RESENHAS
Márcia Castiglio da Silveira
Mestre em educação, professora de matemática no Instituto Estadual de Educação Paulo da Gama e professora substituta no Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UFRGS.
SILVEIRA, Rosa M. H. (org.). Professoras que as histórias nos contam. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
O livro organizado por Silveira apresenta oito textos que analisam as representações de professora e professor na literatura infanto-juvenil. Para proceder tal exame, foram selecionados cem livros que compõem a produção brasileira mais recente. O objetivo da coletânea, ao examinar as representações de professores e professoras, não é evidenciar um modo "real" de ser professor ou professora, mas mostrar regularidades nas formas como são apresentadas essas personagens ao público infanto-juvenil.
As autoras conduzem suas análises a partir de um mesmo referencial teórico, qual seja, os Estudos Culturais "que se interessam pelas questões de representação, de identidade e poder, num ponto de vista pós-moderno" (p. 10). Ao mesmo tempo, os textos são marcados pelas experiências e estudos já realizados pelas autoras, o que certamente influenciou o tema trabalhado por cada uma delas: ciências, raça/etnia, alfabetização, mídia, língua materna, gênero/sexualidade, educação física.
Após a apresentação feita pela organizadora, o primeiro estudo, de autoria de Maria Lúcia Wortmann, intitula-se "Sujeitos estranhos, distraídos, curiosos, inventivos, mas também éticos, confiáveis, desprendidos e abnegados: professores de ciências e cientistas na literatura infanto-juvenil". Analisa 12 obras, mostrando as marcas com que são apresentados os professores de ciências e os cientistas. Para proceder tal exame, Wortmann faz considerações sobre como vêm se desenvolvendo questões atuais no campo da ciência e, ainda, discute o termo "representação", já que este tem uma série de significados que lhe são atribuídos em diferentes áreas. Tal conceito é utilizado nos demais capítulos desse livro. Quanto aos traços que marcam aqueles que ensinam/praticam ciência, o próprio título desse capítulo é elucidativo.
O capítulo seguinte, "Gritos, palavras difíceis e verborragia: como a professora fala na literatura infantil", escrito pela organizadora do livro, consiste na análise de 23 obras da literatura infantil para caracterizar o discurso professoral, isto é, os jeitos das professoras falarem em sala de aula. São apontadas três características básicas; uma delas é que professoras são bastante loquazes, falam, falam, falam muito; outra é a falta de controle da voz, fazendo uso de muitos gritos e, por fim, abusam de palavras difíceis, tornando a fala professoral incompreensível aos alunos e alunas e comprometendo a comunicação entre eles.
Na seqüência, o texto intitulado "Formosura parelhada na inteligência: a beleza que ensina nos livros infanto-juvenis", elaborado por Daniela Ripoll, relata o que seu olhar atento para "algumas questões de gênero, sexualidade e docência" (p. 70) encontrou nas 15 obras pesquisadas. Segundo Ripoll, é ambivalente a forma como as professoras são narradas sob o ponto de vista do gênero e da sexualidade, pois ao lado de clássicas representações de recato, bondade, mulheres sozinhas que doam seu amor aos "filhos emprestados", encontram-se professoras sedutoras, desejáveis e que despertam amores e paixões em seus alunos. As citações feitas pela autora deixam claro o quanto os corpos de professoras/es e de alunos(as) vêm ganhando visibilidade nesta literatura.
Em "As representações do(a) professor(a) negro(a) na literatura infanto-juvenil ou sobre os fluxos das águas...", a autora, Gládis Kaercher, inicialmente revisa os termos raça e etnia, discutindo sob aspectos biológicos e culturais os cambiantes significados que eles assumem nos discursos, por exemplo, nos campos da sociologia e dos estudos culturais. Foram selecionados 10 livros infanto-juvenis que têm como personagens professores(as) negros(as). Eles são marcados por estereótipos racistas que "naturalmente" vinculam os negros ao que é feio, sujo e que cheira mal. Assim, mesmo que a profissão docente seja desvalorizada nesta literatura analisada, um(a) negro(a) assumir a posição docente é uma conquista e tanto e, quando eles(as) são os(as) professores(as), na literatura infanto-juvenil, sempre causadores de conflitos dentro das narrativas.
A temática da alfabetização é abordada em "Alfabetizadoras de papel", trabalho produzido por Iole Trindade. A partir de 12 obras da literatura infantil, as alfabetizadoras (o feminino é predominante nessas obras) são identificadas pelos "tradicionais métodos" que utilizam, pelas "lições de casa" que mandam fazer, pelas "propostas inovadoras" e pelo apagamento da própria alfabetizadora, já que as crianças têm sido alfabetizadas pela rua e pela televisão, por exemplo. Alfabetismo e alfabetização são discutidos para além do saber ler, escrever e contar, pois há outras lições para se aprender devido ao contexto no qual se desenrolam as narrativas. Por fim, a própria literatura infantil assume a posição de alfabetizadora, alfabetizadora de papel, pois traz sempre "uma lição" aos seus(suas) leitores(as) infantis.
O sexto estudo intitula-se "Lá vem a diretora: chiliques, broncas... mas, até que ela é uma boa pessoa! Representações de diretores(as) de escolas na literatura infanto-juvenil". Para escreve-lo, Lúcia Elena Amaro analisou 15 obras da literatura infanto-juvenil que apresentavam diretoras e diretores como personagens principais ou secundários. O lugar da diretora ou do diretor é assegurado para o exercício das atividades que organizam e administram a escola. Dirigir-se a eles requer um "Dona Fulana", "Seu Sicrano", "Dr. Beltrano", pois o posto é de distinção entre os demais docentes. Ao falar das diretoras, os espaços profissional e doméstico confundem-se, enquanto para os diretores o espaço profissional separa-se do familiar. Assim, fica claro o quanto o gênero é significativo neste espaço "especial". Além disso, esses personagens costumam ser os vilões e também têm suas imagens confundidas com a da instituição escolar.
Maria Isabel Dalla Zen, escreveu o penúltimo capítulo: "Representações da professora de português na literatura infanto-juvenil - elas têm o vírus da chatice?" As 34 obras analisadas, narram professores e professoras de português, permitindo à autora olhar como essas professoras ou a esses professores vêm sendo caracterizados, com quais regularidades e tensões eles/as são produzidos. Nas histórias há um choque entre modos "tradicionais" de ensino e o "discurso renovador" das práticas pedagógicas. As atividades propostas pelos/as professores/as vão desde as redações (atualmente discute-se a expressão produção textual como mais adequada) até aulas "de gramática e correção, através da prática da verificação de 'conhecimentos'" (p. 160). Aproveitando-se das análises de Silveira sobre o discurso professoral, a autora percebe que o aspecto que se destaca na fala das professoras de português é o destempero, não só na fala, mas também nos gestos que as mostram como pessoas "chiliquentas", nervosas, com o vírus da chatice.
Completa a série de estudos desenvolvidos nesse livro o texto "Marcando, driblando, bloqueando, cortando... representações de professores/as de educação física na literatura infanto-juvenil", produzido por Fátima Pilotto. Analisando oito livros infantis, em cujas histórias estão presentes professores de educação física, Pilotto encontra destaque justamente no "padrão corporal e na masculinidade desses sujeitos" (p. 175). Existe tanto uma centralidade do corpo nas narrativas examinadas quanto a predominância do gênero masculino, o que não ocorre nas temáticas trabalhadas pela maioria dos capítulos anteriores. Ainda na contramão dos outros estudos, se professores homens são caracterizados como sábios, inteligentes e inventivos, na educação física eles são conhecidos mais pelos seus músculos, pois eles "não tem muita coisa na cabeça" (p.176). Ainda aparecem outras características ambíguas, pois há professores "carrascos", rígidos e aqueles que são amigos. Por fim, aparecem aqueles que têm forte vínculo com o esporte, sendo ex-atletas ou treinadores, por exemplo.
Ao chegarmos ao final da leitura, confirmamos a impressão que temos no decorrer dela: os estudos conectam-se, complementam-se, entrelaçam-se e ainda assim não se esgotam. De fato, outros temas ligados às professoras e professores vão sendo por nós percebidos e nos estimulam a procurar outras dimensões do ser docente na literatura infanto-juvenil. Além disso, contribuindo para a discussão de como, a identidade docente é produzida na cultura, esse livro serve de referencial para outros estudos que pretendam conhecer como em outros artefatos culturais, essas identidades vêm sendo significadas. Talvez fosse desnecessário dizer que ao longo do livro vamos nos reconhecendo, nos identificando, bem como nos diferenciando das características salientadas. Com as muitas e adequadas citações das histórias infanto-juvenis, que estão entremeadas às análises das autoras, vislumbramos o fascinante mundo da literatura infantil, identificando-nos não apenas com nossa posição de docente, mas também com a criança que há em nós e cujas vivências escolares permitiram conhecer muitos professores e professoras de quem lembramos.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Nov 2006 -
Data do Fascículo
Ago 2003