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Uma teoria para o pensamento social brasileiro: ensaio, espaço e figuração nas interpretações do Brasil

A theory for Brazilian social thought: essay, space, and figuration in the interpretations of Brazil

Resumo:

Este artigo tem por objetivo analisar o ensaísmo brasileiro dos anos 1920 – 1930, propondo o inter-relacionamento entre o pensamento social brasileiro e a teoria social/sociológica. A partir da categoria cronótopo moderno, elaboro a junção teórica entre cartografia imaginativa e figuração como eixos interpretativos do pensamento social brasileiro. Concluo ressaltando as características do ensaísmo como experiência intelectual periférica que apontou itinerários não modulares da modernidade.

Palavras-chave:
pensamento social brasileiro; teoria sociológica; ensaio; modernismo; modernidade

Abstract:

This article intents to analyze Brazilian essayism in the 1920s – 1930s, proposing the interrelationship between Brazilian social thought and social/sociological theory. From the category of modern chronotope, I elaborate the theoretical junction between imaginative cartography and figuration as interpretative axes of Brazilian social thought. I conclude by highlighting the characteristics of essayism as a peripheral intellectual experience that pointed out non-modular itineraries of modernity

Keywords:
Brazilian social thought; sociological theory; essay; modernism; modernity

1. Introdução

Nos últimos anos, diversos estudos ampliaram consideravelmente as possibilidades de teorização sobre o pensamento social brasileiro, demonstrando a diversidade de temas e de abordagens (Botelho e Schwarcz, 2011BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia. (2011), “Pensamento Social Brasileiro – um campo vasto ganhando forma”. Lua Nova, 82, 11-16.), seja do ponto de vista da constituição do campo de estudos (Oliveira, 1999OLIVEIRA, Lucia Lippi. (1999), “Interpretações sobre o Brasil”, in S. Miceli. (org.), O que ler na ciência social brasileira? 1970-1995. São Paulo/Brasília, Sumaré/Capes.; Maia, 2017MAIA, João Marcelo. (2017), “História da sociologia como campo de pesquisa e algumas tendências recentes do pensamento social brasileiro”. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 24, 1:111-128. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-59702017000100003.
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), da organização e ação dos intelectuais (Carvalho, 2007CARVALHO, Maria Alice Rezende de. (2007), “Temas sobre a organização dos intelectuais no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 22, 65:17-32. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092007000300003.
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), das linhagens interpretativas (Vianna, 1997VIANNA, Luiz Werneck. (1997), A Revolução Passiva: Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro, Revan.; Brandão, 2005BRANDÃO, Gildo Marçal. (2005), “Linhagens do Pensamento Político Brasileiro”. Dados- Revista de Ciências Sociais, 48, 2:231-269. DOI: https://doi.org/10.1590/S0011-52582005000200001.
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), das relações entre intelectuais, cultura e política (Miceli, 2001MICELI, Sérgio. (2001), Intelectuais à brasileira. São Paulo, Companhia das Letras.; Arruda, 2004ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. (2004), “Pensamento brasileiro e sociologia da cultura: questões de interpretação”. Tempo Social, 16, 1:107-118. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-20702004000100006.
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), dos repertórios intelectuais disponíveis (Alonso, 2002ALONSO, Ângela. (2002), Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo, Paz e Terra.), da ação coletiva dos intelectuais e suas relações com os movimentos sociais (Perruso, 2020PERRUSO, Marco Antônio. (2020), “Classificações do pensamento brasileiro em perspectiva sociológica”. Lua Nova, 111:211-248. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-211248/111.
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), passando pelo escrutínio das ideias e seu contexto (Carvalho, 2000CARVALHO, José Murilo de. (2000), “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”. Topoi, 1:123-152.; Bastos, 2011BASTOS, Elide Rugai. (2011), “A atualidade do pensamento social brasileiro”. Sociedade e Estado, 26, 2:51-70. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922011000200004.
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; Brasil Jr, 2015BRASIL Jr., Antônio. (2015), “As ideias como forças sociais: sobre uma agenda de pesquisa”. Sociol. Antropol., 5, 2:553-574. DOI: https://doi.org/10.1590/2238-38752015v5210.
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).

Essas perspectivas abriram caminho para a investigação das relações entre teoria social/sociológica e pensamento social brasileiro desde a possibilidade de teorização sociológica, às margens do Atlântico Norte (Connell, 2012CONNELL, Raewyn. (2012), “A iminente revolução na teoria social”. Tradução de João Maia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 27, 80:9-20. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092012000300001.
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; Maia, 2017MAIA, João Marcelo. (2017), “História da sociologia como campo de pesquisa e algumas tendências recentes do pensamento social brasileiro”. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 24, 1:111-128. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-59702017000100003.
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), na qual os contextos científicos periféricos e as sociologias conectadas (Bhambra, 2014BHAMBRA, Gurminder. (2014), Connected sociologies. London/New York, Bloomsbury Academic.) se tornam elementos fundamentais para subsidiar explicações alternativas sobre a modernidade. Extraídos de seus contextos nacionais, alimentaram a construção da teoria sociológica contemporânea acerca de temas universais, como o modernismo, a modernização e as diferentes configurações da modernidade (Tavolaro, 2005TAVOLARO, Sérgio. (2005), “Existe uma Modernidade Brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 20, 59:5-23. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092005000300001.
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, 2017TAVOLARO, Sérgio. (2017), “Retratos não-modelares da modernidade: hegemonia e contra-hegemonia no pensamento brasileiro”. Civitas – Revista de Ciências Sociais, 17, 3:115-141. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.3.26580.
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; Maia, 2011MAIA, João Marcelo. (2011), “Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro”. Sociedade e Estado, 26, 2:71-94. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922011000200005.
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). De certo modo, estas experimentações modernas periféricas confrontaram o eurocentrismo das explicações sociológicas (Chakrabarty, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. (2000), Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. New Jersey, Princeton University Press.) e alçaram novos modos de entendimento das relações entre produção, circulação e aclimatação de ideias e produtos culturais. Além disso, permitiram a reformulação dentro da teoria social acerca das motivações das ações sociais e, consequentemente, o realinhamento dos sentidos e significados atribuídos aos agentes sociais ao longo do percurso histórico dessas regiões.

O desenvolvimento das sociologias nacionais/regionais, especialmente em contextos periféricos, sublinhou essas especificidades características como singularidade da experimentação moderna periférica (Patel, 2010PATEL, Sujata. (2010), The ISA Handbook of Diverse Sociological Traditions. Londres, Sage.; Agwele, 2012AGWELE, Augustine. (2012), Development, Modernism and Modernity in Africa. Londres, Routledge.), na qual a contrastividade e a comparação entre itinerários e desenvolvimentos históricos nacionais/regionais das periferias com os centros ocuparam papel determinante nas interpretações sobre os distintos locais.1 1 Lynch (2013) aponta que o estilo periférico do pensamento político e social brasileiro, enquanto concepção terminologicamente indeterminada e amplificada das interpretações do Brasil, contrasta com as obras canônicas da teoria política europeia por possuir, entre outras características, menor grau de generalização. No caso brasileiro, o ensaísmo que floresceu entre os anos 1920 – 1930 foi decisivo na caracterização do processo de modernização, sendo ele próprio uma das expressões mais prolíficas do modernismo (Candido, 2000CANDIDO, Antônio. (2000), Literatura e Sociedade. São Paulo, T.A. Queiroz Editora., 2006CANDIDO, Antônio. (2006), “A Sociologia no Brasil”. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 18, 1:271-301. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-20702006000100015.
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; Coutinho, 1997COUTINHO, Afrânio. (1997), “Ensaio e Crônica”, in A. Coutinho. (org.), A Literatura no Brasil, vol. 6, 4° edição. Rio de Janeiro, Global.; El-Dine, 2019EL-DINE, Lorenna Ribeiro Zem. (2019), “Ensaio e interpretação do Brasil no modernismo verde-amarelo (1926-1929)”. Estudos Históricos, 32, 67:450-468. DOI: https://doi.org/10.1590/S2178-14942019000200007.
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; Fernandes, 1958FERNANDES, Florestan. (1958), A etnologia e a sociologia no Brasil: ensaios sobre aspectos da formação e do desenvolvimento das ciências sociais na sociedade brasileira. São Paulo, Anhembi., 1977FERNANDES, Florestan. (1977), A sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis, Vozes.; Martins, 2019MARTINS, Maro Lara. (2019), Sociologia, modernismo e interpretação do Brasil. São Paulo, Alameda.). Esse tipo de interpretação do país revelaria as condições fundamentais para a construção dessa comunidade imaginada (Anderson, 2008ANDERSON, Benedict. (2008), Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras.) sobre o processo de burocratização do poder público, sobre a formação de solidariedades e dominações sociais e a constituição de subjetividades hierárquicas (Botelho, 2007BOTELHO, André. (2007), “Sequências de uma sociologia política brasileira”. Dados- Revista de Ciências Sociais, 50, 1:49-82. DOI: https://doi.org/10.1590/S0011-52582007000100003.
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; Lavalle, 2004LAVALLE, Adrian Gurza. (2004), Vida Pública e Identidade Nacional: leituras brasileiras. São Paulo, Editora Globo.). Tais elementos seriam cruciais na mobilização das figurações dos agentes sociais descritos como fundamentais no processo histórico brasileiro, de modo a fundamentar os motivos e sentidos de sua ação social, ao mesmo tempo em que elaboram a imaginação sobre o espaço em que tais ações sociais se desenrolariam. Nesta relação entre espaço e ação social, a interpretação ensaística do Brasil construiria com maior volúpia o seu diagnóstico sobre os itinerários da modernidade brasileira.

Na primeira parte deste artigo, exploro a categoria de cronótopo moderno e suas imbricações tempo/espaciais. A intenção foi construir, a partir das sugestões de Mikhail Bakhtin (1988)BAKHTIN, Mikhail. (1988), Questões de literatura e de estética. São Paulo, UNESP/Hucitec., elementos que estariam na base da concepção de cronótopo – os índices de tempo e de espaço – e que resumiriam a ação dos personagens da trama, revelando a concepção de figuração na teoria social concomitantemente pela constituição do espaço da figuração e a composição da cartografia imaginativa. Em seguida, abordoi as tessituras e contrastividades advindas dos estudos sobre o espaço no pensamento social brasileiro. A minha intenção foi abordar os modos pelos quais o espaço foi construído, sentido, imaginado e/ou vivenciado, além de conectar essas imaginações sobre ele à teoria social contemporânea, insistindo nas dimensões física e simbólica deste imaginário constituinte do espaço. E, por fim, nas duas últimas partes, analiso o conteúdo do ensaísmo brasileiro dos anos 1920-1930,2 2 É nos anos 1920 e 1930 em que o ensaísmo brasileiro adquire maior capacidade de proliferação de seus argumentos, em especial por suas conexões com o modernismo e com o campo político. São esses ensaios de interpretação geral que comumente são associados ao surgimento da sociologia brasileira. Ficaram como os clássicos da interpretação do Brasil, e pelo estilo de escrita – o ensaio – constituíram uma parcela da tradição de se fazer sociologia: o ensaísmo. A crítica e as análises sobre o ensaísmo brasileiro, em seu conjunto, fornecem algumas ponderações importantes sobre o modo como o estilo foi concebido e analisado no caso brasileiro. ressaltando os mecanismos operativos da junção entre a figuração, enquanto elemento explicador das ações sociais dos agentes, e a cartografia imaginativa, com seus elementos de contrastividade na postulação dos itinerários periféricos da modernidade nas imaginações sobre o espaço.

2. Teoria sociológica e cartografia imaginativa: itinerários da modernidade

A veiculação da categoria modernidades múltiplas e sua crítica à teoria da modernização recolocou na ordem do dia o questionamento sobre os processos históricos que levaram distintas regiões à modernidade. A noção de homogeneidade, diz Eisenstadt (2001)EISENSTADT, Shmuel. (2001), “Modernidades múltiplas”. Sociologia, Problemas e Práticas. 35:139-163., deveria ser rejeitada porque os desenvolvimentos reais nas sociedades em modernização têm refutado os pressupostos homogeneizantes do programa ocidental da modernidade ao originar padrões múltiplos de organização societária que são distintamente modernos, ainda que claramente diferentes do padrão ocidental ou, nesse caso, da modernidade europeia.3 3 O termo Modernidades múltiplas tem duas implicações. A primeira é que Modernidade e ocidentalização não são idênticas; o padrão, ou padrões ocidentais de modernidade, não constitui as únicas Modernidades autênticas, mesmo se foram historicamente precedentes e se continuaram a ser uma referência central para outras visões da Modernidade. A segunda é que o termo Modernidades implica o reconhecimento de que essas Modernidades não são estáticas, que se encontram, antes, em constante mutação (Schmidt, 2011). A ideia de modernidades múltiplas pressuporia que a melhor forma de compreender o mundo contemporâneo e de explicar a história da Modernidade seria concebê-lo como a história de constituição e reconstituição contínua de uma multiplicidade de programas culturais.

Cada caso nacional ou regional, com suas especificidades, sejam eles modulares ou únicos, se enquadraria em uma espécie de modernidade global (Domingues, 2013DOMINGUES, José Maurício. (2013), Modernidade Global e Civilização Contemporânea: para uma renovação da Teoria Crítica. Belo Horizonte, Editora da UFMG.), ou sistema-mundo, como prefere Wallerstein (2001), eWALLERSTEIN, Immanuel. (2001), Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro, Contraponto. se definiria como uma unidade espaço-temporal, cujo horizonte espacial seria coextensivo a uma divisão do trabalho que possibilitaria a sua reprodução material. Sua dinâmica seria movida por forças internas e sua expansão absorveria áreas externas, integrando-as ao sistema em expansão. Sua abrangência espacial, determinada pela sua base econômica-material, englobaria as entidades políticas e comportaria múltiplos sistemas culturais. Como um processo da economia-mundo capitalista, a divisão mundial do trabalho e a distribuição desigual do excedente gerariam atividades centrais e periféricas, conforme a capacidade da aliança entre capital e Estado de absorver os excedentes dos vários elos das cadeias mercantis por meios econômicos e extraeconômicos.

Avançando o argumento, se a crítica à homogeneização e ocidentalização da modernidade foi realizada, se trataria de considerar, para efeito de comparação, como esses exemplos de casos nacionais ou regionais levariam a pensar as heterogeneidades advindas dos desenvolvimentos de imaginações sociais e suas particularidades na formação do Estado-nação, da economia de mercado e da formação das classes sociais, e relacioná-las ao sistema-mundo moderno em que se encontravam.

Em outra chave interpretativa, Sérgio Costa (2006)COSTA, Sergio. (2006), “Desprovincializando a teoria social: a contribuição pós-colonial”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 21, 60:117-134.DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092006000100007.
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aponta que a releitura da história moderna empreendida pelos teóricos contemporâneos busca reinscrever e reinserir o colonizado na modernidade não como o outro do ocidente, sinônimo do atraso e do tradicional, mas como parte constitutiva do moderno. Associados a essa nova inscrição, eles criticariam a teleologia da história do modernismo europeu, a concepção de indivíduo propagado pelo iluminismo e redefiniriam conceitualmente as mediações culturais entre centro e periferia. Conceitos como entre-lugar, deslocamento, diáspora, crioulização, negritude, hibridização, transnacionalidade, transculturação, poética da diversidade e geopolítica do conhecimento passariam a expressar as difíceis relações entre o centro do mundo ocidental e outras regiões do globo.

A reconfiguração analítica das trajetórias rumo à modernidade contestou o eurocentrismo das proposições dos clássicos – e novos clássicos – da disciplina e desafiou o estatuto universal de categorias comumente tomadas como parâmetros inequívocos da modernidade, questionando assim a reprodução – ou imitação – dos padrões modernos das chamadas sociedades centrais em outros contextos espaço-temporais, ressaltando as assimetrias de poder que amparam as projeções normativas e prescritivas dessas sociedades centrais em direção a contextos espaço-temporais periféricos (Chakrabarty, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. (2000), Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. New Jersey, Princeton University Press.; Bhambra, 2014BHAMBRA, Gurminder. (2014), Connected sociologies. London/New York, Bloomsbury Academic.; Connell, 2012CONNELL, Raewyn. (2012), “A iminente revolução na teoria social”. Tradução de João Maia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 27, 80:9-20. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092012000300001.
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) e constituindo alternativas à modernidade hegemônica (Ahmad, 2002AHMAD, Aijaz. (2002), Linhagens do Presente: Ensaios. São Paulo, Boitempo Editorial.) e/ou caminhos não modulares da modernidade (Tavolaro, 2017TAVOLARO, Sérgio. (2017), “Retratos não-modelares da modernidade: hegemonia e contra-hegemonia no pensamento brasileiro”. Civitas – Revista de Ciências Sociais, 17, 3:115-141. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.3.26580.
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).

De todo modo, ainda assim se pode pensar na perspectiva da existência analítica de vários itinerários do cronótopo moderno, seja na perspectiva das modernidades múltiplas (Eisenstadt, 2001EISENSTADT, Shmuel. (2001), “Modernidades múltiplas”. Sociologia, Problemas e Práticas. 35:139-163.), do sistema-mundo (Wallerstein, 2001WALLERSTEIN, Immanuel. (2001), Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro, Contraponto.), da modernidade global (Domingues, 2013DOMINGUES, José Maurício. (2013), Modernidade Global e Civilização Contemporânea: para uma renovação da Teoria Crítica. Belo Horizonte, Editora da UFMG.) ou da modernidade hegemônica (Ahmad, 2002AHMAD, Aijaz. (2002), Linhagens do Presente: Ensaios. São Paulo, Boitempo Editorial.).4 4 Não é a intenção deste texto debater exaustivamente os significados e consequências teóricas do uso de cada uma destas abordagens. Esse exercício interpretativo e construtivo compartilha seus subsídios pelas florações de teorizações sobre o social,5 5 No caso brasileiro, a designação é pensamento social e político brasileiro. vindas destes itinerários não hegemônicos da modernidade, e conduz ao estabelecimento de dois elementos centrais e constitutivos da teoria sociológica: o espaço e o tempo – elementos que estariam na base da constituição da categoria analítica cronótopo. Inicialmente, reporto-me à definição de Bakhtin (1988)BAKHTIN, Mikhail. (1988), Questões de literatura e de estética. São Paulo, UNESP/Hucitec., segundo a qual o cronótopo designaria a interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas pela literatura. Expressaria, dessa maneira, a indissolubilidade do espaço e do tempo enquanto índices da imagem-narrativa.

Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronótopo artístico (Bakhtin, 1988, pBAKHTIN, Mikhail. (1988), Questões de literatura e de estética. São Paulo, UNESP/Hucitec.. 211).

O princípio condutor do cronótopo, segundo o teórico russo, seria a unificação do tempo-espaço e teria por função literária a organização dos acontecimentos narrativos e a demonstração dos mesmos mediante a condensação e a concretização dos índices do tempo – tempo da vida humana, tempo histórico, tempo social – em regiões definidas do espaço. Em última instância, configuraria a imagem-narrativa de tudo aquilo que seria estático-espacial, inserindo-o em uma série de mobilidade temporal a propósito dos acontecimentos entrelaçados no enredo literário. Transposto para uma análise sobre a historiografia e sobre a teoria social, a perspectiva do cronótopo abriria elementos importantes de debate se decompostos os índices de tempo que se sintetizariam pela ação dos personagens da trama, sua figuração, e pela constituição do espaço da figuração, a cartografia imaginativa.

Em outras palavras, o deslocamento a ser operado aqui, na medida em que se estabelece uma aproximação com a crítica literária na constituição de uma teoria sociológica, busca apontar os índices temporais que permitiriam a sistematização em torno dos itinerários não hegemônicos da modernidade (Tavolaro, 2017TAVOLARO, Sérgio. (2017), “Retratos não-modelares da modernidade: hegemonia e contra-hegemonia no pensamento brasileiro”. Civitas – Revista de Ciências Sociais, 17, 3:115-141. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.3.26580.
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), contidos no pensamento social e político brasileiro e que desfiam o cronótopo em duas partes: a figuração e a cartografia imaginativa.6 6 Ao analisar o sintagma das ideias fora do lugar de Roberto Schwarz, Bernardo Ricupero (2008) recusou que o conceito de cronótopo assuma meramente uma feição de padronização ou tema recorrente em cada obra/autor de determinado contexto. Por sua vez, como entendeu Paulo Arantes (1992) na esteira de Roberto Schwarz (1992), a recorrência do tema – e do termo – da formação do Brasil no ensaísmo brasileiro constituiria verdadeira obsessão da experiência intelectual do capitalismo periférico, no sentido de produzir uma interpretação da realidade social diferente da produzida nos países centrais, onde o desenvolvimento do capitalismo se daria de “modo orgânico e quase natural”.

Dessa forma, nas partes seguintes do texto, realizo triplo movimento para a montagem da interpretação sobre o ensaísmo brasileiro. Em primeiro lugar, a apreciação dentro das interpretações sobre o pensamento social brasileiro a partir do tema do espaço, associando-o, em seguida, à busca de uma definição do sentido da cartografia imaginativa, elaborada na conjunção entre a teoria social e o próprio pensamento social brasileiro. Em segundo lugar, a esquadrinha dentro da teoria social dos sentidos e as possibilidades da perspectiva de figuração como eixo interpretativo do pensamento social brasileiro. E, por fim, a apreciação geral da conjunção entre cartografia imaginativa e figuração na composição do cronótopo moderno e sua aplicabilidade à interpretação do pensamento social brasileiro, em especial do ensaísmo dos anos 1920 – 1930.

3. Tessitura e contrastividade: imaginações sobre o espaço no pensamento social brasileiro

Diversos estudos chamam a atenção para o tema do território e do espaço na imaginação sociológica dos intérpretes do Brasil (Oliveira, 1998OLIVEIRA, Lúcia Lippi. (1998), “A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. 5, 195-215. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-59701998000400011.
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; Souza, 1997SOUZA, Candice Vidal e. (1997), A Pátria Geográfica. Sertão e Litoral no Pensamento Social Brasileiro. Goiânia, Editora UFG.; Lima, 1999LIMA, Nísia Trindade. (1999), Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro, Revan.; Wegner, 2000WEGNER, Robert. (2000), A Conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte, UFMG.; Maia, 2011MAIA, João Marcelo. (2011), “Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro”. Sociedade e Estado, 26, 2:71-94. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922011000200005.
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; Vianna, 1997VIANNA, Luiz Werneck. (1997), A Revolução Passiva: Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro, Revan.). Lúcia Lippi de Oliveira (1998)OLIVEIRA, Lúcia Lippi. (1998), “A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. 5, 195-215. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-59701998000400011.
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mostrou a importância da conquista territorial na construção da identidade nacional ao debater os significados que o termo sertão assumiu no pensamento social brasileiro, assim como seus desdobramentos na criação do mito do sertão e da noção de fronteira, decorrentes do movimento das bandeiras, desembocando assim na análise da imagem do bandeirante e sua função mítica, capaz de organizar o mundo simbólico e constituir uma interpretação do país.

Candice Souza (1997)SOUZA, Candice Vidal e. (1997), A Pátria Geográfica. Sertão e Litoral no Pensamento Social Brasileiro. Goiânia, Editora UFG. chamou a atenção para as versões e visões construídas sobre o interior do país. A partir da seleção de diferentes interpretações do Brasil, que ancoraram a reflexão sobre a singularidade nacional na categoria espaço, a autora perseguiria o imaginário geográfico desenhado nos discursos sobre a construção da nação e da identidade brasileira. Destas representações nativas da nacionalidade emergiria a pátria geográfica, invenção discursiva daqueles para os quais a nacionalidade deveria ser equacionada espacialmente. A unidade precária do país, composto por porções partidas, a nação incompleta, descontínua territorialmente, o desequilíbrio e a heterogeneidade do espaço e a oposição sertão/litoral constituiriam tópicos recorrentes nas célebres narrativas de Euclides da Cunha (2019)CUNHA, Euclides da. ([1902] 2019), Os Sertões. São Paulo, Companhia das Letras., Cassiano Ricardo (1940)RICARDO, Cassiano. (1940), Marcha para o Oeste: a Influência da Bandeira na Formação Social e Política do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio., Oliveira Vianna (1987)VIANNA, Francisco José de Oliveira. ([1920] 1987), Populações Meridionais do Brasil. Niterói, EDUFF., Nelson Werneck Sodré (1962)SODRÉ, Nelson Werneck. (1962), Formação Histórica do Brasil. São Paulo, Brasiliense. e Nestor Duarte (1939)DUARTE, Nestor. (1939), A Ordem Privada e a Organização Social. São Paulo, Cia. Editora Nacional..

Nesta mesma toada, Nísia Trindade Lima (1999)LIMA, Nísia Trindade. (1999), Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro, Revan. captou a renitência e a força de uma metáfora geográfica na conformação de representações sobre a identidade nacional de um país considerado invariavelmente em conflito espacial. O desvelamento das representações de uma identidade permanentemente revelada como incompleta, ou ao aguardo de sua própria refundação, procederia à exegese das mentalidades modernizadoras amparadas a partir – e com – (d)as distâncias irredutíveis entre os muitos países dentro do país. Lima localizaria uma longevidade entre a fração ou os contrastes entre sertão e litoral e seus personagens, metaforicamente elaborados a partir dos intérpretes do país.

Por sua vez, Wegner (2000)WEGNER, Robert. (2000), A Conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte, UFMG. apontou as relações entre tradição e modernidade na análise que empreendera sobre a obra de Sérgio Buarque de Holanda, em especial sobre o tema da fronteira e da conquista do oeste brasileiro a partir do planalto paulista. Dessa forma, por meio do exame da noção de fronteira, bem como da relação entre tradição ibérica e modernização, em suas obras dos anos 1940 e 1950, foi delineada a preocupação de Buarque de Holanda com os traços da modernidade à brasileira, assim como se reelaboraria as polaridades dualistas de sua interpretação da década de 1930, concebendo as possíveis combinações entre tradicionalismo e modernização, civilidade e cordialidade, ócio e negócio e americanismo e iberismo.

A recorrência deste tópico desembocaria em uma análise que procuraria estabelecer certos parâmetros sobre a própria reconstituição desse assunto no pensamento social brasileiro, ou, em outros termos, na teoria social periférica. Os trabalhos de João Marcelo Maia (2011)MAIA, João Marcelo. (2011), “Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro”. Sociedade e Estado, 26, 2:71-94. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922011000200005.
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se enquadram neste quesito. Para o autor, existe uma correlação entre espaço e sociabilidade na interpretação do país que comportaria uma dupla dimensão. Em primeiro lugar, a produção e análise do espaço como variável independente na explicação de hábitos e costumes, como o espaço físico, palco do desenrolar civilizatório. Em segundo lugar, uma concepção que se refere ao espaço a partir de imagens e alegorias que se relacionam intimamente às formas de sociabilidade e organização civilizatória.

Por fim, Werneck Vianna (1997)VIANNA, Luiz Werneck. (1997), A Revolução Passiva: Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro, Revan. arquitetou as linhagens do iberismo e do americanismo, a partir do territorialismo das elites ibéricas no desenvolver da história brasileira, especialmente na composição dos interesses que conformariam o andamento da revolução passiva brasileira, que, pelas características de seu transformismo, comporiam os elementos da tradição e da ruptura como eixos de movimentação das ações desses personagens e suas aspirações no decurso do tempo. Seria nestes termos que, para as elites políticas do Estado-nação, a primazia da razão política sobre outras racionalidades se traduziria na preservação e expansão do território e no controle sobre a população.

Partindo destas considerações e desta perspectiva aberta pelos estudiosos do pensamento social brasileiro, o tema do espaço possui dois aspectos que se complementam. Por um lado, a classificação dos meios físicos e sua relação direta com tipos sociais derivados destes meios, apresentando-se como o cenário no qual se desenrola o processo civilizador. Por outro, o meio físico como matriz para a produção de imagens e símbolos capazes de construírem sentidos às experiências sociais. Seria a partir desta dualidade básica que se construiria a formulação de uma cartografia imaginativa no pensamento social brasileiro que levaria em conta essa dupla dimensão, física e simbólica, na arquitetura do imaginário constituinte da interpretação (Maia, 2011MAIA, João Marcelo. (2011), “Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro”. Sociedade e Estado, 26, 2:71-94. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922011000200005.
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).

Seguindo esta linha de análise, este tema teria que ser explorado a partir das difíceis conceituações e relações entre espaço e território. Como lembraria Milton Santos (1997, pSANTOS, Milton. (1997), A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo, Hucitec.. 21), “como ponto de partida, propomos que o espaço seja definido como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações”. Em sua radicalidade abarcaria o processo pelo qual a apropriação do espaço natural se realizaria pela intervenção humana, resultado e condição da dinamicidade de relações entre esta ação sobre o meio, seja por suas necessidades materiais, imateriais, econômicas, sociais, culturais e/ou afetivas. Teria papel simbólico, mas também funcional.

A concepção de espaço não diria respeito apenas ao fato de todo território ser constituído por objetos de tempos distintos, como também porque todo território seria significado socialmente de modo diverso, ou seja, constituído por significações sociais imaginárias. A heterogeneidade e a desigualdade de tempos (sociais, políticos, econômicos e subjetivos) que caracterizariam o território seriam sempre marcadas por significações sociais que estariam ligadas às vivências coletivas dos diferentes agentes sociais (Santos, 1997SANTOS, Milton. (1997), A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo, Hucitec.). A espessura do território se definiria por diferentes extratos históricos, os tempos materializados nas formas e funções dos objetos e da natureza e por diferentes extratos culturais, os significados e valores atribuídos pela sociedade às formas e aspectos ou parcelas do território. Por isso, uma paisagem campestre pode significar tanto um sentimento bucólico de contato com a natureza, quanto poderia ser representada como o arcaico, como atraso e ignorância, enquanto o ambiente citadino poderia ser compreendido por sua dinamicidade e aceleração temporal.

Dito isso, a perspectiva da construção de uma cartografia imaginativa não diria respeito apenas ao conteúdo em si do território ou da paisagem, mas ao modo como este conteúdo seria significado e interpretado por diferentes intérpretes. No caso específico deste texto, seria avaliar a constituição desta cartografia imaginativa realizada e esboçada pelo ensaísmo brasileiro dos anos 1920 – 1930, revelando sua tessitura.

Esta tessitura se definiria por uma relação de contraste e avaliação entre lugares diferentes, modulando as diferenciações espaciais tanto em formas como em conteúdo. Ademais, a concepção sobre o espaço se caracterizaria por sua remissividade e contrastividade com outro território ou paisagem, na medida em que a construção desta peculiar imagem sobre o território possuiria, como elemento-chave, o poder de representar e classificar os lugares de acordo com interesses, aspirações e sentimentos, sempre agenciada pela trama de relações que constituem a interpretação. O modo de representação do território, esboçado pela cartografia imaginativa, funcionaria como uma rede, uma teia de relações sociais e de poder (Löw, 2013LÖW, Martina. (2013), “O spatial turn: para uma sociologia do espaço”. Tempo Social, 25, 2:17-34. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-20702013000200002.
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; Frehse, 2021FREHSE, Fraya. (2021), “Time and the production of space in sociology”. Revista Sociologia e Antropologia, 11, 2:389-414. DOI: https://doi.org/10.1590/2238-38752021v1122.
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). Se o espaço possui tais características na montagem desta cartografia imaginativa, restaria definir a incidência da figuração neste processo estruturante da atuação dos grupos sociais, dos diferentes tipos de sociabilidade, das motivações e sentidos da ação social dos agentes que preencheriam de densidade o fundo básico estabelecido pela cartografia imaginativa.

4. Ensaio e figurações sociais: uma teoria da ação social ou as imaginações sobre os personagens

Do ponto de vista da teoria social, o conceito de figuração se refere à teia de relações de indivíduos interdependentes que se encontram ligados entre si em vários níveis e de diversas maneiras, sendo que as ações de um conjunto de pessoas interdependentes interferem de maneira a formar uma estrutura entrelaçada de numerosas propriedades emergentes, tais como relações de força, eixos de tensão, sistemas de classes e de estratificação, formas de solidariedade e autoridade social.

Para Norbert Elias (1987ELIAS, Norbert. (1987), A Sociedade de Corte. Lisboa, Editorial Estampa., 1994ELIAS, Norbert. (1994), A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.), a figuração apresentaria uma forte imbricação entre subjetividade e estruturas sociais e históricas. Para ele, não seria possível pensar em ações individuais fora das estruturas sociais que as tornam possíveis ou que as obstaculizam. As figurações seriam formas de relações historicamente constituídas, sociologicamente vivas, suas alterações e transformações desembocam em concernentes contrafações na organização social e nas subjetividades. Pela sua natureza dinâmica, a figuração não se restringiria a uma descrição, no sentido técnico e narratológico do termo, nem mesmo a uma caracterização, embora esta possa ser entendida como seu efeito elaborado. A rede de interdependência, estruturante e estruturada pela – e através da – figuração, se movimentaria por meio do resultado de tensões e conflitos pelo poder entre grupos ou indivíduos com funções diferentes nesta rede. Indo além, a concepção de figuração atrelaria a atuação de personagens na montagem da historiografia de modo a protagonizar alguns grupos em detrimento de sua atuação nesta rede de interdependência.

Tais figurações, entendidas como relações sociais dotadas de sentido e significado a seus agentes sociais, ganharia densidade ao se relacionar com o tempo e o espaço (Rosa, 2019ROSA, Hartmut. (2019), Aceleração – a transformação das estruturas temporais na Modernidade. São Paulo, Unesp.). O espaço adquire papel crucial como palco onde se desenrolam as ações sociais, no modo como ele é socialmente gerado, produzido, construído e constituído (Frehse, 2021FREHSE, Fraya. (2021), “Time and the production of space in sociology”. Revista Sociologia e Antropologia, 11, 2:389-414. DOI: https://doi.org/10.1590/2238-38752021v1122.
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), enquanto o tempo expressaria a vivência coletiva dos agentes sociais. No fundo, trata-se da noção do espaço como disposição relacional de seres e bens, nos modos de vivenciar o espaço (Löw, 2013LÖW, Martina. (2013), “O spatial turn: para uma sociologia do espaço”. Tempo Social, 25, 2:17-34. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-20702013000200002.
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, 2016LÖW, Martina. (2016), The Sociology of Space: materiality, social structure, and action. London, Palgrave Macmillan.) e o tempo (Rosa, 2019ROSA, Hartmut. (2019), Aceleração – a transformação das estruturas temporais na Modernidade. São Paulo, Unesp.)

Retomando a ideia de cronótopo, inspirada em Bakhtin (1988), oBAKHTIN, Mikhail. (1988), Questões de literatura e de estética. São Paulo, UNESP/Hucitec. espaço seria imaginado pela cartografia imaginativa e a ação social teria sua tessitura expressa pela figuração. Em termos genéricos, a figuração e a cartografia imaginativa implicariam em um trabalho de semiotização, ou, dito de outro modo, de articulação de uma linguagem que produza sentidos e que gere efeitos pragmáticos a partir da análise do ensaísmo brasileiro.

Mais modernamente, o uso da palavra tem-se estendido, perdendo aquele sentido tradicional de “tentativa”. Tem-se desenvolvido em sentido inteiramente oposto ao original. E surgiu outro grupo de ensaios, chamados de julgamento, que oferecem conclusões sobre os assuntos, após discussão, análise, avaliação. Tem-se com eles uma interpretação, dentro de uma estrutura formal de explanação, discussão e conclusão e usando linguagem austera. É o grupo que os ingleses chamam formal. São formais, regulares, metódicos, concludentes. E nesse grupo se incluem os chamados ensaios críticos, filosóficos, científicos, políticos, históricos. No Brasil, a prática vem restringindo o uso da palavra ensaio ao segundo tipo, justamente o oposto ao tipo original, fazendo-a sinônima de estudo: crítico, histórico, político, filosófico etc. Na linguagem brasileira corrente, esses estudos recebem o nome de “ensaios”. É o que ocorre também na França, onde a rubrica “ensaios” engloba, em periódicos literários como Les Nouvelles Littéraires por exemplo, livros de história, política, filosofia etc. No Brasil, um estudo crítico, publicado em livro, é designado como ensaio, e ensaísta o seu autor (Coutinho, 1997, pCOUTINHO, Afrânio. (1997), “Ensaio e Crônica”, in A. Coutinho. (org.), A Literatura no Brasil, vol. 6, 4° edição. Rio de Janeiro, Global.. 119).

Para Coutinho (1997), oCOUTINHO, Afrânio. (1997), “Ensaio e Crônica”, in A. Coutinho. (org.), A Literatura no Brasil, vol. 6, 4° edição. Rio de Janeiro, Global. ensaio se incorporou na cultura brasileira menos no sentido de tentativa e mais na concepção de estudo interpretativo, tornando-se a forma paradigmática das interpretações historiográficas, filosóficas, políticas e sociológicas da primeira metade do século XX. Desse modo, aquele que escreve extrapolaria a dimensão da ficcionalidade típica da literatura, sendo o ensaio no Brasil um gênero que romperia com as fronteiras disciplinares.

De certo modo, seguindo essas assertivas de Coutinho, Antônio Candido (2000)CANDIDO, Antônio. (2000), Literatura e Sociedade. São Paulo, T.A. Queiroz Editora., em Literatura e Sociedade, abordou o ensaio brasileiro tendo como premissa sua inserção na tradição de pensamento e certa confluência da ficcionalidade presente nos escritos literários com um substrato científico.

O poderoso ímã da literatura interferia com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil e à qual devemos a pouco literária História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero, Os Sertões de Euclides da Cunha, Populações Meridionais do Brasil de Oliveira Vianna, a obra de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Não será exagerado afirmar que esta linha de ensaio – em que se combinam com felicidade maior ou menor a imaginação e observação, a ciência e arte – constitui o traço mais característico e original de nosso pensamento (Candido, 2000, pCANDIDO, Antônio. (2000), Literatura e Sociedade. São Paulo, T.A. Queiroz Editora.. 119).

Infelizmente, Antônio Candido não desenvolveu uma reflexão mais sistemática acerca do gênero que o próprio crítico considerou como o “traço mais característico e original de nosso pensamento” (Candido, 2000, pCANDIDO, Antônio. (2000), Literatura e Sociedade. São Paulo, T.A. Queiroz Editora.. 119). De todo modo, Candido concebia o ensaio como uma manifestação tipicamente modernista em função de se interpretar o Brasil a partir de sínteses que possibilitavam, inclusive, recuperar certos autores vinculados ao que denominou de período pré-modernista. Não haveria dúvida da presença do ensaio como traço característico deste período, entretanto, a opção por este estilo de escrita evidenciaria um prolongamento do que havia sido realizado durante o século XIX, na imbricação entre a “tendência sociológica” e o ensaio neste período.

Quanto a este último ponto, Florestan Fernandes (1958FERNANDES, Florestan. (1958), A etnologia e a sociologia no Brasil: ensaios sobre aspectos da formação e do desenvolvimento das ciências sociais na sociedade brasileira. São Paulo, Anhembi., 1977FERNANDES, Florestan. (1977), A sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis, Vozes.), refletindo sobre a constituição da sociologia no Brasil, teceu profundas críticas à geração modernista e a essa forma de exposição das ideias. Fernandes indicou três épocas de desenvolvimento da reflexão social no Brasil: a primeira se inicia desde o terceiro quartel do século XIX e sua reflexão seria usada como recurso parcial de explicação e dependente de outros instrumentos protocientíficos; a segunda abarca as primeiras décadas do século XX e nela predominaria o uso dessa reflexão como forma de consciência protossociológica e explicação das condições histórico-sociais de existência; e a terceira passa a se configurar plenamente nos anos 1950, quando vigoraria a subordinação do labor intelectual aos padrões de trabalho científico sistematizados por meio da investigação empírico-indutiva. Fernandes afirmou que tanto a “transformação da análise histórico-sociológica em investigação positiva” (Fernandes, 1958, pFERNANDES, Florestan. (1958), A etnologia e a sociologia no Brasil: ensaios sobre aspectos da formação e do desenvolvimento das ciências sociais na sociedade brasileira. São Paulo, Anhembi.. 203) quanto a “introdução da pesquisa de campo como recurso sistemático de trabalho” (p. 203) poderiam situar “historicamente a fase em que, no Brasil, a Sociologia se torna disciplina propriamente científica” (p. 203). Para ele, haveria no ensaio o predomínio da subjetividade, a ausência de rigor conceitual, a aproximação excessiva com a literatura, o idealismo e a autonomia metodológica em relação aos padrões científicos de análise, principalmente pela negação do empirismo como método.7 7 Suas considerações o levaram, e toda sua geração, a desqualificar o ensaio como suporte para a sociologia e as ciências humanas. Todavia, é importante ressaltar que o próprio Florestan Fernandes, já na década de 1970, publicaria o seu clássico A Revolução Burguesa no Brasil, cujo subtítulo era ensaio de interpretação sociológica. Neste período, não só a sua concepção sobre o ensaio havia alterado como também a própria definição do que seria esse estilo de escrita.

Essa pequena fortuna crítica do ensaio no Brasil assinala a necessidade de se pensar os elementos que o ensaio possibilita para a interpretação do país. Como apontou Coutinho (1997), oCOUTINHO, Afrânio. (1997), “Ensaio e Crônica”, in A. Coutinho. (org.), A Literatura no Brasil, vol. 6, 4° edição. Rio de Janeiro, Global. ensaio se moldaria mais pela noção de estudo do que de tentativa, sendo os escritores mais vinculados a áreas que extrapolariam a literalidade dos fundamentos ficcionais. Assim, “em verdade, eles não são ensaístas, e sim filósofos, historiadores, sociólogos, pensadores políticos” (Coutinho, 1997, pCOUTINHO, Afrânio. (1997), “Ensaio e Crônica”, in A. Coutinho. (org.), A Literatura no Brasil, vol. 6, 4° edição. Rio de Janeiro, Global.. 122). Outra questão é que a argumentação deve se direcionar aos meandros que este suporte literário perpassaria ao condensar uma tradição que se reinventou ao longo de dois séculos. Pois, se na formação do Estado o ensaio gravitou em seu conteúdo elementos da filosofia política que subsumiriam a sociologia, no final do século XIX, como bem apontou Candido (2000), aCANDIDO, Antônio. (2000), Literatura e Sociedade. São Paulo, T.A. Queiroz Editora. “tendência sociológica” se tornaria mais latente.

Tomando como base essas considerações, cabe realizar uma avaliação geral sobre as concepções de espaço e tempo na interpretação ensaística do Brasil, com a intenção de balizar, através da teoria social/sociológica, a cartografia imaginativa e a figuração no cronótopo moderno.

Sobre o tema do espaço na constituição de sua interpretação do Brasil, Nestor Duarte (1939)DUARTE, Nestor. (1939), A Ordem Privada e a Organização Social. São Paulo, Cia. Editora Nacional. aponta que:

Nessa análise, ressaltemos de logo que um dos fatores físicos mais determinantes da forma, estilo e orientação da organização social brasileira não é propriamente o clima, a sua bioquímica, como a flora, a fauna. É sim a extensão territorial de que dispõe o homem e de que precisou dispor para acudir às necessidades econômicas e aos fins a que o instinto econômico o conduz ou devia conduzir. Toda forma de produção no Brasil teve e tem que se fazer à grande. É uma forma de produção de espaço, acima de tudo (Duarte, 1939, pDUARTE, Nestor. (1939), A Ordem Privada e a Organização Social. São Paulo, Cia. Editora Nacional.. 42).

No fundo, autores como Oliveira Vianna (1987)VIANNA, Francisco José de Oliveira. ([1920] 1987), Populações Meridionais do Brasil. Niterói, EDUFF., Paulo Prado (1997)PRADO, Paulo. ([1928] 1997), Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo, Companhia das Letras., Gilberto Freyre (2002)FREYRE, Gilberto. ([1933] 2002), Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Record., Caio Prado Júnior (2011)PRADO Júnior, Caio. ([1942] 2011), Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Companhia das Letras., Sérgio Buarque de Holanda (2016)HOLANDA, Sérgio Buarque. ([1936] 2016), Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras., Nestor Duarte (1939)DUARTE, Nestor. (1939), A Ordem Privada e a Organização Social. São Paulo, Cia. Editora Nacional. e Afonso Arinos de Melo Franco (1936)FRANCO, Afonso Arinos de Melo. (1936), Conceito de civilização brasileira. São Paulo, Companhia Editora Nacional., apontam os elementos da vida rural brasileira, com suas características particulares: o isolamento das suas unidades, a ausência de mercado interno entre setores e a força centrífuga da economia agroexportadora, a relativa fraqueza dos centros urbanos e de seus personagens, as vicissitudes da colonização e da ocupação do solo, a falta de estradas e comunicação e a ausência do Estado como normatividade de direitos públicos internalizados.

Cada núcleo rural, ou cada complexo entre a casa grande e a senzala, para ficarmos na expressão de Gilberto Freyre (2002)FREYRE, Gilberto. ([1933] 2002), Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Record., seria um microcosmo social, um pequeno organismo coletivo, com aptidões cabais para uma vida isolada e autônoma. Os fenômenos em questão, com suas matrizes culturais e sociodemográficas, permitiriam ao ensaísmo, a partir de suas ferramentas conceituais, interpretar o modus operandi de certas estruturas oligárquicas de dominação, as quais seriam incompatíveis com a constituição de uma democracia liberal e resultariam altamente efetivas para a aquisição, organização e o exercício do poder de modo hierárquico. O protagonismo de determinados personagens e sua figuração – ação social em uma rede de interdependência – constituiriam a base das inter-relações entre política e sociedade.

Este tipo de solidariedade clânica, ligada ao passado histórico, não parecia destinada a desaparecer como simples consequência do desenvolvimento ou da modernização no campo político. Seria como uma constante cultural, uma espécie de amálgama da psicologia coletiva nacional. A existência desse padrão de dominação está envolta na inexistência de uma articulação espontânea de interesses dos grupos sociais com os aparatos do Estado, que, por sua vez, estariam obrigados a interagir com esses grupos sociais através de estruturas verticais de poder, em cujo topo se encontraria o chefe do clã rural, o senhor de terras, o terratenente ou o patriarca, dependendo da nomeação que este personagem teria em cada obra, demarcando esse processo civilizatório.

Ficaria latente para o ensaísmo sociológico dos anos 1920 e 1930 que o poder político e o poder social se organizariam piramidalmente, de tal modo que cada chefe rural se conectaria a outro de forma a montarem uma estrutura de dominação articulada mediante o intercâmbio de reciprocidades, como se vê nas análises sobre os problemas da pupilagem política pela gratidão e/ou pela amizade, nas questões relacionadas a uma ética da cordialidade e na especificação dos pontos nodais do patriarcalismo como fundamento para o fracasso do ideário e das instituições liberais. Esses ensaístas concluiriam que não teria se desenvolvido um interesse nacional ou público neste tipo de construção sociopolítica, transcendente aos interesses imediatos e particulares. Nessa atividade política teríamos, ao invés disso, a concepção meramente partidária e excludente, exercida e consumida estritamente dentro do pequeno círculo do grupo, do clã, da facção, do diretório local, da família.

Em suma, a partir do latifúndio e da vida rural, o tipo de solidariedade que se formava e a estabilidade que giraria em torno dos grupos familiares, os quais permitiriam que se formasse uma trama de relações sociais estáveis, permanentes e tradicionais, tendo na figura do pater familias a ascendência patriarcal, ocasionava o patrimonialismo no trato da esfera pública, a subjugação de interesses privados sobre o interesse público, a composição de uma ética social baseada no sentimento.

A grande propriedade rural e, consequentemente, a noção do exclusivo agrário e da função simplificadora dos latifúndios se tornaram fundamentais nesse modelo explicativo sobre as condições nas quais a solidariedade e os interesses foram constituídos no peculiar caso brasileiro. Guardadas as diferenças, esses intérpretes do Brasil perceberam que esta função simplificadora impediria o comércio e o surgimento de uma burguesia comercial ou uma classe industrial, que se concentraria no litoral ou nas pequenas cidades do interior, mas sem nenhuma força política. Assim, entre a classe dos trabalhadores livres e a aristocracia senhorial os laços não se constituiriam solidamente, fato acentuado pela inexistência de uma classe média do tipo europeia.

5. Excessos e ausências: o diagnóstico da modernidade brasileira

Em conjunto, mas não como unidade (Botelho, 2010BOTELHO, André. (2010), “Passado e futuro das interpretações do país”. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 22, 1:47-66.), e para além do contexto intelectual do qual emergiram tais diagnósticos, a nota distintiva do ensaísmo brasileiro ao operacionalizar conceitos como patriarcalismo, familismo, patrimonialismo, personalismo, agnatismo, clientelismo e a miríade de empecilhos privatistas consignados em seu ideário é a posição decisiva na constituição da vida pública de sua sociedade. Na tradição do pensamento político-social brasileiro, a aparição deste tema é recorrente. Se interpretarmos literalmente, encontramos posições que vislumbram essa via de interpretação no século XIX, embora o ensaísmo tenha proporcionado novos conceitos e novas assertivas. Nestes termos, a aparição recorrente de uma vida pública assim concebida pode ser equacionada quer como manifestação de leituras da realidade datadas e definitivamente superadas, quer como legado de interpretações em maior ou menor grau verossímeis (Lavalle, 2004LAVALLE, Adrian Gurza. (2004), Vida Pública e Identidade Nacional: leituras brasileiras. São Paulo, Editora Globo.).

Ao invés de pressupor uma caracterização da vida pública como assente ou superada no plano histórico ou analítico, parece mais produtivo problematizar seu papel como expediente explicativo da configuração ambígua do espaço público brasileiro. A recorrência deste tema aparece posto pela bibliografia e pelo objeto de estudo em uma dupla vertente. Por um lado, no plano das ideias, a reconstrução da especificidade do entendimento do espaço público pelo ensaísmo dos anos 1920 e 1930, ou seja, sua emergência, cristalização, reprodução e forma analítica de proceder (Candido, 2000CANDIDO, Antônio. (2000), Literatura e Sociedade. São Paulo, T.A. Queiroz Editora., 2006CANDIDO, Antônio. (2006), “A Sociologia no Brasil”. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 18, 1:271-301. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-20702006000100015.
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; Coutinho, 1997COUTINHO, Afrânio. (1997), “Ensaio e Crônica”, in A. Coutinho. (org.), A Literatura no Brasil, vol. 6, 4° edição. Rio de Janeiro, Global.; Fernandes, 1958FERNANDES, Florestan. (1958), A etnologia e a sociologia no Brasil: ensaios sobre aspectos da formação e do desenvolvimento das ciências sociais na sociedade brasileira. São Paulo, Anhembi., 1977FERNANDES, Florestan. (1977), A sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis, Vozes.; El-Dine, 2019EL-DINE, Lorenna Ribeiro Zem. (2019), “Ensaio e interpretação do Brasil no modernismo verde-amarelo (1926-1929)”. Estudos Históricos, 32, 67:450-468. DOI: https://doi.org/10.1590/S2178-14942019000200007.
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; Martins, 2019MARTINS, Maro Lara. (2019), Sociologia, modernismo e interpretação do Brasil. São Paulo, Alameda.). Por outro lado, a centralidade deste tema pode ser explorada como um fenômeno em que transparecem dilemas fundamentais da configuração do espaço público brasileiro em sua contraparte privada, realçando algumas dificuldades históricas suscitadas pela irrupção do Estado moderno em ambientes periféricos (Maia, 2011MAIA, João Marcelo. (2011), “Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro”. Sociedade e Estado, 26, 2:71-94. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922011000200005.
https://doi.org/10.1590/S0102-6992201100...
, 2017MAIA, João Marcelo. (2017), “História da sociologia como campo de pesquisa e algumas tendências recentes do pensamento social brasileiro”. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 24, 1:111-128. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-59702017000100003.
https://doi.org/10.1590/S0104-5970201700...
; Tavolaro, 2005TAVOLARO, Sérgio. (2005), “Existe uma Modernidade Brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 20, 59:5-23. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092005000300001.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200500...
, 2021TAVOLARO, Sérgio. (2021) “Interpretações do Brasil e a temporalidade moderna: do sentimento de descompasso à crítica epistemológica”. Revista Sociedade e Estado, 36, 3:1059-1082. DOI: https://doi.org/10.1590/s0102-6992-202136030010.
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).

Tomando como base a teorização sobre o pensamento social brasileiro realizada por Maia (2011MAIA, João Marcelo. (2011), “Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro”. Sociedade e Estado, 26, 2:71-94. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922011000200005.
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, 2017MAIA, João Marcelo. (2017), “História da sociologia como campo de pesquisa e algumas tendências recentes do pensamento social brasileiro”. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 24, 1:111-128. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-59702017000100003.
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) e Tavolaro (2005TAVOLARO, Sérgio. (2005), “Existe uma Modernidade Brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 20, 59:5-23. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092005000300001.
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, 2021TAVOLARO, Sérgio. (2021) “Interpretações do Brasil e a temporalidade moderna: do sentimento de descompasso à crítica epistemológica”. Revista Sociedade e Estado, 36, 3:1059-1082. DOI: https://doi.org/10.1590/s0102-6992-202136030010.
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), uma reflexão sobre o modo de orientação das condutas, das percepções, dos modos de pensar e agir cravados nas interpretações do ensaísmo, retiraria suas características de certos condicionantes históricos da relação entre o mundo público e o mundo privado fincados na história e na sociologia de sua sociedade, em suas determinações culturais, ora definindo as feições mais pujantes do caráter brasileiro como uma sociedade amenizadora das diferenças, ora condensando o que deveria ser público ao personalismo, à asfixia diante da hipertrofia do mundo privado, à amoralidade dos costumes, ao patrimonialismo, ao familismo, ao insolidarismo social, à indistinção entre o público e o privado, ao clientelismo e à precarização dos direitos ou de qualquer arranjo de normas com pretensões de universalidade.

Analistas da modernidade hegemônica (Ahmad, 2002AHMAD, Aijaz. (2002), Linhagens do Presente: Ensaios. São Paulo, Boitempo Editorial.) não teriam se dado conta de que o processo de modernização que levara à modernidade não poderia partir do pressuposto de uma ocidentalização do modernismo que partiria do centro para a periferia (Agwele, 2012AGWELE, Augustine. (2012), Development, Modernism and Modernity in Africa. Londres, Routledge.; Bhambra, 2014BHAMBRA, Gurminder. (2014), Connected sociologies. London/New York, Bloomsbury Academic.; Connell, 2012CONNELL, Raewyn. (2012), “A iminente revolução na teoria social”. Tradução de João Maia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 27, 80:9-20. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092012000300001.
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; Chakrabarty, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. (2000), Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. New Jersey, Princeton University Press.; Patel, 2010PATEL, Sujata. (2010), The ISA Handbook of Diverse Sociological Traditions. Londres, Sage.). A modernidade europeia não fora capaz de transcender uniformemente seus valores e padrões estéticos ao resto do mundo sem sobressaltos, pois o processo de modernização se diferiu em diversas regiões do mundo. Para a teoria social/sociológica eurocentrada, o que caracterizaria a modernidade seria uma partição da razão, ou seja, sua diferenciação em esferas institucionalmente autonomizadas.

Historicamente, a diferenciação do sistema político ocorreu quando a autoridade política se cristalizou em torno das posições judiciais que prenderam os meios da força física aos padrões universais do Direito moderno. Dentro da estrutura das sociedades organizadas em torno do Estado, os mercados foram emergindo e adquirindo uma lógica própria. Estes sistemas seriam domínios formalmente organizados da ação social moderna, cujo início histórico teria se dado nas revoluções políticas do século XVIII e suas consequentes manifestações culturais e filosóficas (Habermas, 2002HABERMAS, Jürgen. (2002), O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes.). Dessa forma, a modernidade nasceria como projeto, em solo europeu, com a instauração do princípio articulador da subjetividade moderna e com a separação das esferas de valor. Autorreferencial em sua consciência histórica, ela teria de extrair de si mesma a sua própria normatividade.

Em resumo, no discurso sociológico da modernidade hegemônica, as chamadas sociedades modernas centrais são tidas como aquelas em que o Estado, o mercado e a sociedade civil ocupam esferas plenamente diferenciadas entre si, reguladas exclusivamente por códigos próprios e dinamizadas por lógicas particulares (Tavolaro, 2005TAVOLARO, Sérgio. (2005), “Existe uma Modernidade Brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 20, 59:5-23. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092005000300001.
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). Os âmbitos público e privado, por sua vez, são também plenamente separados, cada um dos quais ordenado por códigos e lógicas particulares, se comunicando apenas através de canais apropriados que mantêm inalterados os termos e as regras de cada um dos domínios.

No caso do ensaísmo brasileiro, mais ou menos explícita nas interpretações propostas por cada um daqueles autores, encontra-se a ideia de que no Brasil contemporâneo a eles, Estado, economia e sociedade civil jamais teriam sido capazes de se diferenciar plenamente e, dessa forma, de se dinamizar a partir de lógicas e códigos próprios. O domínio público teria sido raptado e subjugado à lógica e aos propósitos das esferas de convívio familiar, códigos pessoais e privados, com sociabilidade restritiva, razão pela qual as regras impessoais e racionalizadas seriam frequentemente relegadas a segundo plano. Nessa sociedade jamais se atingiu o grau e a extensão da diferenciação social, da secularização e da separação entre o público e o privado observados nas sociedades modernas centrais.8 8 Esse ponto é fundamental para entendermos as diferenças entre os “tipos de modernidade” a partir da conjugação do modernismo e da modernização que se estabelece no Brasil, se comparados a outros casos nacionais.

Trata-se, segundo esta trilha que se está percorrendo, da formação de uma interpretação na qual se ambicionaria especificar os fundamentos e a dinâmica social da dominação política brasileira (Botelho, 2010BOTELHO, André. (2010), “Passado e futuro das interpretações do país”. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 22, 1:47-66.). Seria através deste tipo de ensaio que se ganharia inteligibilidade à tendência de relacionar aquisição, distribuição e organização de poder à estrutura social. Essa matriz do pensamento social e político brasileiro exprimiria um caminho alternativo do andamento moderno através de suas dicotomias, tanto na composição de uma cartografia imaginativa, campo e cidade, rural e urbano, litoral e sertão, centro e periferia, como nas figurações da ação social, interesse e virtude, iniciativa e inatividade, empreendimento e cometimento, vontade e contingência. Essa experiência intelectual periférica carregaria essa contradição como fundamento da sua modernidade, em especial na forma como abordou o espaço e seus personagens postos no cronótopo moderno.

Dito de outra forma, ao procurarem explicar essa difícil síntese, conheceriam a modernidade brasileira no sentido de contemporaneidade e historicidade, e isso sob a ótica de uma espécie de modernidade alternativa ou caminho não modelar da modernidade (Tavolaro, 2017TAVOLARO, Sérgio. (2017), “Retratos não-modelares da modernidade: hegemonia e contra-hegemonia no pensamento brasileiro”. Civitas – Revista de Ciências Sociais, 17, 3:115-141. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2017.3.26580.
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). O campo possuiria sua sociologia, seus personagens principais, com sua subjetividade, sua atuação no mundo. O latifúndio como fundo para ações realizadoras de interesses e virtudes para o fazendeiro, o escravo, o capanga, o homem livre comum, o tempo lento no seu desenrolar a incrustar a vida social e a estabelecer certos tipos de solidariedade e interesses. A cidade, local das inter-relações sociais e lócus do tempo célere, da iniciativa, da volúpia do viver moderno, dos seus personagens liberais e de sua sociabilidade muitas vezes subsumida ao mundo rural e incapaz de encontrar terreno fértil para o seu avanço.

A compreensão da cidade e do mundo rural passaria pela análise de todos os elementos que comporiam o seu quadro: terra, água, clima, homens, civilização, cultura, arquitetura, trabalho, ideias e símbolos. O campo e a cidade não seriam apenas materialidade, possuiriam uma dimensão simbólica e subjetiva que também atuaria na construção de suas formas espaciais. A significação do espaço, urbano ou rural, conferiria aos indivíduos e coletividades unidade e identidade com o seu entorno em uma espécie de estruturação sígnica do espaço. Cada local estruturaria uma espécie de cartografia imaginativa que atribuiria a um determinado tempo-espaço, certos modos de viver, pensar e experimentar o mundo, certos tipos sociais, solidariedade, certa constituição de interesses e virtudes em sua sociabilidade, pensados a dialogicamente desvendar essa alternativa à modernidade hegemônica com seus excessos e ausências.

6. Considerações finais

Neste artigo, analisei o ensaísmo brasileiro dos anos 1920 e 1930 como uma interpretação do Brasil que levaria em conta os sentidos da ação coletiva brasileira e a cultura política daí derivados na formação de seu Estado-nação. O papel explicativo desta vertente do pensamento social brasileiro traduziu os dilemas da produção e circulação de imaginações sociais fora das explicações modulares da sociologia hegemônica, muito embora estivessem a elas intimamente conectadas. Dotados dessas características, os personagens da historiografia ganhariam inteligibilidade e plausibilidade na armação da teoria social que conduziria essas interpretações e buscariam a história como método analítico de sua sociedade e de seu Estado. Estratégia essa que postularia, enquanto constituição de teoria da interpretação, os fundamentos e conceitos da sociologia como os mais capacitados para se revelar a origem e a originalidade do país e de sua história.

O protagonismo advindo da ruralidade e seu desdobramento em solidariedade, autoridade e composição dos interesses certamente constituiria tipos sociais específicos. Importaria, sobretudo, a atuação desses personagens, tipos sociais, na história brasileira, no seu mundo público, na formação de seu Estado. Isolada desta análise mais ampla de atuação e constituição de sua ação social e política, os diferentes personagens perderiam sua densidade.

Em torno da cartografia imaginativa, campo e cidade, litoral e sertão, centro e periferia, seu imbricamento em temas como a solidariedade, a autoridade, a liberdade e a igualdade, a sua figuração em torno de personagens compósitos e portadores de determinados interesses e virtudes, demonstraria a construção de uma pertinaz imaginação social. Os conceitos centrais e mobilizadores, como patriarcalismo, patrimonialismo, agnatismo, familismo, entre outros, serviriam para aclarar as configurações das relações entre Estado e sociedade. Relações que poderiam ser imiscuídas no processo de formação da comunidade política, na burocratização do poder público, na formação de solidariedades sociais conectadas a tais tipos de autoridade e na constituição de subjetividades dos agentes sociais.

Por fim, cabe apontar que o desenvolvimento das distintas sociologias nacionais ou regionais, especialmente em contextos periféricos, sublinhou as diferenças de andamento histórico como singularidade da experimentação moderna periférica (Patel, 2010PATEL, Sujata. (2010), The ISA Handbook of Diverse Sociological Traditions. Londres, Sage.; Agwele, 2012AGWELE, Augustine. (2012), Development, Modernism and Modernity in Africa. Londres, Routledge.), ancoradas no atraso ou na inadequação entre a teorização elaborada em contextos hegemônicos e sua produção, circulação e aclimatação em contextos periféricos, seja do ponto de vista do centro-periferia do sistema-mundo (Wallerstein, 2001WALLERSTEIN, Immanuel. (2001), Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro, Contraponto.), das modernidades múltiplas (Eisenstadt, 2001EISENSTADT, Shmuel. (2001), “Modernidades múltiplas”. Sociologia, Problemas e Práticas. 35:139-163.) ou da modernidade global (Domingues, 2013DOMINGUES, José Maurício. (2013), Modernidade Global e Civilização Contemporânea: para uma renovação da Teoria Crítica. Belo Horizonte, Editora da UFMG.). Ao mesmo tempo, torna-se essencial a investigação das relações entre teoria social/sociológica e pensamento social brasileiro, emergindo a demanda pela teorização sociológica às margens (Connell, 2012CONNELL, Raewyn. (2012), “A iminente revolução na teoria social”. Tradução de João Maia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 27, 80:9-20. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092012000300001.
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; Maia, 2017MAIA, João Marcelo. (2017), “História da sociologia como campo de pesquisa e algumas tendências recentes do pensamento social brasileiro”. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 24, 1:111-128. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-59702017000100003.
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), de modo a subsidiar explicações alternativas sobre temas globais, como o modernismo, a modernização e as diferentes configurações da modernidade (Tavolaro, 2005TAVOLARO, Sérgio. (2005), “Existe uma Modernidade Brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 20, 59:5-23. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092005000300001.
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; Maia, 2011MAIA, João Marcelo. (2011), “Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro”. Sociedade e Estado, 26, 2:71-94. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922011000200005.
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), permitindo a reformulação da teoria sociológica e o realinhamento dos sentidos e significados atribuídos aos agentes sociais ao longo do desenvolvimento histórico destas regiões.

  • 1
    Lynch (2013)LYNCH, Christian Edward Cyril. (2013), “Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição periférica (1880-1970)”. Dados-Revista de Ciências Sociais, 56, 4:727-767. DOI: https://doi.org/10.1590/S0011-52582013000400001.
    https://doi.org/10.1590/S0011-5258201300...
    aponta que o estilo periférico do pensamento político e social brasileiro, enquanto concepção terminologicamente indeterminada e amplificada das interpretações do Brasil, contrasta com as obras canônicas da teoria política europeia por possuir, entre outras características, menor grau de generalização.
  • 2
    É nos anos 1920 e 1930 em que o ensaísmo brasileiro adquire maior capacidade de proliferação de seus argumentos, em especial por suas conexões com o modernismo e com o campo político. São esses ensaios de interpretação geral que comumente são associados ao surgimento da sociologia brasileira. Ficaram como os clássicos da interpretação do Brasil, e pelo estilo de escrita – o ensaio – constituíram uma parcela da tradição de se fazer sociologia: o ensaísmo. A crítica e as análises sobre o ensaísmo brasileiro, em seu conjunto, fornecem algumas ponderações importantes sobre o modo como o estilo foi concebido e analisado no caso brasileiro.
  • 3
    O termo Modernidades múltiplas tem duas implicações. A primeira é que Modernidade e ocidentalização não são idênticas; o padrão, ou padrões ocidentais de modernidade, não constitui as únicas Modernidades autênticas, mesmo se foram historicamente precedentes e se continuaram a ser uma referência central para outras visões da Modernidade. A segunda é que o termo Modernidades implica o reconhecimento de que essas Modernidades não são estáticas, que se encontram, antes, em constante mutação (Schmidt, 2011SCHMIDT, Volker. (2011), “Modernidade e diversidade: reflexões sobre a controvérsia entre teoria da modernização e a teoria das múltiplas Modernidades”. Revista Sociedade e Estado, 26, 2:155-183. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922011000200009.
    https://doi.org/10.1590/S0102-6992201100...
    ).
  • 4
    Não é a intenção deste texto debater exaustivamente os significados e consequências teóricas do uso de cada uma destas abordagens.
  • 5
    No caso brasileiro, a designação é pensamento social e político brasileiro.
  • 6
    Ao analisar o sintagma das ideias fora do lugar de Roberto Schwarz, Bernardo Ricupero (2008)RICUPERO, Bernardo. (2008), “Da formação à forma. Ainda as “idéias fora do lugar””. Lua Nova, 73:59-69. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-64452008000100003.
    https://doi.org/10.1590/S0102-6445200800...
    recusou que o conceito de cronótopo assuma meramente uma feição de padronização ou tema recorrente em cada obra/autor de determinado contexto. Por sua vez, como entendeu Paulo Arantes (1992)ARANTES, Paulo. (1992), “Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo” in M.A. D’incao; E.F. Folo. (org.), Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo, Companhia das letras. na esteira de Roberto Schwarz (1992), aSCHWARZ, Roberto. (1992), Ao vencedor as batatas. São Paulo, Duas Cidades. recorrência do tema – e do termo – da formação do Brasil no ensaísmo brasileiro constituiria verdadeira obsessão da experiência intelectual do capitalismo periférico, no sentido de produzir uma interpretação da realidade social diferente da produzida nos países centrais, onde o desenvolvimento do capitalismo se daria de “modo orgânico e quase natural”.
  • 7
    Suas considerações o levaram, e toda sua geração, a desqualificar o ensaio como suporte para a sociologia e as ciências humanas. Todavia, é importante ressaltar que o próprio Florestan Fernandes, já na década de 1970, publicaria o seu clássico A Revolução Burguesa no Brasil, cujo subtítulo era ensaio de interpretação sociológica. Neste período, não só a sua concepção sobre o ensaio havia alterado como também a própria definição do que seria esse estilo de escrita.
  • 8
    Esse ponto é fundamental para entendermos as diferenças entre os “tipos de modernidade” a partir da conjugação do modernismo e da modernização que se estabelece no Brasil, se comparados a outros casos nacionais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2022
  • Aceito
    17 Maio 2024
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