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Na metrópole do subdesenvolvimento industrializado: das contradições às experiências urbanas

Na metrópole do subdesenvolvimento industrializado: das contradições às experiências urbanas

Lúcio KOWARICK. Escritos urbanos, fotografias de Tomás Rezende. São Paulo, Editora 34, 2000. 144 páginas.

Maura Pardini Bicudo Véras

Só um autor com a plenitude intelectual e a profundidade na pesquisa urbana de Lúcio Kowarick poderia retomar tão bem temas candentes neste início de milênio, em que novos desafios se colocam aos estudiosos das cidades e novas posturas teórico metodológicas vêm oferecer e questionar alternativas às ciências sociais.

Como Kowarick expõe em sua "trajetória de pesquisa" (p. 13), mesmo sem pretender fazer uma "epistemologia da problemática urbana brasileira", acaba por realizar um balanço crítico dos temários específicos desde a década de 70, reunindo escritos de diferentes momentos, atualizando e ampliando esse debate com criatividade e rigor e envolvendo abordagens correntes no período, o que inclui seus próprios avanços e limites.

Nas décadas do "milagre econômico brasileiro", os estudos urbanos destacavam processos macroestruturais, evidenciando a face perversa do capitalismo a ensejar um determinado papel do Estado na direção do crescimento, ao mesmo tempo em que propiciava intensa desigualdade, pobreza e segregação. Em todas essas discussões sempre esteve subjacente o tema da cidadania, bem como o dos movimentos sociais.

Nesse contexto, o conceito nuclear de espoliação urbana vai ganhando progressivamente novas conotações: das "somatórias de extorsões motivadas pela ausência/carência de acesso aos serviços urbanos (os meios de consumo coletivo)" - tão bem aplicadas nos anos 70 e 80 e, sob forte influência das abordagens marxistas, dando ênfase aos constrangimentos histórico-estruturais - para agora abranger também as condições subjetivas dos atores e as produções simbólicas dos agentes que se representam e significam a vivência da exclusão. Incorporando o tema exclusão social relacionado à subcidadania, o autor cria com propriedade a oposição entre cidadão privado (consumidor ancorado à conquista da moradia na metrópole) e subcidadão público (com a precarização do trabalho, o desemprego, pobreza e iniqüidade diante da lei).

Sintetizando esse percurso, poder-se-ia resumir emblematicamente que se oscilou do destaque das contradições (nos termos de M. Castells) para o das experiências (na linguagem de E. Thompson), tendo como principal referência empírico-analítica a metrópole do subdesenvolvimento industrializado, notadamente São Paulo.

Ao recuperar a trajetória dos últimos trinta anos, Kowarick resgata a tônica das macrodeterminações presentes no pensamento dos anos 70, pois mesmo os movimentos populares urbanos eram ligados à "reprodução da força de trabalho" e vistos como manifestações secundárias; o conceito de "exército industrial de reserva" e seu papel nas transformações revolucionárias concentravam todas as atenções dos estudiosos. A ausência de políticas compensatórias sociais e o papel do Estado que concede benefícios urbanos e acaba por excluir amplos segmentos são enfocados na caracterização da região metropolitana de São Paulo a partir do seu desenvolvimento industrial e dos seus contrastes, configurando um quadro de "mais valia absoluta urbana".

Com destaque para a questão da moradia na metrópole do subdesenvolvimento industrializado, o autor enfrenta o debate da dialética inclusão/exclusão social e da cidadania, aprofundando a investigação das múltiplas facetas da produção da experiência tanto na confecção da "casa própria" quanto na concepção de uma imagem negativa associada ao inquilinato popular e à expulsão constante de favelados e pessoas de baixa renda em geral, transformando o subproletariado e os pobres em "classes perigosas", especialmente em momentos de luta da classe operária (pp. 81-95).

Houve, portanto, um deslocamento analítico quando o autor afirma a importância das experiências dos atores sociais, suas vivências, suas subjetividades, dizendo que "é mais promissor indagar o significado que [a] materialidade tem para os múltiplos atores que se enfrentam na arena social" (p. 106). A espoliação urbana reaparece, pois, como "percepção coletiva segundo a qual existe legitimidade na reivindicação por um benefício e que sua negação constitui injustiça, indignidade, carenciamento ou imoralidade" (p. 107). Assim, os carecimentos, a dignidade, a economia moral e a justiça são também considerados no domínio da subjetividade.

Ao mesmo tempo, as potencialidades transformadoras dos movimentos populares urbanos foram revisitadas pelo autor, ao propor que se imbriquem análises da esfera da reprodução social (as lutas pelas melhorias no "ambiente construído") à esfera da produção (conflitos sindicais ligados ao mundo do trabalho), o que chamou de "os caminhos do encontro".

Como tema recorrente de suas preocupações, ao descartar a visão "genético-finalista", e sugerir uma análise interna dos movimentos sociais, Kowarick enfoca a fusão de reivindicações e conflitos que vão das lutas travadas nos bairros em torno dos serviços e equipamentos urbanos às lutas ligadas aos movimentos sindicais e ao trabalho. Tecida a partir do encontro de experiências vividas em seqüências de sociabilidades e relacionando a exploração do trabalho à espoliação urbana, essa abordagem revela o quanto existe de conflito de classe no significado das lutas cotidianas.

Assim, "pauperização e espoliação são apenas matérias-primas que potencialmente alimentam os conflitos sociais: entre as contradições imperantes e as lutas propriamente ditas, há todo um processo de produção de experiências que não está, de antemão, tecido na teia das determinações estruturais" (p. 69) ou, em outras palavras: "as condições materiais objetivas constituem as fibras das quais a tecelagem permite múltiplas cores e desenhos" (p. 84).

Ainda na conjuntura recessiva da "década perdida", a luta sindical mais as reivindicações em torno da vida nos bairros geraram uma consciência de exclusão, um campo de resistência da organização popular, em uma certa genealogia da fusão. Nos anos 90, essa consciência do mundo da subcidadania tenderia a acentuar-se pelo agravamento dos mesmos problemas: a saturação do padrão periférico de crescimento, as crises do transporte coletivo, a omissão dos poderes públicos diante da especulação imobiliária (e a retenção de vazios urbanos), o aumento de favelados e de cortiçados - estes sendo subestimados nas estatísticas oficiais - além de violência, morte e outros fatores alarmantes.

Entretanto, como visto, não é linear a relação entre dilapidação e espoliação, de um lado, e consciência e luta política, de outro. Por isso, é conclusiva a afirmação de que a unificação das lutas sociais em torno de movimentos com capacidade de transformações políticas radicais "já é uma idéia com pouco apoio na realidade brasileira e latino americana. Contudo, perpassada por partidos, igrejas, assessorias técnicas, lideranças de todas as ordens e matizes, e até por especuladores, a questão da autonomia e da produção cultural dos movimentos sociais urbanos, novos e antigos, continua sendo uma questão política para configurar uma condição social de vida mais eqüitativa e, eventualmente, um ideal emancipatório de inspiração socialista" (pp. 53-54).

Fruto da rica trajetória intelectual de Lúcio Kowarick, sempre comprometido com as questões sociais e com a busca da cidadania, o livro é extremamente oportuno e necessário a todos que se interessam pelo estudo das cidades brasileiras contemporâneas e também pelas suas transformações democráticas. Essencial para quem ama São Paulo, quer compreendê-la em seu profundo sofrimento e deseja trabalhar por sua superação.

MAURA PARDINI BICUDO VÉRAS é professora titular do Departamento de Sociologia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC/São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2002
  • Data do Fascículo
    Out 2001
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