. 1. [1867], cap. 4). Em ambos, o processo de troca dá ensejo à moeda, ao dinheiro, em um conjunto de funções que vão, ao longo do tempo, se depurando e autonomizando, até chegarmos (provisoriamente), ousaria dizer, às criptomoedas. Mas, Mauss nos alerta reiteradas vezes, mesmo no mercado e no dinheiro contemporâneos subsistem os elementos de magia, rito e mito (2012 [1925], pp. 224-225). Nos trobriandeses, há um objeto que contém poderes mágicos e ao mesmo tempo poder secular; ele é valor sagrado e valor terreno, sugerindo uma passagem de um mundo ao outro, ao mesmo tempo em que está marcado pela pessoalidade de seus possuidores e dos processos nos quais participam. Isso ocorre porque, para o Mauss do Essai, são possíveis distintos “regimes de troca” (Mauss, 2012MAUSS, Marcel. (2012 [1925]), Essai sur le don. Paris, Puf. [1925], p. 65), que variam social e historicamente e compreendê-los é, aliás, seu “Programa” de investigação.
Entretanto, já em 1914, cerca de dez anos antes do Essai sur le don, às vésperas da grande cesura epocal e pessoal da Grande Guerra, Mauss havia escrito um pequeno texto, “Les origines de la notion de monnaie” (1974 [1914]), em que, como o próprio título já destaca, está em jogo a “noção”, e não necessariamente sua constituição concreta, material, substancial. Esse pequeno texto desenvolve aspectos que não reaparecem no Essai sur le don, estando bastante próximo de seu grande mestre, Durkheim, e apresentando as reflexões talvez mais provocativas – e atuais – de Mauss acerca do dinheiro (cf. Viana, 2018VIANA, Diego. (2018), O esquema operatório da moeda: corpo, imagem e transindividual. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p. 198 ss).
Acompanhemos, agora, sua argumentação.
Em primeiro lugar, note-se que falamos aqui da noção de moeda. A moeda não é absolutamente um fato material e físico, ela é essencialmente um fato social. Seu valor é o de seu poder de compra, e a medida da confiança que temos nela. E é da origem de uma noção, de uma instituição, de uma fé de que falamos (Mauss, 1974MAUSS, Marcel. (1974 [1914]), “Les origines de la notion de monnaie” in V. Karady (ed.), Oeuvres, Paris, Minuit, vol. 2, pp. 106-115. [1914], p. 106).
Moeda não é substância, é fato social, ou seja: um fenômeno social, com realidade exterior ao indivíduo. Mas é também uma noção, um fato de consciência. Portanto, algo que está ao mesmo tempo dentro e fora do indivíduo, uma realidade exterior que se concretiza também no interior – donde a dimensão coerciva do fato social. Como ensina Durkheim, fatos sociais consistem “em maneiras de fazer ou pensar, reconhecíveis pela particularidade de serem suscetíveis de exercer uma influência coerciva sobre as consciências particulares” (1983 [1895], p. 81). E é com base nisso que Durkheim desenvolve seu conceito de instituição: “todas as crenças e todos os modos de conduta instituídos pela coletividade” (Idem, p. 82).
Vemos, assim, que Mauss enfatiza qualidades desse fato social-instituição: seu poder de compra e a confiança de que é depositária e tributária. Ambos os atributos são eminentemente sociais, não são somente supraindividuais como também transindividuais: atravessam, perpassam o grupo social, o que lhes dá, justamente, o estatuto de fatos sociais. O “poder de compra” transpassa um conjunto de relações de compra e venda, que podem assumir formas as mais diversificadas; a “confiança”, por sua vez, dá corpo a um coletivo que compartilha algo de comum e o mantém vivo, vibrando, válido. Voltaremos ao assunto.
Temos, portanto, um primeiro passo do argumento na afirmação do dinheiro como fato social: uma noção, uma ideia; algo predominantemente imaterial, mas que não deixa de possuir sua materialidade; um fenômeno ao mesmo tempo interno e externo. A seguir, o problema do valor, enraizado no solo duplo do poder de compra e da confiança – mas: um mesmo solo.
O fato social moeda possui, vemos agora, uma grande amplitude: ao mesmo tempo “uma noção, uma instituição, uma fé”. O fundamento do método sociológico regrado, vimos acima, oferece enquadramento condizente para a argumentação, pois conecta e atribui nexo e sentido aos distintos aspectos ou dimensões do fenômeno, transformando-o, precisamente, em fato social. Anos depois, no Essai, Mauss ainda despenderia suas energias para evidenciá-lo como “total”.
Não resta dúvida de que estamos situados em um terreno que nada tem a ver com a reflexão usual sobre o dinheiro, por parte dos economistas. Este era, como se sabe, desde o início, desde De la division du travail social, uma perspectiva crítica da sociologia durkheimiana: crítica da economia política, para utilizar a fórmula de outro conhecido contraente (Durkheim, 2015DURKHEIM, Émile. (2015 [1893]), Da divisão do trabalho social. Tradução de E. Brandão. 4a edição, São Paulo, Martins Fontes. [1893], pp. 21, 156, passim; Steiner, 2005aSTEINER, Phillipe. (2005a), L’ école Durkheimienne et l’économie. Genebra, Droz., passim, especialmente cap. 1). Em suma, o dinheiro, considerado como fato social, é um fenômeno que cria e depende de confiança, assume a forma de instituição e exprime valor. Nos três fatores – valor, confiança, instituição –, constituindo-se como fato social, apresenta-se como interno e externo, como noção e como realidade exterior.
Isso posto, Mauss dá continuidade à discussão.
Em segundo lugar, não se trata de mostrar uma origem, ou seja, um começo absoluto, um nascimento por assim dizer ex nihilo. Contrariamente à ideia recebida, vocês verão, com efeito, que não é certo que tenha havido, dentre as sociedades que conhecemos ou que representamos por hipótese, nenhuma que fosse completamente desprovida de noções ao menos análogas àquela que designamos em termos práticos sob o nome de moeda. Portanto, não buscaremos como surge de um golpe na humanidade uma ideia de moeda que lhe era de início estranha. Nós procuraremos a forma a mais primitiva, a mais simples, para formular melhor, a mais elementar na qual podemos imaginar que se apresenta a noção de moeda, nas sociedades as mais baixas que conhecemos (Mauss, 1974MAUSS, Marcel. (1974 [1914]), “Les origines de la notion de monnaie” in V. Karady (ed.), Oeuvres, Paris, Minuit, vol. 2, pp. 106-115. [1914], p. 106).
Atentemos: com o argumento da “forma elementar”, Mauss nos diz que em qualquer sociedade há algo análogo à moeda. Pode não haver dinheiro em um sentido estrito, mas a sua função está ali presente; algo opera como se fosse uma moeda – e isso significa, justamente, que há moeda operando ali. É nessa direção que devemos entender sua discordância face a Malinowski e Simiand, que abre a nota de rodapé no Essai. A “analogia” diz respeito a uma “noção”, porque Mauss nos disse, antes, que não se trata do aspecto material e físico da moeda. Ele fala da moeda como fato social; portanto, haverá um fato social análogo ao fato social moeda em todas as sociedades; por outra, trata-se de um atributo sempre presente, mesmo que de formas variadas. Ou seja, como instituição, capaz de assumir formas várias. Para ficarmos no exemplo que ele mesmo nos dá, “fé”. É como se considerasse o dinheiro um fenômeno social universal ou, formulando ao revés (de um modo que talvez soe mais plausível): encontramos aqui um fenômeno universal que se manifesta na forma do dinheiro – ou melhor, uma forma que é plural, porque Mauss está a assinalar precisamente o seu caráter proteiforme. (É o que se verá logo à frente, quando Mauss o vincula à “natureza das sociedades”.) O que há, de fato, é “uma analogia das operações, que torna possível buscar em outros objetos e imagens as operações que o conceito contemporâneo espera da moeda” (Viana, 2018VIANA, Diego. (2018), O esquema operatório da moeda: corpo, imagem e transindividual. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p. 99).
Como a “fé” já nos sugere, Mauss persegue o “caráter religioso e mágico da moeda” (1974 [1914], p. 108), o vínculo de moeda e sagrado,4 4 No momento em que Mauss escrevia o Essai sur le don, Laum publicava o seu igualmente impressionante Heiliges Geld, cujo subtítulo afirma: “uma investigação histórica sobre a origem sagrada do dinheiro” (1924). O paralelismo da discussão merece comentário, que não cabe nesta glosa. Para a situação contemporânea dos estudos sobre a questão, ver Semenova (2007; 2011) e Grierson (1977). É o contexto da discussão acerca do “Wergeld” e da “dívida de vida”, tal como discutida pela literatura pertinente. Um bom trabalho a respeito, vindo de território (mais cognitivo que geográfico, claro está) francês, é Théret (2009), que, ademais, oferece uma ótima tomada de posição com relação à perspectiva da escola reunida em torno de Caillé e do assim chamado “paradigma da dádiva” – exemplarmente em Caillé (1998); posição distinta e consistente oferece Pyyhtinen (2014). Os trabalhos de Graeber sobre “débito” (2009; 2014), não livres de críticas significativas – como Ingham (2013), que reputo consistente –, valorizam a discussão da dívida de vida – como Rospabé (1995), que no entanto não pude ler –, mas ignoram de fato a discussão acerca do Wergeld, assim como Laum – embora os mencione muito de passagem e os descarte sem mais (cf. Graeber, 2014, pp. 131-136, 173, 425, 59, 407; ver ainda Graeber, 2009). Um resumo, embora incompleto, de toda essa discussão, encontra-se em Paul (2017, cap. 2). Todos esses desdobramentos – “Wergeld”, “dívida de vida”, “paradigma da dádiva”, “débito” – ultrapassam em muito os limites desta glosa. que lhe parece recorrente em variados grupos sociais, a começar pelo mana da Melanésia.
Nesse ponto, fica uma vez mais patente a continuidade de Mauss com seu mestre e tio Durkheim. Justamente em Les formes élémentaires de la vie religieuse, de 1912, publicada dois anos antes de Mauss escrever o texto que comento, há uma passagem importante de Durkheim sobre a questão que nos interessa. Diz ele:
Podemos então dizer, em resumo, que quase todas as grandes instituições sociais são nascidas da religião” (Durkheim, 1990DURKHEIM, Émile. (1990 [1912]), Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris, Puf. [1912], p. 598).
E Durkheim acrescenta, em rodapé:
Uma única forma de atividade social ainda não foi expressamente relacionada à religião: é a atividade econômica. Todavia, as técnicas que derivam da magia possuem, por isso mesmo, origens indiretamente religiosas. Ademais, o valor econômico é uma espécie de poder, de eficácia, e nós sabemos as origens religiosas da ideia de poder. A riqueza pode conferir mana; é portanto porque ela o possui. Por aí entrevê-se que a ideia de valor econômico e a de valor religioso não devem ser sem relação. Mas a questão de saber qual é a natureza dessas relações ainda não foi estudada (Idem, p. 598).5 5 Veja-se ainda a carta de Durkheim a Mauss de junho de 1897 (Durkheim, 1998, p. 71; Steiner, 2001, p. 698). Esta glosa é, em certos aspectos, muito próxima do artigo de Steiner sobre Mauss e Simiand (Steiner, 2001). Não obstante o domínio muito maior dos materiais por parte de Steiner, assim como sua reflexão amadurecida ao longo dos anos e as várias obras a respeito, creio que algumas diferenças de ênfase e encaminhamento justificam o esforço reiterado no assunto.
Ao ler essa passagem de Durkheim em 1912, vemos que Mauss, em 1914, procurava saldar essa demanda (e isso perdura até o Essai sur le don, no qual Mauss cita e discute essa passagem de Durkheim (Mauss, 2012MAUSS, Marcel. (2012 [1925]), Essai sur le don. Paris, Puf. [1925], p. 224); seu texto pode ser visto claramente como uma resposta à formulação do tio. O enquadramento dado por Les formes élémentaires de la vie religieuse não é, pois, casual, assim como a referência comum ao mana não é apenas um fenômeno de superfície, embora carregado de valor simbólico. Mauss procura, em vista disso, melhor definir seu argumento; eis a passagem central de seu texto:
[…] as formas primitivas da noção de moeda. A moeda – qualquer que seja a definição que adotemos – é um valor estalão, é também um valor de uso que não é fungível, que é permanente, transmissível, que pode ser objeto de transações e de usos sem se deteriorar, mas que pode ser o meio de se obter outros valores fungíveis, transitórios, prazeres, prestações. Ora, o talismã e sua posse têm, podemos dizer, desde cedo, sem dúvida desde as sociedades muito primitivas, desempenhado esse papel de objetos igualmente desejados por todos, e cuja posse conferia a seu detentor um poder que se tornava facilmente um poder de compra.
Mas, sobretudo, não haveria aí algo que diria respeito à natureza das sociedades? – Tomemos um exemplo. A palavra mana nas línguas malaio-melanésio-polinésias designa não somente o poder de substâncias e de atos mágicos como também a autoridade dos homens. Ela designa igualmente os objetos preciosos, os talismãs da tribo, dos quais sabemos de que trocas, de que batalhas, de que heranças eles foram objeto. O que há de irracional nisso, se podemos nos representar o estado de espírito no qual essas instituições funcionaram? Não seria natural a força de compra da moeda, quando ela está vinculada ao talismã que, em princípio, pode constranger os subordinados dos chefes, os clientes dos mágicos, às prestações que lhes demandam? E, inversamente, não haveria necessidade, a partir do momento em que a noção de riqueza intervém, mesmo que sob uma forma muito vaga, de que a riqueza do chefe e do mágico resida antes de mais nada nos emblemas que encarnam seus poderes mágicos, sua autoridade, em uma palavra, ou que simbolizem a força do clã?
O poder de compra da moeda primitiva é, antes de tudo, em nosso entender, o prestígio que o talismã confere àquele que o possui e que dele se serve para comandar os outros (Mauss, 1974MAUSS, Marcel. (1974 [1914]), “Les origines de la notion de monnaie” in V. Karady (ed.), Oeuvres, Paris, Minuit, vol. 2, pp. 106-115. [1914], p. 110-111).
Há, pois, uma continuidade do sagrado ao econômico, do talismã à moeda, que responde com perfeição à demanda durkheimiana e que se presta à ideia, a ser exposta em 1925, do “fato social total”. Mas não só. Objetos preciosos, autoridade dos homens, substâncias e atos mágicos são um único contínuo, novamente proteiforme: algo que está presente em todas essas manifestações e, na verdade, as define no espaço da vida comum daqueles grupos humanos. A moeda tem seu poder e sua força enraizadas nesse contínuo, em um trânsito entre os domínios do sagrado e do secular, do poder e da economia; domínios esses cujas definição, diferenciação, especificação e autonomia variam e que, nas sociedades “mais elementares”, se confundem e fundem. Nessas sociedades – e não somente nelas – “o dinheiro é um objeto econômico apenas em caráter acessório: antes de mais nada, é um operador político e social” (Viana, 2018VIANA, Diego. (2018), O esquema operatório da moeda: corpo, imagem e transindividual. Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p. 204).
No passo citado, Mauss percebe o dinheiro como valor de uso, como valor de troca, como unidade contábil, e indica uma correspondência entre o dinheiro e o talismã. Uma correspondência que não significa a realização plena – moderna – dessas funções, mas sim uma latência ou virtualidade que possibilitaria sua emergência, uma “forma elementar”. Seu fundamento parece ser o poder. O salto de Rhodos estaria na assunção, retoricamente enunciada em forma de pergunta, de sua universalidade: algo que diz respeito à “natureza das sociedades”. Pois as sociedades, os grupos humanos, seriam “simbolizados” em “emblemas”, ou seja, “substâncias”, “atos”, “autoridade”, “objetos”, “talismãs”, “instituições”.
Em sua longa discussão acerca do mana em Les formes élémentaires de la vie religieuse, Durkheim o define como “força anônima e impessoal” (1990 [1912], pp. 277-278, passim), mas que ao mesmo tempo designa os objetos específicos que a encarnam: os talismãs. É justamente por isso que os talismãs são venerados e seus possuidores, admirados, valorizados e até mesmo invejados. O poder mágico do talismã, que o leva a ser venerado por um grande número de pessoas, faz que se transforme em objeto precioso, e é assim que seu poder, inicialmente mágico e religioso, se transmuta, qual pedra filosofal, em poder de compra.6 6 Um economista contemporâneo, patrão de escola, segue o argumento: “O valor econômico é assim oriundo dos valores mágico-religiosos. […] O que é comum aos valores religiosos e econômicos é a questão do poder e da obrigação” (Orléan, 2009, p. 223).
Eis como entender o talismã como a origem da moeda: o talismã tem poder, confere poder a seu possuidor; esse poder é de natureza mágico-religiosa. Entretanto, esse poder é também, diz-nos Mauss, poder de compra. Assim, há uma passagem do poder religioso para o poder econômico. A argumentação está, como vimos, em plena sintonia com o programa enunciado por Durkheim.7 7 Steiner, seja em artigo (2001), seja em livro (2005a), esclarece “o programa de pesquisa fixado por Durkheim no que concerne à economia política” (Steiner, 2001, p. 695).
O programa de uma sociologia econômica estaria presente in nuce em Durkheim, enunciado, mas não desenvolvido; ele também se apresenta como uma crítica da economia política, embora não assuma essa rubrica, evidentemente já marcada pelo trabalho de Marx.8 8 Mauss parece entender a expressão “sociologia econômica” como uma atualização da expressão “economia política”; ver, por exemplo, sua série de textos sobre o câmbio, escritos simultaneamente ao Essai sur le don (cf. Fournier, 1994, p. 453). A remissão aos textos sobre o câmbio é especialmente enriquecedora por nos colocar face a outra frente de discussão, outros públicos e outros veículos de difusão – ponto que, não obstante, não pode ser aqui explorado. No caso de Durkheim, trata-se de estabelecer as relações entre economia política e sociologia, de sorte que cabe à sociologia exercer a crítica da economia política: ultrapassar seus conceitos, deixar o homo oeconomicus para trás.9 9 Ver, a título de exemplo, a discussão em Durkheim (1975b [1908]). Ainda a título de exemplo, cf. Mucchielli (1998, pp. 490-491) e Steiner (2005b, pp. 10-11; 2005a).
Como mencionado, já em sua obra inaugural, De la division du travail social, Durkheim (2015DURKHEIM, Émile. (2015 [1893]), Da divisão do trabalho social. Tradução de E. Brandão. 4a edição, São Paulo, Martins Fontes. [1893]) trata seu tema com um enfoque que busca se diferenciar do econômico e do tratamento dado a ele pela economia política. A divisão do trabalho não é examinada no âmbito da economia e da produção, mas sim com vistas a sua função social, a saber, criar solidariedade social, fomentar a coesão social, reproduzir a sociedade.10 10 Ver a crítica a Spencer no capítulo VII de Durkheim (2015 [1893], pp. 185-220) e em Steiner (2001, p. 696; 2005a, pp. 43, 46, 168).
Entretanto, como o programa de uma sociologia econômica não foi desenvolvido por Durkheim, coube a seu colaborador Simiand desenvolvê-lo, no espírito do mestre e do grupo reunido em L’Année sociologique.
A crítica ao Homo oeconomicus da economia política clássica, que age racionalmente e procura maximizar seus ganhos e interesses, é óbvia: ele é uma abstração sem fundamento, pois o ser humano é social e histórico, encarnado em uma determinada sociedade, um determinado tempo, um determinado grupo etc. (cf. Mauss, 2012MAUSS, Marcel. (2012 [1925]), Essai sur le don. Paris, Puf. [1925], pp. 65, 230-231; Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 54-55, passim; Steiner, 2005bSTEINER, Phillipe. (2005b), La sociologie économique. Paris, La Découverte., pp. 10-11; Steiner, 2001STEINER, P. (2001), “Religion et économie: Mauss, Simiand et le programme durkheimien”. Revue française de sociologie, 42 (4): 695-718., pp. 699-701). Ademais, “na maior parte do tempo, o ator econômico não se encontra nas situações de escolha simples sobre as quais se funda a teoria econômica” (Mucchielli, 1998MUCCHIELLI, Laurent. (1998), La découverte du social: naissance de la sociologie en France. Paris, La Découverte., p. 494). Simiand, inclusive, entende que “os principais atores da vida econômica são os grupos, mais ou menos estruturados”, e não os indivíduos, donde a necessidade de uma “psicologia da vida econômica” que ultrapasse a psicologia individual, rumo a uma “psicologia do grupo, a uma psicologia social” (Simiand apud Mucchielli, 1998MUCCHIELLI, Laurent. (1998), La découverte du social: naissance de la sociologie en France. Paris, La Découverte., p. 495), psicologia essa que, em seu entender, estaria em condições de evidenciar as lógicas das ações coletivas econômicas.11 11 Também nesse ponto seguindo Durkheim, que a seu tempo afirmara: “Na vida social, tudo são representações, tudo são ideias, sentimentos, e em parte alguma melhor observamos a força eficaz das representações. Só que as representações coletivas são muito mais complexas que as representações individuais, elas possuem uma natureza própria, pedem uma ciência distinta. Toda a sociologia é uma psicologia, mas uma psicologia sui generis” (Durkheim, 1975c [1908], p. 61). Fatos econômicos são fatos sociais – novamente: “maneiras de fazer ou pensar, reconhecíveis pela particularidade de serem suscetíveis de exercer uma influência coerciva sobre as consciências particulares” (Durkheim, 1983DURKHEIM, Émile. (1983 [1895]), “As regras do método sociológico” in É. Durkheim, Da divisão do trabalho social; As regras do método sociológico; O suicídio; As formas elementares da vida religiosa. Tradução de M. G. Esteves et al. 2a edição, São Paulo, Abril Cultural, pp. 71-161 (Coleção Os Pensadores). [1895], p. 81). Entendidos no assunto afirmam que Simiand desenvolve “uma teoria socioeconômica da interação conflituosa entre os grupos de agentes” (Gislain e Steiner apud Mucchielli, 1998MUCCHIELLI, Laurent. (1998), La découverte du social: naissance de la sociologie en France. Paris, La Découverte., p. 503).
Em seu texto publicado em Annales sociologiques, em 1934, intitulado “La monnaie réalité sociale”, Simiand apresenta um estudo sobre o dinheiro concebido no âmago da escola durkheimiana.12 12 Em homenagem à tradução recém-publicada do texto de Simiand, ele será citado sempre na edição nacional. O problema é desde logo formulado segundo a regra sociológica enunciada por Durkheim, pois se trata do “fato da moeda”, “fato monetário”, que é preciso estabelecer e reconhecer (Simiand, 2018 SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018.[1934], pp. 38-39, 58-59, passim). Qual a natureza do fato monetário? Para compreendê-lo, é preciso estudar suas formas concretas na história, seus tipos, o que o condiciona e o que ele condiciona (Idem, pp. 58-59). Tal enraizamento do fato monetário na história exige considerá-lo como “relativo”, a saber, relativo à “realidade social”, ou seja, ao contexto particular no qual ele existe (Idem, pp. 58-59, 120-121).13 13 O “relativismo” ou “relacionismo” de Simiand nada mais é que um historismo, no sentido lato do termo (donde, inclusive, a simpatia dos historiadores por seu trabalho) e, por essa razão, esforços para torná-lo mais que isso, ou seja, um “relacionismo” em sentido forte, parecem-me um erro.
Simiand segue também os passos de Mauss, pois entende que, em sua origem, as moedas eram “coisas revestidas de um valor extraeconômico, religioso, mágico, moral” (Idem, pp. 78-79, tb. 98-99).14 14 Steiner demonstra como Simiand, em momento anterior ao texto de 1934, desacreditava em uma continuidade da economia moderna face às sociedades “primitivas”, o que o distanciava da busca e compreensão “do fundamento religioso da atividade econômica” (Steiner, 2001, p. 702, com interessante material comprobatório). O ponto serve também para comprovar o argumento de Steiner acerca de uma divisão do trabalho entre Simiand e Mauss. De todo modo, como argumento aqui, nos textos em questão esse problema assume configuração distinta. Um ponto crítico de seu enfoque é tomar valor e dinheiro como equivalentes e ainda deixar de distinguir suficientemente valor e preço – elementos que tanto a economia política como a sua crítica não deixaram de elaborar (cf. Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 74-75; Steiner, 2018STEINER, Phillipe. (2018), “Simiand e a sociologia econômica da moeda” in F. Simiand, A moeda, realidade social. Tradução de M. S. Palmeira. São Paulo, Edusp, pp. 125-136., p. 129). Isso faz com que a sua monnaie ocupe, algo indistintamente, todas essas posições: moeda (currency), dinheiro (money), valor e preço.15 15 Esse não é, contudo, um problema que abordarei neste artigo e somente o registro para o esclarecimento do leitor. Como se evidencia no passo citado logo acima, o problema do valor é central, pois que não se trata somente de valor econômico, mas também de um valor mais amplo – e consequentemente mais abstrato – que assume, ou pode assumir, formas várias, dentre elas a de valor religioso. Essa metamorfose ou deslocamento é um aspecto decisivo na constituição de uma teoria do valor sólida, razão pela qual a economia, amiúde, restringiu suas discussões ao problema do valor econômico, postulando sua autonomia e desvinculando-o de valores extraeconômicos.16 16 De importância superlativa, no contexto dessa discussão, é como Simmel, em sua Philosophie des Geldes (1907 [1900]), desenvolve uma teoria do valor em geral, para dela extrair o valor econômico. Também nesse aspecto o livro de Simmel paira como uma sombra sobre as reflexões de Simiand e de Mauss, o que, contudo, também não será explorado nesta glosa. Não há dúvida de que a resenha da Philosophie des Geldes feita por Durkheim – “especulação bastarda” sintetiza seu juízo – resultou na interdição de Simmel para os afiliados à escola durkheimiana (cf. Durkheim, 1975a [1901]).
Simiand, na esteira de Durkheim e Mauss na busca da origem e do fundamento do valor econômico, afirma que ele se desvincula, desde o século XVI, dos valores ético-religiosos, “laicizando-se” (Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 44-45, 78-79, 92-93)17 17 A obra clássica da sociologia, o livro de Groethuysen sobre o espírito burguês em França desenvolve de modo sólido o processo social dessa transformação. Ver Groethuysen (1927-1930; 1927) e Auerbach (1933). . Tal processo evidencia que a instância que cria e fundamenta o valor é a sociedade, entendida como um “poder superior aos indivíduos” e fonte de todos os valores sociais (Idem, pp. 44-45). Encontramos aí, então, uma “realidade social original” (Idem, pp. 78-79).
Entretanto, o que lhe interessa é menos a origem, e mais a natureza do dinheiro. Para acompanharmos e compreendermos seu raciocínio, leiamos a passagem decisiva de seu texto:
Chegamos assim ao fundo verdadeiro que deve ser reconhecido quanto ao valor de uma tal moeda, em seus comportamentos próprios e diversos. Esse fundo não é feito de elementos físicos, quantificados ou quantificáveis, entre os quais se estabelece uma relação matemática que constitui ou mensura esse valor. Ele é feito de apreciações, de estimativas, de crenças, de confiança, de desconfiança, produtos tanto do sentimento como da razão, que portanto, sem dúvida alguma, sequer chegam a analisar, de forma distinta, essas duas ordens de dados que acabamos de separar aqui: trata-se simplesmente e quanto ao seu todo de uma crença e de uma fé nessa expressão de valor que carrega a marca de um país. E se essa crença e essa fé têm um papel efetivo sobre os próprios elementos físicos da vida econômica, é porque não são apenas ideia e sentimento simplesmente subjetivos. Essa representação ao mesmo tempo intelectual e afetiva que constitui uma moeda desse tipo não é o produto de individualidades competentes e informadas […], mas antes de grupos, de coletividades, de uma nação: ela é social. Ela possui um caractere e um papel manifestamente objetivos, pois ela é uma crença e uma fé social e, como tal, uma realidade social (Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 90-91, cf. pp. 102-103, 106-107, 120-121, grifos do autor).
Uma crença e uma fé social: tal como já se viu em Mauss, o dinheiro é fé, é confiança; mas confiança e fé em que, senão na sociedade? Eis como Simiand pode enunciar sua tese maior, o dinheiro como realidade social. Pois é a sociedade que dá realidade ao dinheiro – a sociedade é a realidade do dinheiro, para formularmos com a maior ênfase. E essa constituição social da realidade do dinheiro não é unívoca, nem poderia ser, porque a realidade é, ela mesma, vária, relativa às representações coletivas.
Recordemos: Durkheim havia nos ensinado, em suas Regras, que “as representações coletivas traduzem a maneira como o grupo se pensa nas suas relações com os objetos que o afetam” (1983 [1895], p. 79). Nota bene: “o” grupo, não “os” grupos nem “qualquer” grupo, mas “aquele” grupo. Simiand transpõe o argumento para o seu problema e complementa:
Para reforçar essa realidade da moeda, bem como o caráter social dessa realidade, resta-nos aqui insistir nesse traço: esses vínculos fundamentais estabelecem-se somente, e de fato, por ações e reações humanas de caráter social, diferenciando-se em variações, em alternâncias, pela diferenciação mesma das representações sociais que respectivamente lhes correspondem (Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 106-107).
Vínculos são estabelecidos pela via da ação social (sendo, evidentemente, a reação, ela mesma, uma ação). Trata-se, portanto, de um fundamento no agente e, ao mesmo tempo, na teoria das representações sociais. Como articulá-las? Ao que parece, teríamos representações sociais moldando a ação social, ações que por sua vez constituem a realidade da moeda. Esta é simultaneamente resultado dessas ações e dessas representações. Destarte, é resultado imediato das ações e resultado mediado das representações. Se as representações orientam as ações, e considerando que são coletivas, temos o coletivo orientando a ação individual (assim como a ação coletiva, que é a crença na moeda).
O dinheiro resulta, assim, de representações sociais que correspondem a diversas classes ou grupos sociais; tais representações diferem entre si, alteram-se em tempo e espaço, de sorte que para uns assumem uma forma, para outros, outras (cf. Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 108-111). Como consequência, não se pode afirmar que a moeda seja una, igual para todos, em todas as funções, em todas as ocasiões, em todos os que a operam.18 18 Em sentido similar enfatizado em Zelizer (1998). Simiand também dá vazão à ideia ao afirmar que, em sistemas econômicos diversos, as principais características do dinheiro variam, pois são relativas “às realidades desses diversos sistemas e de seus funcionamentos diferentes” (Idem, pp. 120-121). Há, evidentemente, distintos sistemas econômicos em tempo e espaço, e portanto as formas que o dinheiro assume são também muito variadas. “A representação monetária é efetivamente uma realidade, parte integrante, constitutiva, essencial no funcionamento […] de um sistema propriamente econômico”, diz ele (Idem, pp. 116-117). Isso valeria, por exemplo, tanto para o sistema melanésio, como para a economia do ocidente moderno, para aquele capitalista parisiense mencionado por Mauss.
Os aportes históricos referidos por Mauss e retomados por Simiand revelam a variedade das formas. Assim, se o dinheiro, como realidade social, é relativo, é:
[…] relativo às representações, a cada vez intelectuais e afetivas, centrais à vida econômica de um grupo, de uma classe, de uma nação, ou de conjuntos ainda mais largos, alcançando praticamente a humanidade. Pois, no fundo, esse fato monetário exprime, com suas diversidades ou suas variações correspondentes às diversidades e variações desses conjuntos sociais, a confiança coletiva que cada um desses conjuntos, nesses diversos graus, atribui a si mesmo e a seu devir, e a escala de estima que cada um deles faz das coisas e dos homens em seu quadro social (Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 120-121).
Retornamos, assim, ao problema da confiança, da confiança coletiva, que é a pedra de toque da construção teórica do fato monetário – como também o é em diversas outras concepções do dinheiro.19 19 A literatura é considerável; uma boa orientação oferece Frankel (1977). No caso de Simiand, o fundamento da confiança é dado pelo próprio social, pela crença, pelas representações coletivas. Representações são compartilhadas por grupos sociais e são estes que garantem a moeda. A garantia seria dada pelo valor do lastro da moeda em metal precioso? Ou pela autoridade que a coloca em circulação? E, se assim for, que autoridade é essa?
O problema da confiança aponta para a garantia com relação ao futuro: tanto a estimativa do valor da moeda no futuro influencia o seu valor no presente como é preciso garantir que a moeda de hoje seja aceita amanhã (cf. Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 84-87).
Simiand havia mencionado, em passo já citado, os “elementos físicos” na constituição do valor, que remetem a um ponto recorrente em seu texto, a discussão acerca do lastro monetário em metal precioso e do padrão-ouro. Todos esses problemas nos conduzem ao debate de dois tópicos, intimamente interrelacionados: o lastro em metal precioso e a moeda fiducidária.
Desde o início de seu texto, Simiand debate a possibilidade de uma moeda que não seja ancorada em metal precioso (2018 [1934], pp. 72-73, passim). Com relação a isso, vale lembrar que, ao longo do século XIX, a partir da iniciativa britânica, a maioria das moedas ocidentais procurou adotar o lastro em metal precioso, seguindo o modelo da grande força imperial do século (cf. Waizbort, 2019WAIZBORT, Leopoldo. (2019), “Money and Its interpretation: the century of mobility and acceleration and its money” in F. Neiburg & N. Dodd (eds.), A cultural history of money: in the Age of Empire, Londres, Bloomsbury Academic, 123-145.). Isso valeu até a Grande Guerra, quando os endividamentos forçaram as emissões sem lastro – como amiúde nas guerras e com o rico exemplo da guerra civil norte-americana (cf. Carruthers e Babb, 1996CARRUTHERS, Bruce & BABB, Sarah. (1996), “The color of money and the nature of value: greenbacks and gold in postbellum America”. American Journal of Sociology, 101 (6): 1556-1591.). Os problemas das economias europeias após a Guerra evidenciaram novamente o problema do lastro em metal precioso (Simiand resenhou sistematicamente alguma literatura a esse respeito). Já mencionei que, em 1924, Mauss estava às voltas com os problemas de câmbio, no momento em que elaborava o Essai sur le don. Em 1934 – e basta lembrarmos os processos inflacionários e hiperinflacionários daquela quadra histórica (cf. Théret, 2007THÉRET, Bruno. (org.). (2007), La monnaie dévoilée par ses crises. Paris, EHESS, 2 vols.) –, Simiand entende que uma economia de mercado, na qual é indispensável uma moeda que atue como meio de troca e como medida de valor, precisa de um padrão de valor, “um padrão de referência dos valores econômicos distinto e independente das coisas ou dos atos cujo valor econômico será expresso nesse padrão” (Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 76-77). Coube ao metal precioso cumprir historicamente essa exigência de padrão, em especial, nos tempos mais recentes, pós-bimetalismo, ao padrão-ouro. Entretanto, não obstante o reconhecimento dessa “solução”, Simiand admite que “não surge muita oposição, ou mesmo diferença radical […] entre um funcionamento de moeda lastreada e um funcionamento de moeda inconversível, provida legalmente de poder liberatório” (Idem, pp. 80-81, 84-85). Isso poderia parecer uma contradição, mas o sociólogo de fato reitera sua tese fundamental: trata-se de “reconhecer também as crenças sociais como fundamento próprio e original do valor desse metal precioso” que funciona como lastro monetário (Idem, pp. 90-91). Portanto, o fundamento do dinheiro na crença vale tanto para a moeda inconversível como para a moeda lastreada. Digamos que a moeda com lastro em metal precioso tem sua crença de fundamento “ocultada” pelo metal, enquanto a moeda sem lastro “explicita” seu caráter de crença.
Com isso, estamos em terreno do cartalismo (cf. Knapp, 1905KNAPP, Georg. (1905), Staatliche Theorie des Geldes. Leipzig, Duncker & Humblot.; Frankel, 1977; Wray, 2004WRAY, Larry. (ed.). (2004), Credit and state theories of money: the contributions of A. Mitchell Innes. Cheltenham, Edward Elgar.; 2014). Para os cartalistas, Knapp à frente, dinheiro é um meio cartal de pagamento e um meio cartal de pagamento é uma criação da ordem jurídica, que proclama: “isto é”, ou seja, cria o meio de pagamento e diz o quanto ele vale, impõe e garante a sua validez. Para Knapp, o sujeito dessa proclamação é o estado, ou seu equivalente funcional. Essa vinculação do dinheiro, como meio de pagamento, ou seja, como instrumento para a quitação de débitos, ao estado indica sua dimensão eminentemente social e histórica. Então o dinheiro surge como – e é – um produto da sociedade (Knapp, 1905KNAPP, Georg. (1905), Staatliche Theorie des Geldes. Leipzig, Duncker & Humblot., cap. 1). Sem mencionar Knapp ou algum de seus divulgadores ou críticos, Simiand segue trilha similar. Seu argumento do dinheiro como realidade social, na verdade, apresenta uma formulação cartalista, travestida em fórmula durkheimiana ou, como ele talvez preferisse dizer, em “sociologia positiva”. Nessa direção, afirma: “Comumente se opõe a moeda de metal precioso à moeda dita fiducidária. Percebemos agora que toda moeda é ‘fiducidária’. O ouro, hoje em dia, é apenas a primeira das moedas fiducidárias: nada mais do que isso, mas também nada menos” (Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 102-103, grifos do autor; cf. pp. 84-85).
A razão para tanto é a seguir por ele explicitada:
[…] o valor central de uma moeda não conversível […] é feito, em suma e em uma palavra, da confiança no país que a emitiu e em seu futuro […]. O valor de uma moeda não conversível […] é suscetível de flutuar muito segundo as variações […] na expectativa ou na previsão dos diversos meios sociais sobre o comportamento futuro do poder político ou econômico de que depende a emissão desses meios monetários (Simiand, 2018SIMIAND, François. (2018 [1934]), A moeda, realidade social. Tradução de M. F. Benthien. São Paulo, Edusp, 2018. [1934], pp. 102-103).
Retornamos, pois, ao problema da confiança, de onde partimos. Os fundamentos da confiança são de natureza social. Remetem às representações coletivas que, como a própria expressão diz, são compartilhadas e portanto vinculam. O fundamento da confiança é o vínculo. Seu problema é o tempo, o futuro – sua manutenção, sua estabilidade, sua previsibilidade. A sociologia positiva defrontou-se, amiúde, com esse problema, formulando-o na chave da coesão social, como vemos nos trabalhos de Durkheim. Ao que parece, Simiand não avança nessas questões, limitando-se a fundamentar o caráter social do dinheiro com as representações coletivas.
Steiner destaca, com razão, a ausência do estado na discussão de Simiand (Steiner, 2018STEINER, Phillipe. (2018), “Simiand e a sociologia econômica da moeda” in F. Simiand, A moeda, realidade social. Tradução de M. S. Palmeira. São Paulo, Edusp, pp. 125-136., pp. 134-135), o mesmo estado que emite a moeda e garante sua validez, como na compreensão cartalista. Como se vê na discussão levada a cabo por Luhmann, o nexo temporal da confiança exige que um futuro em aberto seja, de algum modo, presentificado (Luhmann, 1968LUHMANN, Niklas. (1968), Vertrauen: ein Mechanismus der Reduktion sozialer Komplexität. Stuttgart, F. Enke.; Esposito, 2011ESPOSITO, Elena. (2011), The future of futures. Cheltenham, Edward Elgar Pub.). No caso do dinheiro, uma vez que se trata de uma confiança sistêmica (e não de uma confiança pessoal nem de uma confiança local), a não consecução das expectativas firmadas em uma projeção presente do futuro contingente não pode ser considerada na chave do risco – que dependeria de decisões do agente –, mas sim na chave do perigo. A solução do impasse ocorre no aspecto reflexivo da confiança: mesmo que os fundamentos da confiança no dinheiro não estejam claros e definidos para aqueles que o utilizam, eles o aceitam e nele confiam porque outros fazem o mesmo.20 20 Ver Mises (1912, p. 373) e Aglietta (2016, p. 68), para dois exemplos vindo e indo para lados opostos.
Dispostos a incorporar a reflexão sociológica à sua compreensão do dinheiro, economistas que se autointitulam “institucionalistas” – outros dizem “regulacionistas” – procuraram fundamentar a confiança em suas bases sociais (Alary, Blanc e Desmedt, 2016ALARY, Pierre; BLANC, Jérôme & DESMEDT, Ludovic. (2016), “Introduction” in P. Alary, J. Blanc, L. Desmedt & B. Théret (orgs.), Théories françaises de la monnaie, Paris, Puf, pp. 7-32., pp. 8-9). Em um trabalho de síntese, Aglietta condensou uma discussão presente em variados trabalhos precedentes seus e de seus colegas:
[…] estruturamos a questão da confiança na moeda em três formas hierarquizadas. A forma mais elevada é a confiança ética. Ela faz da ordem monetária um conjunto de direitos e de deveres cívicos. Ela exprime também a soberania democrática pela qual se instaura uma confiança hierárquica na instituição pública responsável pela integridade do sistema de pagamentos. Isso reforça a pregnância da conformidade à regra monetária nas condutas individuais. A simplificação das escolhas resultante da adesão à conformidade manifesta-se na confiança metódica ou rotineira, pela qual são geradas as promessas que resultam do entrelaçamento das relações de crédito cotidianas. A confiança metódica está fundada sobre a repetição (Aglietta, 2016AGLIETTA, Michel. (2016), La Monnaie entre dettes et souveraineté. Paris, Éditions Odile Jacob., p. 72, grifos do autor).21 21 Em título complementar, consultar Aglietta et al. (2016) e Théret (2016 [2008]).
A decupagem da confiança nessas “três formas” faculta maior precisão de análise, em função dos planos ou das dimensões a serem privilegiados na observação. Se relembro aqui a discussão por parte desses “institucionalistas”, é porque reivindicam e incorporam o legado de Durkheim e seus herdeiros.22 22 Ver, além dos já mencionados, Orléan (2009).
Mauss e Simiand destacam a moeda como fé, crença, confiança. Benveniste, em seu Vocabulaire des institutions indo-européennes, investigou a noção de fidelidade pessoal e, na constelação de termos e nos nexos etimológicos, aproximou “fé”, “confiança”, “pacto, aliança” (1995, pp. 103-120). Sua nuvem de significações engloba, mas não apenas: solidez, amizade, ligação/vínculo, fidelidade, firme, seguro, leal, ligar por uma promessa, crédito, garantia, credibilidade, reciprocidade, esperar, crer.
O enfoque vocabular leva-nos, contudo, muito mais longe. No capítulo 15 do Vocabulaire, intitulado “Crédito e crença”, Benveniste, examinando o latim credo e derivados, afirmou:
A noção de “crédito” se encontra, desde o início da tradição, ampliada para a de “crença”. A simples amplitude dessa significação já levanta o problema de saber como essas noções se interligam em latim, pois os termos correspondentes em outras línguas também denotam a antiguidade da noção e a estreita associação entre os dois sentidos (1995, p. 171).
Tal nexo assenta-se muito bem com os desenvolvimentos de Mitchell-Innes do dinheiro como crédito (1913; 1914), na conexão que se estabelece de crédito <> crença – ato de fé <> confiança, em realidade pouco explorada pelos durkheimianos. Para fins de fundamentação e convencimento, é preciso citar longamente Benveniste:
O ato de fé comporta sempre a certeza de retribuição; realiza-se tal devoção para recuperar o benefício que foi empenhado.
Essa estrutura similar, em contextos religiosos diferentes, garante a antiguidade da noção [de confiança, LW]. A situação é a de um conflito entre os deuses, em que os homens intervêm apoiando uma ou outra causa. Nesse engajamento, os homens dão uma parte de si mesmos, que reforça aquele deus que resolveram apoiar; mas sempre está implícita uma contrapartida, e espera-se retribuição da divindade. Tal é, provavelmente, o fundamento da noção laicizada de crédito, confiança, qualquer que seja a coisa fiada ou confiada.
O mesmo quadro aparece em toda manifestação de confiança: confiar alguma coisa (o que é um emprego de credo) é entregar a outrem, sem consideração pelos riscos, algo que é próprio, que não se dá, por razões variadas, com a certeza de recuperar a coisa confiada. É o mesmo mecanismo, para uma fé propriamente religiosa e para a confiança num homem, que existe no compromisso em palavra, promessa ou dinheiro (1995, pp. 176-177, grifos do autor).
Notemos que aparece aqui uma ambiguidade, no sentido de que a confiança está atribuída ao nexo interpessoal (entre os homens, em situação da noção laicizada; entre homens e deuses, em situação religiosa), que parece ser o fundamental; entretanto, também se menciona um “mecanismo”, que poderia ser, talvez ou em alguma situação, de natureza, digamos, suprapessoal, social, sistêmica. Guardemos a questão, porque, voltando a Mauss, vemos que ele situa o problema em termos interpessoais. Assim, a “Epígrafe” do Essai sur le don, aquelas “estrofes do Havamál, um dos velhos poemas da Edda escandinava” (Mauss, 2012MAUSS, Marcel. (2012 [1925]), Essai sur le don. Paris, Puf. [1925], p. 61), talvez ofereça, desde o início portanto, um rumo para a confiança, ao menos tal como concebida por Mauss. Ali lemos:
Tu o sabes, se tens um amigo
em que tens confiança
e se queres obter bom resultado,
é preciso misturar tua alma à dele
e trocar presentes
e visitá-lo amiúde (apud Mauss, 2012 [1925], pp. 62-63).23 23 Podemos ainda ilustrar e reforçar o mesmo com matéria nacional: “Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa” (Rosa, 1963 [1956], p. 55).
O que é, então, a confiança? É o laço interpessoal, que se estende no tempo.24 24 Benveniste (1995, p. 175) também destaca a dimensão temporal. Olha para o futuro, situa-se no presente, orienta-se por um passado. Deita raízes na temporalidade e no vínculo social. É a aliança no tempo. Não seria ela a sociedade in statu nascens permanente? A esta pergunta responderei em outra glosa.
Contudo, não podemos concluir assim, pois o leitor rapidamente percebe, e objeta, que, para falarmos do dinheiro moderno, como pretende Simiand (e do dinheiro em geral, como quer Mauss), não é possível permanecer no âmbito da confiança interpessoal; é preciso ir além, adentrar os domínios de uma confiança sistêmica. (É mesmo nessa direção que, pela via dos economistas, mencionou-se as três formas da confiança.) Simiand afirma: a “confiança coletiva que cada conjunto […] atribui a si mesmo e a seu futuro” (2018 [1934], pp. 120-121). É possível que isso se assente em vínculo interpessoal somente? Ou seriam necessários “mecanismos” de caráter mais sistêmico? Podemos nos satisfazer com a resposta das “representações coletivas”? Não seria preciso ir além e entender como essa confiança coletiva se estabelece, sustenta, reproduz, mantém, perece? Ademais, não seria o futuro envolvido na confiança, nas sociedades modernas, complexo e contingente demais para se assentar somente no vínculo interpessoal?
Aspectos já mencionados, como o cartalismo, a decupagem da confiança, entre outros, indicam a necessidade de ir além, ou seja, a insuficiência do vínculo interpessoal na garantia da confiança sistêmica (cf. Luhmann, 1968LUHMANN, Niklas. (1968), Vertrauen: ein Mechanismus der Reduktion sozialer Komplexität. Stuttgart, F. Enke.; Sztompka, 2000SZTOMPKA, Piotr. (2000), Trust. Cambridge, Cambridge University Press.; 2006SZTOMPKA, Piotr. (2006), “Trust” in B. S. Turner (org.), The Cambridge Dictionary of Sociology, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 639-642.; Cook, 2007COOK, Karen. (2007), “Trust” in G. Ritzer (org.), The Blackwell Encyclopedia of Sociology, Malden, Blackwell Pub., pp. 5089-5091.; Fukuyama, 1995FUKUYAMA, Francis. (1995), Trust: the social virtues and the creation of prosperity. Nova York, Free Press.). Nesse contexto, os desenvolvimentos apontados por Luhmann ganham oportunidade, pois a distinção entre uma “confiança pessoal”, uma “confiabilidade” de caráter local e uma “confiança sistêmica” oferece melhor abrigo para uma reflexão propriamente sociológica acerca da moeda moderna e da(s) forma(s) de confiança de que ela carece e engendra.
Nas sociedades modernas, fazem-se necessárias formas impessoais de confiança, à diferença do que se vê em sociedades menos diferenciadas, nas “sociedades arcaicas”, para utilizarmos a expressão de Mauss. A isso vem a configuração do dinheiro como meio de comunicação simbolicamente generalizado (cf. Luhmann, 1968LUHMANN, Niklas. (1968), Vertrauen: ein Mechanismus der Reduktion sozialer Komplexität. Stuttgart, F. Enke., cap. 7; Luhmann, 1997LUHMANN, Niklas. (1997), Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt, Suhrkamp., cap. 2). Agora, a confiança precisa transladar-se do vínculo interpessoal para a estrutura e as operações em que o dinheiro opera, ou seja, para o sistema econômico. Torna-se necessário confiar no sistema ou, para formular de outro modo, a confiança na moeda é a confiança no funcionamento do sistema que a ancora (de modo análogo ao que se poderia inferir com relação ao cartalismo). A confiança nesse funcionamento é o que permite, por exemplo, aquela “confiança metódica” (cf. Luhmann, 2017LUHMANN, Niklas. (2017), Systemtheorie der Gesellschaft. Berlim, Suhrkamp., p. 556). Como havia dito: mesmo que os fundamentos da confiança no dinheiro não estejam claros e definidos para aqueles que o utilizam, eles o aceitam. Por que o fazem? Porque a confiança deslocou-se para o sistema. Nele, o dinheiro opera como um meio de comunicação simbólico e generalizado. É meio de comunicação porque é com o dinheiro que se realizam as operações no sistema econômico. É simbólico porque não é necessariamente material, é, para ficarmos nos termos de Simiand, em última instância fiducidário. É generalizado porque as operações no sistema econômico são com ele realizadas, e não com moedas específicas, particulares (que podem, evidentemente, circular, mas em âmbito restrito ou específico, como de fato ocorre, e com isso desenvolvem subsistemas específicos e mais restritos de confiança – sistemas de confiabilidade local).
Certo é que o dinheiro, assim compreendido, não deixa de comportar incerteza e contingência. Mas, em uma sociedade complexa e altamente diferenciada, como mecanismo de redução de complexidade, em meio a todas as improbabilidades, ele possibilita algum manejo de ambas. Ademais, Luhmann também nos ensina que desconfiança não é o oposto de confiança, mas sim um equivalente funcional dela (Luhmann, 1968LUHMANN, Niklas. (1968), Vertrauen: ein Mechanismus der Reduktion sozialer Komplexität. Stuttgart, F. Enke., cap. 10). De modo que sempre podemos – e jamais deixamos de fazê-lo – não somente confiar no dinheiro, mas também dele desconfiar.
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Decerto a utilização dos termos monnaie (utilizado) e argent (evitado) varia em função de campos disciplinares e interesses cognitivos. Um léxico plurilingual seria oportuno; este texto, contudo, não explora essa questão. Destarte, acompanho Orléan (2009ORLÉAN, André. (2009), “La sociologie économique de la monnaie” in P. Steiner & F. Vatin, (orgs.). Traité de sociologie économique, Paris, Puf, pp. 209-246., p. 209). Ver ainda Ould-Ahmed (2008)OULD-AHMED, Pepita. (2008), “Monnaie des économistes, argent des anthropologues: à chacun le sien?” in E. Baumann et al. (orgs.), L’argent des anthropologues, la monnaie des économistes, Paris, L’Harmattan, pp. 11-27.. Aproveito para assinalar que todas as traduções são do autor; do contrário, os nomes dos tradutores das edições brasileiras citadas encontram-se indicados na bibliografia.
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Malinowski (1932MALINOWSKI, Bronislaw. (1932 [1922]), Argonauts of The Western Pacific. Londres, Routledge. [1922], p. 499). Ver, em especial, Malinowski (1921MALINOWSKI, Bronislaw. (1921), “Primitive economics”. The Economic Journal, 31 (121): 1-16., pp. 13, 15). Mauss cita incorretamente o artigo de Malinowski de 1921, referindo-se a um inexistente texto intitulado “Primitive currency”, pretensamente publicado no mesmo The Economic Journal, em 1923. Até o presente, as edições do texto de Mauss repetem o erro de referência.
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O que nos permite, ademais, compreender porque Simmel afirmava, um quarto de século antes de Mauss, ser o processo de troca o “universal concreto”, o que Mauss viria a denominar “fato social total” da troca (Simmel, 1907SIMMEL, Georg. (1907 [1900]), Philosophie des Geldes. 2a edição. Leipzig, Duncker & Humblot. [1900], pp. 60-61; Mauss, 2012MAUSS, Marcel. (2012 [1925]), Essai sur le don. Paris, Puf. [1925], p. 64, passim). O fato de Mauss, aliás, não mencionar Simmel nem incorporar suas reflexões revela muito das lutas de poder intradisciplinares, da concorrência acadêmica (nacional e internacional), da dinâmica dos campos intelectuais. Porém, não é esse nosso assunto.
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No momento em que Mauss escrevia o Essai sur le don, Laum publicava o seu igualmente impressionante Heiliges Geld, cujo subtítulo afirma: “uma investigação histórica sobre a origem sagrada do dinheiro” (1924). O paralelismo da discussão merece comentário, que não cabe nesta glosa. Para a situação contemporânea dos estudos sobre a questão, ver Semenova (2007SEMENOVA, Alla. (2007), The origins of money: evaluating Chartalist and Metallist theories in the context of ancient Greece and Mesopotamia. Tese de doutorado. University of Missouri-Kansas City, Kansas City.; 2011SEMENOVA, Alla. (2011), “Would you barter with God? Why holy debts and not profane markets created money”. The American Journal of Economics and Sociology, 70 (2): 376-400.) e Grierson (1977)GRIERSON, Philip. (1977), The origins of money. Londres, Athlone.. É o contexto da discussão acerca do “Wergeld” e da “dívida de vida”, tal como discutida pela literatura pertinente. Um bom trabalho a respeito, vindo de território (mais cognitivo que geográfico, claro está) francês, é Théret (2009)THÉRET, Bruno. (2009), “Monnaie et dettes de vie”. L’Homme, (190): 153-179., que, ademais, oferece uma ótima tomada de posição com relação à perspectiva da escola reunida em torno de Caillé e do assim chamado “paradigma da dádiva” – exemplarmente em Caillé (1998)CAILLÉ, Alain. (1998), “Nem holismo, nem individualismo metodológicos. Marcel Mauss e o paradigma da dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 13 (38). Tradução de B. Perrone-Moisés. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt, consultado em 11/12/2019.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s... ; posição distinta e consistente oferece Pyyhtinen (2014)PYYHTINEN, Olly. (2014), The gift and its paradoxes: beyond Mauss. Farnham, Ashgate.. Os trabalhos de Graeber sobre “débito” (2009; 2014), não livres de críticas significativas – como Ingham (2013)INGHAM, Geoffrey. (2013), “O sacred hunger of pernicious gold! What bands of faith can impious lucre hold?”. European Journal of Sociology, 54 (1): 127-146., que reputo consistente –, valorizam a discussão da dívida de vida – como Rospabé (1995)ROSPABÉ, Pierre. (1995), La dette de vie: Aux origines de la monnaie. Paris, La Découverte., que no entanto não pude ler –, mas ignoram de fato a discussão acerca do Wergeld, assim como Laum – embora os mencione muito de passagem e os descarte sem mais (cf. Graeber, 2014GRAEBER, David. (2014), Debt: the first 5,000 years. Brooklin/Londres, Melville House., pp. 131-136, 173, 425, 59, 407; ver ainda Graeber, 2009GRAEBER, David. (2009), “Debt, violence, and impersonal markets: Polanyian meditations” in C. Hann & K. Hart (eds.), Market and society: the great transformation today, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 106-132.). Um resumo, embora incompleto, de toda essa discussão, encontra-se em Paul (2017PAUL, Axel. (2017), Theorie des Geldes zur Einführung. Hamburgo, Junius., cap. 2). Todos esses desdobramentos – “Wergeld”, “dívida de vida”, “paradigma da dádiva”, “débito” – ultrapassam em muito os limites desta glosa. -
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Veja-se ainda a carta de Durkheim a Mauss de junho de 1897 (Durkheim, 1998DURKHEIM, Émile. (1998), Lettres à Marcel Mauss. Edição de P. Besnard e M. Fournier. Paris, Puf., p. 71; Steiner, 2001STEINER, P. (2001), “Religion et économie: Mauss, Simiand et le programme durkheimien”. Revue française de sociologie, 42 (4): 695-718., p. 698). Esta glosa é, em certos aspectos, muito próxima do artigo de Steiner sobre Mauss e Simiand (Steiner, 2001STEINER, P. (2001), “Religion et économie: Mauss, Simiand et le programme durkheimien”. Revue française de sociologie, 42 (4): 695-718.). Não obstante o domínio muito maior dos materiais por parte de Steiner, assim como sua reflexão amadurecida ao longo dos anos e as várias obras a respeito, creio que algumas diferenças de ênfase e encaminhamento justificam o esforço reiterado no assunto.
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Um economista contemporâneo, patrão de escola, segue o argumento: “O valor econômico é assim oriundo dos valores mágico-religiosos. […] O que é comum aos valores religiosos e econômicos é a questão do poder e da obrigação” (Orléan, 2009ORLÉAN, André. (2009), “La sociologie économique de la monnaie” in P. Steiner & F. Vatin, (orgs.). Traité de sociologie économique, Paris, Puf, pp. 209-246., p. 223).
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Steiner, seja em artigo (2001), seja em livro (2005a), esclarece “o programa de pesquisa fixado por Durkheim no que concerne à economia política” (Steiner, 2001STEINER, P. (2001), “Religion et économie: Mauss, Simiand et le programme durkheimien”. Revue française de sociologie, 42 (4): 695-718., p. 695).
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Mauss parece entender a expressão “sociologia econômica” como uma atualização da expressão “economia política”; ver, por exemplo, sua série de textos sobre o câmbio, escritos simultaneamente ao Essai sur le don (cf. Fournier, 1994FOURNIER, Michel. (1994), Marcel Mauss. Paris, Fayard., p. 453). A remissão aos textos sobre o câmbio é especialmente enriquecedora por nos colocar face a outra frente de discussão, outros públicos e outros veículos de difusão – ponto que, não obstante, não pode ser aqui explorado.
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Ver, a título de exemplo, a discussão em Durkheim (1975bDURKHEIM, Émile. (1975b [1908]), “Débat sur l’économie et les sciences sociales” in V. Karady (ed.), Textes, Paris, Minuit, vol. 1, pp. 218-225. [1908]). Ainda a título de exemplo, cf. Mucchielli (1998MUCCHIELLI, Laurent. (1998), La découverte du social: naissance de la sociologie en France. Paris, La Découverte., pp. 490-491) e Steiner (2005bSTEINER, Phillipe. (2005b), La sociologie économique. Paris, La Découverte., pp. 10-11; 2005a).
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Ver a crítica a Spencer no capítulo VII de Durkheim (2015DURKHEIM, Émile. (2015 [1893]), Da divisão do trabalho social. Tradução de E. Brandão. 4a edição, São Paulo, Martins Fontes. [1893], pp. 185-220) e em Steiner (2001STEINER, P. (2001), “Religion et économie: Mauss, Simiand et le programme durkheimien”. Revue française de sociologie, 42 (4): 695-718., p. 696; 2005a, pp. 43, 46, 168).
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Também nesse ponto seguindo Durkheim, que a seu tempo afirmara: “Na vida social, tudo são representações, tudo são ideias, sentimentos, e em parte alguma melhor observamos a força eficaz das representações. Só que as representações coletivas são muito mais complexas que as representações individuais, elas possuem uma natureza própria, pedem uma ciência distinta. Toda a sociologia é uma psicologia, mas uma psicologia sui generis” (Durkheim, 1975cDURKHEIM, Émile. (1975c [1908]), “Remarque sur la méthode en sociologie” in V. Karady (ed.), Textes, Paris, Minuit, vol. 1, pp. 58-61. [1908], p. 61).
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Em homenagem à tradução recém-publicada do texto de Simiand, ele será citado sempre na edição nacional.
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O “relativismo” ou “relacionismo” de Simiand nada mais é que um historismo, no sentido lato do termo (donde, inclusive, a simpatia dos historiadores por seu trabalho) e, por essa razão, esforços para torná-lo mais que isso, ou seja, um “relacionismo” em sentido forte, parecem-me um erro.
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Steiner demonstra como Simiand, em momento anterior ao texto de 1934, desacreditava em uma continuidade da economia moderna face às sociedades “primitivas”, o que o distanciava da busca e compreensão “do fundamento religioso da atividade econômica” (Steiner, 2001STEINER, P. (2001), “Religion et économie: Mauss, Simiand et le programme durkheimien”. Revue française de sociologie, 42 (4): 695-718., p. 702, com interessante material comprobatório). O ponto serve também para comprovar o argumento de Steiner acerca de uma divisão do trabalho entre Simiand e Mauss. De todo modo, como argumento aqui, nos textos em questão esse problema assume configuração distinta.
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Esse não é, contudo, um problema que abordarei neste artigo e somente o registro para o esclarecimento do leitor.
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De importância superlativa, no contexto dessa discussão, é como Simmel, em sua Philosophie des Geldes (1907 [1900]), desenvolve uma teoria do valor em geral, para dela extrair o valor econômico. Também nesse aspecto o livro de Simmel paira como uma sombra sobre as reflexões de Simiand e de Mauss, o que, contudo, também não será explorado nesta glosa. Não há dúvida de que a resenha da Philosophie des Geldes feita por Durkheim – “especulação bastarda” sintetiza seu juízo – resultou na interdição de Simmel para os afiliados à escola durkheimiana (cf. Durkheim, 1975aDURKHEIM, Émile. (1975a [1901]), “‘Philosophie’ de l’argent et sciences sociales selon Simmel” in V. Karady (ed.), Textes, Paris, Minuit, vol. 1, pp. 178-182. [1901]).
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A obra clássica da sociologia, o livro de Groethuysen sobre o espírito burguês em França desenvolve de modo sólido o processo social dessa transformação. Ver Groethuysen (1927GROETHUYSEN, Bernhard. (1927), Origines de l’esprit bourgeois en France. Paris, Gallimard.-1930; 1927) e Auerbach (1933)AUERBACH, Erich. (1933), Das französische Publikum des 17. Jahrhunderts. Munique, Hueber..
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18
Em sentido similar enfatizado em Zelizer (1998)ZELIZER, Viviana. (1998), The social meaning of money: pin money, paychecks, poor relief and other currencies. Nova York, Basic Books..
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A literatura é considerável; uma boa orientação oferece Frankel (1977).
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20
Ver Mises (1912MISES, Ludwig von. (1912), Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel. Munique/Leipzig, Duncker & Humblot., p. 373) e Aglietta (2016AGLIETTA, Michel. (2016), La Monnaie entre dettes et souveraineté. Paris, Éditions Odile Jacob., p. 68), para dois exemplos vindo e indo para lados opostos.
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21
Em título complementar, consultar Aglietta et al. (2016)AGLIETTA, Michel et al. (2016), “Introduction collective à La Monnaie souveraine” in P. Alary, J. Blanc, L. Desmedt & B. Théret (orgs.), Théories françaises de la monnaie, Paris, Puf, pp. 117-148. e Théret (2016THÉRET, Bruno. (2016 [2008]), “Les trois états de la monnaie. Approche interdisciplinaire du fait monétaire” in P. Alary, J. Blanc, L. Desmedt & B. Théret (orgs.), Théories françaises de la monnaie. Paris, Puf, pp. 275-323. [2008]).
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22
Ver, além dos já mencionados, Orléan (2009)ORLÉAN, André. (2009), “La sociologie économique de la monnaie” in P. Steiner & F. Vatin, (orgs.). Traité de sociologie économique, Paris, Puf, pp. 209-246..
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Podemos ainda ilustrar e reforçar o mesmo com matéria nacional: “Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa” (Rosa, 1963ROSA, João. (1963 [1956]), Grande sertão: veredas. 3a edição, Rio de Janeiro, José Olympio. [1956], p. 55).
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24
Benveniste (1995BENVENISTE, Émile. (1995), O vocabulário das instituições indo-europeias. Tradução de D. Bottmann. Campinas, Unicamp, vol. 1., p. 175) também destaca a dimensão temporal.
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DOI: 10.1590/3510311/2020
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Maio 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
28 Fev 2019 -
Aceito
17 Out 2019