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Em defesa de outra postura institucional: sobre leitura e escrita no meio universitário

A case for an alternative institutional approach:about reading and writing in the academic setting

En defensa de otra postura institucional:sobre lectura y escrita en el medio universitario

SACRINI, Marcus. . Leitura e escrita de textos argumentativos.São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p.

No Brasil, as dificuldades de leitura e escrita são profundas e graves, mas é necessário ressaltar que elas se fazem presentes em níveis preocupantes também no meio universitário, até mesmo entre alunos das melhores universidades, inclusive na pós-graduação. Diante disso, duas posturas institucionais parecem predominar: de um lado, há o não reconhecimento do problema, o que ocorre por se supor que, só por serem alfabetizados, os alunos são aptos à leitura densificada e que, uma vez cobrada do aluno a leitura de textos argumentativos complexos, quaisquer dificuldades decorreriam tão somente de sua falta de empenho ou preguiça; de outro, reconhece-se o problema, mas, como solução, sob o pretexto de que nada pode ser feito para que os alunos se tornem aptos à leitura densificada, propõe-se a simplificação de conteúdos, pela qual a leitura é substituída por esquematizações que os alunos recebem do professor. Naquela, parte dos alunos irremediavelmente fica para trás, e mesmo aqueles que chegam à universidade com uma maior capacidade para a leitura e a escrita perdem a oportunidade de aperfeiçoá-las; nesta, todos perdem. Os riscos são evidentes, sobretudo (mas não só) naquelas áreas em que tais aptidões são especialmente exigidas: uma formação medíocre, a inaptidão para o bom exercício da profissão e mesmo a desistência da carreira.

É contra essas duas posturas ou “concepções vulgares” que Marcus Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p., p. 27) lançou-se ao publicar Leitura e escrita de textos argumentativos pela EDUSP, propósito, aliás, que o autor fez questão de deixar explícito: “[...] gostaríamos de sugerir e auxiliar na construção de outra postura institucional […]” (Sacrini, 2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p., p. 29). Composto de oito capítulos e envolvendo tanto a fundamentação das práticas de leitura e escrita de textos argumentativos complexos como o oferecimento de algumas das estratégias e técnicas mais usadas, o essencial no livro é a ideia de que essas são aptidões que podem ser desenvolvidas através do treino metódico e habitual (portanto, não são dons naturais) e que seu adequado exercício depende da autonomia daquele que as pratica.

Se a noção de autonomia parece óbvia em se tratando da escrita, convém de início ressaltar que também a leitura envolve a participação ativa do leitor na atribuição de sentido ao texto. Tal é por excelência do escopo do capítulo 3, no qual o autor ressalta que tal atribuição ultrapassa a face explícita do texto: embora esta condicione aquela, a leitura é um ato de elaboração. Ao fim e ao cabo, tanto o sentido atribuído pelo leitor quanto o sentido que o próprio texto demanda possuem autonomia relativa uma em face da outra. Professor na área de História da Filosofia Contemporânea na Universidade de São Paulo (USP), Marcus Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p.) lança mão de referências conceituais de seu campo de especialidade: é o caso da concepção de cultura de Husserl, da noção de “sujeito leitor” (ibidem, p. 45) em Ricoeur e da noção sartreana de “situação” (ibidem, p. 67): “[...] o leitor sempre está situado existencial e socialmente, e a ele cabe, por meio da leitura, recontextualizar o conteúdo significativo, ou seja, situá-lo em um ambiente concreto […]” (ibidem, p. 68). Abordando as dimensões implícitas da leitura (de ordens semântica e pragmática), Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p.) teve o cuidado de apontar para o risco de uma circularidade viciosa, na qual o leitor destaca apenas o que lhe é familiar. A esta, contrapõe-se a circularidade virtuosa, em que o repertório do leitor é confrontado pelo texto ao mesmo tempo em que o confronta. Ainda quanto à compreensão do texto, ele chama a atenção para a plurivocidade interpretativa: o texto é um, mas as interpretações, desde que não sejam arbitrárias e injustificadas, são muitas, o que não significa que tenham o mesmo valor. Aqui, novamente, Ricoeur (apudSacrini, 2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p., p. 84) é evocado: “[...] não é verdade que todas as interpretações são equivalentes […]”.

Quanto às estratégias propriamente, estas figuram nos capítulos 4 a 6 (estratégias de leitura) e 8 (estratégias de escrita). De início, é necessário observar que, a despeito da grande ênfase dada ao fichamento - estratégia de leitura exposta de maneira minuciosa e para o qual são dedicados dois capítulos -, as estratégias expostas na obra não devem ser tomadas como modelos. Em verdade, o autor insiste em que as estratégias descritas são típicas ou esquemáticas e que requerem constante ajuste ou frequente regulagem. Ao leitor, será mais enriquecedor tomar contato com as estratégias expostas no livro menos como modelos a serem seguidos à risca - efetivamente, o livro não é um manual e nele não há um passo a passo - do que como exemplos inspiradores. Falando especificamente sobre as estratégias de leitura, Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p., p. 90, grifos nossos) assevera tratar-se de um “saber prático” e complementa: “[...] somente a prática regular dessas estratégias em diversas situações enriquece o discernimento de modo a permitir decisões satisfatórias acerca de quais estratégias seguir […]”.

No caso das estratégias de leitura, convém destacar aquelas anteriores ao ato de ler, já que o senso comum não parece duvidar de que estratégias possam ser empregadas durante a leitura. O autor ressalta a importância de informar-se sobre o texto e de organizar-se para a leitura, o que envolve preocupações que não raro passam despercebido pelos leitores, sobretudo aqueles menos experientes, como a gestão do tempo. Particularmente notável é o fato de Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p., p. 100-1) ter se ocupado da “disposição psicofísica” - e é uma pena que, nesse ponto, o autor não tenha feito menção explícita à saúde mental, um tema da maior relevância e que ainda é tratado como tabu em muitos contextos. Já no que concerne às estratégias que se deve empregar durante a leitura, Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p.) destaca algumas que costumam ser ignoradas: é o caso da necessidade de se fazer pausas no decorrer da leitura, chamadas pelo autor de naturais - apesar de contraintuitivo para muitos, o fato é que estas fazem parte da leitura. Argumento análogo aparecerá no capítulo final, dedicado à escrita, quando Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p.) enfatiza a importância dos momentos difusos ou de livre conexão, em que o escritor toma distância do texto.

No caso das estratégias de escrita, por seu turno, dá o tom a necessidade da clareza expressiva ou comunicativa, evitando-se os estilos difíceis ou demasiado herméticos. Aqui também figuram noções que, em maior ou menor grau, contrariam o senso comum, mas de que um leitor experiente não pode discordar. Por exemplo, a tese de que a escrita não é um mero ato de externalização de ideias, mas, bem ao contrário, ela toma parte na “ordenação e expansão das próprias ideias” e na “elaboração de posicionamentos próprios” (Sacrini, 2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p., p. 260/267). Outro exemplo é a inserção na área disciplinar, um objetivo elementar do ensino universitário e que o leitor encontrará no capítulo 7, dedicado às estratégias anteriores à escrita (contextualização e preparação). Já quanto às estratégias para a realização da escrita, convém, aqui novamente, a ressalva: tais estratégias não são meros instrumentos de que o escritor se vale mecanicamente, mas orientações que ele deve sempre adaptar às suas necessidades e intenções, com cuidado e destreza. Dentre as estratégias apresentadas, os marcadores metadiscursivos e as citações e paráfrases são os que talvez melhor revelem o caráter singular de seu emprego e, por conseguinte, o quão necessária é a autonomia do escritor em decidir quais estratégias empregar, quando e como, na chave de um saber prático.

O livro não se esgota nesses aspectos. Dentre a enorme gama de assuntos nele implicados, gostaria de ressaltar ainda dois. Em primeiro lugar, a discussão sobre o aspecto material da leitura ou do texto como “objeto espacial” (Sacrini, 2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p., p. 63). O ponto é desenvolvido na segunda parte do capítulo 3, embora seja retomado em outros momentos. Em tom de controvérsia e não escondendo um relativo pessimismo, Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p.) aborda a complicada (e, apesar de não tão nova, ainda pouco discutida) questão do suporte digital e seus efeitos não apenas sobre a compreensão do texto, mas também sobre a atenção dos leitores e sobre o hábito da leitura de uma maneira geral. Qualquer que seja a conclusão a que possamos chegar ou a posição que adotemos, a conjuntura aberta pela pandemia de COVID-19 tornou patente o alerta feito por Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p., p. 65) “[...] contra a frivolidade (para dizer o mínimo) com que certas inovações tecnológicas são tomadas como inescapáveis para as práticas de ensino […]”.

Em segundo lugar, atravessa essa obra a ideia de que a leitura e a escrita intervêm de maneira decisiva sobre a própria percepção do leitor e do escritor, com repercussões em suas atitudes sociais, políticas, éticas e interpessoais. Não por acaso essa ideia é desenvolvida no capítulo 2, dedicado aos aspectos culturais e sociais da leitura, ainda que tenha sido adiantada na parte final do capítulo 1, que tem o sugestivo título de “Perspectivas emancipatórias trazidas pela leitura amadurecida”. Algumas linhas antes, Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p., p. 19) sustentara que a leitura é uma “[...] ocasião privilegiada para a manutenção de uma postura crítica ante preconceitos e extremismos”. Já ao abordar a escrita, Sacrini (2019SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p., p. 281-2) a associa ao “pensar crítico” e ao “exercício consciente de tomada de posição”. Tal ordem de questões ecoa ideias que o autor desenvolvera no instigante epílogo de uma obra anterior, Introdução à análise argumentativa: teoria e prática (2016/2023), em torno da relação entre a prática da argumentação e o ambiente cultural no qual tal prática se dá.

Por todas essas razões, a publicação de Leitura e escrita de textos argumentativos é mais que oportuna. Trata-se de uma obra que merece ser empregada em todos os cursos em nível superior, em particular para as turmas de primeiro ano, sendo ainda de grande valia e utilidade para todo aquele que deseja ou precisa aperfeiçoar-se nessas duas tarefas.

REFERÊNCIAS

  • SACRINI, Marcus. Leitura e escrita de textos argumentativos. São Paulo: EDUSP, 2019. 356 p.
  • Como citar este artigo:

    DAVID, Antônio. Em defesa de outra postura institucional: sobre leitura e escrita no meio universitário. Revista Brasileira de Educação, v. 29, e290010, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782024290010
  • Financiamento:

    O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2021
  • Revisado
    26 Set 2022
  • Aceito
    30 Jan 2023
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