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Sindicalismo e política: a trajetória da CUT

Retrato detalhado do sindicalismo brasileiro

Iram Jácome RODRIGUES. Sindicalismo e política — a trajetória da CUT. São Paulo, Scritta/FAPESP, 1997. 288 páginas.

José Ricardo Ramalho

A presença ativa do sindicalismo na vida política brasileira nos últimos 20 anos demonstrou a enorme capacidade de rearticulação de um dos setores da sociedade mais atingidos pela repressão do regime militar pós-1964. A partir de uma fase de organização "submersa", dentro das fábricas, em face dos impedimentos impostos pelos governos autoritários, consolidou-se uma prática sindical que rompeu com a legislação e questionou a estrutura corporativista vigente. Esta prática foi gradativamente revelando a existência de uma força política efetiva e de um conjunto de reivindicações que enfatizava os salários, mas que também se importava com a liberdade e a democracia. O sindicalismo aguerrido dos metalúrgicos do ABC paulista, no final dos anos 70, pode ser considerado um dos principais precursores de todo esse movimento, mas a confirmação dessa nova prática ocorre com o surgimento da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983. O recém-publicado livro Sindicalismo e política — a trajetória da CUT, de Iram Jácome Rodrigues, sistematiza informações essenciais e nos leva a conhecer detalhes do processo que resultou na criação dessa central sindical, assim como aponta as dúvidas e os impasses que vêm marcando essa organização e sua liderança nos anos mais recentes.

Reunindo um conjunto bastante interessante de dados oriundos de entrevistas com lideranças sindicais e de levantamentos realizados nos Congressos da CUT, e mantendo uma postura crítica permanente como marca da atividade de pesquisa, o livro preenche uma lacuna na produção intelectual sobre o tema. A preocupação principal de Rodrigues é mostrar como o movimento sindical brasileiro das últimas duas décadas se constituiu em fator decisivo na luta por direitos e pela democracia no país e influenciou de forma significativa o sistema político, principalmente na década de 80. Reconhece o autor, também, que foi no bojo desse movimento que surgiu um desdobramento político-partidário, com a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), resultado da articulação advinda da atividade sindical.

A primeira parte do livro trata do sindicalismo paradigmático dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, também conhecido como "novo sindicalismo", uma das fontes principais do sindicalismo-CUT. A discussão em torno da acuidade da expressão "novo sindicalismo" já é em si interessante, pois coloca em questão o rompimento real produzido por essa prática com relação aos controles exercidos por uma estrutura sindical corporativa ainda vigente. O autor considera, por um lado, os efeitos concretos desse sindicalismo na avaliação das rupturas constantemente sugeridas nos manifestos e resoluções de vários congressos e encontros sindicais. Por outro lado, chama a atenção para o fato de que o sindicalismo brasileiro ainda se vê às voltas com uma postura ambígua com relação às vantagens e desvantagens de permanecer dentro do sistema.

No final dos anos 70, no entanto, em plena ditadura militar, o sindicalismo que surpreende por sua reivindicação de reposição salarial, exigida em função da manipulação de índices inflacionários em anos anteriores, lutava também pelo direito à cidadania, contra o autoritarismo dentro e fora das fábricas. Segundo o autor, foram lutas diminutas, consideradas muitas vezes "sem importância", no cotidiano da produção que, em certo sentido, possibilitaram o surgimento do movimento grevista de 1978, ao mesmo tempo que criaram parte das condições que levariam ao surgimento de um sindicalismo diferenciado daquele que se conhecia antes de 1964: um padrão de ação sindical mais preocupado com os trabalhadores em seus locais de trabalho e com sua organização a partir das empresas (p. 52). E todo esse movimento, "as grandes greves, as assembléias plebiscitárias dos operários de Vila Euclides, mostravam a existência de um outro ator que até aquele momento havia sido excluído do cenário político e queria participar" (p. 23). Com o surgimento da CUT, prossegue o autor, a década de 80 se transformou em um período de construção e sedimentação dos organismos de representação da classe trabalhadora, nos mais variados níveis. Em comparação com outros países da América Latina ou de outros lugares do mundo, o sindicalismo brasileiro obteve ganhos perceptíveis e deu visibilidade à classe trabalhadora (p. 33).

A força da CUT se construiu a partir dos setores sindicais mais combativos do movimento de contestação que se estruturou com a organização no interior das empresas. A estratégia cutista de trazer o conflito para a mesa de negociação mostrou-se mais consistente e em consonância com essa realidade. No entanto, o livro mostra como a realidade interna da Central sempre esteve marcada por divergências políticas. Mesmo nos períodos de ações bem-sucedidas, especialmente ao longo dos anos 80, havia uma posição que poderia ser chamada de contratualista, presente na corrente conhecida como Articulação Sindical, que apoiava uma atuação combativa, privilegiando o conflito mas também negociando. A Articulação Sindical achava que a Central não devia desempenhar o papel de um partido político. Já os setores da esquerda socialista, em que pese suas contradições internas, em grande medida consideravam reformistas muitas das propostas. Vislumbravam, ao menos até 1988, a possibilidade de a CUT vir a desempenhar um papel que normalmente caberia a um partido político (p. 44).

A formação da CUT é o objeto de análise da segunda parte do livro. Um retrospecto dos diversos matizes de influências que marcaram esse novo tipo de sindicalismo nos revela a complexidade do conjunto de forças políticas que se juntaram para criar o movimento. Nos revela, inicialmente, a importância da categoria metalúrgica no Estado de São Paulo, onde se criaram dois pólos distintos no interior do movimento operário e sindical — a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo e o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Embora diferentes, em ambos os casos formou-se uma nova camada de ativistas, com um tipo de ação de maior contestação às posturas sindicais vigentes. Na verdade, a movimentação grevista de maio de 1978 no ABC (região de alta concentração industrial, onde a grande maioria dos trabalhadores se empregava nas empresas da indústria automobilística) posteriormente se alastrou por todas as regiões do país, atingindo um amplo espectro de assalariados (p. 65). Defendendo um padrão de atuação distinto daquele que fora hegemônico antes de 1964, o sindicato de São Bernardo, durante os anos 70, foi definindo sua atividade e desenvolvendo o perfil de um sindicalismo de massas empenhado na solução dos problemas trabalhistas no interior das empresas.

Outro aspecto que recebe atenção de Iram Jácome Rodrigues diz respeito à participação da Igreja Católica. Sua pesquisa mostra de forma esclarecedora como a Igreja exerceu influência sobre ativistas sindicais durante todo o período de resistência ao regime autoritário e como esta influência explica a mudança na temática reivindicativa, assim como na construção da idéia de "ir às bases", concebendo o trabalhador "não apenas como operário da fábrica, mas também como cidadão" (p. 80).

Quanto ao papel da esquerda na reorganização sindical, Rodrigues afirma ter sido "uma esquerda que se manteve atuante nos pequenos embates cotidianos, seja em fábricas nos principais centros industriais no país, e, neste caso, o Sul/Sudeste do Brasil se sobressai, seja em certas regiões rurais do Norte e Nordeste". Mas reconhece que "era uma esquerda dispersa, em muitos casos, sem contatos ou em dissidência com suas organizaçoes de origem" (p. 88).

Como a proposta do autor não é fazer uma história da CUT, mas pensá-la também a partir dos impasses recentes, a terceira parte do livro se dedica a dar ao leitor, com base no depoimento de 18 dirigentes da entidade, uma visão sobre o conjunto de problemas por que vem passando a organização. Naturalmente, há que se considerar que a conjuntura política e econômica se transformou desde 1983 e que houve, ao mesmo tempo, um processo gradativo de institucionalização do movimento contestatório dos anos 80. A necessidade de funcionar como organização vem colocando impasses e aumentando as disputas internas sobre o melhor caminho a seguir. As entrevistas realizadas por Rodrigues revelam uma oscilação permanente entre o discurso oficial da CUT e o que aparece nas falas individuais dos dirigentes.

O livro tem um dos seus pontos altos nessa parte, onde são apresentadas as principais questões que afligem a militância da CUT. Um tema crucial nos depoimentos, por exemplo, é o corporativismo. "Para grande parte dos entrevistados, das mais variadas correntes de opinião do sindicalismo-CUT, esse é um problema que não foi resolvido, ainda que se tenha conseguido diminuir o fosso que essa questão colocava para a classe trabalhadora, se comparado com o período anterior a 1978 e, particularmente, pré-1964." (p. 121). Em uma das entrevistas um dirigente manifesta sua opinião: "embora nós tenhamos criado as CUTs regionais, estaduais, CUT nacional, os próprios departamentos, na verdade a base sindical em que se molda a estrutura cutista ainda é a base sindical corporativista, tradicional, fragmentada, que trabalha com conceitos de categoria determinados pelo Estado, no Ministério do Trabalho." (p. 122). O autor demonstra, por meio dos depoimentos, que falta um projeto sindical mais nítido da parte do sindicalismo protagonizado pela CUT. A implantação no interior das fábricas, marca do chamado "novo sindicalismo", não se confirma e traz um paradoxo: "ao mesmo tempo que possui um alto grau de incidência no processo político, não consegue ter com essa influência, que é expressão da dinâmica que transforma um movimento social com certo grau de atuação em força política de amplitude, uma presença mais efetiva nos locais de trabalho" (p. 125).

O tema da organização nos locais de trabalho é extremamente significativo para a CUT. Rodrigues mostra, no entanto, que essa forma de organização autônoma dos trabalhadores parece não ter sido contemplada com o destaque que deveria. Os próprios sindicalistas reconhecem que a fase do "sindicalismo de porta de fábrica" já passou e que, em decorrência do atual estágio do movimento sindical, é fundamental que se incremente a criação de comissões de empresa. Mas acrescentam um comentário crítico: "Nós ainda fazemos 80-90% sindicalismo de porta de empresa... Eu acho que existe um acomodamento do sindicato de porta de fábrica. Portanto, um acomodamento à estrutura sindical vigente no país" (p. 144). Ao mesmo tempo, esse sindicalismo-CUT percebe que se não conseguir se organizar amplamente nas bases, seus organismos mais gerais de representação, os sindicatos e a central sindical, ficarão fragilizados, pois serão entidades distanciadas da prática cotidiana dos trabalhadores.

A parte final do livro analisa os dados mais recentes sobre a CUT dos anos 90. A partir de informações do IV CONCUT (1993), pode-se ter uma radiografia da Central em termos do número de sindicatos e dirigentes sindicais envolvidos. O autor também analisa a mudança de estratégia política e reinvindicativa da entidade devido às mudanças no mundo do trabalho introduzidas no início dos anos 90. Comparações com o CONCUT de 1988 mostram que a CUT passou por um rápido processo de institucionalização. Observa-se, num prazo de três anos (1988-91), acentuada dinâmica de profissionalização dos militantes, com o aumento significativo, por exemplo, daqueles dirigentes sindicais com disponibilidade total para a atividade trabalhista. O IV CONCUT foi, principalmente, um encontro de diretores sindicais, o que explicita mais uma vez a institucionalização (p. 203). O militante cutista de 1993 é, em geral, mais velho do que aquele presente no congresso de 1988, com mais experiência de militância, e também há mais tempo à frente da máquina sindical (p. 204).

Mas o IV CONCUT aponta uma outra tendência. Há um claro movimento dos setores cutistas hegemômicos no sentido de mudar a estratégia do confronto pela da negociação, e nesse sentido a experiência das Câmaras Setoriais é o principal exemplo do novo padrão de ação sindical. Essa nova estratégia sindical permite supor que se inicia, paulatinamente, um novo padrão de ação do sindicalismo-CUT: de uma ação mais conflituosa, observa-se uma tentativa de busca do diálogo, da negociação a todo custo. E o exemplo do acordo da indústria automobilística, nesse aspecto, é singular. Certamente, não é o conjunto do sindicalismo de inspiração cutista. No entanto, é uma parcela significativa deste, representada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

Do ponto de vista dos trabalhadores, dois movimentos convergiram para que esse processo pudesse ser desencadeado: a profunda crise econômica e social que o país atravessa e o atual grau de institucionalização da CUT, em todos os níveis, levando à adoção de uma postura mais contratual e pragmática nas negociações com o empresariado e o governo, deixando para trás grande parte do discurso "confrontacionista" e "ideológico" presente nas origens da Central (p. 235).

Em resumo, a publicação de Sindicalismo e política é bastante oportuna em um contexto em que as questões relativas às novas formas de gestão e organização do trabalho estão em pauta. Toda discussão sobre os impactos da reestruturação produtiva no mercado de trabalho e na organização coletiva dos trabalhadores passa necessariamente pela estruturação atual do sindicalismo brasileiro, em especial de sua mais importante central, a CUT. Nesse sentido, o livro traz elementos importantes para se pensar a temática e introduz pistas de pesquisa sobre o contexto do surgimento de novas estratégias sindicais.

JOSÉ RICARDO RAMALHO

é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal

do Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 1999
  • Data do Fascículo
    Fev 1998
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