Acessibilidade / Reportar erro

A (re)militarização do Ministério da Defesa no Brasil (2016-2021)

The (re)Militarization of the Brazilian Defense Ministry (2016-2021)

Resumos

Resumo

Neste artigo, busca-se discutir se as medidas previstas nos distintos diplomas legais que estruturam o Ministério da Defesa representam o exercício do controle civil sobre a área ou, ao revés, configuram mais um exemplo do sucesso castrense na manutenção, e até desenvolvimento, da autonomia militar. Para isso, procedeu-se a uma análise quantitativa dos recursos humanos atuais das cinco unidades administrativas e das seis empresas/autarquias vinculadas ao Ministério. Buscou-se compreender o perfil dos funcionários do Ministério, analisando sua modalidade de contratação, se são civis ou militares e, caso militares, se pertencem à ativa ou à reserva, sua Força singular original, cargo/função comissionada ocupada e patente. Diferentes dados levam à conclusão de que o Ministério da Defesa está longe de ser um órgão civil de formulação da política de defesa e do exercício da autoridade civil sobre seus operadores, as forças armadas. O Ministério sempre foi militarizado, perfil que o governo Bolsonaro acentuou.

Palavras-chave:
ministério da Defesa; relações civis-militares; burocracia; forças armadas; militarização


Abstract

In this paper, we seek discuss whether the measures provided for in the different legal diplomas that structure the Ministry of Defense represent the exercise of civilian control over the area or, on the contrary, configure another example of military success in maintaining, and even development of military autonomy. For this, a quantitative analysis of the current human resources of the five administrative units and of the six companies linked to the Ministry was carried out. We sought to understand the profile of Ministry employees, analyzing their hiring method, whether they are civil or military and, if military, whether they belong to active duty or reserve, their original singular force, position/commissioned function held and rank. Different data lead to the conclusion that the Ministry of Defense is far from being a civilian body for formulating defense policy and exercising civilian authority over its operators, the armed forces. The Ministry has always been militarized, a profile that the Bolsonaro government accentuated.

Keywords:
Defense Ministry; civil-military relations; bureaucracy; armed forces; militarization


Introdução

O Ministério da Defesa (MD) foi criado em 1999 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, representando o ápice de um longo processo de construção da autoridade civil sobre o setor de defesa e a mais importante medida de mudança organizacional das forças armadas no Brasil de toda a República (Oliveira, 2005, pOLIVEIRA, Eliezer Rizzo (2005). Democracia e Defesa Nacional: a criação do Ministério da Defesa na presidência de FHC. Barueri (SP), Manole. . XXV). Conforme Pion-Berlin (2009)PION-BERLIN, David (2009). “Defense Organization and Civil-Military Relations in Latin America”. Armed Forces & Society 35, 3: 562-586., para a construção de um regime democrático, é necessário que órgãos como o MD reúnam determinadas características: sejam empoderados (no sentido de transferir o poder dos comandos das forças singulares para um órgão de natureza civil); ocorra o fortalecimento da presença civil; exista a redução da autoridade militar vertical; e seja fragmentado o poder militar. Mais especificamente, a criação do MD responderia à pergunta “Quem guarda os guardiões?”, afirmando que são os civis eleitos que devem fazê-lo (Fuccille e Winand, 2018FUCCILLE, Luis. A.; WINAND, Érica. C. A. (2018). “Ministério da Defesa”. In H. Saint-Pierre & M. G. Vitelli (orgs.). Dicionário de segurança e defesa (eBook). São Paulo, Ed. Unesp Digital.).

Neste texto, tomando o atual desenho do MD, o intuito é avaliar se as medidas previstas nos distintos diplomas legais que estruturam o ministério representam o exercício do controle civil sobre a área de defesa ou, ao revés, o órgão é expressão do sucesso castrense na manutenção, e até desenvolvimento, da autonomia militar. A autonomia se expressa no controle de projetos, orçamento, formação e definição de objetivos estratégicos, sendo necessária para manter o peso militar no processo decisório geral e no controle da disputa política, tomando a ordem como fundamento da democracia (Saint-Pierre, 1993SAINT-PIERRE, Héctor (1993). “Racionalidade e Estratégias”. Premissas, NEE -UNICAMP, 3: 24-51. ). Como componentes importantes para a manutenção da autonomia acrescenta-se também a existência de sistemas judiciários e de inteligência próprios ao mundo militar.

Para auxiliar na compreensão desse objetivo geral, parte-se de uma questão modesta: qual a estrutura dos recursos humanos disponíveis no MD atual? Assim, não se trata de avaliar todo o processo de construção do MD desde a sua criação até os dias atuais considerando as quatro áreas mencionadas por Pion-Berlin, mas de apontar o retrato atual da instituição no que se refere à presença civil vis-à-vis à militar como indicador da ‘civilianização’ do MD. Para isso, optou-se por uma análise predominantemente quantitativa do perfil dos servidores do ministério, suas cinco unidades administrativas, e seis empresas/autarquias vinculadas. Os dados apresentados têm origem no ofício 26423/ASPAR/GM-MD (Ministro Walter Braga Neto),11 Cumpre lembrar que, segundo a Lei de Acesso à Informação (12.527 de 2011), constitui uma conduta ilegal o agente público ou militar: recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa. emitido em 30/09/2021, fruto do requerimento de informação 996/2021, elaborado pelo Deputado Federal Patrus Ananias (PT/MG). Quando disponível na literatura sobre o tema, os dados foram comparados com tais informações referentes a períodos anteriores

Utiliza-se o neologismo ‘civilianização’ no sentido que emprestou à palavra Bañol e Olmeda (1985)BAÑON, Rafael; OLMEDA, José. A. (1985). La Instituición Militar em El Estado Contemporáneo, Madrid, Alianza Editorial. , representando a substituição de militares por civis nos postos-chave de decisão quando da transição espanhola desde a ditadura franquista. Ao empregar a expressão, indica-se que a criação do MD teve o sentido de tornar civil uma área, ou melhor, um processo de elaboração, tomada de decisão e execução de uma política pública que sempre pertenceu aos meios militares, sendo considerada, dessa maneira, como ‘naturalmente militar’ ao longo da história política brasileira. Assim, mais do que um abstrato controle civil dos militares, a intenção com a criação do MD, e esta é a nossa hipótese, era criar um processo civil de tomada de decisões sobre a política de defesa. Dessa forma, foram adotadas medidas institucionais para um desenho ‘civilianizado’ na área de defesa, mas esse processo não foi acompanhado de uma ocupação civil, que contou com número expressivo de militares em cargos fundamentais para os processos decisórios do órgão.

O insucesso deste processo possui sua origem na própria criação do ministério, com o ministro da Defesa acumulando funções sobrepostas àquelas dos três ministros anteriores, ou seja, da Marinha, do Exército e da Aeuronáutica, agora transformados em três comandos. Esse desenho institucional com atribuições sombreadas representou um caminho para o ‘encrostamento’ dos militares em um espaço de poder que deveria ser essencialmente civil. Cumpre lembrar que, diferente de outros grupos sociais e/ou profissionais aos quais diferentes presidentes foram vinculados e que passaram a compor as estruturas institucionais, militares têm três características que os distinguem de outras profissões e acarretam diferentes restrições políticas (como a proibição de filiação partidária quando na ativa), a saber: portam armas, possuem espírito de corpo, são regidos pelos princípios da hierarquia e da disciplina (Finer, 2002FINER, Samuel (2002), The man on the horseback. New Brunswick: Transaction.).

Na realidade, ao invés da ‘civilianização’, ocorreu a (re)militarização do Ministério. Por militarização, entende-se a penetração militar no Estado de cinco maneiras: a) presença física ostensiva das forças de segurança (inclusive privadas) nas ruas das cidades; b) ocupação de cargos no sistema político (eletivos ou por indicação); c) transposição de doutrinas formuladas pelos militares para outras políticas governamentais; d) transferência de valores castrenses para a administração, impondo um determinado ethos; e) militarizar todo e qualquer problema, utilizando militares, ou vendo por lentes militares, problemas de outras esferas do Estado (Penido e Kalil, 2021bPENIDO, Ana A. O.; KALIL, Suzeley (2021b). “O Partido Militar no Sistema Político Brasileiro”. In L. Castro; M. Bugarin & F. Schwartz (orgs.). Anais do Simpósio Interdisciplinar sobre o Sistema Político Brasileiro e XI Jornada de Pesquisa e Extensão da Câmara dos Deputados. Santo Ângelo, Metrics.6550/978-65-89700-34-0.473-489.
https://doi.org/6550/978-65-89700-34-0.4...
). O prefixo ‘re’ indica que, na realidade, o Ministério da Defesa nunca deixou de ser militar.

Embora a análise do governo Bolsonaro não seja objetivo específico deste texto, cabe lembrar que a ‘militarização’ promovida durante seu governo é geral e irrestrita e, portanto, não é uma particularidade do MD (Cavalcanti; Victor, 2020CAVALCANTI, Leonardo; VICTOR, Nathan. (2020). Bolsonaro mais que dobrou contingente de militares no governo, aponta TCU. Poder 360. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-mais-que-dobrou-contingente-de-militares-no-governo-aponta-tcu/>, consultado em 15/06/2023.
https://www.poder360.com.br/governo/bols...
; Schmidt, 2022SCHMIDT, Flávia H. (2022). Presença de militares em cargos e funções comissionados do Executivo Federal (Nota Técnica). Brasília, IPEA. Disponivel em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=39298&Itemid=466, consultado em 05/06/22.
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php...
). O centro da discussão pública é a presença militar na burocracia ocupando cargos ou funções civis, em áreas como saúde ou meio ambiente. Ao longo do governo Bolsonaro, militares estiveram à frente por longos períodos da Casa Civil, da secretaria de Assuntos Estratégicos, do gabinete de Segurança Institucional, do ministério da Saúde, do ministério de Ciência e Tecnologia, do ministério de Infraestrutura, do ministério de Minas e Energia e do ministério da Defesa. Segundo Schmidt (2022)SCHMIDT, Flávia H. (2022). Presença de militares em cargos e funções comissionados do Executivo Federal (Nota Técnica). Brasília, IPEA. Disponivel em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=39298&Itemid=466, consultado em 05/06/22.
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php...
, no período de 2013 a 2021, a expansão militar foi de 59%, considerando exclusivamente aqueles cargos de natureza civil.22 Cargos de natureza civil são, por exclusão, aqueles não definidos como de provimento militar. Conforme determina a Lei Federal nº 6880/1980 (Estatuto dos Militares), artigo 20, § 1º, é cargo de natureza militar aquele “que se encontra especificado nos Quadros de Efetivo ou Tabelas de Lotação das Forças Armadas ou previsto, caracterizado ou definido como tal em outras disposições legais.” Como apontado em seguida, houve mudanças no sentido de ampliar os cargos de livre provimento militar – Decretos 9088/17 e 10.013/19 –ou alterar a natureza dos cargos, transformando cargos anteriormente civis em militares. A autora desagrega os dados mostrando os cargos ocupados por militares entre aqueles de natureza militar e os de natureza civil, e dedica sua atenção ao segundo grupo.

A ocupação de cargos fora das forças armadas por militares é permitida pela Constituição e pelo Estatuto dos Militares (Lei Federal nº 6880 de 9 de dezembro de 1980) em dois casos: quando titulares de mandatos eletivos, ou pela posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária não eletiva. Entretanto, um conjunto de normas infralegais vem sendo editado pelo Poder Executivo que transforma cargos de natureza civil em cargos de natureza militar. Segundo Schmidt (2022)SCHMIDT, Flávia H. (2022). Presença de militares em cargos e funções comissionados do Executivo Federal (Nota Técnica). Brasília, IPEA. Disponivel em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=39298&Itemid=466, consultado em 05/06/22.
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php...
, no período entre 2012 e 2021, houve uma expansão de 27,1% nos cargos considerados de natureza militar. Dessa maneira, na análise da autora, o aumento da ocupação de cargos por militares no Executivo Federal ocorreu por duas frentes simultâneas: o aumento do número de cargos e funções em si, e o aumento de militares em cargos e funções civis. Neste texto, apenas aqueles alocados no ministério da Defesa receberão atenção.

Acrescenta-se que, para além de criticar a politização dos militares, é necessário problematizar o entendimento do que é uma função de natureza militar. Em geral, ocorre a confusão - que interessa aos militares - da política de defesa com a política militar, entendo-as como similares enquanto, na realidade, a política de defesa articula diferentes políticas nacionais, sendo o componente militar apenas um dos seus aspectos. A consequência organizacional dessa confusão é a ‘naturalização’ do ministério da Defesa como um órgão de composição militar, por isso uma hipótese plausível é de que parte expressiva das funções civis transformadas em funções militares estejam alocadas no MD.

Por fim, esclarece-se que por meio do Decreto Federal nº 9.732, de 20 de março de 2019, o governo definiu alguns critérios gerais e específicos mínimos a serem atendidos para as nomeações de comissionados conforme cada cargo, que não dizem respeito à origem civil ou militar do indicado. Entretanto, o responsável pela nomeação pode ingnorar tais critérios desde que justifique a medida, o que reforça a discricionariedade da autoridade sobre o cargo. Ou seja, a escolha é, em última instância, política (Penido e Kalil, 2021aPENIDO, Ana A. O.; KALIL, Suzeley (2021a). “Ação política do Partido Militar no Brasil sob Bolsonaro”. Anuário Latino americano de Ciências Políticas y Relacionais Internacionales, 11: 63-82. ).

Arcabouço Institucional

A criação de um MD no Brasil foi aventada em diferentes momentos. Fuccille (2006)FUCCILLE, Luis. A. (2006). Democracia e questão militar: a criação do Ministério da Defesa no Brasil. Tese de Doutorado IFCH-Unicamp, Campinas (SP). aponta que o primeiro deles data dos anos 1930, enquanto a iniciativa que mais avançou foi a formulada por Castelo Branco, no bojo da reforma administrativa consubstanciada em 1967. Durante o último Congresso Constituinte, momento político propício para consolidar mudanças, o tema sequer foi ventilado. Todas essas propostas foram descartadas por motivos e justificativas semelhantes, destacando-se: conservadorismo castrense; desentendimentos internos às três forças; e falta de preparo civil para a condução dos temas da defesa (Fuccille, 2006, pFUCCILLE, Luis. A. (2006). Democracia e questão militar: a criação do Ministério da Defesa no Brasil. Tese de Doutorado IFCH-Unicamp, Campinas (SP). . 121-123).

Na realidade, defende-se que o principal empecilho para a criação do MD, particularmente durante a última Constituinte, é a correlação de forças, pois as forças armadas se mantiveram com muito capital político e alto prestígio popular diante de outras organizações políticas (como os partidos políticos), concentrando alto poder de veto em razão do processo de “transição transada” (Share e Mainwaring, 1986SHARE, David; MAINWARING, Scott (1986). “Transição pela Transação: democratização no Brasil e na Espanha”. Dados, 29, 2: 207-236. ) que aconteceu no Brasil.

A criação do MD foi precedida pelo documento Política de Defesa Nacional (PND), publicado em 1996. Dele, importa sublinhar que:

“[a] Política de Defesa Nacional, voltada para ameaças externas, tem por finalidade fixar os objetivos para a defesa da Nação, bem como orientar o preparo e o emprego da capacitação nacional, em todos os níveis e esferas de poder, e com o envolvimento dos setores civil e militar.” (Brasil, 1996, pBRASIL. Ministério da Defesa (1996). Política de Defesa Nacional. Brasília-DF: Ministério da Defesa. Disponível em <https://www.defesa.gov.br/enternet/sitios/ internet/pedn/php>, consultado 23/08/2003.
https://www.defesa.gov.br/enternet/sitio...
. 3, grifos nossos).

O intervalo de três anos entre o documento mencionado e a efetiva criação do MD deveu-se não à concorrência entre civis e militares, e sim às resistências e competição entre as três Forças, traço permanente no comportamento delas, inclusive no período do regime burocrático-autoritário (Castro e D’Araujo, 2001CASTRO, Celso; DARAUJO, Maria Celina (2001), Militares e política na Nova República. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas. ).

Outro fato que mostra a parcimônia imposta para a criação do MD foi o estabelecimento, proposto pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, da figura de ministro extraordinário para os Assuntos da Defesa, cargo ocupado por Élcio Álvares entre 1 de janeiro e 10 de julho de 1999, data oficial da criação do MD, quando o mesmo se tornou o primeiro ministro da Defesa no Brasil (Fuccille, 2006, pFUCCILLE, Luis. A. (2006). Democracia e questão militar: a criação do Ministério da Defesa no Brasil. Tese de Doutorado IFCH-Unicamp, Campinas (SP). . 142).

A estruturação do MD foi definida pela seguinte legislação: Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, Medida Provisória nº 1.911-8, de 29 de junho de 1999, e Decreto Federal nº 3.080, de 10 de junho de 1999. Em linhas gerais, esta legislação transformou o ministério da Marinha em Comando da Marinha, o ministério do Exército em Comando do Exército e o ministério da Aeronáutica em Comando da Aeronáutica, além de criar, na figura do ministro da Defesa, uma direção superior a eles (art. 9º, Decreto Federal nº 2080 de 10 de junho de 1999), entendida também como um entreposto entre os Comandos e a suprema autoridade civil, a Presidência da República. Com o MD em funcionamento, foram editadas outros documentos legislativos, tais como a Emenda Constitucional nº 23, de 2 de setembro de 1999 e a Portaria nº 2.144/MD, de 29 de outubro de 1999 (Fuccille; Winand, 2018FUCCILLE, Luis. A.; WINAND, Érica. C. A. (2018). “Ministério da Defesa”. In H. Saint-Pierre & M. G. Vitelli (orgs.). Dicionário de segurança e defesa (eBook). São Paulo, Ed. Unesp Digital.). Em 25 de agosto de 2010, foi criado através da Lei Complementar nº136 o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA), com o objetivo de centralizar a coordenação das três Forças singulares (marinha, exército e aeronáutica), reduzidas a comandos, e que se tornou mais um espaço de poder militar no interior do Ministério.

Mesmo com todas as limitações, admite-se, repetindo D’Araujo (2010, pD’ARAUJO, Maria C. (2010). Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Sul. Rio de Janeiro, FGV editora. . 117), que “(...) a criação do MD foi uma medida tão importante em termos de impacto sobre as Foças Armadas (sic.) como o foi a criação das comissões de anistia e de desaparecidos. Todas implicavam tocar em pontos que eram tabus (...)”. Entretanto, também concorda-se com Oliveira e Soares (2010)OLIVEIRA, Eliezer Rizzo; SOARES, Samuel A. (2010). “Brasil, Forças Armadas, direção política e formato institucional”. In: M. C. D’ARAUJO & C. CASTRO (orgs.). Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro: FGV. que a criação do MD não representou mudanças na estrutura organizacional do aparato militar. Mesmo após sua criação, muitos militares (que se submeteram à decisão da criação) se pronunciaram publicamente, afirmando que não havia necessidade de tal Ministério. Acrescenta-se que, desde seu nascimento, mais que autoridade civil e voz da presidência sobre as forças armadas, o ministro da defesa passou a representar as Forças junto ao governo, quase como um representante sindical.33 Cumpre lembrar que, segundo a legislação brasileira, com destaque para a Lei Federal nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares), militares não podem ser sindicalizados ou eleger representantes para os seus pleitos junto ao poder político. E isso foi agravado com o tempo, especialmente quando o ministro deixou de ser um civil e voltou a ser um militar (a partir do governo Temer).

Durante os governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, algumas resistências permaneceram existindo. Ainda assim, o MD manteve dois objetivos cujas sementes já estavam presentes na PND de 1996. O primeiro deles foi aprimorar a “interação das Forças Armadas (sic.), em seu preparo e emprego, bem como na racionalização das atividades afins”; e o segundo determinava ser necessário “sensibilizar e esclarecer a opinião pública, com vistas a criar e conservar uma mentalidade de Defesa Nacional por meio do incentivo ao civismo e à dedicação à Pátria” (Brasil, 1996, pBRASIL. Ministério da Defesa (1996). Política de Defesa Nacional. Brasília-DF: Ministério da Defesa. Disponível em <https://www.defesa.gov.br/enternet/sitios/ internet/pedn/php>, consultado 23/08/2003.
https://www.defesa.gov.br/enternet/sitio...
. 11).

Em termos práticos, caberia ao MD, enquanto uma burocracia de Estado institucionalizada com civis e militares, retirar alguns temas da competência exclusiva de cada uma das Forças, estimulando a comunicação entre elas com o mundo civil, especialmente no referente à Política de Defesa. Nessa direção, durante o governo Lula formulou-se a Política de Defesa Nacional (Decreto 5.484, de 30 de junho de 2005) e a Estratégia Nacional de Defesa (Decreto 6.703, de 18 de dezembro de 2008).

Relativamente ao primeiro documento, ao saudar a importância da elaboração de uma política de defesa cuja origem foi ampliada para além dos muros dos quarteis, deve-se também sublinhar perigoso retrocesso na formulação que diz respeito ao emprego das forças armadas. Nas primeiras linhas do Decreto Federal nº 5.484/2005, lê-se:

A Política de Defesa Nacional voltada, preponderantemente, para ameaças externas, é o documento condicionante de mais alto nível do planejamento de defesa e tem por finalidade estabelecer objetivos e diretrizes para o preparo e o emprego da capacitação nacional, com o envolvimento dos setores militar e civil, em todas as esferas do Poder Nacional. O Ministério da Defesa coordena as ações necessárias à Defesa Nacional. (Brasil, 2005BRASIL. Ministério da Defesa (2005). Decreto nº 5484, de 30 de junho de 2005. Aprova a Política de Defesa Nacional. Brasília-DF: Ministério da Defesa. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/D5484.htm>, consultado em 19/06/2019.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, grifos nossos).

Comparando-se a parte do texto grifada com o destaque acima informado no documento de 1996, percebe-se a retomada da indistinção entre defesa e segurança interna, pois se antes a defesa se restringia às ameaças externas, em 2005 ela passa a ser preponderantemente para o exterior, mas também abrangendo responder às ameaças internas. Cumpre lembrar que esse tipo de formulação é permitido pela Constituição, como apontam Mathias e Guzzi (2010)MATHIAS, Suzeley Kalil; GUZZI, André Cavaller (2010). “Autonomia na lei: as Forças Armadas nas Constituições nacionais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais 25, 73: 41-57. que, ao analisar oito constituições nacionais, constataram a ascensão da autonomia militar e a manutenção da confusão entre as atribuições internas e externas das forças armadas, desde 1824. Em outras palavras, “[s]em confrontar diretamente os militares”, mantendo sua autonomia, “os governos civis brasileiros buscaram pavimentar o caminho para penetrar na área da defesa sob monopólio militar” (BRANDÃO; KALIL, 2022, pBRANDÃO, Priscila C.; KALIL, Suzeley (2022). “Las fuerzas armadas brasileñas y sus principales falácias: el ethos democrático y la idoneidad administrativa”. In R. MARTINEZ (coord.). El papel de las Fuerzas Armadas en la América Latina del siglo XXI. Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2022, pp. 255-276.. 261).

Já a Estratégia Nacional de Defesa (END), de 2008, trouxe avanços para tal discussão, ao buscar construir coerência entre três questões institucionais diferentes e historicamente tratadas separadamente: as atividades desenvolvidas desde a criação do ministério da Defesa, o Plano de Desenvolvimento Nacional implantado pelo governo Lula e a política externa de busca da autonomia do país em nível internacional.

Em cumprimento à legislação, tanto a PDN quanto a END, foram revistas em 2012, 2016 e 2020.44 A revisão dos documentos, marcada para 2020, ainda não se completou em meados de 2022, momento da escrita deste texto. A versão enviada pelo governo Bolsonaro não foi objeto de discussão com a população, e carrega relevantes alterações diante das anteriores, como a obrigatoriedade do emprego de 2% do PIB nacional em gastos com a defesa. No Congresso, o tema tampouco gerou engajamento para a discussão com a sociedade. Pode-se dizer que as mudanças ali indicadas são meramente cosméticas. Ainda assim, vale à pena reproduzir o preâmbulo do primeiro documento, pois, como pode ser notado, permanece a indistinção entre defesa e segurança interna com a substituição da expressão ‘preponderantemente’ pela ‘essencialmente’, representando mais um avanço na autonomia militar em detrimento do controle civil. Diz o documento:

A Política Nacional de Defesa (PND) é o documento condicionante de mais alto nível do planejamento de ações destinadas à defesa nacional coordenadas pelo Ministério da Defesa. Voltada essencialmente para ameaças externas, estabelece objetivos e orientações para o preparo e o emprego dos setores militar e civil em todas as esferas do Poder Nacional, em prol da Defesa Nacional. (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Defesa (2012). Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa. Brasília-DF: Ministério da Defesa. Disponível em <https://www.defesa.gov.br/arquivos/estado_e_defesa/END-PND_Optimized.pdf>, consultado em 13/09/2019.
https://www.defesa.gov.br/arquivos/estad...
, grifos nossos).

Vale comentar a publicação do Livro Branco da Defesa, ocorrida em 2012. Concebido para vir à luz no primeiro mandato de Lula, quando José Viegas iniciou estudos para tanto, sofreu sucessivos adiamentos e sua materialização começou em 2008, com a publicação da END (Lima, 2015, pLIMA, Raphael C. (2015). A articulação entre política externa e política de defesa no Brasil: uma Grande Estratégia inconclusa. Dissertação de Mestrado, Programa ‘San Tiago Dantas’, São Paulo. . 63). A partir de então, foram criadas comissões de trabalho que envolviam acadêmicos, políticos civis e também militares. Todavia, a coordenação do processo foi dada à Escola Superior de Guerra (ESG), apontando que o controle do processo decisório continuaria nas mãos dos militares.

Em resumo, pode-se dizer que as gestões Lula e Dilma, desde o início prenhe de expectativas positivas quanto ao controle civil da defesa, foram frustrantes. Ao final de quase 15 anos, os avanços institucionais condensados nos documentos aqui mencionados, produto do esforço hercúleo de muitos, não se consolidaram, pois não foram acompanhados de medidas que afastassem os militares de posições de controle do processo decisório. Ao contrário, permitiu-se a ampliação das tarefas castrenses fora do âmbito da defesa, como verificado nos documentos mencionados.

Entende-se controle civil da defesa como:

A capacidade de um governo civil democraticamente eleito para realizar uma política geral sem intromissões por parte dos militares, definir as metas e organização geral da defesa nacional, formular e levar a cabo uma política de defesa e supervisionar a aplicação da política militar (Agüero 1995, pAGÜERO, Felipe (1995). Militares, Civiles y democracia: la España postfranquista em perspectiva comparada. Santiago (Chile), Alianza. .45).

Em suma, trata-se do controle civil sobre toda a política de defesa, e não apenas sobre o estamento militar.

Ministério da Defesa: um retrato

Como informado, o objetivo deste texto é bem modesto: trata-se de fornecer um retrato atual da composição em termos de recursos humanos do MD, considerando o número de civis e militares ocupando funções no Ministério, tendo em mente a primeira variável indicada por Pion-Berlin (2009)PION-BERLIN, David (2009). “Defense Organization and Civil-Military Relations in Latin America”. Armed Forces & Society 35, 3: 562-586.: “fortalecer a presença civil”. Cabe destacar que, apesar das mudanças e promessas, em nenhum moento foi criada uma carreira civil para o MD; e os funcionários civis que ali atuam o fazem por comissionamento ou disposição de outras pastas. E isso, muito embora o trabalho do MD tenha se tornado mais complexo e especializado, conforme apontam Cortinhas e Vitelli (2020)CORTINHAS, Juliano; VITELLI, Marina. (2020). “Limitações das reformas para o controle civil sobre as forças armadas nos governos do PT (2003-2016)”. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, 7, 2: 187-216.,.

Na evolução orgânica do MD, merece destaque o fato de que, ao longo dos governos Lula e Dilma, o aumento no número de cargos não correspondeu ao princípio de ‘civilianizar’ o órgão, ao menos numericamente. De acordo com Cortinhas e Vitelli (2020)CORTINHAS, Juliano; VITELLI, Marina. (2020). “Limitações das reformas para o controle civil sobre as forças armadas nos governos do PT (2003-2016)”. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, 7, 2: 187-216., entre 2003 e 2016, houve “um aumento de 60% no número de posições”, cuja proporção era igual para civis e militares na ocasião da posse do então ministro Waldir Pires (2006), momento em que se iniciou o crescimento do número de militares no órgão. Nesse período, o maior aumento foi promovido na gestão Celso Amorim (54% de postos militares), chegando a 56,1% de postos militares quando o então presidente Michel Temer nomeia o general Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar que assumiu o cargo de ministro (Cortinhas e Vitelli, 2020, pCORTINHAS, Juliano; VITELLI, Marina. (2020). “Limitações das reformas para o controle civil sobre as forças armadas nos governos do PT (2003-2016)”. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, 7, 2: 187-216.. 203-4).

Deve-se levar em conta que os dados apresentados são para o conjunto do MD, sem considerar as distintas posições hierárquicas ou comissionadas. Ademais, “(...) é preciso destacar que parte das posições que podem ser ocupadas por civis costumam ser destinadas a militares (da ativa ou da reserva), o que passou, nos governos do PT, a ser uma prática cada vez mais comum.” (Cortinhas e Vitelli, 2020, pCORTINHAS, Juliano; VITELLI, Marina. (2020). “Limitações das reformas para o controle civil sobre as forças armadas nos governos do PT (2003-2016)”. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, 7, 2: 187-216..204).

A atual estrutura organizacional do MD está regulada pelo Decreto Federal nº 9.570, de 20 de novembro de 2018. Ele revela, como nomeado por Pion-Berlin (Apud Cortinhas; Vitelli, 2020, pCORTINHAS, Juliano; VITELLI, Marina. (2020). “Limitações das reformas para o controle civil sobre as forças armadas nos governos do PT (2003-2016)”. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, 7, 2: 187-216.. 190), uma “estrutura de comando dual”: há presença civil, mas os militares detém o controle decisório da pasta. No atual organograma do MD, metade da estrutura fica subordinada à Secretaria Geral, e a outra metade ao Estado Maior Conjunto das Forças Armadas e diretamente vinculada às três Forças singulares.

Para compreender algumas dimensões do perfil dos atuais servidores do ministério da Defesa, foram levantados um conjunto de dados a respeito das suas cinco unidades administrativas - Administração Central, Escola Superior de Guerra (Rio de Janeiro), Escola Superior de Defesa (Brasília),55 O Núcleo da Escola Superior de Guerra em Brasília, passou a chamar-se Escola Superior de Defesa por determinação do Decreto 10.806/2021. No entanto, no ofício de resposta, consta: “Escola Superior de Guerra (Campus Brasília)”. Hospital das Forças Armadas, e Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam) -, bem como das seis empresas/autarquias vinculadas ao MD, a saber: Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron, Marinha), Indústria de Material Bélico do Brasil (Imbel, Exército), Amazônia Azul Tecnologias de Defesa (Amazul, Marinha), Serviços de Navegação Aérea NAV (Aeronáutica), Caixa de Construção de Casas para o Pessoal da Marinha (CCCPM), Caixa de Financiamento Imobiliário da Aeronáutica (CFIAE). Observe-se que não se atentou, neste momento, para as agências reguladoras.

Os dados são respostas às seguintes questões: Qual o número total de servidores do Ministério da Defesa? Desse total, quais são funcionários do próprio Ministério da Defesa? Quantos são os funcionários concursados que hoje exercem a carreira no Ministério da Defesa e qual a sua origem? Quantos desses funcionários são contratados? Qual a modalidade de contratação e a temporalidade do contrato?

Quanto à composição civil-militar, as questões foram: Quantos servidores são militares? Quantos são da ativa e da reserva? De que Força proveem e quais as suas patentes? Existem membros de outras forças de segurança? Com relação aos civis, quantos são e qual a sua origem profissional? Quantos cargos comissionados de Direção e Assessoramento Superior (DAS) o Ministério possui? Como foram distribuídos entre os civis e militares?

Por fim, quais as empresas e autarquias vinculadas ao Ministério da Defesa? Quantos militares estão nessas empresas, são da ativa ou da reserva? Qual Força singular de origem e patente dos militares?

A totalidade dos dados apresentados foram tabulados a partir do ofício 26423/ASPAR/GM-MD (Ministro Walter Braga Neto), emitido em 30/09/2021, fruto do requerimento de informação nº 996/2021, elaborado pelo Deputado Federal Patrus Ananias (PT/MG), aqui apresentados em tabelas e gráficos para facilitar a visualização. Como as informações são relativas aos Recursos Humanos, elas estão em constante movimento, pois funcionários deixam e chegam ao Ministério por diferentes motivos, por isso, a presente análise está caracterizada como um retrato do momento da resposta ao requerimento. Todavia, tais alterações tendem a não ser significativas a ponto de afetar as conclusões do estudo a respeito da composição do MD ao longo do atual governo. Informa-se também que, embora o Instituto Pandiá Calógeras constasse como parte da estrutura organizacional do MD (Decreto Federal nº 9.570/2018) no momento em que o referido ofício foi emitido, ele sequer foi mencionado na resposta do Gabinete Ministerial, razão pela qual tal instituto não é mencionado no presente artigo.

Os dados da tabela 1 não trazem novidade, mostrando que o MD apresenta um número modesto de servidores, estando em acordo com o seu provimento legal. Por outro lado, o número de funcionários lotados no HFFAA - quase metade deles -, um setor de apoio indireto, não ligado nem à atividade fim (defesa nacional) nem à formulação estratégica do MD, pode levar à distorção da análise. Subtraindo o HFFAA, o percentual de funcionários na Administração Central atinge mais de 70%.

Tabela 1
Total de servidores do MD por unidade administrativa* * Resposta à pergunta: “Qual a totalidade de funcionários lotados no MD?”

Ao avaliar os dados da tabela 2, o primeiro elemento de análise é que há uma diferença substantiva no número total de funcionários (tabela 1) e a somatória por tipo de contrato (tabela 2): entre uma e outra informação, desaparecem 242 servidores. Subtraindo do total a lotação do HFFAA, este número sobe para 992, desaparecendo quase 40% do total de funcionários informado. Pode-se aventar que são funcionários que ocupam cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS), de livre provisão do Executivo, ou outras modalidades de contratação.

Tabela 2
Distribuição de funcionários do MD segundo categoria contratual* * Resposta às perguntas: Da totalidade dos funcionários do MD: “Quais são funcionários do próprio MD? Quantos são concursados? Qual seu local de origem? Quantos desses funcionários são contratados? Qual a modalidade de contratação?”

Desconsiderando o HFFAA, outro dado que chama a atenção é a desproporção entre funcionários próprios, que representam 20,6% do total, vis-à-vis contratados e comissionados, respectivamente 43,8% e 35,7%. Além disso, menos de 10% da lotação de funcionários próprios está na Administração Central, justamente a quem cabe propor e gerir a Política de Defesa. Considerando tais percentuais, vê-se que o MD parece ser apenas uma instituição temporária, sem cumprir com sua função precípua de formular a Estratégia que o país necessita. Por fim, entre as unidades analisadas, a ESG DF é aquela em que os funcionários regidos por outros tipos de contrato - PTTC e militares temporários - predominam.

Olhar especificamente para os funcionários comissionados pode oferecer novas informações. Em 2021, o MD tinha disponíveis para distribuição, entre civis e militares, 384 funções/gratificações. Segundo Schmidt (2022)SCHMIDT, Flávia H. (2022). Presença de militares em cargos e funções comissionados do Executivo Federal (Nota Técnica). Brasília, IPEA. Disponivel em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=39298&Itemid=466, consultado em 05/06/22.
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php...
, no mesmo ano, 223 desses cargos eram ocupados por militares. Porém, para compreender quem de fato tem poder de mando no interior do Ministério, vale a pena observar os cargos de natureza especial, como apontado na tabela 3.

Tabela 3
Cargos de Natureza Especial, por órgão de exercício (2013-2021)

Schmidt (2022)SCHMIDT, Flávia H. (2022). Presença de militares em cargos e funções comissionados do Executivo Federal (Nota Técnica). Brasília, IPEA. Disponivel em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=39298&Itemid=466, consultado em 05/06/22.
https://www.ipea.gov.br/portal/index.php...
oferece dados sobre a ocupação militar dos cargos de maior poder político-administrativo (primeiro e segundo escalão) no Executivo Federal que corroboram a militarização do governo, notadamente da Presidência da República e no Ministério da Defesa. Além da expansão, fica evidente que, no caso do MD, a estrutura orgânica (transformação dos antigos Ministérios em Comandos Militares, sem perda de posição) faz com que os cargos mais importantes sejam destinados a militares como algo natural, como se tais cargos fossem de ‘natureza militar’. No entanto, tais cargos exigem capacidades distintas daquelas da atividade-fim da caserna, que é o manejo inteligente de armas e informações para manter a paz por meio do bom preparo para a guerra.

Para dar maior consistência à avaliação aqui sugerida, os dados apresentados na tabela 4, o são desagregados por Força singular e por atividade.

Tabela 4
Percentual de Servidores Militares por Força e situação lotados no MD* * Resposta às perguntas: Da totalidade dos funcionários do MD: “Quantos são militares? De que Força provém? Quantos são da ativa e quantos da reserva?”

A primeira observação a ser feita é que há um completo controle do MD pelos militares, pois estes respondem por 64,5% (1.637 do total de 2.537 funcionários) do quadro ali lotado. Ademais, o maior percentual de militares da ativa está na Administração Central, o que reforça a percepção de autonomia militar na construção da política de Defesa no Brasil; por outro lado, esse dado desmente a percepção de que o MD seria o destino para complementar salários quando os militares deixam a Força.

Os locais de maior lotação de militares da reserva são as duas unidades da ESG e o Censipan, este último congrega o maior percentual de inativos entre os três, confirmando que tais instituições funcionam como destino para militares na reserva ou reformados, o popular ‘cabide de emprego’, mantendo-se sem corpo próprio concursado.

Embora uma comparação entre órgãos regionais esteja fora do escopo deste estudo, cabe observar, especificamente em relação à ESGDF, recém batizada Escola Nacional de Defesa, que a alocação funcional ali verificada, com forte presença de militares reformados, vai na contramão das suas coirmãs sul-americanas, que foram pouco a pouco desmilitarizadas e hoje predominam civis em seus quadros, com destaque para o corpo docente (Frenkel, 2016FRENKEL, Alejandro (2016). Entre promesas y realidades: La Unasur y la creación de la Escuela Sudamericana de Defensa. Relaciones Internacionales (UAM), 31.).

Destaque-se que a maioria dos militares lotados no MD provém do Exército, que contribui com quase metade da totalidade de funcionários castrenses, a maior parte, como já indicado, da ativa. Este dado reafirma antiga percepção da Marinha e da Aeronáutica que apontavam este perigo para resistir à criação do MD. Hoje, o Ministério é dominado, ao menos numericamente, pelo Exército.

Cabe observar, todavia, que do ponto de vista dos efetivos de cada Força, o Exército detém legalmente aproximadamente 65% do total da tropa, enquanto Marinha e Aeronáutica contribuem com em torno de 17% cada uma. Nesse sentido, a distribuição de cargos no MD, embora concentre maior número de oriundos do Exército (42%), apresenta maior equilíbrio.

Já quando se analisam as empresas vinculadas ao MD, outra é a situação encontrada, com a predominância de oficiais da ativa como se observa na tabela 5, abaixo:

Tabela 5
Percentual servidores militares lotados nas empresas/autarquias vinculadas ao MD* * Resposta às perguntas: “quais as empresas e autarquias vinculadas ao Ministério da Defesa? Quantos militares estão nessas empresas, são da ativa ou da reserva, Força singular de origem e patente?”

Inicialmente, cumpre notar que a Força que predomina no quadro de servidores militares tende a seguir a vinculação da empresa/autarquia vinculada. Assim, embora as empresas tenham autonomia administrativa e, portanto, possam contratar servidores civis ou militares de qualquer origem, em geral, marinheiros contratam marinheiros, aviadores contratam aviadores, e soldados contratam soldados. Como a Marinha tem três empresas/autarquias a ela vinculadas na estrutura do MD, predominam os marinheiros quando se analisa o quadro total de servidores lotados nas empresas/autarquias. Porém, quando se avalia cada empresa individualmente, é diferente, ou seja, na Imbel predominam militares do Exército, bem como nas NAV e CFIAE, verifica-se maior número de aeronautas.

Este quadro também diverge da análise dos servidores do MD quanto à composição de servidores da ativa e da reserva. Nas diferentes unidades vinculadas ao ministério, predominam os militares da ativa, que chegam a quase 80% na administração central. Quando analisados exclusivamente os servidores vinculados às empresas/autarquias, a composição ativa/reserva aproxima-se da paridade.

Por fim, embora os dados não estejam completos, é pertinente tratar da patente a que pertencem esse grupo específico de servidores militares. Excluindo-se os servidores vinculados à Engeprom, cujas informações não possuímos, dos 436 servidores analisados, 139 são oficiais generais ou superiores, aproximadamente 32%. Este percentual, como em seguida será apresentado na tabela 6, é semelhante àquele encontrado no MD.

Tabela 6
Evolução na ocupação de cargos por civis e militares no MD (2005/2021)* * Desconsiderou-se o HFFAA na composição dos dados.

A tabela 6 revela dados surpreendentes. Em primeiro lugar, diferente do que se poderia esperar, o maior número de militares no MD aparece no último ano do primeiro mandato da presidenta Dilma (2014), com impressionantes 67,1%. Interessante observar que é neste ano que a distribuição de cargos entre militares da ativa e da reserva é a menos desproporcional, quase paritária. Pode-se levantar como hipótese que o MD estava se transformando em moeda de troca política, refletindo o papel do Legislativo na indicação de militares já na reserva. Todavia, parece difícil valer a mesma hipótese explicativa para o grande aumento de ocupação de cargos por militares relativamente aos civis. Talvez aqui se tratasse de buscar cooptar os militares no apoio a Dilma Rousseff, uma Comandate em Chefe que encontrava muitas resistências na caserna, apontando para a fragilidade do governo democrático no país.

Em compensação, na passagem para 2015, primeiro ano do segundo mandato, há queda, e ela é expressiva (maior que 3 pontos percentuais), na (des)proporção castrense em cargos no MD. Embora não chegue nem perto do patamar de 2010, quando houve a passagem do governo de Lula para Dilma, essa queda fragiliza a hipótese acima levantada.

Outro dado inusitado, mas que pode estar contaminado pela origem diferente de sua produção,66 Os dados de 2016 foram retirados do artigo de Cortinhas e Vitelli (2020) e solicitados via lei de acesso à informação, enquanto os dados de 2021 foram objeto de resposta ao requerimento de informações 996/2021, objeto de análise neste texto. é que houve queda da ocupação de cargos por militares relativamente aos civis entre o governo Temer (2016) e o atual (2021). Diferentes autores identificam o governo Bolsonaro como um dos mais militarizados da história do país, e é pouco provável que a militarização não tenha ocorrido em proporções extraordinárias na pasta de Defesa. Por fim, além de ser um percentual baixo, houve uma compensação em termos absolutos, tendo o número total de postos do MD quase dobrado.

A queda do número de militares em relação ao de civis no MD ainda é mais singular quando se leva em conta que, na atual gestão federal, houve um substantivo aumento da presença castrense em postos de ocupação tradicionalmente civil na administração federal, calculado em torno de 6.000 militares pelo Tribunal de Contas da União em 2020 (Cavalcanti; Victor, 2020CAVALCANTI, Leonardo; VICTOR, Nathan. (2020). Bolsonaro mais que dobrou contingente de militares no governo, aponta TCU. Poder 360. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-mais-que-dobrou-contingente-de-militares-no-governo-aponta-tcu/>, consultado em 15/06/2023.
https://www.poder360.com.br/governo/bols...
).

Considerando a divisão por patentes apontada na tabela 7, o primeiro dado que chama a atenção é o número de Suboficiais e Praças servindo no MD - são 841 de um total de 1.637. Em termos percentuais, representam 51,4% do total, só não superando os 50% nos militares destes postos na Administração Central. Sabe-se que são classificados nesta categoria profissionais cujas tarefas são semelhantes àquelas civis (serviços de manutenção, limpeza, secretaria, entregas, etc.). Por isso, cabe perguntar: qual a justificativa para a manutenção deste número de suboficiais e praças no MD? E se existem tantos militares disponíveis para realizar este tipo de trabalho, por quais razões também são contratadas empresas terceirizadas para realizar tais tarefas? Cabe lembrar que apenas na Administração Central os terceirizados representam 58,8% do total de funcionários informados segundo o tipo de contrato, tal como registrado na Tabela 2.

Tabela 7
Servidores militares do MD por conjunto de patentes* * Resposta à pergunta: Quais as patentes dos militares lotados no MD?

Uma explicação possível para a quantidade de militares desempenhando tarefas não especializadas e mesmo corriqueiras é o desejo por mimetizar no MD a estrutura organizacional das próprias forças armadas, fazendo ali vigir a mesma disciplina da caserna. Desconhece-se justificativas técnicas para manter restritos a militares funções auxiliares como garçom ou limpeza. Se isso não é pertinente dentro dos quartéis, é ainda mais inadequado fora dele. Tal maneira de organizar o MD reforça, assim, a ideia de que ele foi criado como encenação: para manter a aparência de ‘civilianização’ resultante da transição para o governo democrático. Ao mesmo tempo, fortalece a visão de que o MD é organismo de representação das forças armadas junto à Presidência da República, quase numa lógica sindical, e jamais o órgão responsável pela realização do plano de governo eleito pelo voto popular junto às Forças. Além disso, a política de Defesa é entendida por diferentes segmentos como política de Estado, não devendo por isso ser modificada no mesmo ritmo que as trocas de governo.

Ainda em relação à Administração Central, duas outras informações registradas na tabela 7 merecem ser destacadas. A primeira, é o número expressivo de Oficiais Superiores: são 356 militares com curso de Estado-Maior, a maioria dos quais coronéis, normalmente destacados para auxiliar os comandantes no desenho de políticas. Tal concentração de oficiais superiores alocados em distintos postos de provisão civil da burocracia federal já foi apontada em outras análises (Mathias, 2004MATHIAS, Suzeley Kalil (2004). A militarização da burocracia: a participação militar na administração federal das comunicações e da educação, 1963-1990. São Paulo: Editora Unesp.; Penido e Kalil, 2021aPENIDO, Ana A. O.; KALIL, Suzeley (2021a). “Ação política do Partido Militar no Brasil sob Bolsonaro”. Anuário Latino americano de Ciências Políticas y Relacionais Internacionales, 11: 63-82. ) e parece ser a forma de disseminar o ethos militar pela administração pública. Merece destaque o número expressivo de ocupação de militares da patete de Coronel, considerada o “funil” da carreira, atribuída àqueles que desenvolveram sua vida de trabalho naturalmente, muitas vezes, em razão da classificação obtida nos primeiros anos de estudos, nutrindo fundadas expectativas da ascensão ao generalato. No entanto, uma vez que o número de generais é reduzido, conforme determinação legal, há uma abundancia de coronéis que deverão passar para a reserva sem a promoção. Por isso, como existem coronéis em número maior do que os comandos que poderiam ocupar, tais coronéis são deslocados para tarefas de assessorias aos generais, essa a hipótese aqui aventada.

A segunda observação é que também os Oficiais Generais estão concentrados na Administração Central, respondendo por 81% dos generais alocados no MD, ou seja, estão exatamente nos locus de decisão política e gestão administrativa. É possível que a concentração de generais no vértice do MD tenha ainda uma terceira finalidade: impor disciplina a toda a organização, incluindo os funcionários civis, da burocracia responsável pela política de defesa e estratégia nacional. Em outras palavras, na inexistência de uma carreira civil, com os militares acreditando piamente em sua competência exclusiva para a formulação estratégica (afinal, passaram a vida inteira sendo preparados para isso), qual funcionário civil, ainda que doutor em ciência política ou em administração pública, ousaria contrarrestar um general?

Reforça esta percepção a análise dos civis alocados na Administração Central (AC). Como o oficio nº 26423/ASPAR/GM-MD, principal fonte deste artigo informa, dos 220 civis ali lotados, mais da metade (157) não têm a profissão definida, apenas constando ‘cargo comissionado’,77 Cargo comissionado pode ser tanto um ‘datilografo’ cedido ao MD porque estava sem função no seu local de concurso, como um doutor em finanças apadrinhado por algum congressista. situação que é seguida de longe por Agente Administrativo (21), e outras profissões, nenhuma somando mais de 9 indivíduos. A falta de especialização dos funcionários civis alocados no MD leva à pergunta: algum dos governos nutriu um projeto ‘civilianizador’ para a administração da Defesa?

Uma última observação a ser feita neste retrato é sobre a participação das outras forças de segurança no MD. Se é verdade que há muitos militares das forças armadas designados para o Ministério da Justiça e mesmo para as Secretarias de Justiça ou Segurança, a lógica inversa não é verdadeira, pois há apenas quatro policiais (3 policiais federais e um policial rodoviário federal) destacados para o MD, todos alocados no Censipam.

As assessorias do Ministério da Defesa junto ao Legislativo

Até agora, tratou-se da composição intramuros do Ministério da Defesa. Nesta última seção, dedicaremos algumas linhas para a compreensão do perfil dos recursos humanos que o MD, um órgão do Executivo, mantém de maneira permanente com a atribuição de estabelecer relações com outro poder, o Legislativo Federal. A discussão geral sobre como essas ligações ocorrem não será objeto deste artigo, focado exclusivamente na composição de pessoal. Além disso, cumpre informar que as assessorias ministeriais, aqui discutidas, nada têm a ver com a assessoria parlamentar profissional, exercida por funcionários concursados para isso.

Os dados apresentados a seguir, na tabela 8, foram extraídos do ofício nº 34.568, emitido pelo Ministério da Defesa em 07/01/2022, como resposta ao Requerimento de Informações 1.319/2021, elaborado pelo deputado federal Patrus Ananias (PT/MG). Inicialmente, cumpre notar que, além do Ministério da Defesa, cada Comando de Força mantém a sua própria Assessoria Parlamentar, o que reforça a análise defendida neste artigo, qual seja, de que parecem existir não 01, mas 04 Ministérios dedicados aos temas de defesa e forças armadas.

Tabela 8
Assessorias Parlamentares do MD e dos Comandos* * Resposta às perguntas: qual a totalidade de funcionários lotados na Assessoria Parlamentar? Quantos são concursados e qual o seu local de origem? Quantos são contratados, qual a modalidade de contratação e a temporalidade do contrato? Quantos são militares e quantos são civis?

Juntos, existem 49 pessoas, 06 delas civis, cuja atividade é representar os interesses do Ministério da Defesa e das Forças singulares junto aos parlamentares eleitos. Essa composição reforça a leitura geral aqui desenvolvida quanto à militarização da condução do tema no Brasil. Uma vez que predominam os militares, predominam também os concursados em detrimento de ocupantes de funções comissionadas. Cabe, porém, um olhar mais apurado sobre quem são esses militares.

Por fim, a tabela 09 revela o predomínio dos militares da ativa entre aqueles que compõem as assessorias parlamentares. Das 49 pessoas com a atribuição, 36 são militares da ativa, conformando um total de 73%. Em outras palavras, quando se trata da representação dos interesses das Forças junto ao Legislativo, praticamente não há terceirização para militares da reserva ou para civis. Entre as patentes presentes, assim como na composição do RH do MD, predominam os oficiais intermediários. Entretanto, sob um aspecto a análise das assessorias diverge da análise do MD. Quando isolados apenas os militares, não há predomínio do Exército sobre as demais Forças.

Tabela 9 Assessores Militares no Congresso com origem no MD e nos Comandos singulares* * Resposta à pergunta: Quantos militares são assessores legislativos? São da ativa ou da reserva? Qual a sua Força de origem e patente?
Origem Ativa /patente Reserva / patente
Ministério da Defesa 04 (01 Capitão Mar e Guerra, 03 do Exército - 01 Segundo-Tenente, 01 Subtenente e 01 Cabo). 04 (01 Capitão do Exército, e 03 da Aeronáutica - 01 Brigadeiro, 01 Coronel e 01 Suboficial)
Comando da Marinha 11 (02 Capitães de Mar e Guerra, 03 Capitães de Fragata, 02 Capitães de Corveta, 01 Suboficial, 01 Primeiro Sargento, 01 Terceiro-Sargento, 01 Cabo. 0
Comando do Exército 13 (07 coronéis, 01 capitão, 01 tenente, 01 subtenente, 01 sargento e 02 cabos) 01 (coronel)
Comando da Aeronáutica 08 (1 Brigadeiro, 02 coronéis, 01 Tenente-Coronel, 02 Majores, 01 Capitão, 01 Tenente 02 (coronéis)
Total 36 07
  • *
    Resposta à pergunta: Quantos militares são assessores legislativos? São da ativa ou da reserva? Qual a sua Força de origem e patente?
  • Fonte: elaboração própria a partir do ofício nº 26.423/2021
  • Considerações Finais

    O texto aqui apresentado representa uma análise dos dados coletados por meio do já mencionado ofício nº 26.423/ASPAR/GM-MD. Outras informações precisam ser coligidas e confrontadas com estes dados para robustecer a avaliação aqui apresentada. O que se pode indicar até aqui é:

    1. 1

      Há clara predominância, inclusive em número de funcionários, de militares relativamente aos civis no MD;

    2. 2

      O maior número de funcionários civis do MD está no HFFAA;

    3. 3

      O menor número de civis (4% do total de civis alocados no MD) está na ESG de Brasília;

    4. 4

      Apenas 3,3% da Administração Central são de quadro próprio do MD, o que significa o seu aparelhamento pelos militares, que mantém o controle sobre a formulação de políticas na área e sobre o orçamento;

    5. 5

      A resistência da Marinha e da Aeronáutica com a criação do MD mostra-se justificada, pois o órgão foi dominado pelo Exército, que ocupa 53% dos postos no MD;

    6. 6

      O perfil dos servidores militares vinculados às empresas/autarquias diverge do quadro da administração central e suas unidades, com predomínio da Marinha e paridade entre servidores da ativa e da reserva;

    7. 7

      Há um número expressivo de suboficiais e praças lotados no MD, cujas tarefas, tudo indica, podem ser realizadas por civis. A hipótese aventada é que se quer manter no MD um corpo de funcionários subordinado à disciplina militar;

    8. 8

      Há predominância de militares da ativa no MD, sendo a média de militares da reserva contratados 18%;

    9. 9

      O MD e as Forças singulares mantêm quase 50 servidores cuja tarefa é representar seus interesses junto ao Legislativo.

    Em suma, como se buscou enfatizar ao longo do texto, o MD está longe de ser um órgão civil de formulação da política de defesa e do exercício da autoridade civil sobre seus operadores, as forças armadas. Na realidade, ao invés da ‘civilianização’, ocorreu a (re)militarização do Ministério. O prefixo ‘re’ indica que o Ministério da Defesa nunca deixou de ser militar, característica acentuada durante o governo Bolsonaro.

    Uma última questão que desejamos enfatizar é que, embora no Livro Branco de Defesa do Brasil os números de recursos humanos alocados diretamente nas Forças singulares seja apresentado subordinado aos dados gerais do MD, o ofício de resposta que subsidia essa análise não faz nenhuma menção aos civis e militares lotados diretamente nas Forças. Por isso, em próximos trabalhos, pretende-se investigar a existência não de um, mas de quatro ministérios que mantêm autonomia absoluta entre si inclusive no controle do seu pessoal: o ministério da Defesa, da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.

    Bibliografia

    • AGÜERO, Felipe (1995). Militares, Civiles y democracia: la España postfranquista em perspectiva comparada. Santiago (Chile), Alianza.
    • BRANDÃO, Priscila C.; KALIL, Suzeley (2022). “Las fuerzas armadas brasileñas y sus principales falácias: el ethos democrático y la idoneidad administrativa”. In R. MARTINEZ (coord.). El papel de las Fuerzas Armadas en la América Latina del siglo XXI. Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2022, pp. 255-276.
    • BAÑON, Rafael; OLMEDA, José. A. (1985). La Instituición Militar em El Estado Contemporáneo, Madrid, Alianza Editorial.
    • BRASIL. Ministério da Defesa (1996). Política de Defesa Nacional. Brasília-DF: Ministério da Defesa. Disponível em <https://www.defesa.gov.br/enternet/sitios/ internet/pedn/php>, consultado 23/08/2003.
      » https://www.defesa.gov.br/enternet/sitios/
    • BRASIL. Ministério da Defesa (2005). Decreto nº 5484, de 30 de junho de 2005. Aprova a Política de Defesa Nacional. Brasília-DF: Ministério da Defesa. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/D5484.htm>, consultado em 19/06/2019.
      » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/D5484.htm
    • BRASIL. Ministério da Defesa (2012). Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa. Brasília-DF: Ministério da Defesa. Disponível em <https://www.defesa.gov.br/arquivos/estado_e_defesa/END-PND_Optimized.pdf>, consultado em 13/09/2019.
      » https://www.defesa.gov.br/arquivos/estado_e_defesa/END-PND_Optimized.pdf
    • CAVALCANTI, Leonardo; VICTOR, Nathan. (2020). Bolsonaro mais que dobrou contingente de militares no governo, aponta TCU. Poder 360. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-mais-que-dobrou-contingente-de-militares-no-governo-aponta-tcu/>, consultado em 15/06/2023.
      » https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-mais-que-dobrou-contingente-de-militares-no-governo-aponta-tcu/
    • CASTRO, Celso; DARAUJO, Maria Celina (2001), Militares e política na Nova República Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas.
    • CORTINHAS, Juliano; VITELLI, Marina. (2020). “Limitações das reformas para o controle civil sobre as forças armadas nos governos do PT (2003-2016)”. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, 7, 2: 187-216.
    • D’ARAUJO, Maria C. (2010). Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Sul. Rio de Janeiro, FGV editora.
    • FINER, Samuel (2002), The man on the horseback New Brunswick: Transaction.
    • FRENKEL, Alejandro (2016). Entre promesas y realidades: La Unasur y la creación de la Escuela Sudamericana de Defensa. Relaciones Internacionales (UAM), 31.
    • FUCCILLE, Luis. A. (2006). Democracia e questão militar: a criação do Ministério da Defesa no Brasil. Tese de Doutorado IFCH-Unicamp, Campinas (SP).
    • FUCCILLE, Luis. A.; WINAND, Érica. C. A. (2018). “Ministério da Defesa”. In H. Saint-Pierre & M. G. Vitelli (orgs.). Dicionário de segurança e defesa (eBook). São Paulo, Ed. Unesp Digital.
    • LIMA, Raphael C. (2015). A articulação entre política externa e política de defesa no Brasil: uma Grande Estratégia inconclusa. Dissertação de Mestrado, Programa ‘San Tiago Dantas’, São Paulo.
    • MATHIAS, Suzeley Kalil; GUZZI, André Cavaller (2010). “Autonomia na lei: as Forças Armadas nas Constituições nacionais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais 25, 73: 41-57.
    • MATHIAS, Suzeley Kalil (2004). A militarização da burocracia: a participação militar na administração federal das comunicações e da educação, 1963-1990. São Paulo: Editora Unesp.
    • OLIVEIRA, Eliezer Rizzo (2005). Democracia e Defesa Nacional: a criação do Ministério da Defesa na presidência de FHC. Barueri (SP), Manole.
    • OLIVEIRA, Eliezer Rizzo; SOARES, Samuel A. (2010). “Brasil, Forças Armadas, direção política e formato institucional”. In: M. C. D’ARAUJO & C. CASTRO (orgs.). Democracia e Forças Armadas no Cone Sul Rio de Janeiro: FGV.
    • PENIDO, Ana A. O.; KALIL, Suzeley (2021a). “Ação política do Partido Militar no Brasil sob Bolsonaro”. Anuário Latino americano de Ciências Políticas y Relacionais Internacionales, 11: 63-82.
    • PENIDO, Ana A. O.; KALIL, Suzeley (2021b). “O Partido Militar no Sistema Político Brasileiro”. In L. Castro; M. Bugarin & F. Schwartz (orgs.). Anais do Simpósio Interdisciplinar sobre o Sistema Político Brasileiro e XI Jornada de Pesquisa e Extensão da Câmara dos Deputados. Santo Ângelo, Metrics.6550/978-65-89700-34-0.473-489.
      » https://doi.org/6550/978-65-89700-34-0.473-489
    • PION-BERLIN, David (2009). “Defense Organization and Civil-Military Relations in Latin America”. Armed Forces & Society 35, 3: 562-586.
    • SAINT-PIERRE, Héctor (1993). “Racionalidade e Estratégias”. Premissas, NEE -UNICAMP, 3: 24-51.
    • SCHMIDT, Flávia H. (2022). Presença de militares em cargos e funções comissionados do Executivo Federal (Nota Técnica). Brasília, IPEA. Disponivel em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=39298&Itemid=466, consultado em 05/06/22.
      » https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=39298&Itemid=466
    • SHARE, David; MAINWARING, Scott (1986). “Transição pela Transação: democratização no Brasil e na Espanha”. Dados, 29, 2: 207-236.
  • 1
    Cumpre lembrar que, segundo a Lei de Acesso à Informação (12.527 de 2011), constitui uma conduta ilegal o agente público ou militar: recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa.
  • 2
    Cargos de natureza civil são, por exclusão, aqueles não definidos como de provimento militar. Conforme determina a Lei Federal nº 6880/1980 (Estatuto dos Militares), artigo 20, § 1º, é cargo de natureza militar aquele “que se encontra especificado nos Quadros de Efetivo ou Tabelas de Lotação das Forças Armadas ou previsto, caracterizado ou definido como tal em outras disposições legais.” Como apontado em seguida, houve mudanças no sentido de ampliar os cargos de livre provimento militar – Decretos 9088/17 e 10.013/19 –ou alterar a natureza dos cargos, transformando cargos anteriormente civis em militares.
  • 3
    Cumpre lembrar que, segundo a legislação brasileira, com destaque para a Lei Federal nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares), militares não podem ser sindicalizados ou eleger representantes para os seus pleitos junto ao poder político.
  • 4
    A revisão dos documentos, marcada para 2020, ainda não se completou em meados de 2022, momento da escrita deste texto. A versão enviada pelo governo Bolsonaro não foi objeto de discussão com a população, e carrega relevantes alterações diante das anteriores, como a obrigatoriedade do emprego de 2% do PIB nacional em gastos com a defesa. No Congresso, o tema tampouco gerou engajamento para a discussão com a sociedade.
  • 5
    O Núcleo da Escola Superior de Guerra em Brasília, passou a chamar-se Escola Superior de Defesa por determinação do Decreto 10.806/2021. No entanto, no ofício de resposta, consta: “Escola Superior de Guerra (Campus Brasília)”.
  • 6
    Os dados de 2016 foram retirados do artigo de Cortinhas e Vitelli (2020)CORTINHAS, Juliano; VITELLI, Marina. (2020). “Limitações das reformas para o controle civil sobre as forças armadas nos governos do PT (2003-2016)”. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, 7, 2: 187-216. e solicitados via lei de acesso à informação, enquanto os dados de 2021 foram objeto de resposta ao requerimento de informações 996/2021, objeto de análise neste texto.
  • 7
    Cargo comissionado pode ser tanto um ‘datilografo’ cedido ao MD porque estava sem função no seu local de concurso, como um doutor em finanças apadrinhado por algum congressista.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jul 2023
    • Data do Fascículo
      2023

    Histórico

    • Recebido
      12 Jul 2022
    • Aceito
      21 Dez 2022
    Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - sala 116, CEP: 05.655-010, Tel.: (+55 11) 3091-4664 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: anpocs@anpocs.org.br