Acessibilidade / Reportar erro

Livro O que é meu: memórias, estradas, caminhões e a politização da vida

Book What is mine: memories, roads, trucks and the politicization of life

BORTOLUCI, José Henrique. 2023. O que é meu. 1a edição. São Paulo: Fósforo

José Henrique Bortoluci, professor de Sociologia da Fundação Getúlio Vargas – São Paulo (FGV/SP), lançou em 2023 o seu livro de estreia na literatura, O que é meu, publicado pela editora Fósforo. Antes de ser lançado no Brasil, o livro já era um sucesso fora do país e atraiu o interesse de editoras de 10 países, algo raríssimo entre os autores brasileiros.

O livro narra as histórias do pai do autor, José Bortoluci, e as inúmeras viagens, aventuras e situações inusitadas que viveu como caminhoneiro desde que tinha 22 anos de idade, em meados dos anos 1960, cruzando o país de Norte a Sul. Também somos apresentados à história do próprio autor, que ascendeu socialmente graças aos estudos. Foi escrito a partir de seis entrevistas gravadas que o autor fez com seu pai após o diagnóstico de câncer, no final do ano de 2020, mas também de anotações no caderno, notas do celular, comentários e frases escutadas, das memórias afetivas do autor e do diário de sua mãe.

Escrevo entre duas devastações. Uma delas acomete o corpo do meu pai. A outra é coletiva, nacional. Nos últimos anos, fomos abatidos pelo macabro experimento político do grande mal que escancara os dentes para a pilha de mortos que nem mais conseguimos contar (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 20).

O autor fala no livro que inicialmente pensou em fazer uma história social dos caminhoneiros ou uma sociologia histórica da categoria, em que o pai seria um dos casos, mas desiste, assim como deixa de lado a preocupação com método e estilo, que em suas palavras, viraram “penduricalhos teóricos” (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 26) a partir da urgência imposta pelo diagnóstico de câncer do pai.

O pai de José Bortoluci fez o exercício de memória, de resgatar como era a vida na estrada e contar para o filho que desde a infância tinha interesse pelas histórias vividas pelo pai, que chegava a ficar quarenta, cinquenta dias fora de casa. “O pai caminhoneiro visita a casa, a esposa e os filhos” (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 9).

Enquanto a rotina daquela família acontecia em Jaú, estado de São Paulo, com a mãe que também trabalhava para sustentar a casa e os dois filhos, o pai estava cruzando o país pelas rodovias, ajudando a ocupar a Amazônia, projeto dos militares durante a ditadura que contribuiu para o processo de destruição da floresta, crescimento do garimpo ilegal e as inúmeras violências sofridas pelos povos indígenas.

O parque industrial do país se expandia e a demanda por novos modelos de caminhão era crescente, sobretudo nos anos do chamado “milagre econômico”, entre os finais dos anos 1960 e meados de 1970. Esse ilusório “milagre” teve o caminhão como sua condição de possibilidade em um país continental, quase desprovido de linhas férreas e dotado de um exíguo sistema fluvial para o transporte de cargas (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 51).

José Henrique Bortoluci observa que a palavra ditadura pouco aparece na narrativa do pai. Quando o pai fala de militares, fala de sujeitos concretos que conheceu, alguém que conversou, que cruzou seu caminho, ou os soldados que levou na carroceria do seu caminhão no início dos anos 1970. O pouco que recorda e remete ao autoritarismo da época é sobre o medo que existia de falar, inclusive de falar a palavra “presidente” (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 84). Sobre a repressão, torturas e mortes, o pai comenta: “a gente até ouvia falar de vez em quando, mas na estrada eu nunca vi nada disso” (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 84). É interessante observar que ao mesmo tempo que não há referências críticas à ditadura e aos militares, também não há elogios, de modo que o autor afirma: “me atrapalho quando tento revestir suas falas com o glossário do debate político ilustrado e progressista com que estou acostumado” (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 83).

O pai do autor, Jaú, como era conhecido na estrada, foi um dos inúmeros trabalhadores que ajudaram na construção da Transamazônica, carregando no caminhão materiais para aquela obra, mas também o sonho de uma vida melhor.

Os ideais do empreendedorismo não são novidade entre as classes trabalhadoras brasileiras. O “sonho de não ter patrão” sempre andou de mãos dadas com o “sonho da casa própria”, e ambos impõem riscos para os trabalhadores: o fantasma da dívida, o flagelo dos juros, a precariedade das redes de proteção social, as sucessivas crises econômicas, chance real de perder tudo e não ter alternativa. Como autônomo, meu pai pagou por anos a previdência pública para conseguir se aposentar com apenas um salário mínimo, depois de décadas de trabalho fatigante (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 53).

O livro nos apresenta falas do José Bortoluci, chamado na cidade onde mora e pelos familiares de Didi, sobre a vida de caminhoneiro que teve, a saudade que sentia de casa, os amigos que fez na estrada, os medos e as aventuras de cruzar o país com cargas que tinham prazo para serem entregues. Ao mesmo tempo, o livro O que é meu mescla estas memórias com as análises do filho, sociólogo, que une a vida privada do pai às lembranças de sua infância, quando já notava as contradições entre o que escutava em casa e o que era contado na escola, assim como a análise sociopolítica da vida do país. A politização da vida, daquilo que faz parte do seu cotidiano como pesquisador e professor, que atravessava a vida do seu pai, da sua família e de outros trabalhadores. É esta relação entre o micro e o macro, entre as histórias de vida do pai e as desigualdades constitutivas do Brasil, que faz do livro uma obra que pode ser lida, estudada e pensada não apenas pelo viés da literatura, porque a escrita de José Bortoluci também é política.

A narrativa de Bortoluci se aproxima de Annie Ernaux, autora francesa que ganhou o Nobel de literatura em 2022, vale registrar, a primeira mulher francesa a receber o prêmio. Nos livros de Ernaux, ela parte de acontecimentos da sua vida, memórias e, principalmente, a ascensão de classe que viveu a partir dos estudos. Os dois autores narram a distância de classe em relação a família. A distância e o lugar de quem, ao estudar, adquirir capital cultural, viver e usufruir de bens culturais e materiais, isto é, a cada sucesso vindo através da escola, dos estudos, do investimento na vida acadêmica, se torna mais distante da família de origem e dos pais. “Os estudos não tinham uma relação com a vida cotidiana para o meu pai. [...] um dia me disse: ‘os livros e a música são bons para você. Eu não preciso de nada disso para viver’” (Ernaux, 2021, pERNAUX, Annie. (2021), O lugar. Tradução de Marília Garcia. São Paulo, Fósforo.. 49-50). Enquanto o autor brasileiro nos conta que, ao comentar que escreveria um livro, o pai lhe disse: “Se é bom para você, eu fico feliz” (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 18).

Além da escrita que busca no cotidiano, no que é pequeno, que parece único, mas é parte de uma condição de classe, também da história do país e de como a sociedade se organiza, Bortoluci e Ernaux sabem que a maior parte dos pesquisadores escrevem sobre as classes mais pobres com o distanciamento e a incompreensão de quem nunca fez parte daquele mundo. Filhos que passam pelo processo que os dois autores passaram lidam com a distância que a nova classe social lhes posiciona em relação às suas famílias de origem, assim como o distanciamento com outros modos de viver a vida, a linguagem e as referências culturais.

Os dois autores fazem, a partir da escrita, o exercício de memória, de retorno à vida na casa dos pais, a possibilidade, nem sempre possível, de criar pontes entre os dois mundos. O que por vezes pode ser doloroso para quem passou por esse tipo de sucesso – que parece ter um custo, um preço a ser pago pela ascensão social –, a distância entre pais e filhos de classes diferentes, é uma das possibilidades de leitura que o livro O que é meu nos permite fazer, assim como a possibilidade de pensar política e sociologicamente a partir do que pode ser chamado de auto ficção, ou não ficção literária.

Annie Ernaux também escreveu um livro sobre seu pai, cuja relação ela narra como complexa. Sua ascensão social a introduziu em um mundo distante dos pais, ex-operários que se tornaram pequenos comerciantes, donos de uma mercearia no interior da França. Ela nos conta:

Terei que escrever sobre o meu pai, sobre a vida dele e sobre essa distância entre nós dois, que teve início em minha adolescência. Uma distância de classe, mas bastante singular, que não pode ser contada. Como um amor que se quebrou. [...] Só há pouco percebi que escrever um romance é impossível. Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem tentar fazer alguma coisa “cativante” ou “comovente”. Vou recolher as falas, os gestos, os gostos do meu pai, os fatos mais marcantes de sua vida, todos os indícios objetivos de uma existência que também compartilhei (Ernaux, 2021, pERNAUX, Annie. (2021), O lugar. Tradução de Marília Garcia. São Paulo, Fósforo.. 14).

O autor brasileiro, ao narrar as histórias do pai, um senhor de quase oitenta anos que tem poucos registros de cartas, fotografias e documentos, dá voz a alguém que por sua condição de classe não teria a vida narrada.

Como se narra a vida de um homem comum? Sou desafiado pelo silêncio das fontes, o apagamento de registros daqueles que constroem o mundo, que escrevem suas histórias com mãos e pés, com palavras ditas e cantadas, com suor e a pele marcada (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 22).

Bortoluci nos chama atenção para as poucas representações artísticas sobre os caminhoneiros, apesar da importância que tiveram para a história do país, por exemplo, no período da ditadura militar, com os ideais de ordem e progresso do período autoritário, mas também nos dias atuais.

Não se trata de uma questão exclusiva dessa categoria, claro. Essa carência de representações é sintoma das enormes limitações das elites culturais brasileiras em elaborarem imagens do povo que dialoguem com a vida real dos trabalhadores com seus universos culturais, suas estéticas e suas gramáticas políticas múltiplas. O “povo” geralmente aparece na arte do período como categoria abstrata, ou na fórmula repetida de um “povo pré-revolucionário”, aos moldes do marxismo da vez; ou então como manifestações de um “povo folclórico”, rural, romântico e pré-moderno. Na maioria dos casos, trabalhadores reais, em sua imensa diversidade, não correspondem em quase nada a esses modelos (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 54).

Esse formato de escrita que se desenvolve a partir de uma vida comum, de um trabalhador com uma vida simples, pobre, privada de direitos, distante das grandes decisões políticas, nos permite enxergar e aprender com o outro, nos possibilita ouvir o que é diferente, o que vem de outra classe, mas também da relação entre pais e filhos, independente do distanciamento de classe, já que outros distanciamentos simbólicos são impostos na vida e trajetória de todos nós.

O distanciamento que o autor observa entre o que a elite cultural e intelectual do país escreve, produz e pensa sobre a classe trabalhadora, é semelhante ao que alguns pesquisadores apontam como uma das problemáticas que fez com que, apenas com o resultado da eleição presidencial de 2018, alguns percebessem o distanciamento que há entre a academia e a vida cotidiana da classe trabalhadora no Brasil.

As frases do pai de Bortoluci representam um modo de pensar que não é só dele. Trata-se de uma representação de uma parcela da sociedade brasileira, como, por exemplo, a da afirmação de que não importa quem venceu nas eleições, “já que no outro dia a gente vai ter que trabalhar do mesmo jeito” (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 42).

É possível pensar, a partir desta afirmação, que para pessoas com carências reais e diárias, a vida acontece no dia a dia, com as necessidades materiais que se impõem no cotidiano e que não se pode esperar que grandes mudanças políticas aconteçam, ou que alguma revolução os salve de sua condição. Neste sentido, é necessário pensar o quanto e como o Estado e as políticas se revertem em bem-estar para as pessoas da classe trabalhadora, com suas vidas e demandas diárias. A ausência do Estado, que muitas vezes não chega quando o socorro é necessário, vem acompanhada da presença do vizinho, do amigo, do familiar, ou no caso do novo habitus evangélico, do pastor ou do irmão da igreja. “A elite da esquerda acadêmica e política, em sua grande maioria branca, masculina e economicamente privilegiada, costuma impor uma forma cruel de censura paternalista sobre as classes trabalhadoras” (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 101).

Os dois autores, Bortoluci e Ernaux, se remetem a memórias e às palavras que circulam nos dois mundos em que passaram a circular a partir da ascensão que os estudos lhes permitiram. “A mulher que eu sou em 1995 é incapaz de se ver na menina de 1952, que só conhecia sua cidadezinha, sua família e sua escola, que só tinha à disposição um vocabulário reduzido” (Ernaux, 2022, pERNAUX, Annie. (2022), A vergonha. Tradução de Marília Garcia. São Paulo, Fósforo.. 23). No entanto, a relação de cada um com a escrita e as memórias é diferente. Enquanto a autora francesa fala em escrever para vingar a sua classe (Ernaux, 2023, pERNAUX, Annie. (2023), A escrita como faca e outros textos. Tradução de Mariana Delfini. São Paulo, Fósforo.. 13) e, em diversas obras, também fala do seu mal estar e deslocamento de filha da classe trabalhadora, que ingressou na Universidade e se tornou professora, sendo inclusive Vergonha o título de um dos seus livros, o autor brasileiro não tem essa relação de vergonha, ou pretende em seu livro fazer uma escrita como vingança, sua relação com a infância pobre e sua origem familiar parecem mais harmoniosas com a sua vida atual, mas que reconhece que sabia desde a infância as dificuldades oriundas da pobreza que a sua família enfrentava. “Sou o filho mais velho. Entendi muito cedo que nossa vida familiar era assombrada pelo risco da pobreza extrema, pela inflação desenfreada, pelo adoecimento precoce” (Bortoluci, 2023, pBORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.. 11).

Embora o livro conte parte da vida de um senhor de mais de oitenta anos, a partir da narrativa do filho, não se desconecta do presente, do que é repetição histórica no Brasil, como a violência do Estado, a violência no campo, o desmatamento na Amazônia, a ditadura e o papel dos militares, a desigualdade social e, também, como é dura e difícil a vida das classes trabalhadoras no nosso país.

Bibliografia

  • BORTOLUCI, José Henrique. (2023), O que é meu. 1a edição, São Paulo, Fósforo.
  • ERNAUX, Annie. (2021), O lugar. Tradução de Marília Garcia. São Paulo, Fósforo.
  • ERNAUX, Annie. (2022), A vergonha. Tradução de Marília Garcia. São Paulo, Fósforo.
  • ERNAUX, Annie. (2023), A escrita como faca e outros textos. Tradução de Mariana Delfini. São Paulo, Fósforo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2023
  • Aceito
    15 Abr 2024
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - sala 116, 05508-900 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 3091-4664, Fax: +55 11 3091-5043 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: anpocs@anpocs.org.br