Open-access “LIBERAL NA ECONOMIA E CONSERVADOR NOS COSTUMES” Uma totalidade dialética

“LIBERAL IN THE ECONOMY AND CONSERVATIVE IN COSTUMES”: a dialectical totality

“ÉCONOMIE LIBÉRALE ET COUTUMES CONSERVATRICES”: une totalité dialectique

Resumos

O presente ensaio busca discutir os fundamentos intelectuais da nova direita no Brasil – que possui no escritor Olavo de Carvalho seu grande intelectual orgânico – partindo da premissa de que este campo se assenta na construção de um amálgama liberal-conservador. Embora, em geral, lido como um amálgama contraditório e circunstancial, argumenta-se, aqui, que se trata, na verdade, de um oxímoro essencialmente conservador, tornado possível por meio da desconstrução de três elementos fundacionais do liberalismo – o igualitarismo, o contratualismo e o jusnaturalismo – e da elevação da família tradicional ao posto de categoria ordenadora da vida social. Sendo este um fenômeno internacional, ele teria na narrativa de Carvalho sua mais potente tradução para o contexto brasileiro. A contradição aparente é, portanto, o véu que encobre uma unidade essencial que possui, na negação da Pólis, sua razão de ser.

Palavras-chave:  Nova Direita; Olavo de Carvalho; Neoconservadorismo; Neoliberalismo


This essay seeks to discuss the intellectual foundations of the New Right in Brazil, which has in writer Olavo de Carvalho its great organic intellectual, based on the premise that this field is based on the construction of a liberal-conservative amalgam. Although, in general, read as a contradictory and circumstantial amalgam, it is argued herein that it is, in fact, an essentially conservative oxymoron, made possible through the deconstruction of three foundational elements of liberalism, namely egalitarianism, contractualism and jusnaturalism, and the elevation of the traditional family to the rank of social life organize. With this as an international phenomenon, it would have in Carvalho's narrative its most potent translation for the Brazilian context. The apparent contradiction is, therefore, the veil that covers an essential unity that has, in the negation of Polis, its raison d'être.

Keywords:  New Right; Olavo de Carvalho; Neoconservatism; Neoliberalism


Cet essai analyse les fondements intellectuels de la nouvelle droite au Brésil, dont le principal intellectuel organique est l’écrivain Olavo de Carvalho, avec pour prémisse l’existence d’un amalgame libéral-conservateur. Si cet amalgame est généralement perçu comme étant contradictoire et circonstanciel, il s’agit en réalité d’un oxymore essentiellement conservateur, rendu possible par la déconstruction de trois éléments fondateurs du libéralisme (l’égalitarisme, le contractualisme et le jusnaturalisme) et par l’élévation de la famille traditionnelle au rang d’organisateur de la vie sociale. Il s’agit d’un phénomène international, mais au Brésil le texte de Carvalho est son plus fidèle représentant. La contradiction apparente est donc le voile qui recouvre une unité essentielle ayant sa raison d’être dans la négation de la polis.

Mots-clés:  Nouvelle droite; Olavo de Carvalho; néoconservatisme; néolibéralisme


Introdução

Debochar dessa comunidade moral é inócuo. “Picarescos”, como Trump e Bolsonaro, vencem eleições porque não são “picarescos” para todos. Representam a maior parte da sociedade. É preciso entender as motivações, os medos, a lógica desses representados. Talvez assim seja possível explicar como o sonho da Nova República de uma democracia socialmente justa azedou em pesadelo. (ALONSO, 2019, p. 68)

É dentro desse aspecto que este artigo busca realizar sua contribuição. Não no sentido de explicar o ocaso da Nova República, ou tampouco as razões para a eleição de Jair Bolsonaro (ex-deputado do baixo clero por quase trinta anos) para a Presidência, mas de buscar compreender a lógica intrínseca ao campo da nova direita – que encontrou em Bolsonaro a sua expressão institucional – a partir dos seus fundamentos intelectuais e teóricos, e que possui na figura do escritor Olavo de Carvalho seu grande intelectual orgânico. O slogan que dá título a este trabalho serve como provocação disparadora de uma reflexão acerca dos pilares ideológicos do arranjo político apresentado – tanto por seus atores como por boa parte dos(as) analistas do fenômeno – como um amálgama liberal-conservador. Partindo desta premissa, haveria, portanto, uma contradição inerente ao arranjo, que ensejaria tensões permanentes entre o dogmatismo de mercado e o ethos conservador. Algumas definições conceituais preliminares se fazem necessárias aqui.

O conceito de nova direita assume crescente centralidade tanto no debate público brasileiro (mídia, Parlamento e formadores de opinião) quanto dentro da Ciência Política. Seja endossando a premissa de que, de fato, há um novo campo político no Brasil, ideologicamente identificado com uma direita reinventada (CEPÊDA, 2018; CHALOUB & PERLATTO, 2015; ROCHA, 2018; PINHEIRO-MACHADO, 2019), ou reconhecendo limites quanto à novidade desse fenômeno (CODATO et al., 2015; ROEDER, 2016), o fato é que a ascensão política contemporânea – em suas várias facetas e ambientes – de um campo abertamente identificado com a direita no espectro ideológico tem sido tema de pesquisa recorrente.

Para além de estarem presentes no imaginário popular, nas disputas políticas nacionais e internacionais e no senso comum, direita e esquerda seguem sendo conceitos que possuem validade epistemológica no campo da Ciência Política. A despeito dos profetas de um telos “pós-ideológico”, que ganharam relativa proeminência discursiva ao longo da década de 1990, “a árvore das ideologias está sempre verde” (BOBBIO, 2011, p. 33). A discussão realizada aqui adota a definição de Bobbio, partindo da premissa de que o que separa direita e esquerda (enquanto tipos ideais) é o juízo positivo ou negativo a respeito do ideal da igualdade, oriundo da aceitação ou rejeição da desigualdade (em distintos níveis e aspectos) como a ordem natural do mundo. Sendo assim, a direita é o campo que assume (em maior ou menor medida) a desigualdade como ordenamento natural e limite de toda a ação política (BOBBIO, 2011; CEPÊDA, 2018). Vale lembrar que, enquanto tipos ideais, tais conceitos não se resumem a todos monolíticos, mas compreendem uma vasta gama de expressões, manifestações e gradações num contínuo ideológico, que possui na maior aceitação ou rejeição da desigualdade o seu ethos.

A ascensão de campos políticos identificados com a direita no século XXI não é um fenômeno restrito ao caso brasileiro (CARAPANÃ, 2018; PINHEIRO-MACHADO, 2019; ROCHA, 2018; SOLANO, 2018), mas a expressão internacional de um reordenamento político e ideológico oriundo da crise estrutural da sociabilidade neoliberal a partir de 2008 (FRASER, 2018; PINHEIRO-MACHADO, 2019). No Brasil, após um longo processo de construção de uma hegemonia1 discursiva de direita em distintos espaços da sociedade civil, e na esteira de uma crise de grandes proporções – econômica, política e institucional –, a nova direita encontrou em 2018, na coalizão de forças liderada pelo então deputado Jair Bolsonaro, não apenas a sua expressão institucional mas também a maneira pela qual foi possível converter sua hegemonia ideológica2 em capital político.

Para além do elemento conjuntural, a conjugação de outras cinco características justifica o caráter de novidade desses grupos políticos: a estratégia de priorização da disputa cultural como pré-condição para a conquista do poder político (ALEXANDRE, 2017; PUGLIA, 2018; ROCHA, 2018; SEDGWICK, 2019; TEITELBAUM, 2019; TEITELBAUM, 2020); o anti-intelectualismo, compreendido como uma desconfiança em relação às instituições tradicionais de produção e legitimação dos regimes de verdade (ALONSO, 2019; PINHEIRO-MACHADO, 2019; TEITELBAUM, 2020); o antielitismo, representado pela valorização ética, estética e epistemológica do homem médio e do senso comum – em contraste com narrativas clássicas do conservadorismo (ALONSO, 2019); a adoção de uma retórica performática e disruptiva, sustentada na narrativa do politicamente incorreto (DI CARLO & KAMRADT, 2018; ROCHA, 2018); e a síntese entre o conservadorismo moral e a defesa do livre-mercado (CHALOUB & PERLATTO, 2015; ROCHA, 2018; NETTO et al., 2019).

Dada a centralidade estratégica da conquista da opinião pública para a conversão da nova direita em ator político preponderante no país, os intelectuais vinculados a esse campo cumpriram – e cumprem – uma função crucial. Assume-se, aqui, a definição de intelectual segundo Gramsci, ou seja, o indivíduo encarregado de exercer as funções conectivas e organizativas nos processos de produção de hegemonia (GRAMSCI, 1980). O intelectual é, portanto, uma categoria social que se define por seu papel fundamentalmente ideológico, responsável por construir e/ou disseminar as imagens e leituras que contribuem para a consolidação de uma visão de mundo, e que compreende escritores, artistas, juristas, teólogos, jornalistas, pensadores etc (CHALOUB & PERLATTO, 2015). Um intelectual, em especial, foi o principal responsável por oferecer uma leitura da realidade capaz de fornecer os fundamentos de coesão ideológica entre distintos grupos políticos e sociais: o escritor Olavo de Carvalho.

A sua escolha enquanto interlocutor fundamental para a compreensão de fundamentos ideológicos da nova direita se deve a dois fatores: em primeiro lugar, porque, embora não tenha sido o “criador” do campo, ele foi capaz de traduzir as angústias do seu público em uma narrativa eficaz (apoiada tanto em uma retórica disruptiva como na estética do politicamente incorreto), dando corpo explicativo ao ressentimento, e, assim, possibilitando a difusão e o enraizamento de um ideário fortemente ancorado na síntese entre conservadorismo moral e defesa do livre-mercado (BIANCHI, 2019; ROCHA, 2018; TEITELBAUM, 2020); e, em segundo lugar, em função do próprio reconhecimento, por parte de outros intelectuais do campo, de sua importância na abertura de espaços, na esfera pública, para pautas e narrativas conservadoras (AZEVEDO, 2013; BERLANZA, 2017; COUTINHO, 2018). Em decorrência da capacidade de conceder aos grupos que compõem a nova direita no Brasil um grau mínimo de homogeneidade e consciência de sua própria função, é ele seu principal intelectual orgânico, e, portanto, o interlocutor-chave para o exercício de compreensão dos fundamentos ideológicos do campo empreendido aqui.

Este artigo se divide em quatro seções: a primeira delas trata de fazer uma reconstrução histórica da trajetória da nova direita no Brasil, desde seu surgimento até a conquista da Presidência da República, a partir de uma revisão da literatura sobre o assunto; a segunda possui como foco um mapeamento das estruturas argumentativas que fundamentam o pensamento do escritor Olavo de Carvalho, objetivando, por um lado, sustentar a afirmação de que é ele o principal intelectual orgânico desses novos grupos políticos, e, por outro, reconstruir algumas linhagens do pensamento às quais ele se vincula; a terceira seção se dedica a analisar os pilares da síntese realizada entre conservadorismo moral e defesa do livre mercado, no intuito de sustentar a hipótese de que, ao invés de representar um arranjo contraditório, trata-se de uma composição orgânica – que possui na família patriarcal sua categoria ordenadora – tornada possível por meio de alterações profundas em três elementos fundacionais do liberalismo: o igualitarismo, o jusnaturalismo e o contratualismo; e, por fim, nas conclusões, retoma-se o argumento inicial de que, no caso brasileiro, Olavo de Carvalho foi o intelectual que melhor deu corpo explicativo a tal composição.

A guerra de posições da nova direita no Brasil

Um dos traços distintivos da direita que ganha projeção política no Brasil no século XXI é a preponderância da batalha cultural para a conquista de posições relativas como pré-requisito para entrada no circuito institucional da política. Tal traço tampouco se limita ao exemplo brasileiro, e tem origem na reconstrução das direitas europeias e dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. Se, por um lado, o filósofo marxista italiano Antonio Gramsci foi a grande fonte de inspiração para o neomarxismo do pós-guerra, também o foi – em grande medida – para diferentes expressões do neoconservadorismo e do liberalismo (principalmente após o Colóquio Walter Lippman). O eixo estruturante da “contribuição” gramsciana para a reconstrução das direitas residia na concepção de que qualquer tipo de reconfiguração política deve ser precedido de uma inflexão intelectual e cultural (SEDGWICK, 2019), concedendo, assim, aos intelectuais um papel naturalmente estratégico na disputa política (CHALOUB & PERLATTO, 2015; DARDOT & LAVAL, 2016).

Embora a nova direita brasileira tenha se apresentado publicamente na esteira do turbilhão de efervescência social após as manifestações de junho de 2013, tenha ganhado as ruas entre 2015 e 2016, e, por fim, conquistado o Executivo Federal apenas em 2018 – pari passu ao processo de crise do lulismo –, sua gestação coincide com o auge da popularidade do governo Lula (entre 2006 e 2010), e se dá, segundo Rocha (2018), a partir da organização de um contra-público em grupos de discussão, redes sociais e fóruns da internet ancorados em pautas radicalizadas e em uma linguagem debochada, que, por sua vez, construíram, paulatinamente, o caldo cultural que pavimentou a ascensão desse contra-público para o centro da esfera pública nacional. Estão na origem (em maior ou menor medida) dos grupos pró-impeachment, do Partido Novo, da reorientação do Partido Social Cristão após 2014 e do fortalecimento da candidatura de Bolsonaro desde 2016 (ROCHA, 2018).

Como se deu esse processo de ascensão de um contra-público radicalizado de direita – antes marginalizado tanto pela popularidade de um governo de centro-esquerda, como pela moderação da direita institucional, vinculada aos princípios e temas consolidados pela Nova República – ao centro da disputa política nacional? Sete movimentos razoavelmente concomitantes e articulados são os pilares para a compreensão desse fenômeno:

  1. 1

    A rápida difusão por meio da internet de pautas, ideias e argumentos que não encontravam guarida na esfera pública, sobretudo vinculados à leitura do escritor Olavo de Carvalho (ROCHA, 2018);

  2. 2

    A atuação de think-tanks no processo de formação ideológica de importantes figuras da política institucional e de formadores de opinião (ALEXANDRE, 2017; CASIMIRO, 2018);

  3. 3

    Uma guinada no mercado editorial brasileiro, com a publicação de autores liberais, neoliberais, libertarianistas, conservadores e neoconservadores – antes restritos a um nicho muito pequeno (DI CARLO & KAMRADT, 2018; ROCHA, 2018; SILVA, 2018);

  4. 4

    A rápida difusão retórica do “politicamente incorreto”, seja do ponto de vista historiográfico – com a publicação de uma série de livros que promoveram um potente revisionismo histórico e analítico –, ou do ponto de vista humorístico – com forte presença dos comediantes de stand up –, revestido de uma estética de resistência antissistêmica (CEPÊDA, 2018; DI CARLO & KAMRADT, 2018; ROCHA, 2018; PINHEIRO-MACHADO, 2019);

  5. 5

    A atuação sistemática de inúmeros aparelhos privados de hegemonia – ou seja, organismos sociais que não fazem parte diretamente do aparato estatal dedicados à propagação de ideias, no âmbito da disputa de narrativas, com vistas à conquista (ou manutenção) da hegemonia (GRAMSCI, 2001) – na difusão de pautas morais conservadoras, imbricadas com uma narrativa conspiracionista, e com especial participação de várias agremiações religiosas (neopentecostais ou não) e movimentos sociais (Associação Docentes Pela Liberdade, Movimento Brasil Livre, Movimento Escola Sem Partido, Movimento Endireita Brasil etc.) (MESSENBERG, 2017; PINHEIRO-MACHADO, 2019);

  6. 6

    A janela de oportunidades representada pela efervescência social de 2013, permitindo uma expansão da capacidade coletiva de inovação política – devidamente aproveitada pelos novos grupos de direita (PINHEIRO-MACHADO, 2019);

  7. 7

    O longo processo de “pregação no deserto” de intelectuais orgânicos do campo – dos quais Olavo de Carvalho é seu maior expoente –, que encontraram nos meios virtuais (páginas na internet, fóruns de discussão, redes sociais e blogs) um canal de transmissão e amplificação do seu discurso (CHALOUB & PERLATTO, 2015; ROCHA, 2018; PINHEIRO-MACHADO, 2019).

A despeito da ascensão de um contra-público radical de direita ser explicada pela concatenação dos movimentos descritos acima, o papel dos intelectuais se destaca entre os demais, já que são eles os fornecedores do campo semântico que estrutura o seu arcabouço argumentativo. Curiosamente, embora tenha eleito Gramsci como seu inimigo prioritário – como se verá ao longo da discussão desenvolvida aqui –, a nova direita brasileira empreendeu uma estratégia “essencialmente gramsciana” de disputa política, fazendo da conquista de um consenso ideológico e cultural mínimo a ponta de lança da sua ação (ALEXANDRE, 2017; PUGLIA, 2018).

Chaloub e Perlatto (2015) dividem os intelectuais da nova direita em dois campos: uma direita teórica – cuja defesa de seu lugar à direita no espectro político deriva de argumentos de ampla duração histórica, destacando os equívocos da esquerda em relação à modernidade e à natureza humana, além de mobilizar amplo material bibliográfico, principalmente no campo da Filosofia (cujos exemplos mais proeminentes são Olavo de Carvalho, Luiz Felipe Pondé, João Pereira Coutinho e Denis Rosenfield); e uma direita militante – composta por polemistas, mais circunscritos às questões de conjuntura do que a debates mais amplos, e cujas eventuais menções a análises mais robustas (em geral, ornamentais e estéticas) tendem a se apoiar nos intelectuais do primeiro grupo (os membros mais destacados do segundo grupo são Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino, Guilherme Fiuza, Marco Antônio Villa e Diogo Mainardi). O segundo grupo, embora bastante heterogêneo, possui no polemismo antiesquerdista e na reivindicação de um liberalismo econômico difuso os seus traços unificadores (CHALOUB & PERLATTO, 2015).

Ainda segundo Chaloub e Perlatto (2015), apesar de suas diferenças – retóricas, teóricas ou estratégicas –, há características comuns importantes que balizam o Weltanschauung3 dos dois grupos:

  1. 1

    A narrativa de terra arrasada – ideia de que toda a trajetória nacional é marcada por uma absoluta ausência de virtudes (retórica mais pronunciada no grupo da direita teórica);

  2. 2

    A narrativa da hegemonia da esquerda – concepção segundo a qual, durante o processo de reconstrução democrática ao final da ditadura militar, a esquerda estabeleceu o monopólio da produção cultural no Brasil, seja nas universidades, nas escolas, na mídia ou nos principais partidos políticos;

  3. 3

    A “moralização” do debate público – a esquerda não seria apenas equivocada, do ponto de vista analítico ou propositivo, mas moralmente vil, de modo que o esquerdismo seja enquadrado ou como desvio ético ou como patologia;

  4. 4

    A dualidade realismo/idealismo – ou seja, a convicção de que, enquanto a direita constrói seus postulados a partir de uma experiência do passado (derivada de análise empírica), a esquerda, por recorrer a abstrações teleológicas, padeceria de um delírio demiúrgico;

  5. 5

    O apriorismo de seu acerto epistemológico – crença em um acesso privilegiado à verdade, por parte da direita (derivada da característica anterior), o que possibilita o revisionismo (histórico, conceitual ou analítico) e as teorias da conspiração;

  6. 6

    A compatibilização do homo economicus com um ethos conservador – o elogio à modernidade econômica concomitante à recusa da agenda do reconhecimento, solapando, portanto, o medo presente no conservadorismo clássico a respeito do potencial destruidor da universalização da lógica da mercadoria.

Embora fortemente ancorados na defesa de valores tradicionais (em especial, os do primeiro grupo), esses intelectuais não se identificam por completo com o campo semântico do conservadorismo (ainda que alguns de seus principais autores sejam mobilizados como referência, sobretudo por Olavo de Carvalho), e tampouco defendem o retorno a uma ordem histórica perdida – com a exceção de alguns poucos ideólogos monarquistas. O discurso é de ruptura com a tradição nacional (CHALOUB & PERLATTO, 2015). Mas o principal afastamento teórico em relação ao conservadorismo clássico, para além da retórica (e estética) de insurgência, parece ser a valorização epistemológica do senso comum e política do “homem-massa”, cerne do receio de Ortega y Gasset em relação ao igualitarismo encampado pela modernidade.4

Qual é a leitura da realidade que sustenta as narrativas da nova direita? Quais as linhagens do pensamento político às quais esta leitura se vincula? Por que o escritor Olavo de Carvalho é o seu principal intelectual orgânico? É à tentativa de resposta a essas perguntas que se dedica a seção subsequente, a começar pela última.

Olavo de Carvalho – o intelectual orgânico de um conservadorismo popular místico

Embora não tenha elaborado nenhuma teoria própria, o escritor, ideólogo e polemista Olavo de Carvalho – elevado ao posto de “guru” intelectual do governo Bolsonaro – foi muito bem-sucedido em duas frentes específicas: em primeiro lugar, produziu uma síntese razoavelmente coesa de uma série de teses e postulados que vinham sendo construídos por novos intelectuais do campo conservador nos Estados Unidos e na Europa desde o final do século XX; e, em segundo lugar, elaborou um discurso de tal forma potente que – ainda que em parte – passou a ser operado de modo pré-reflexivo por setores importantes da sociedade brasileira. Duas questões, em especial, encontraram guarida em parcelas expressivas da opinião pública, dos formadores de opinião e de parte das instituições nacionais: a afirmação de que a esquerda brasileira hegemonizou a produção cultural e o debate acadêmico no país, com vistas à conquista do poder (CHALOUB & PERLATTO, 2015; ROCHA, 2018); e a concepção de que o Partido dos Trabalhadores seria o Moderno Príncipe5 brasileiro, focado em promover o aparelhamento do Estado (CEPÊDA, 2018) e efetivar um projeto autoritário de perpetuação no poder. Compreender os pormenores da sua leitura da realidade é, portanto, fundamental para o desvelamento do Weltanschauung da nova direita no Brasil.

Junto ao jornalista Paulo Francis – após sua conversão ideológica em meados dos anos 1980 –, de quem é um admirador confesso, Olavo de Carvalho é um dos precursores, no Brasil, de uma síntese ideológica entre a defesa enfática do livre-mercado e o conservadorismo moral. Sua defesa do mercado desregulado é, ao mesmo tempo, ética e utilitária:

Em economia, sou francamente liberal. Acho que a economia de mercado não só é eficaz, mas é intrinsecamente boa do ponto de vista moral, e que a concorrência é saudável para todos. Há dois tipos de pessoas que não gostam da concorrência: os comunistas e os monopolistas. Às vezes é difícil distingui-los. (CARVALHO, 1998a)

Ainda a respeito de definições ideológicas, Carvalho – ao discutir o que seria, em sua visão, o funcionamento de um regime de normalidade democrática – pensa a direita (em sentido amplo) como o campo político que:

favorece a liberdade de mercado, defende os direitos individuais e os poderes sociais intermediários contra a intervenção do Estado e coloca o patriotismo e os valores religiosos e culturais tradicionais acima de quaisquer projetos de reforma da sociedade. (CARVALHO, 2013, p. 84)

Direita, portanto, compreenderia (necessariamente) o campo que conjuga o favorecimento da liberdade de mercado e as liberdades negativas com a defesa dos valores religiosos e tradicionais contra o reformismo social. É importante salientar, contudo, que, embora sustente uma defesa da liberdade de mercado, o autor não se coloca no campo liberal lato sensu (ROCHA, 2018). Carvalho se define como um conservador tradicionalista (CARVALHO, 1994, 1998b, 1999, 2013; TEITELBAUM, 2020). O autor defende a validade da tradição não apenas do ponto de vista normativo, ou seja, enquanto manutenção dos pilares morais que estruturam a evolução gradual e coordenada das sociedades, mas, sobretudo, do ponto de vista ontológico: a tradição seria a “ponte metafísica” que conecta a humanidade ao logos e à verdade universal (essencialmente transcendente). O acesso à tradição seria possível por intermédio de uma ascese individual e introspectiva, que encontraria na intuição um critério de percepção do real, como se pode observar no trecho a seguir:

Infere-se que cada indivíduo humano, não podendo confiar na sua própria autoconsciência, negará todas as evidências intuitivas que lhe cheguem e, não podendo apoiar-se jamais em si mesmo, terá de render-se à autoridade da onipotente comunidade acadêmica. O resultado prático disto é a redução da humanidade a um rebanho de animais dóceis, incapazes de entendimento pessoal e necessitados sempre do aval da autoridade “científica”. (CARVALHO, 1999, p. 68-69)

O escritor defende a “inteligência contemplativa”, cujo exercício é eminentemente individual, contra a degeneração do pensamento ocidental representada pelo cientificismo acadêmico e militante – de natureza coletiva (CARVALHO, 1998b). Três consequências derivam desta defesa: um resgate ontológico da transcendência, marginalizada pela filosofia ocidental desde, pelo menos, o Renascimento; uma crítica profunda ao conhecimento produzido nas universidades; e, por fim, uma valorização epistemológica do senso comum, concebido como a sedimentação dos legados cumulativos da tradição.

A validade ontológica da tradição como via de acesso à transcendência, segundo Carvalho, pode ser verificada a partir dos estudos da Religião Comparada, que comprovaria “a perfeita homogeneidade das estruturas e conteúdos da experiência mística entre os grandes espirituais de todas as religiões, em épocas e civilizações as mais distantes e diversas” (CARVALHO, 1999, p. 58). Ou seja: a coincidência de estruturas conceituais entre as grandes religiões e tradições culturais do mundo, do Ocidente ao Oriente, seria a prova de que há verdades objetivas e universais que, por sua vez, só são acessíveis a partir de uma intermediação entre o transcendente e o imanente. A moderna rebelião prometeica, portanto – simbolicamente central para o Iluminismo –, ao conceber a secularização antropocêntrica do logos, acabaria, ironicamente, nos afastando da verdade.

Também presente em Voegelin (1992), a principal fonte desta concepção é a obra do intelectual esotérico francês, e estudioso das religiões comparadas, René Guénon. Segundo ele, a própria ideia de que há uma ponte que liga este mundo a um mundo superior está presente em todas as tradições (GUÉNON, 1983). Ao referir-se ao título (e conceito central) de um de seus principais livros – O Senhor do Mundo (The Lord of the World, na versão inglesa) –, ficam evidentes a concepção de uma verdade universal e a defesa da centralidade ontológica de um princípio transcendente, bem como da validade epistemológica da autoconsciência individual (GUÉNON, 1983). A ideia da tradição como uma correia de transmissão do “conhecimento primordial”, oriundo da verdade universal, também está presente em sua obra:

Quisemos mostrar aqui sobretudo como a aplicação dos dados tradicionais permite resolver as questões que se colocam atualmente da maneira mais imediata, explicar o estado presente da humanidade terrestre, e, ao mesmo tempo, julgar segundo a verdade, e não segundo regras convencionais ou preferências sentimentais, tudo o que constitui propriamente a civilização moderna.6 (GUÉNON, 2001, p. 65)

A crítica às universidades, por sua vez, se sustenta na concepção de que elas teriam se convertido no “intelectual coletivo gramsciano”, dada a hegemonia discursiva, teórica e metodológica que a esquerda marxista exerceria nas IES brasileiras (CARVALHO, 1999), operando, a partir de sua posição estratégica, um processo de doutrinação e ação psicológica, com o objetivo de subverter os pilares morais e culturais do país e preparar o terreno para a conquista do poder de Estado (CARVALHO, 1994). Assim, as universidades se dedicariam menos à busca da verdade e do conhecimento contemplativo, e mais a um pragmatismo utilitário coletivista colocado a serviço da Revolução, aliado à especialização cientificista (CARVALHO, 1998b, 1999). Para a construção desta leitura, o autor reivindica (de maneira recortada) a herança de postulados teóricos bastante díspares, em especial de José Ortega y Gasset, Otto Maria Carpeaux e Christopher Lasch.

De Ortega y Gasset, a principal referência é o texto Misión de la Universidad, mobilizado para fundamentar a hipótese de que as universidades e as ciências, como eixos centrais na produção e difusão de valores culturais (desvinculados das tradições), contemplam a criação de uma nova elite profundamente inculta e iletrada: os novos bárbaros (ORTEGA Y GASSET, 1994). As universidades também teriam se rendido em parte ao utilitarismo do imperativo de formação profissional e em parte ao cientificismo como eixo estruturante da normatividade moral e cultural das nações, relegando à transmissão do legado humanístico das tradições culturais do Ocidente – que era a função precípua das universidades clericais da Idade Média – um papel ornamental e acessório. A ciência e o pendor revolucionário derivados de um suposto “misticismo prometeico” teriam, portanto, substituído as tradições culturais como o sistema vital das ideias do tempo presente (ORTEGA Y GASSET, 1994; CARPEAUX, 2005).

De Lasch, Olavo de Carvalho absorve dois argumentos centrais para a sua narrativa: primeiro, que os intelectuais compõem uma nova elite mundial – perigosamente afastada da realidade social e cultural das massas – cosmopolita e globalista, imbuída de um ambicioso projeto de engenharia social e subversão cultural; e, segundo, a defesa normativa de um retorno às comunidades, aos valores tradicionais e ao instinto conservador inerente ao senso comum como a unidade básica das sociedades democráticas (LASCH, 1996; CARVALHO, 1999). Ao patriotismo das massas (derivado da concepção de pertencimento a um lugar de origem), as novas elites ofereceriam como contraponto o multiculturalismo. Seria a própria intelligentsia quem teria o controle do fluxo do dinheiro e da informação, das instituições filantrópicas e universitárias, dos instrumentos de produção cultural, e, portanto, da própria definição dos termos do debate público (LASCH, 1996).

O conspiracionismo ocupa uma posição privilegiada na obra de Carvalho: toda a marcha da modernidade poderia ser resumida a uma conspiração de elites seculares buscando suplantar a centralidade explicativa e normativa da religião – este é, aliás, o grande tema de seu livro O Jardim das Aflições. A civilização ocidental – concebida como herdeira da tradição judaico-cristã e centrada na família tradicional e no sexo convencional (PINHEIRO-MACHADO, 2019) – teria encontrado no Cristianismo a construção simbólica mais elaborada tanto de uma verdade universal transcendente, como da necessária intermediação para o acesso a ela na própria figura de Cristo (pontifex): o logos feito carne – tese emprestada de Voegelin (1992). Todavia, com o advento da modernidade, e, principalmente, após os impulsos de transformação engendrados pelo Renascimento e pelo Iluminismo, novas elites surgiram com o objetivo declarado de instaurar uma “teologia civil”, materialista, que viesse a suplantar a ontologia cristã e, portanto, estabelecer o primado do relativismo cultural e do historicismo absoluto, corroendo os fundamentos e valores tradicionais da civilização ocidental. Os comunistas seriam, nesse sentido, a ponta de lança contemporânea de um processo que tem suas origens na influência da filosofia materialista de Epicuro. Para o marxismo, tal como para o epicurismo, não haveria a possibilidade de uma verdade objetiva, e, portanto, a teoria não serviria a não ser para estimular retoricamente a ação prática (CARVALHO, 1998b).

A ideia de que a modernidade enseja a universalização de uma “teologia civil” se apoia na obra de Eric Voegelin. Segundo Voegelin (1992), o processo civilizatório proposto pela modernidade (do Humanismo ao Iluminismo) opera uma secularização do cristianismo a partir da imanentização do eschaton7 cristão, transferindo o telos da transcendência para o mundo empírico. À tentativa de realizar no mundo terreno a perfeição do mundo superior – vista, por ele, como falaciosa – Voegelin dá a denominação de gnosticismo moderno, do qual fariam parte o marxismo, o progressismo, o positivismo e o cientificismo – já que todos rejeitariam a imperfeição, a desigualdade e a miséria como a ordem natural deste mundo (VOEGELIN, 1992).

Os comunistas, portanto, segundo Carvalho (1994) (fazendo referência a Eric Hoffer) – fiéis ao gnosticismo moderno definido por Voegelin e corrompidos pela inveja e pela soberba –, atentam contra a ordem natural do mundo, rompendo os laços sociais e psicológicos milenares na vã tentativa de redefinir a natureza humana na direção de seus projetos políticos.

Da argumentação de Olavo de Carvalho, depreende-se que:

  1. 1

    A esquerda (principalmente a marxista) não estaria equivocada apenas por focar seus esforços teóricos no devir histórico (ao invés da experiência de um passado vivido), mas, sobretudo, porque conscientemente se abstém de descrever o real para moldá-lo segundo suas vontades, instaurando o regime do relativismo e do historicismo absolutos;

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    Ela o faz buscando desconstruir todo o patrimônio cultural acumulado pela civilização ocidental e cristalizado no senso comum a partir de um lugar privilegiado do ponto de vista da disputa de narrativas: o monopólio das instâncias produtoras de cultura (universidades, ONGs, jornais, revistas e editoras);

  3. 3

    Para tanto, é fundamental para ela destronar a Metafísica e a Religião (que buscam apreender a “verdade universal”), instituindo uma nova “teologia civil”: o materialismo relativista;

  4. 4

    Logo, se a esquerda detém a hegemonia da produção (e reprodução) do discurso acadêmico (utilizado como instrumento de dominação), é essencial a disputa por um novo regime de verdade produzido a partir de outros meios que não as universidades.

Para Carvalho (1994, 1998b, 1999, 2013), Gramsci é o grande intelectual que sustenta – do ponto de vista teórico e estratégico – a ação da esquerda brasileira desde meados dos anos 1970, após a derrota da resistência armada à ditadura militar. O filósofo marxista italiano é lido por Olavo de Carvalho como um historicista utilitário absoluto, que decreta, de uma só vez, não apenas a morte da verdade como categoria objetiva – já supostamente esboçada por Marx –, reduzida a critério contingente e historicizável de validade relativa; mas, também, a conversão utilitária da Ética (o valor moral e ético das condutas não estaria nelas próprias, mas em sua utilidade relativa a serviço da Revolução), a partir da apropriação (também sui generis) de Maquiavel como um ideólogo do pragmatismo absolutista (CARVALHO, 1994, 1998b). Gramsci seria, portanto, na leitura de Carvalho, o grande profeta profano do vale-tudo na disputa política, como se pode verificar na passagem a seguir:

Como o que interessa não é tanto a convicção política expressa, mas o fundo inconsciente do “senso comum”, Gramsci está menos interessado em persuasão racional do que em influência psicológica, em agir sobre a imaginação e o sentimento. Daí sua ênfase na educação primária. Seja para formar os futuros “intelectuais orgânicos”, seja simplesmente para predispor o povo aos sentimentos desejados, é muito importante que a influência comunista atinja sua clientela quando os cérebros ainda estão tenros e incapazes de resistência crítica. (CARVALHO, 1994, p. 39)

Há, nesse raciocínio, duas questões centrais para o repertório ideológico da nova direita no Brasil: a esquerda como não apenas analiticamente equivocada, mas moralmente vil (CHALOUB & PERLATTO, 2015); e a centralidade estratégica da disputa cultural para a esquerda como instrumento de doutrinação política (MESSENBERG, 2017; PINHEIRO-MACHADO, 2019; SEDGWICK, 2019), elevando a “agenda identitária” à condição de Cavalo de Tróia da civilização ocidental. Se a esquerda é, por um lado, moral e eticamente corrompida, e, por outro, possui nas pautas de costumes a ponta de lança de seu projeto de destruição dos valores tradicionais que balizam a civilização ocidental, é na “guerra cultural” que a direita deve centrar boa parte da sua artilharia – como, aliás, o fez com absoluto sucesso o grupo político que circunda o presidente Bolsonaro em sua trajetória até o Palácio do Planalto. O conservadorismo entoado pela nova direita não defende o restabelecimento de uma ordem pretérita, embora reconheça na modernidade a origem da decadência moral da civilização ocidental. Alain de Benoist e Charles Champetier (os dois mais proeminentes teóricos da nova direita francesa) sustentam que “a modernidade não será transcendida por um retorno ao passado, mas por meio de certos valores pré-modernos em uma dimensão decisivamente pós-moderna” (BENOIST & CHAMPETIER, 2012, p. 13). A constituição de um framework metapolítico – ou seja, a identificação da arena cultural como lócus privilegiado de disputa política – é, portanto, um elemento central da nova direita internacional (TEITELBAUM, 2019). Olavo de Carvalho – especialmente a partir da criação de seu Seminário (online) de Filosofia, em 2009 – também aposta na metapolítica como um elemento estratégico de introdução de ideias conservadoras na sociedade via canais alternativos, sobretudo a internet (TEITELBAUM, 2020).

Embora não sejam citados por ele, três autores conservadores dos Estados Unidos foram fundamentais para o resgate da retórica da existência de um marxismo cultural, antes utilizada pelos nazistas (então definido como bolchevismo cultural), como estratégia de elites globalistas para a dominação política: William S. Lind, Patrick J. Buchanan, e Paul Gottfried (em especial os dois últimos) (CARAPANÃ, 2018; BARTEE, 2019; ASHBEE, 2019). Para Gottfried, as ideologias modernas (liberalismo progressista e marxismo) são usadas por uma elite administrativa global para subsumir identidades e efetivar o controle de um Estado gerencial multicultural-democrático (BARTEE, 2019). Já Buchanan defende que os movimentos identitários – em especial, o feminismo e o movimento LGBT – seriam parte de uma estratégia marxista para a erosão dos valores tradicionais rumo à extinção do “homem branco ocidental”, decorrente de uma queda tendencial da taxa de natalidade (ASHBEE, 2019).

Além do conspiracionismo, a obra de Olavo de Carvalho está permeada por uma retórica provocativa e debochada, em clara contraposição à narrativa do politicamente correto (PINHEIRO-MACHADO, 2019). O deboche argumentativo possui uma função dupla: facilita a penetração e o enraizamento do discurso nos contra-públicos, definidos, segundo Rocha (2018), por uma performaticidade disruptiva; e funciona como mecanismo de silenciamento do adversário, inviabilizando qualquer tentativa de dialogia. O sofisma provocativo de Carvalho possui dois inimigos prioritários: a intelectualidade marxista e os movimentos identitários, com foco nestes, como se verifica nos argumentos subsequentes.

Mas os homossexuais vão mais longe em suas exigências: pretendem que suas doutrinas e preferências sejam ensinadas às crianças, para que estas possam “fazer livremente sua opção”. Acontece que uma criança de oito anos não está apta fisiologicamente para uma relação heterossexual completa (inclusa a perspectiva da gravidez), mas nada impede que ela faça experiências homossexuais. Para a relação heterossexual, há um umbral de maturidade mínima a ser transposto; para as relações homossexuais, não há. (CARVALHO, 1999, p. 241)

O Estado utiliza-se das reivindicações de autonomia dos indivíduos —reivindicações particularmente fortes nos jovens, nas mulheres, nos discriminados, nos ressentidos de toda sorte —, como de uma isca para prendê-los na armadilha da pior das tiranias. “Libertando” os homens de seus vínculos com a família, a paróquia, o bairro, protegendo-os sob a imensa rede de serviços públicos que os livra da necessidade de recorrer à ajuda de parentes e amigos, oferecendo-lhes o engodo de uma garantia jurídica contra os preconceitos, antipatias, sentimentos e até olhares de seus semelhantes — uma garantia jurídica contra a vida, em suma —, o Estado na verdade os divide, isola e enfraquece, cultivando as suscetibilidades neuróticas que os infantilizam, tornando-lhes impossível, de um lado, criar ligações verdadeiras uns com os outros, e, de outro lado, sobreviver sem o amparo estatal e muito professional help. (CARVALHO, 1998b, p. 177)

Nesses argumentos reside a fundamentação para as falácias da ideologia de gênero – uma reedição de teses já esboçadas pelo Vaticano, ao final do século XX, que sustenta que a discussão nas escolas acerca da diversidade sexual e de gênero seria, na verdade, “doutrinação homossexual” e estímulo à sexualização precoce – e de uma suposta vinculação indissociável entre homossexualidade e pedofilia. Está aí, também, o cerne da argumentação de que as pautas identitárias – feminismo à frente – são a ponte para o ocaso da civilização ocidental e a antessala do autoritarismo (defendida, nos Estados Unidos, por Lind, Gottfried e Buchanan), com forte apoio na lógica da ameaça, conforme definição de Hirschman (1992).

Outro traço definidor do pensamento olavista é o antielitismo, materializado na “comunidade moral” da nova direita (ALONSO, 2019). Assim, o conservadorismo defendido por Carvalho se afasta bastante dos autores reivindicados por ele, em especial Ortega y Gasset, que imaginava que o empoderamento discursivo e volitivo do cidadão médio (inerentemente inculto) – propiciado pelo igualitarismo liberal e/ou marxista – estava na raiz da crise espiritual da Europa no século XX (ORTEGA Y GASSET, 1987; MIGUEL, 2002).

Olavo de Carvalho, por sua vez, defende o empoderamento epistemológico do senso comum, respaldado por evidências intuitivas. A uma elite intelectual esnobe e encastelada nas universidades e nos meios de comunicação (apartada do povo), ele contrapõe os intelectuais contemplativos (adjetivo que atribui a si próprio) e o instinto conservador das massas. Esta característica é, também, central para o bolsonarismo, que enseja a exaltação do ethos e da estética do homem comum e ordinário (ALONSO, 2019; NETTO et al., 2019; PINHEIRO-MACHADO, 2019). Bolsonaro, assim, não lideraria a massa por virtú, mas por ser a representação arquetípica do cidadão médio – o homem-massa de Ortega y Gasset. O conservadorismo encampado por Olavo de Carvalho, e incorporado por Jair Bolsonaro, possui um forte conteúdo popular, cujo lastro eleitoral no pleito de 2018 não se resume à população evangélica – o que pode ajudar a compreender a relativa facilidade na migração de uma parcela expressiva dos votos lulistas para a candidatura de Bolsonaro.

Neoliberalismo e neoconservadorismo: racionalidades antagônicas ou convergentes?

Se, por um lado, Olavo de Carvalho afirma que liberalismo e conservadorismo possuem aproximações e um inimigo comum (o socialismo), por outro, reconhece que também possuem elementos conflitantes – em especial, a distinta compreensão a respeito da função do mercado (fim, para os liberais, e meio, para os conservadores). Colocando-se enquanto intelectual conservador, assim Carvalho define o conservadorismo:

O conservadorismo é a arte de expandir e fortalecer a aplicação dos princípios morais e humanitários tradicionais por meio dos recursos formidáveis criados pela economia de mercado. O liberalismo é a firme decisão de submeter tudo aos critérios do mercado, inclusive os valores morais e humanitários. O conservadorismo é a civilização judaico-cristã elevada à potência da grande economia capitalista consolidada em Estado de direito. O liberalismo é um momento do processo revolucionário que, por meio do capitalismo, acaba dissolvendo no mercado a herança da civilização judaico-cristã e o Estado de direito. (CARVALHO, 2013, p. 54)

Aqui, também, são necessárias algumas definições mínimas. Por liberalismo (que surge como contraponto ao Estado absolutista), considera-se uma concepção de Estado cujos poderes e funções são limitados, e que possui no jusnaturalismo, no contratualismo e no individualismo seus eixos filosóficos e metodológicos estruturantes (BOBBIO, 2017): jusnaturalismo é a doutrina que postula uma concepção geral e hipotética sobre a natureza do ser humano, segundo a qual existem leis que precedem – e, portanto, transcendem – a vontade humana e a própria formação de qualquer grupo social, das quais derivam direitos naturais: o direito à vida, o direito à liberdade, e o direito à propriedade (desde que derivada de uma característica intrínseca à humanidade – o trabalho) (LOCKE, 2014; BOBBIO, 2017); contratualismo é a doutrina que compreende a legitimidade do exercício do poder unicamente vinculada ao consentimento dos indivíduos (BOBBIO, 2017); e individualismo é a defesa do apriorismo do indivíduo como categoria normativa, ontológica e epistemológica (BOBBIO, 2017).

O liberalismo contempla, também, a República como horizonte normativo da modernidade, ou seja, uma teleologia do Progresso na chave pública, concebido enquanto bem-estar social (KERSTENETSKY, 2005; DARDOT & LAVAL, 2016). Se, para Locke, a propriedade só era legítima na exata medida em que fosse, ao mesmo tempo, fruto do trabalho e útil ao bem-estar coletivo (LOCKE, 2014), para Adam Smith, a justificação normativa para o livre-mercado reside na concepção de que o mesmo seria uma engenharia institucional (e, portanto, uma construção política) que, considerada a natureza humana (racional e egoísta), possibilitaria o aumento do bem-estar coletivo por intermédio da elevação tendencial dos salários e da queda tendencial dos preços, aliadas ao aumento gradativo da qualidade das mercadorias8 (SMITH, 2007). Estruturando-se como um dos pilares da tríade do pensamento político moderno (ao lado do socialismo e do comunismo), e herdeiro direto do projeto iluminista, o liberalismo enseja uma teoria contratualista – da qual deriva a própria noção de soberania popular – e um pensamento político igualitário, que reconhece na capacidade humana de agência o potencial de, por intermédio da Política, aprimorar a vida social (MANNHEIM, 1986).

O conservadorismo, por sua vez – surgido, em sua feição moderna, como reação ao projeto burguês entoado pela Revolução Francesa –, estaria assentado em uma teoria essencialmente anti-contratualista e em um pensamento anti-igualitário (MANNHEIM, 1986). Seja por uma determinação divina – como na crítica de Edmund Burke ao imanentismo iluminista (BURKE, 1951) –, por qualidade intrínseca ao cidadão médio – como no diagnóstico pessimista da “rebelião das massas” de Ortega y Gasset (ORTEGA Y GASSET, 1987) – ou por determinação da natureza humana – como na defesa epistemológica do conservadorismo de Roger Scruton (SCRUTON, 2014) –, o conservadorismo considera a desigualdade como o limite intransponível da existência humana, não reconhecendo na Política capacidade criativa para a superação da ordem natural do mundo (CEPÊDA, 2018). Aí reside o cerne da crítica conservadora a todo tipo de radicalismo ou “utopismo” iluminista – do liberalismo ao marxismo.

Sendo liberalismo e conservadorismo campos políticos concorrentes, com afastamentos profundos, o que fundamenta a aliança discursiva, ideológica e programática (no seio da nova direita) entre neoliberalismo e neoconservadorismo? Ou, em outras palavras, qual o substrato ideológico do “liberal na economia e conservador nos costumes”?

Por neoliberalismo, compreende-se a reestruturação do campo liberal em reação tanto ao dogmatismo do laissez-faire do século XIX quanto ao resgate do distributivismo com Keynes, Hobson, Hobhouse e Dewey no início do século XX, e pautado na defesa do papel ativo do Estado na constante reposição dos fundamentos da competição de mercado, e contempla a criação de uma racionalidade específica, representada pela entronização de um “governo de si mesmo” enquanto empresa. Ou seja: os indivíduos passam a se construir subjetivamente como se fossem empresas, num processo de competição constante com seus semelhantes, atuando no sentido de maximizar as suas habilidades (compreendidas enquanto bens de capital). É a ética do empreendedorismo (DARDOT & LAVAL, 2016). O neoliberalismo compreende, ainda, uma concepção específica de mercado e a transposição dessa racionalidade de mercado a todas as esferas da vida social (HARVEY, 2005)

Lacerda (2019) define o neoconservadorismo, em sua origem, como a “coalizão que reuniu parcela majoritária do movimento religioso evangélico, elementos da direita secular do Partido Republicano e intelectuais na eleição de Ronald Reagan” (LACERDA, 2019, p. 18). Esta coalizão teria sido possibilitada, nos Estados Unidos, pela formação de uma mentalidade conservadora em reação às políticas sociais e ao avanço dos movimentos feminista e LGBT da década de 1960.

Se, por um lado, liberalismo e conservadorismo são ideologias concorrentes, há, por outro, aproximações estruturais entre neoliberalismo e neoconservadorismo que se sobrepõem à aparente contradição entre uma racionalidade supostamente amoral, utilitária e instrumental, e outra racionalidade em essência moralizante. Para Harvey (2005) e Brown (2019), um elemento unificador dessas duas racionalidades é sua essência antidemocrática, de modo que o neoconservadorismo representaria a manifestação explícita do autoritarismo implícito no neoliberalismo (LACERDA, 2019; HARVEY, 2005). Noble (2007), por sua vez, sustenta que – embora se apresente como uma racionalidade amoral – os valores e as instituições morais são essenciais ao neoliberalismo, sobretudo porque tal modelo de acumulação capitalista demanda formas não-classistas de solidariedade (família, igrejas, grupos étnicos etc.) que socializem os indivíduos segundo normas comportamentais utilitárias. O principal fundamento para essa aproximação entre neoliberalismo e neoconservadorismo, todavia, reside na elevação da família tradicional ao posto de categoria estruturante da reprodução social hodierna (NETTO et al., 2019). Este argumento merece ser analisado em maior detalhe.

Cooper (2017) indica que, a partir da necessidade de desconstruir os mecanismos de proteção social estatais vinculados ao welfare state, o restabelecimento da família privada como fonte prioritária de segurança econômica dos indivíduos surgiu como uma alternativa compreensiva às políticas públicas, de modo que a reafirmação das normas da família patriarcal se apresentou como elemento fundamental da reestruturação neoliberal. Netto et al. (2019), dialogando com a tese apresentada no livro de Melinda Cooper, também sustentam que as formulações neoliberais e neoconservadoras foram deslocadas para uma unidade moral e econômica comum: a família. Assim, não se trataria de uma mera justaposição de ideologias distintas, mas da constituição de uma visão de mundo “conservadora-liberal” que possui na família (compreendida como a união de cuidado doméstico feminino e da virilidade masculina na vida pública) o mecanismo de estruturação de uma ordem social que reproduza os valores da propriedade privada e da moral, estabelecendo uma equivalência entre justeza e competição, e, por conseguinte, concedendo uma superioridade moral ao livre-mercado (NETTO et al., 2019).

Brown (2019) – revendo um argumento de seus trabalhos anteriores – também endossa a tese de que neoliberalismo e neoconservadorismo não seriam ideologias e racionalidades conflitantes, mas interdependentes, identificando na família (também em referência ao trabalho de Melinda Cooper) a categoria de estruturação de uma ordem que opera como contraponto à vida política, democrática e social. O “destronamento” da Política teria na defesa da família como categoria social ordenadora do mundo e das subjetividades a sua contraparte fundamental (BROWN, 2019).

A hipótese defendida aqui é que a convergência entre neoliberalismo e neoconservadorismo – que possui na família a categoria fundamental de reprodução das formas sociais do capitalismo – foi tornada possível por uma conversão conservadora operada pelas vertentes mais contemporâneas do liberalismo econômico. Se, como sustentava Mannheim (1986), o liberalismo – ancorado na defesa do Progresso, da soberania popular e da República (FREEMAN, 2001; KERSTENETSKY, 2005) – era definido por uma teoria contratualista e um pensamento igualitário, a vinculação de quaisquer de suas correntes a pautas conservadoras e autoritárias não poderia prescindir de uma desconstrução desses dois elementos. Nesse sentido, o liberalismo encampado pela racionalidade neoliberal (DARDOT & LAVAL, 2016) deixa de ser igualitário, na medida em que abdica da noção de República como bem público ou comum; deixa de ser contratualista, na medida em que relativiza a soberania popular como única legitimação possível ao exercício de um poder externo; e deixa de ser jusnaturalista, na medida em que reduz o campo dos direitos naturais ao direito de propriedade. Embora a reconstrução histórica desse longo processo de transmutação fuja ao escopo deste trabalho, é fundamental apontar (ainda que brevemente), na trajetória do pensamento político e econômico, elementos que evidenciem essa mudança (senão como causa, como sintoma).

Embora a noção de que a busca pelo bem comum seja o horizonte normativo prioritário da ação política tenha ocupado um lugar privilegiado no liberalismo (KERSTENETSKY, 2005), tal concepção sofre duras críticas de pensadores liberais ao longo do século XX (DARDOT & LAVAL, 2016).Talvez o contraponto mais famoso à centralidade da República tenha sido elaborado por Joseph Schumpeter. Buscando dialogar com a teoria clássica da democracia (mas, também, com os utilitaristas – em especial, Stuart Mill), Schumpeter (1984) faz três contundentes objeções à ideia de bem comum: em primeiro lugar, não haveria um ideal inequívoco de bem comum a respeito do qual todos os indivíduos fossem capazes de ser racionalmente convencidos; em segundo lugar, ainda que houvesse tal ideal, não haveria como estabelecer respostas definidas para questões isoladas; e, por fim, sendo verídicas as duas premissas anteriores, também seria logicamente inviável qualquer concepção a respeito de uma vontade coletiva do povo (SCHUMPETER, 1984). Desta reflexão deriva uma concepção competitiva, elitista e procedimental da democracia, que transpõe a lógica de mercado para o campo das escolhas políticas (MIGUEL, 2002).

O ethos contratualista do liberalismo – segundo o qual, toda e qualquer submissão individual a um poder externo só poderia ser legítima se limitada e consentida (cerne da contraposição de Locke ao princípio paulino de legitimação do poder) – também é relativizado. Verifica-se uma relação bastante conflituosa entre democracia e capitalismo nas obras de importantes intelectuais do campo (DARDOT & LAVAL, 2016): para Hayek (2001), haveria um conflito irreconciliável entre democracia e capitalismo – sobretudo em função das tendências coletivizantes e “irracionais” das massas – que, por sua vez, tornaria preferível um regime autoritário limitado, que defendesse o primado da propriedade privada e a inviolabilidade dos contratos, a uma democracia ilimitada (HAYEK, 2001). Mises (1985) também identifica nos regimes autoritários um instrumento legítimo de defesa de “fundamentos do liberalismo” ante os impulsos socializantes, como no caso do fascismo italiano frente aos avanços do bolchevismo.

A redução do escopo dos direitos naturais à esfera do direito de propriedade é um elemento fundamental para a configuração do chamado libertarianismo (MIGUEL, 2018) – fortemente vinculado à escola austríaca de pensamento econômico –, e se manifesta de modo bastante cristalino nas obras de Hans-Hermann Hoppe e Jan Narveson (FREEMAN, 2001). Hoppe (1989) sustenta, por exemplo, que não apenas o direito à propriedade é o único direito natural (começando pela propriedade de si) – já que a propriedade, enquanto construção normativa, deriva da escassez de recursos na natureza, e que o próprio corpo seria a expressão por excelência da escassez de recursos –, mas, também, que ele é a categoria mais básica das ciências sociais, da qual derivariam todos os seus conceitos essenciais. A despeito da ênfase dada a esta questão pelos ideólogos mais recentes da escola austríaca, a reflexão acerca da centralidade do direito à propriedade como pedra de toque do liberalismo também está presente na obra de uma das principais referências dos intelectuais da nova direita brasileira e dos think tanks liberais a ela associados: Ludwig von Mises (ROCHA, 2018). Para ele, o mercado seria o lócus natural de realização da vida social, e a propriedade do próprio corpo e do capital, a condição para essa realização, de modo que todo o programa normativo do liberalismo poderia ser reduzido à defesa da propriedade (MISES, 1985).

Conclusão

Em função das alterações discutidas anteriormente, para o neoliberalismo: a democracia deixa de ser um valor universal para se constituir enquanto mero valor contingente; o mercado se constitui em instrumento de perpetuação de valores conservadores – vale dizer, a inviolabilidade das hierarquias e desigualdades sociais e o reconhecimento da família, da igreja e das comunidades como instâncias exclusivas de solidariedade; e a família patriarcal se converte no princípio ordenador da vida pública – capaz de operar a transmissão intergeracional dos valores da competição e da propriedade privada (COOPER, 2017).

A centralidade da família (bem como sua vinculação ontológica com o mercado) na retórica política da nova direita internacional é tamanha que as campanhas das direitas radicais contemporâneas em todo o mundo apontam como ataques à liberdade (de mercado) e à moral (familiar) quaisquer políticas que contestem a reprodução social das hierarquias de gênero, raciais, sexuais e de classe (BROWN, 2019). A retórica de que as políticas de redução de assimetrias consistem em ataques à família e à liberdade está presente em Gilder e Murray, expoentes dos primórdios da constituição da nova direita nos Estados Unidos (NOBLE, 2007), em Buchanan e Gottfried, que exerceram grande influência na construção da ideia de marxismo cultural (ASHBEE, 2019; BARTEE, 2019), mas também em Carvalho (1998b, 1999). Se a família é o elo que fundamenta a construção de uma visão de mundo conservadora-liberal (NETTO et al., 2019), é ela a categoria central para a metapolítica da nova direita no Brasil e no mundo.

No caso brasileiro, quem melhor deu corpo explicativo a essa preocupação foi Olavo de Carvalho: o centro de sua narrativa sobre a realidade brasileira consiste em afirmar que a esquerda, por intermédio de uma guerra cultural escamoteada, teria por objetivo destruir os fundamentos da civilização ocidental: a família patriarcal, o sexo convencional e a liberdade de mercado (PINHEIRO-MACHADO, 2019). Sua narrativa – seja em relação à centralidade da família como categoria social ordenadora, em relação à aceitação da transcendência como “caminho para a verdade”, ou em relação à positivação da desigualdade como ordem natural do mundo – também encontrou eco no discurso político neopentecostal (cujas lideranças, em grande medida, não apenas dedicaram apoio sistemático à candidatura de Jair Bolsonaro, mas também se utilizaram do repertório olavista como instrumento de formação política): sendo a teologia da prosperidade uma “religião intramundana”, ela operaria como um sistema simbólico que não apenas dá sentido às ações, mas motiva e desperta o fiel para uma práxis específica que não compreende a desconstrução das desigualdades, assumidas como inerentes à vida coletiva, mas a ascensão individual em meio às relações de desigualdade (ALMEIDA, 2019).

A contradição aparente que reside no amálgama liberal-conservador é, portanto, a manifestação invertida da sua essência: uma unicidade conservadora que possui na positivação da desigualdade (CEPÊDA, 2018) – assumida como inerente à humanidade e às formações sociais – e na negação da Pólis a sua raison d’être.

Agradecimentos

Agradeço enormemente aos(às) pareceristas da Revista Brasileira de Ciências Sociais pela grande contribuição dada à finalização deste artigo.

  • 1
    Concebida enquanto o “consenso ‘espontâneo’ das grandes massas da população quanto à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante” (GRAMSCI, 1980, p. 14).
  • 2
    Ideologia, na chave gramsciana, é uma concepção de mundo que se manifesta em todas as expressões da vida individual e coletiva, uma força ativamente organizadora no sentido de moldar o terreno no qual os indivíduos atuam e lutam (GRAMSCI, 1991).
  • 3
    Cosmovisão, na chave weberiana. Princípios que embasam a concepção de mundo. Ver Weber (1992).
  • 4
  • 5
    Para uma discussão sobre o conceito de Moderno Príncipe, ver Gramsci (2017).
  • 6
    Tradução própria.
  • 7
    Palavra de origem grega que significa final. No caso, o ponto de chegada da teleologia cristã exposto no Apocalipse.
  • 8
    Sintetizada na equação de Adam Smith e Bernard Mandeville: vícios privados 🡪 benefícios públicos. Ver Giannetti (1996).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2020
  • Aceito
    04 Dez 2020
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