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I-margem, ou os modos de germinar um sem fundo para a educação

I-margin, or the modes to germinate a bottomless for education

I-margen, o las formas de germinar un sin fondo para la educación

RESUMO

No texto, buscam-se aproximações criativas com imagens e sons em tipos de cinema para os quais a imagem não é um enunciado, e que solicitam uma lógica da sensação não discursiva e não uma lógica da significação. Com entrecruzamentos da filosofia e das artes, faz-se germinar o conceito de i-margem, argumentando que a educação em suas textualidades e escritas merece ser olhada como um espaço-tempo de efetuação de outros possíveis que não perpetuem a reprodução, o ideal do mesmo e a tomada de posição diante da vida com base em ideias moralizantes, intolerantes e universais. Inspirando-se na pedagogia das coisas de Pasolini e na didática do como não ser visto de Steyerl, ambos cineastas, a i-margem coloca em movimento intensidades de uma educação do deslocamento e da invisibilidade.

Palavras-chave:
Imagem; Filosofia da Diferença; Gesto; Pedagogia

ABSTRACT

In the text, creative approximations are sought with images and sounds in types of cinema for which the image is not a statement, and which request a logic of non-discursive sensation and not a logic of meaning. With intersections between philosophy and the arts, the concept of i-margin is germinated, and it is argued that education in its textualities and writings deserves to be seen as a space-time for the realization of other possibilities that do not perpetuate the reproduction, the ideal of the same and the taking a stand on life based on moralizing, intolerant and universal ideas. Inspired by Pasolini's pedagogy of things and Steyrel's didactics of how not to be seen, both filmmakers, i-margin sets in motion intensities of an education of displacement and invisibility.

Keywords:
Image; Philosophy of Difference; Gesture; Pedagogy

RESUMEN

En el texto se buscan aproximaciones creativas con imágenes y sonidos en tipos de cine, para los que la imagen no es un enunciado, y que pide una lógica de la sensación no discursiva y no una lógica del sentido. Con cruces de la filosofía y las artes, hace germinar el concepto de i-margen, argumentando que la educación en sus textualidades y escritos merece ser vista como un espacio-tiempo para la realización de otras posibilidades que no perpetúan la reproducción, el ideal de la misma y la toma de posición ante la vida basada en ideas moralizantes, intolerantes y universales. Inspirándose en la pedagogía de las cosas de Pasolini y la didáctica de cómo no ser visto de Steyrel, ambos cineastas, i-margen pone en marcha intensidades de una educación del desplazamiento y la invisibilidad.

Palabras clave:
Imagen; Filosofía de la Diferencia; Gesto; Pedagogía

ALGUM INDIZÍVEL EM TANTAS PALAVRAS

Para ti dei voz

às minhas mãos

abri os gomos do tempo

assaltei o mundo

(Mia Couto, 2007COUTO, Mia. Lições. In: COUTO, Mia. Idades cidades divindades. Lisboa: Editorial Caminho, 2007. p. 10-12.)

Esta imagem de abrir gomos de uma fruta, de uma estrutura composta de frações iguais, unidas tenuemente e prontas para serem abertas confere ao tempo a força do instante de sobressaltar o mundo com os acontecimentos. E os gomos são abertos por um movimento háptico, com as mãos e por meio do tato. Esse gesto de tocar o mundo, abrindo-o aos acontecimentos, é avesso ao dar a voz a algum ser-sujeito da narrativa; pois a voz que nasce é dada às mãos, em uma relação háptico-perceptiva e menos sensório-visual e representacional, como costumeiramente é a força-motriz de uma narrativa da percepção, da consciência e da interpretação.

Com minhas pesquisas atuais, busco associações heterogêneas entre refúgio, imagem e educação. E faço este movimento especialmente interessado nas imagens de alguns tipos de cinema que assaltam o mundo, dão-lhe voltas e retornos diferenciais, deslocam-nos como espectadores de cenas cotidianas insuportáveis, cuja violência nos corpos, nas memórias, histórias e modos de vida é de uma brutalidade. Os gomos do tempo abertos jorram, muitas vezes, dor, sofrimento, silêncio e desencanto.

Os cinemas experimentais, em que tais narrativas são vivamente apresentadas em imagens e sons, são similares a uma janela poética aberta por Mia Couto (2007)COUTO, Mia. Lições. In: COUTO, Mia. Idades cidades divindades. Lisboa: Editorial Caminho, 2007. p. 10-12. e que age sobre um tempo que guarda resquícios utópicos:

antes que a escuridão

nos cingisse a cintura

ficávamos nos olhos

vivendo de um só

amando de uma só vida.

O refúgio traz para a educação o retorno de suas potências de ser um lugar para a sobrevivência do abandono, do que restou da máquina dilacerante da necropolítica, daquilo que falta a um povo ainda não existente, e que as imagens e sons germinam em filmes, videoinstalações e demais tipos de cinema contemporâneo.

Nesse contexto, a imagem não é um enunciado e solicita uma lógica da sensação não discursiva e não uma lógica da significação.

O cinema como gérmen de devires ou a poeira, fragmentos de pó e uma "sujeira" que abre os gomos do tempo à emergência de um cristal, que refrata e reflete a luz, que é dobra exterior que prepara a membrana que delimitará e contingenciará a emergência de um indivíduo ainda sem nome, sem designação. O refúgio são aqueles "olhos nos olhos" de uma só vida, em que o afecto é a força que mantém pulsando o indivíduo antes que a escuridão cinja o mundo.

Embrenhando-me neste refúgio para as imagens ganharem velocidade é importante reivindicar, contra qualquer dogmatismo, a afinidade entre a velocidade e o pensamento.

A velocidade é o vento forte do fora que rasga os "guarda-sóis" (O que é a filosofia?) sob os quais se abriga a recognição e que, no céu desnudado, semeia a tempestade e faz fulgurar a diferença; é assim que nasce o pensamento: não em sua conformidade sempiterna consigo mesmo a respeito de um objeto considerado como o mesmo, não na ortodoxia de sua direção previamente decidida, mas quando ele é confrontado com a garra daquilo que ainda não foi pensado, daquilo que surge com a intempestiva inanidade de um encontro. (Simont, 2021SIMONT, Juliette. Gilles Deleuze, ao encontro da intensidade. Tradução: Carlos Tiago da Silva e Eladio Constantino Pablo Craia. Revista Trágica: Estudos de Filosofia da Imanência, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 185-218, 2021. https://doi.org/10.59488/tragica.v14i1.36980
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, p. 188)

Pensar a educação em deslocamento é colocá-la transversando os furos e rasgos dos guarda-sóis da recognição, sob uma tempestade de signos que deixam a vida cada vez mais em condição de refúgio ou de abandono.

Seguem me sendo importantes as conexões entre a crítica do pensamento representacional e o, ainda, apego à percepção, como uma das categorias relevantes para a discussão sobre a interação entre imagem e mundo na produção de sentidos. Pois parecem-me desafiadoras para o que venho buscando em minhas pesquisas sobre os sujeitos na educação/no currículo, extraindo e subtraindo, ao máximo, suas substâncias humanistas (respaldadas na consciência, na razão/juízo, na interpretação e na explicação baseadas em comparação, analogias e crítica).

A educação em suas textualidades e escritas merece ser olhada como um espaço-tempo de efetuação de outros possíveis que não perpetuem a reprodução, o ideal do mesmo e a tomada de posição perante a vida com base em ideias moralizantes, intolerantes e universais. Haveria espaço para uma transição entre a educação territorializante, aquela que finca os pés novamente em certos tipos de delimitação e margens, para uma educação aberrante?

Gerar uma educação aberrante é tarefa da abertura aos mundos das coisas não ditas ou esboçadas em letras, palavras, frases e linguagem. A experiência do fora pode ser interpretada como uma das formas possíveis de resistência, como luta da escrita menor desde dentro da sua manifestação maior, das minorias contra a maioria, das pequenas tribos contra o Estado. A educação como um "princípio plástico, anárquico e nômade, contemporâneo do processo de individuação, e que não é menos capaz de dissolver e destruir os indivíduos quanto de constituí-los temporalmente" (Lapoujade, 2015LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. Tradução: Laymert Garcia dos Santos. São Paulo, Brasil: N-1 Edições, 2015., p. 56).

Ou seja, uma educação que é simultaneamente liberdade e vontade de a-significar vida em cada palavra, imagem, um texto que transcorre, híbrido e sem forma plausível; é face e sem contorno identificado, é monstro e sem ferocidade do espanto, é íntimo e sem a inadequada moralidade do distanciamento, é veloz e sem o tempo para nossa conversação desinteressada. Mais que enunciação, age e encena. Performance de sujeitos e objetos e seres indefinidos por conjecturas e justaposições. Uma condição na qual é inconcebível uma lógica da autenticidade,1 1 A maioria das experiências de educação não são intencionais e são mais bem concebidas como a formação constante (bem como a deformação) de sujeitos não estáveis. Não se resgata experiência em nome de um ideal elevado, portanto, ao contrário da imposição e compulsão prática educativa comum ao legado humanista, elas não requerem justificação (Bojesen, 2021). que é um dos modos de conquistar direitos sobre um campo, uma área, e dela ser proprietário.

Uma educação em multiplicidades não imaginadas a priori, pois, ao contrário, nossos desejos apenas as efetivariam e elas logo seriam capturadas por maquinarias de controle do desejo, do corpo, da liberdade, que nos têm como alvo. O que se busca é uma educação que coagule possibilidades que são inauguradas no próprio processo de mutação, de invenção, de experimentação, planos e linhas para serem habitadas por povos outros. Uma educação e qualquer política a ela associada tornam-se teoricamente comprometidas à luz de experiências que excedem, enfraquecem ou destroem qualquer autoridade/autoritarismo/unidade assumida (Bojesen, 2021BOJESEN, Emile. Forms of education: rethinking educational experience against and outside the humanist legacy. Abingdon, Routledge, 2021. 148 p.).

Na proposição dessa educação do deslocamento, temos apostado nas apreciações estéticas e políticas das imagens, predominantemente do cinema; ou seja, em signos óticos e sonoros. As imagens do cinema não são um ponto de ancoragem ou um conjunto de materialidades sobre e com as quais se criam interpretações ou inspirações para, metaforicamente, pensar outras educações e suas intensidades. Entre imagens e educações, encontram-se passagens e travessias que fazem germinar um comum partilhado de sentidos. Isso vem sendo realizado por intermédio das aproximações e dos contágios com as filosofias de Deleuze e Guattari para, até mesmo, enfrentar suas críticas sobre as singularidades das imagens e o seu apego à representação.

Ou seja, a intenção é variar com esses autores e seus interlocutores e gerar composições outras, que interessam à educação das diferenças.

Uma dessas aproximações variantes é sugerida por Raniere e Hack (2020)RANIERE, Edio; HACK, Lilian. Somos nada mais que imagens: Entrevista com Anne Sauvagnargues. Revista Polis e Psique, [S. l.], v. 10, n. 1, p. 6-29, 2020. https://doi.org/10.22456/2238-152X.97503
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ao afirmar que na obra de arte, quando passamos do sentido à sensação, deslocamo-nos de um regime da obra ainda centrado sobre a esfera mental significante a uma lógica da sensação, verdadeira definição programática da estética, como lógica do sensível. É sempre bom recordarmos que a pedagogia tem ecos de uma prática artística, de um compor os mundos no plano das sensibilidades, e não apenas por sua face científica, técnica ou moral. Ou seja, trata-se de uma educação percebida em seus emaranhados e enredamentos estético-artísticos.

A imagem e a educação, nesse sentido novo e decisivo, permeado pela sensação, não é uma representação, um duplo, mas uma composição de relações de forças, feitas de velocidades e lentidões, que conhecem igualmente uma variação de potências, um afecto.

É com essa entrada do exprimível, e no paradoxo da imagem e da comunicação, que estenderei uma primeira ação que intercede e interroga sobre as i-margens, atmosfera conceitual que as conexões entre refúgio e educação provocam como uma "aparição, um sistema de ações e reações ao nível da matéria ela mesma, de modo que a imagem não tem nenhuma necessidade de ser percebida, mas existe em si como oscilação, vibração, movimento" (Sauvagnargues et al., 2020SAUVAGNARGUES, Anne; RANIERE DA SILVA, Édio; HACK, Lilian; XAVIER, Roger. Cartografias da Arte: da Literatura à Imagem. Paralelo 31, v. 2, n. 15, p. 246, 2020. https://doi.org/10.15210/p31.v2i15.21011
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, p. 274).

Mais especificamente, as conversações seguintes versarão sobre a imagem como uma realidade e não uma representação da consciência e nem um representante da coisa, ou uma visão do objeto. Ou seja, devemos seguir abandonando a recognição como foco conservador e privilegiado da educação moderna e referenciada nas lógicas da representação com seus constituintes: identidade, analogia, semelhança e contiguidade.

Para complicar um tanto os margeamentos, escolhi a ponta do fio que se desenovela com As coisas sonham; e sonham o real.

I-MARGEM E SEUS RASTROS NAS COISAS

Pasolini inicia o texto "Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas" com esta linda passagem:

As primeiras lembranças da vida são lembranças visuais. A vida, na lembrança, torna-se um filme mudo. Todos nós temos na mente a imagem que é a primeira, ou uma das primeiras, da nossa vida. Essa imagem é um signo, e, para sermos exatos, um signo linguístico. Portanto, se é um signo linguístico, comunica ou expressa alguma coisa. (Pasolini, 1990PASOLINI, Pier Paolo. Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas. In: PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes. Antologia dos Ensaios Corsários. São Paulo: Brasiliense, 1990.. p. 125)

Isso é apreendido de forma ampla pelos sujeitos. Pasolini chega a afirmar que —muito antes do domínio da linguagem verbal, apenas pelas relações com a linguagem material — uma criança é capaz de reconhecer os códigos de seu contexto social. Para Gamba Junior (2016)GAMBA JUNIOR, Nilton Gonçalves. Infância, Pasolini e Edward Gorey – um estudo sobre estilo. Pensares em Revista, n. 9, p. 176-191, 2016. https://doi.org/10.12957/pr.2016.30914
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podemos pensar que uma criança, antes de dominar o verbo, já entenderia que as aspectos materiais diferenciam um quarto de criança de outro de adolescente, como se desenha um adulto ou um jovem em um livro infantil ou, ainda, como diversos "agentes" de seu convívio confirmam ou não esses esquemas apontados nas roupas que usa, papéis e estilos.

Pasolini vai chamar essa "transmissão" de conhecimento pela materialidade de "pedagogia das coisas" — ou seja, as coisas nos ensinam.

A pedagogia das coisas na coletânea de textos de 1975, que Pasolini publicou em jornal, destinada ao jovens infelizes da Itália da época, é derivada do cinema que nos obriga a olhar as coisas, signos vivos de si próprias. Gennariello, o estudante imaginado, "representa, na verdade, um contraponto — ou uma espécie de sobrevivente — ao tempo presente" (Alves, 2018ALVES, Cláudia Tavares. Intervenções corsárias em jornais: Pasolini e Os Jovens Infelizes. Revista do SETA, v. 8, XXIII Seminário de Teses em Andamento, p. 190-200, 2018., p. 191). É uma escrita didática que conserva qualquer coisa de um "velho mundo" em desaparecimento. O crítico italiano Bazzocchi (1998)BAZZOCCHI, Marco Antonio. Pier Paolo Pasolini. Milão: Bruno Mondadori, 1998. observa que falta uma "reciprocidade didática" entre esses universos distintos, pois entre o mestre de 50 anos e o aluno de 15 há um "verdadeiro fim do mundo".

Segundo Alves (2018)ALVES, Cláudia Tavares. Intervenções corsárias em jornais: Pasolini e Os Jovens Infelizes. Revista do SETA, v. 8, XXIII Seminário de Teses em Andamento, p. 190-200, 2018., entre essas duas gerações, certo mundo "acabou" para dar lugar a outra realidade e a outros valores. A incomunicabilidade entre as gerações dá-se justamente porque são referências e parâmetros diferentes, pautados em experiências diferentes de vida. Para Pasolini, é um mundo que entra em destruição a partir da revolução tecnológica e o fortalecimento do neocapitalismo na Itália. Chega-se à conclusão de que são alterações tão profundas na configuração da humanidade, sobretudo as causadas pelo sistema econômico capitalista.

Alguém que nascesse imerso nesse mundo mudado não conseguiria percebê-las, pois as tomaria como naturais: esse seria o caso dos jovens. E como Bazzocchi (1988) observou ao comentar sobre "Gennariello", as coisas faladas por Pasolini não podem ser entendidas pelos jovens, pois se referem ao seu próprio mundo. Ou seja, só seria possível que alguém "de fora" fosse acometido pelo estranhamento em relação a uma realidade diferente da sua e apenas esse alguém conseguiria traduzir para outras gerações as mudanças que reconhece.

Esta proposição de uma comunicabilidade pelas coisas, com todo o autoritarismo sígnico que congrega, associada a uma educação "de fora", de um estranhamento que diferencia a experiência na/da/com a realidade, chegou-me com mais força e reivindicando espaço para me pressionar a pensar.

A educação que um menino recebe dos objetos, das coisas, da realidade física — em outras palavras, dos fenômenos materiais da sua condição social — torna-o corporalmente aquilo que é e será por toda a vida. O que é educada é a sua carne, como forma do seu espírito. (Pasolini, 1990PASOLINI, Pier Paolo. Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas. In: PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes. Antologia dos Ensaios Corsários. São Paulo: Brasiliense, 1990.. p. 127)

Li a primeira vez este texto de Pasolini quando fazia mestrado, em 1993, em uma disciplina de Metodologia da Pesquisa que o Milton José de Almeida ministrava. Reli-o não sei quantas vezes para aulas, pesquisas, citações; a linguagem das coisas e o autoritarismo do real, perfeitamente pragmáticos e sem admitir réplicas, alternativas, resistências.

Tal condição pareceu-me sempre paradoxal com relação àquele marcante signo da primeira lembrança, que é visual, e assumirei provisoriamente que seja imagem; a ação inicial que um filme quer nos fazer memória. E a força da representação desse objeto, dessa coisa nos distintos processos de fazer com o cinema uma tela cerebral, um anteparo, um reflexivo e metamorfoseante meio e modo de combinar tempo e movimento, condições para diferir o pensamento, a consciência.

Em Amorim (2007)AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de. Fotografia, som e cinema como afectos e perceptos no conhecimento da escola. TEIAS: Rio de Janeiro, ano 8, n. 15-16, jan./dez. 2007., pensando produções audiovisuais de estudantes de licenciaturas sobre as culturas escolares, ficou evidente que a percepção das coisas e dos fatos é algo pessoal, assim como a memória que se faz disso. É-se absolutamente impotente contra o que se lhe ensinaram e lhe ensinam as coisas. "Sua linguagem é inarticulada e absolutamente rígida; é, portanto inarticulado e rígido o espírito do teu aprendizado e das opiniões não-verbais que se formaram em vocé através desse aprendizado. Nesse particular somo dois estranhos, que nada pode aproximar" (Pasolini, 1990PASOLINI, Pier Paolo. Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas. In: PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes. Antologia dos Ensaios Corsários. São Paulo: Brasiliense, 1990.. p. 131).

Pasolini e Milton de Almeida, a eles interessavam esta (in)comunicabilidade de um signo no ensinamento de algo tão violentamente autoritário que, por vezes, os outros objetos, e, consequentemente o que se poderia aprender com eles, parecem "estranhos, diversos, anômalos, inquietantes e desprovidos de verdade" (Pasolini, 1990PASOLINI, Pier Paolo. Gennariello: a linguagem pedagógica das coisas. In: PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes. Antologia dos Ensaios Corsários. São Paulo: Brasiliense, 1990.. p. 127).

Em um artigo publicado in memoriam, Milton apresenta algumas importantes considerações sobre o cinema e que me aguçam a seguir (des)pensando a paradoxal condição de uma imagem primeira.

O filme é feito de retalhos do real. Como se prospectam matérias primas e se as transformam, a indústria cinematográfica capta imagens no mundo externo ou as fabrica nos estúdios. Cada fotograma, cada sequência filmada poderá ser extraída de seu contexto, retirada de sua continuidade temporal e tratada como peças de uma grande imagem, ou produto final, que será o filme. Toda filmagem é um trabalho sobre o tempo, sobre a continuidade e descontinuidade do mundo, da História. (Almeida, 2011ALMEIDA, M. J. A pesquisa, o Tempo, a Política. Educação e Sociedade, Campinas, v. 32, n. 117, p. 1203-1212, out.-dez. 2011., p. 1210)

A extração de um contexto, a suspensão da continuidade temporal que pode ser intrínseca a algum objeto, à sua força pedagógica de não permitir outra alternativa e o trabalho de esculpir com a imagem as descontinuidades do tempo. Um intervalo que se insinua por entre as imagens, como possível agente em lembranças temporalmente vagueantes.

Um certo tipo de política que, para Väliaho*** (2014), diz respeito "à disputa e à luta sobre que tipos de combinações e ‘cortes' organizam nossa vida pessoal e coletiva, e envolve introduzir indeterminação nas incisões da superfície de nossos pensamentos" (p. 91).

A indeterminação é o ato criativo nesta política das imagens nas lembranças; um sintoma da impossibilidade, ou do bloqueio de uma sociedade, que, para Pasolini, são o capitalismo e a perda da força do objeto como ensignante. Já para Milton de Almeida, é a descontextualização do real com que as imagens forçam, violentam aquele mesmo real. Uma linha de fuga, ou seja, um complexo de forças, o potencial, a invenção, a constituição, uma abertura que permite despistar ou transformar a situação em um dado momento.

Disparidade é outra característica com que posso seguir pensando a força do objeto, as coisas e a sua força pedagógica no tempo.

Com Anne Sauvagnargues (Sauvagnargues et al., 2020SAUVAGNARGUES, Anne; RANIERE DA SILVA, Édio; HACK, Lilian; XAVIER, Roger. Cartografias da Arte: da Literatura à Imagem. Paralelo 31, v. 2, n. 15, p. 246, 2020. https://doi.org/10.15210/p31.v2i15.21011
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), conhecemos o processo de integrar disparidades em um sistema perspectivo de nova dimensão. O exemplo empregado é a visão binocular, que produz a tridimensionalidade como sistema "superior" capaz de integrar as disparidades entre os registros bidimensionais do olho esquerdo e do olho direito. Todo o esquema perceptivo resulta de uma sobreposição de perspectivas conflitantes: de saída, o mundo não coincide consigo mesmo, e os universos perceptivos são incoerentes entre si.

Um "objeto" só aparece como resolução integradora de uma pluralidade de pontos de vista inicialmente incompatíveis.

É preciso, entretanto, que os díspares se comuniquem; e é por meio dessa comunicação que os dinamismos espaçotemporais ou as coisas surgem e aparecem no espaço atual.

Voltemos, então, à ideia de que as coisas sonham. E o cinema não representa essa coisa e nem é uma narrativa desde a visão do objeto. Uma série heterogênea bordeia a imagem: a indeterminação que faz o seu centro de germinação variar; a disparidade que integra uma pluralidade de pontos de vista incompatíveis.

I-margens são prenhes de diferenças de intensidade que entrarão em comunicação. Para Deleuze (2006)DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2006.,

É preciso como que um "diferenciador" da diferença, que reporta o diferente ao diferente. Cabe esse papel ao que denominamos precursor sombrio. O raio fulgura entre intensidades diferentes, mas é precedido por um precursor sombrio, invisível, insensível, que de antemão lhe determina o caminho invertido e escavado, porque o precursor é, primeiramente, o agente de comunicação dessas séries de diferenças. Se é verdade que todo sistema é um campo intensivo de individuação construído sobre séries heterogêneas ou disparatadas, a comunicação das séries, levada a cabo sob a ação do precursor sombrio, induz fenômenos de acoplamento entre as séries, de ressonância interna no sistema, de movimento forçado sob a forma de uma amplitude que transborda as próprias séries de base. (p. 132-133)

A pedagogia das coisas, portanto, trabalha sobre questionar, na experiência, as coisas já como extensos, uma vez que elas não são mais que o resultado da comunicação entre multiplicidades. As coisas seriam um "diferenciador" da diferença. Por isso, seu caráter sígnico autoritário. As imagens cinematográficas, que apreendem os sentidos das coisas e as pedagogizam para ensinamentos singulares, crescem em meios individuantes que permitem àquelas imagens ou obrigam-nas a emergir em uma superfície perceptiva sensorial óptica e sonora.

I-margem pode ser considerada um elemento paradoxal que percorre as séries heterogêneas e as faz comunicar, resultando no processo de individuação dos objetos e das coisas. Por enquanto, seguiremos os rastros da i-margem em um sistema de relações, evocações e mutações que criam modelos analógicos do mundo e que permitem a reflexão.

E reencontramos, nesse andarilhar, Mia Couto (2007COUTO, Mia. Lições. In: COUTO, Mia. Idades cidades divindades. Lisboa: Editorial Caminho, 2007. p. 10-12., p. 9) e o tempo.

Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.

Desta vez, o tempo da guerra. O nosso tempo, contínuo e desgraçadamente fatal.

E as imagens, talvez Rancière tivesse pressentido o precursor sombrio viral, são como "formas de vida coevolutivas da ordem dos vírus, enquanto o indivíduo que as cria ou as contempla é apenas um hospedeiro carregando uma multidão de parasitas que são alegremente eles mesmos, e ocasionalmente manifestando-se naqueles espécimes notáveis que chamamos de obras de arte" (Väliaho, 2014VÄLIAHO, Pasi. Biopolitical Screens: Image, Power, and the Neoliberal Brain MIT Press. 2014., p. 92).

O crescimento espontâneo da imagem, quase-organismos de sua própria espécie, em um estado de potencial livre, ganha sua vida (individua) em padrões perceptivos que estruturam a experiência e servem de adaptação ao mundo do objeto.

A i-margem seria o percursor sombrio que antecede esse movimento?

Buscaremos respostas baseadas em uma das características do intervalo, qual seja, pela via de que, com o cinema, enquadramento e montagem tornam-se operações semióticas que nos permitem perceber uma nova relação entre movimento e tempo. Seria uma comunicabilidade entre multiplicidades de onde derivam as coisas, significadas ou não em imagens. O intervalo é a passagem entre a percepção e o reconhecimento (a nomeação) — elemento muito presente na utopia da educação apegada à consciência.

I-MARGEM, ENTRE IMAGENS

É por uma terra sonâmbula que o mundo sonha, cria o espaço em que habita, no filme de Teresa Prata (Filmes de Fundo, 2007FILMES DE FUNDO. Terra Sonâmbula. 2007. Direção: Teresa Prata. Moçambique/Portugal. Duração: 1h43 min.), cujo título é homônimo ao romance fantástico de Mia Couto. Terra Sonâmbula. Uma terra estriada pela guerra civil em Moçambique. Uma terra que pergunta "É possível a minha morte?". E agoniza. Uma terra que quer virar mar, a transpassagem do espaço liso do deserto para o mar. Terra Sonâmbula guarda o pesar secreto de não ser mar.

Conforme discutido em Amorim (2013)AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de. Três crianças a compor um plano para o currículo. Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 3, p. 411-426, set./dez. 2013. ISSN 1645-1384, a imagem primeira da cineasta Teresa Prata é da criança Muidinga conduzindo um barco de brinquedo.

Esfrega este brinquedo no chão de pedregulhos, poeira, morte e carbonização. As velas içadas deste brinquedo de criança balançam no atrito. Neste momento, o filme nos dá sinais de que, nessa terra sonâmbula, é o vento que espalhará os restos ainda não sonhados. Não há delírio. É tudo movido ao excesso do real. (p. 423)

As velas içadas ao vento são um precursor sombrio, que aparece como um brinquedo de criança; segundo Deleuze, o precursor sombrio não é um amigo.

Invisível é o agente da comunicação ou do cruzamento entre as séries de diferença — a terra, a guerra, o mar, tudo em estado inconsciente, sonâmbulo. Esse precursor induz fenômenos de ajustamento entre as séries de ressonância interna no sistema e de movimentos forçados sob a forma de uma amplitude que transborda as próprias séries de base. As imagens do filme vão-se figurando e desfigurando sob este transbordamento de séries diferenciadas; mas há algo que força, que age sobre os agenciamentos que a narrativa fílmica traz, em justaposição (flashbacks) e em disparidade (uma criança que não sabe ler e que encontra na assignificação do código da escrita seu diário de memória do futuro). Há algo que força essa memória das imagens.

A i-margem, como qualquer processo genético dinâmico, é fundamentalmente autônoma e desfruta de agência própria. Como escreve Simondon, a imagem resiste ao livre arbítrio, recusa-se a deixar-se guiar pela vontade do sujeito e apresenta-se segundo as suas próprias forças de proporção, habitando a consciência como um intruso que vem perturbar a ordem de uma casa em que não foi convidado a entrar (Väliaho, 2014VÄLIAHO, Pasi. Biopolitical Screens: Image, Power, and the Neoliberal Brain MIT Press. 2014., p. 92).

Tais características das imagens com memórias próprias, sua recusa a serem guiadas pelos sujeitos e habitarem nossas consciências como intrusas requerem um dispositivo pedagógico inédito e inaugural nesses processos educativos em deslocamento. A i-margem é o refúgio deste dispositivo, o precursor que faz germinar tais potencialidades de uma educação sem fundamento, sem estrutura, sem organização orgânica ou anteparo reflexivo da realidade, para as quais a função dos sujeitos [humanos] pareceria essencial.

Ao se multiplicarem, difundirem e reproduzirem, as i-margens podem se desfazer e se reinventar, passar de um estado de desenvolvimento a outro e, ao fazê-lo, mudar as formas como o objetivo, o subjetivo e o social se conjugam.

Tomemos como exemplo a criança leitora, que continua empurrando o barco a velas de brinquedo, movimentando o papel do drama da terra sonâmbula, num contraste que encarna as relações diferenciais e as singularidades do testemunho, da enunciação que cria pelas palavras do diário a autoria do abandono e da morte do significado da guerra. Um refúgio esboça-se.

A criança, pelas imagens do filme, continua sua batalha contra um pano de fundo da percepção que a colocaria como ressurgida ou imaculada por algum tipo de segunda chance da vida ou do clichê da resistência como oportunidade para se ganhar o tempo perdido. A criança age raspando cada uma das páginas do diário. Ela lê. Faz o movimento paradoxal do visível e do dizível. Mas, contudo, não é capturada pela enunciação. Muindiga devém-mar. E o devir é uma das margens do indiscernível. (Amorim, 2013AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de. Três crianças a compor um plano para o currículo. Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 3, p. 411-426, set./dez. 2013. ISSN 1645-1384. p. 423)

Ao enquadrar outras imagens, a i-margem funciona como uma "imagem viva dotada de uma vitalidade singular que descentra, transforma e estilhaça a percepção humana" (Sauvagnargues, 2016SAUVAGNARGUES, Anne. Artmachines – Deleuze, Guattari, Simondon. Edinburgh: EUP, 2016., p. 94).

Conforme o que somos afectados pelo filme de Teresa Prata, a i-margem torna-se a terra/Terra sob os movimentos tectônicos de um rio subterrâneo que nela derrama as lágrimas de um povo.

Antes de se fazer mar, as imagens do filme encobrem, pela poeira, pelo monocromático da paisagem, pelo isolamento que o sonâmbulo tem com a sua realidade, neste caso, a realidade geológica e histórico-cultural da terra, da nação de Moçambique. A relação da criança com essa terra que sonha não tem nada de onírico ou de esperançoso. A terra tem que morrer. (Amorim, 2013AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de. Três crianças a compor um plano para o currículo. Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 3, p. 411-426, set./dez. 2013. ISSN 1645-1384. p. 423)

Tem, sim, uma relação com o cristal, formado da poeira da terra sorvendo-se ao vento e do depósito dos grãos que atritarão nas arestas de uma i-margem informe, no sobressalto da individuação.

E a criança contamina-se com essa liberação, cavoucando a terra até que ela sangre água. O caminho, assim, desloca-se, segue em direção ao abismo do fim do significado da terra em sua brutalidade, crueldade e veracidade que as imagens do filme nos emprestam a perceber.

As imagens da terra, ou geoecoimagens, passam do indivíduo ao sujeito, ou seja, subjetivam-se como um interstício. Não se trata apenas de subtração entre a criança, a leitura (mote primordial da educação em refúgio neste caso) e o mar, mas de produção da i-margem em um intervalo. É uma concepção subtrativa da subjetividade por intervalos, que se produzem quando podemos ter um novo enquadramento, uma nova linha de perspectiva, segundo Sauvagnargues (2016)SAUVAGNARGUES, Anne. Artmachines – Deleuze, Guattari, Simondon. Edinburgh: EUP, 2016.. As subjetividades das imagens ou de uma educação sem sujeitos (humanos).

A i-margem é o precursor, invisível, que resulta em três variantes de uma mesma imagem: a terra/Terra, coisa que sonha e perambula. Desdobra-se em percepção e motricidade/ação e afecção. É uma relação, por um lado, vital, como alguma coisa que é produzida sobre a terra, entre os humanos, mas não somente entre os humanos, que se produz sobre a Terra como uma aventura da percepção.

A imagem-primeira, a experiência sensível com a terra sonâmbula, é o contínuo do filme que nos apega ao real. Despojar-se de habitar a Terra, fazendo cessar a sua referência ao vivido ou ao território de uma subjetividade. É com essa primeira imagem que nos educamos pelas coisas que o filme ensigna. O meio de germinação dessas aprendizagens é uma terra/Terra afogada em seu desterro.

Da geofilosofia às geoecoimagens. Geoecoimagens são imagens que escrevem sobre a terra/Terra e que desenham sobre a terra, o que fazemos primeiro com os pés. O barco de brinquedo é uma imagem similar à gravura, comentada por Anne Sauvagnargues (Raniere e Hack, 2020RANIERE, Edio; HACK, Lilian. Somos nada mais que imagens: Entrevista com Anne Sauvagnargues. Revista Polis e Psique, [S. l.], v. 10, n. 1, p. 6-29, 2020. https://doi.org/10.22456/2238-152X.97503
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) como uma pressão que estampa e grava. Em vez de produzir uma obra de papel com uma matriz de tinta, o vento do barco à vela de brinquedo feriu a terra, e ela despertou quando já era mar. Nesse novo hábito, Muindiga, como Mia Couto, será de novo uma sombra sem voz. A sombra do farol que sinaliza a terra. A imagem do necrotério — o ônibus queimado que se metamorfoseia em devir-mar — coaslesce à deriva.

INTERSTÍCIO

Até este ponto do texto, fizeram-se caminhos, cruzamentos, encruzilhadas entre educação, imagens (cinema) e culturas. Tendo como cristal de germinação do tempo a Pedagogia das coisas com Pasolini, e a didática para se comunicar entre as gerações, depara-se com o descompasso desta possibilidade, haja vista as condições de se viver em um presente que constantemente se arruína em deslocamento e passagem, criando um intervalo temporal/virtual do fim, em que o refúgio se expressa.

E, como as coisas, os objetos, o contato sígnico com essa realidade cultura são autoritários e violentos. A atmosfera conceitual da i-margem insinua-se com as imagens primeiras e as possibilidades de as narrativas cinematográficas serem recontadas ou não. É o retorno, diferencial das imagens, ao plano do visível ou da visibilidade.

O conceito de intervalo talvez seja o destacável na conceituação provisória de i-margem. Nos estudos das imagens fotográficas e do cinema, sugerem-se apostas muito mais nas passagens, nos deslocamentos espaçotemporais do entre, nas descrenças do poder da percepção sensorial e motora — marcadamente constituidora de visualidades — para um universo da sensação e da afecção com as imagens, que permitiram a interrupção do movimento, a fixação da intenção de se traçarem as teias da complexidade, o retorno ao visível de algo novo, imperceptível e não recognoscível. Em Amorim (2018a)AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de. Deslocamentos entre currículo e estudos de cinema experimental. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 13, n. 3, p. 1025-1043, set./dez. 2018a. Disponível em: http://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa. Acesso em: 20 nov. 2023.
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, o intervalo foi um importante operador para se problematizarem relações entre currículo e audiovisualidades.

Neste artigo, interessa-me seguir com o que afirma Conley (2000)CONLEY, Tom. The film event: from interval to interstice. In: FLAXMAN, Gregory (ed.). The brain is the screen. Deleuze and the Philosophy of Cinema. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000. p. 303-325.: o intervalo entre a imagem, o espectador e a realidade dá lugar ao interstício; ou seja, o intervalo transforma-se em um continuum no qual o acontecimento não pode mais receber a estabilidade de um "lugar" na superfície da imagem. O interstício torna-se o que esgota — e, portanto, cria — qualquer espaço remanescente da imagem na tradição perceptiva pelos sentidos, tais como a visão e o desencadeamento motor que derivaria em consciência ou reconhecimento.

O interstício substitui o intervalo e, ao fazê-lo, multiplica as séries de acontecimentos (não) narráveis por e com as imagens. No intervalo entre a imagem associada à percepção e à reação desencadeada em algum tipo de conhecimento inteligível ou episteme, dá-se lugar ao interstício; o interstício esgota o intervalo, na medida em que o tempo ganha primazia sobre o movimento.

Ou seja, se uma imagem é dada à visibilidade, se ela ganha tal propulsão, outra imagem teria que ser escolhida para induzir um interstício entre o intervalo de ver e não ver.

É uma operação i-marginal que se ancora em universos do visível e não na sua negação ou na sua contraposição ao não visual. Não se trataria de uma operação de associação entre o que é mais ou menos visível, mas a radicalidade da sua diferenciação de tal modo que o visível pudesse retornar pelo interstício intervalar. As implicações para além dessa operação entre visível e invisível na diferenciação perceptiva são uma nova camada sensível da ideia de educação do deslocamento, uma das linhas que se desenham neste artigo, gerando refúgios para contracombater a ordem das palavras justas e das estruturas que ainda fazem vigorar a homogeneidade e as bases de um comum aniquilador das diferenças.

I-MARGEM E A LUTA PELA INVISIBILIDADE

Escorrerei, na superfície deste texto, para um movimento outro, que é desejo da invisibilidade da imagem. A estranha condição de se converter em imagem para desaparecer. E não se tratará mais de imagens analógicas, e sim das imagens digitais, dos pixels.

Em encontro intensivo com a obra de Hito Steyerl (2013)HITO STEYERL. How Not to be Seen: A Fucking Didactic Educational. MOV File, 2013. 15 min. Disponível em: https://www.artforum.com/video/hito-steyerl-how-not-to-be-seen-a-fucking-didactic-educational-mov-file-2013-51651. Acesso em: 24 abr. 2024.
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How not to be seen, escorrer, derramar são as melhores palavras, pois as roubo dos pensamentos da autora sobre as imagens escorrendo pela superfície, e de os performers e a própria artista se dissolvendo em imagens. Vislumbra-se uma estratégia de vazamento, ou seja, uma estratégia de tornar-se imagem para participar em sua maior circulação.

Para Mamone (2023)MAMONE, Felipe Bortoluzo. A vida das imagens: materialidade e circulação em Hito Steyerl. 2023. 204 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) — Escola de Comunicação e Artes. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023., é particularmente central na obra de Steyerl a sua pungente consciência da destruição material, financeira, afetiva e informacional como elemento constitutivo do capitalismo tardio, consciência esta que será orientada na construção de uma gramática de detritos que pode ser encarada tanto como uma pedagogia crítica quanto como uma prática de linguagem. A didática do desaparecimento, ou como não ser visto, nasce nestes contextos que justapõem crítica e pragmática.

Numa primeira incursão em suas obras artísticas, argumentei em Amorim (2018b)AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de. Imagens e as suas fugas do visível. Revista Educação e Cultura Contemporânea, v. 15, n. 39, p. 397-415. 2018b. https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180040
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quanto à definição de Steyerl sobre o desejo de desaparecer, como um conceito altamente ambivalente: é algo a ser desejado, que dá alívio às constantes imagens a que todos nós estamos sujeitos. "Mas também é algo a ser temido, evocando o espectro da abdução política em massa" (Jordan, 2014JORDAN, Marvin. Hito Steyerl, Politics of Post-Representation. DIS Magazine. 2014. Disponível em: https://dismagazine.com/disillusioned-2/62143/hito-steyerl-politics-of-post-representation/. Acesso em: 20 nov. 2013.
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). Embora a aspiração de ser invisível e a aspiração de se hibridizar através da proliferação de imagens pareçam ser incompatíveis, elas estão intimamente ligadas, e ambas aparecem na didática do desaparecimento proposta pela artista na obra How not to be seen.

Para vários estudiosos/as das teorizações de Steyerl e sua produção como videoartista e performer, a discussão sobre a invisibilidade da imagem, como aspecto afirmativo e político, articula-se com sua proposição das imagens-pobres ou imagens-más, do ponto de vista de sua baixa resolução e de grande circulação pela internet. Nesse aspecto, há ressonância com a vida-nua de Agamben, bem como a de imagem-nua de José Gil, que explorarei mais à frente.

Uma cópia de má qualidade, de baixa resolução e definição, que está fadada a uma peregrinação cada vez menor. E que acaba sendo

um fantasma de uma imagem, uma prévia, uma miniatura, uma ideia errante, uma imagem itinerante distribuída gratuitamente, espremida em conexões digitais lentas, compactada, reproduzida, ripada, remixada, bem como copiada e colada em outros canais de distribuição. (Baldacci, 2019BALDACCI, Cristina. Recirculation: the wandering of digital images in post-internet art. Re-: An Errant Glossary, Cultural Inquiry, p. 25-33, 2019. https://doi.org/10.25620/ci-15_04
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. p. 28)

Uma vez removida de lugares seguros como o arquivo e a cinemateca, a ‘má imagem' é lançada em uma terra de incerteza, ou seja, a Internet. Aqui ela se torna disponível, portanto, também exposta à fácil apropriação, reutilização e alteração, permitindo que um público mais amplo participe de seus novos processos de reprodução e distribuição. "Velocidade, intensidade e circulação tornam-se suas novas características; enquanto qualidades como resolução e valor de troca ficam em segundo plano, ou mesmo desaparecem" (Baldacci, 2019BALDACCI, Cristina. Recirculation: the wandering of digital images in post-internet art. Re-: An Errant Glossary, Cultural Inquiry, p. 25-33, 2019. https://doi.org/10.25620/ci-15_04
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. p. 29).

O trabalho da artista me interessa particularmente porque permite pensar qualidades intensivas da i-margem, por um duplo movimento: as imagens apre(e)ndentes e a retração máxima da imagem, que permite sua invisibilidade. E também por ser inegável que a sua obra encerra uma dimensão pedagógica e uma proposta de linguagem que, juntas, contestam as estruturas tratadas em seus discursos e operações. A sutileza, no entanto, é que Steyerl não postulará uma externalidade isenta às determinações que busca criticar: "ela se posiciona, antes, no interior destas estruturas para melhor captar as constelações políticas ou afetivas que, por um processo de estranhamento, consigam demonstrar o estado de exceção como regra e, consequentemente, destacar as perspectivas idealistas das concretas" (Mamone, 2023MAMONE, Felipe Bortoluzo. A vida das imagens: materialidade e circulação em Hito Steyerl. 2023. 204 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) — Escola de Comunicação e Artes. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023.. p. 126). Essa é outra característica da didática do desaparecimento e que resulta em situar que as imagens estão todas na superfície, e não há interior, nem profundidades que abriguem verdades fundamentais. Por isso, um sem fundo. "Nesse contexto, apostar que tais imagens de superfície — como o são as fotografias — operam em um tipo de desaparecimento, de invisibilidade e de apagamento" (Amorim, 2018bAMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de. Imagens e as suas fugas do visível. Revista Educação e Cultura Contemporânea, v. 15, n. 39, p. 397-415. 2018b. https://doi.org/10.5935/2238-1279.20180040
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, p. 407) poderia significar um questionamento à proposta de que seria pelas imagens que a luz auxiliaria algum tipo de consciência e desvelamento do real.

Especialmente na videoinstalação How not to be seen, o tema das geoecoimagens ou do plano de individuação contra o fundo da Terra, da tela, pode ser uma linha de difração heterogênea entre o objeto e a coisa que retorna ao visível para habitar a tela e o desaparecimento, escorregadio e derramante, das imagens que os representariam? Sobre esse sem fundo, sem fundamento, uma Terra, multiplicidades que constituem o plano de onde é preciso partir.

Duas pulsões para o refúgio, margeante de multiplicidades, ainda um possível de a i-margem ser o percursor de se sonhar uma terra/Terra que precede as matérias e as formas que lhe dão consistência e estratificam-na em tantos indivíduos distintos. Seguirei adiante com esta pergunta de Lapoujade (2015LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. Tradução: Laymert Garcia dos Santos. São Paulo, Brasil: N-1 Edições, 2015., p. 57): "não é a Terra um imenso campo de individuação de onde sobem todas as diferenças individuantes que a compõem e a povoam?".

Steyerl sugere que as imagens mudaram sua função e se tornaram nós de energia e matéria que migram através de diferentes suportes, moldando e afetando pessoas, paisagens e sistemas sociais. Significam um possível precursor sombrio da educação do deslocamento.

"How not to be seen: a fucking didactic educational. MOV File", de 2013 (https://rhizome.org/editorial/2013/may/31/hito-steyerl-how-not-to-be-seen/), é uma criação de Hito Steyerl, que atualmente leciona New Media Art na Berlin University of the Arts. Como documentarista, a artista visual experimental criou vários trabalhos sobre a proliferação generalizada de imagens na mídia contemporânea, aprofundando seu envolvimento com as condições tecnológicas da globalização.

De acordo com Chierico (2016)CHIERICO, Alessio. Aesthetics of seams. The emergence of media properties. 2016. Dissertação (Mestrado em Artes). Universität für künstlerische und industrielle Gestaltung Linz, Austria. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/299339381_Aesthetics_of_seams_The_emergence_of_media_properties. Acesso em: 24 abr. 2024.
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, How not to be seen é um vídeo parcialmente inspirado nos alvos de calibração de fotos no deserto da Califórnia, que se parecem com pixels gigantes no chão. Como descrito pelo Centro de Interpretação do Uso da Terra, esses alvos foram usados na era da fotografia aérea analógica para testar a resolução de câmeras aéreas, como uma espécie de mapa de optometristas2 2 São profissionais da área da saúde que se dedicam ao estudo e investigação das anomalias visuais. para os ancestrais dos drones. Uma possível resposta a um mundo em que imagens de nós mesmos proliferam é ocupar os espaços de baixa resolução, como propõe Steyerl.

How not to be seen é, em certo grau, próximo ao Preferiria não, de Bartleby. Uma "zona indiscernível", ou seja, um lugar em que impera a resistência absoluta a qualquer tentativa de explicativa racional. No vídeo, a cópia torna-se indiscernível da invenção primeira, autêntica, original. No mesmo gesto, a noção de origem esfacela-se. Enquanto a vida nunca explica nada e deixa nas suas criaturas tantas zonas obscuras, indiscerníveis, indeterminadas, que desafiam qualquer esclarecimento (Deleuze, 1997DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997., p. 107), o vídeo ressoa "a resolução determina a visibilidade".

Esta frase é repetida em todo o vídeo de 15 minutos da artista alemã.

O contexto específico para a frase é a mudança da fotografia de vigilância aérea analógica para a digital e os alvos de resolução correspondentes que empregam. Esses alvos de resolução — imagens pintadas no deserto — tornam-se cada vez menos referenciais para aviões e satélites de vigilância de alta altitude. Os contextos mais amplos da frase são a política de visibilidade e invisibilidade na era da informação: o estado de vigilância constante online na forma de captura digital e mineração de dados.

Segundo Joachim Friis (2021)FRIIS, Joachim. A. Negotiations of In/Visibility: Surveillance in Hito Steyrl's How not to be seen. Surveillance & Society, v. 19, n. 1, p. 69-80, 2021., em cujo recente artigo me apoiarei para trazer alguns aspectos descritivos dessa obra de Steyerl, a videoinstalação é um guia visual cômico para diferentes maneiras de se tornar invisível (com uma didática foda, certeira, dos powerpoints, e bem sabemos o que um powerpoint pode fazer a um país conjurando forças nefastas). A expressão visual do vídeo reflete as condições precárias das atuais negociações de visibilidade, tanto online quanto offline. A locução, criada com o auxílio de um programa de conversão de texto em fala, apresenta cinco lições sobre como se tornar invisível:

  1. Como tornar algo invisível para a câmera.

  2. Como ser invisível à vista de todos.

  3. Como se tornar invisível tornando-se uma imagem.

  4. Como se tornar invisível desaparecendo.

  5. Como se tornar invisível fundindo-se em um mundo de imagens.

Em seu "modo didático", segundo Friis (2021)FRIIS, Joachim. A. Negotiations of In/Visibility: Surveillance in Hito Steyrl's How not to be seen. Surveillance & Society, v. 19, n. 1, p. 69-80, 2021., as três primeiras lições enfatizam estratégias para resistir à vigilância ubíqua, enquanto as duas últimas apelam à resistência contra o "desaparecimento indesejado".

Trata-se de definir a imagem de alguém ou de um fato, de um acontecimento, que seja livre para circular, dando origem a versões híbridas e perdendo seu senso de autenticidade. A produção de um tipo de zona de pontos cegos do mundo diante de nós mesmos? Parcialmente filmado em um desses alvos em desuso, How not to be seen começa como um vídeo instrutivo que informa os espectadores sobre como permanecer invisíveis em uma era de proliferação de imagens. Segundo Chierico (2016)CHIERICO, Alessio. Aesthetics of seams. The emergence of media properties. 2016. Dissertação (Mestrado em Artes). Universität für künstlerische und industrielle Gestaltung Linz, Austria. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/299339381_Aesthetics_of_seams_The_emergence_of_media_properties. Acesso em: 24 abr. 2024.
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, várias estratégias e táticas possíveis são descritas. Uma sugestão é camuflar-se (para demonstrar, Steyerl mancha o rosto de tinta verde e torna-se cromática com um fundo, na invisibilidade). Outra tática sugerida é ser menor que o tamanho de um pixel. Para esta demonstração, várias pessoas aparecem na câmera usando caixas semelhantes a pixels em suas cabeças. Depois que esses procedimentos para a invisibilidade são descritos, a equipe de filmagem que faz esse vídeo educacional também desaparece. Na ausência deles, pixels felizes de baixa resolução assumem a produção. Os fantasmas de renderização digital dançam na paisagem desértica enquanto "The Three Degrees" cantam "When I See You Again", uma trilha sonora que se espacializa em um contexto de lançamento de condomínios de apartamentos de luxo, com todo tipo de infraestrutura e padronização.

Em uma sociedade que cria imagem com base em imagens anteriores, na nossa memória e na memória da imagem, de tal modo que se possa vigiar, reconhecer e enquadrar sujeitos, acontecimentos, fatos, construindo narrativas poderosas de verdade e verossimilhança com o real, a didática do desaparecimento proposta por Steyerl é uma provocação para algumas educações que se mantêm convictas das práticas pedagógicas de captura e controle.

Buscando aprofundar-me nas potencialidades da didática do desaparecimento para uma educação de deslocamento, irei me deter em duas lições especificamente, pois, com elas, posso avançar em algumas outras características da i-margem, a invenção conceitual que é meio e imediação para a insurgência das ideias propostas neste texto.

Na terceira lição, "como se tornar invisível tornando-se uma imagem", Friis (2021)FRIIS, Joachim. A. Negotiations of In/Visibility: Surveillance in Hito Steyrl's How not to be seen. Surveillance & Society, v. 19, n. 1, p. 69-80, 2021. descreve que Steyerl está parada em frente a uma tela verde na qual são projetados vários alvos de resolução e cartões de teste de cores, imitando um soldado que se esconde em uma paisagem natural. Enquanto isso, a cena é acompanhada por uma música de salão de beleza que adiciona uma ambivalência à expressão da artista: ela está gesticulando para um combate militar ou para a feminilidade de uma sessão de maquiagem? Gradualmente seu rosto aparece como o que está projetado na parede verde atrás dela. Em vez de ver a pele de Steyerl como a superfície de projeção, podemos ver através dela até o fundo antes do qual ela era visível anteriormente. O rosto e o corpo de Steyerl desapareceram opticamente. A locução nos diz que esse gesto é uma forma de se tornar uma imagem.

O mundo como imagem e alvo. Por que não ser uma coisa? Uma coisa entre outras coisas. Steyerl sugere que tornar-se um objeto, deixar a imagem expressar em vez de representar, torna-nos capazes de participar do potencial político do meio. Certamente, aqui, podemos tatear uma contiguidade com Pasolini e a pedagogia das coisas, mas sem o sujeito, sem a subjetivação que antepare a individuação da imagem.

Nesse mundo — imagem e alvo — os significantes circulam livremente, e as referências audiovisuais funcionam não como entidades delimitadas, mas como fragmentos soltos de informação de dados, constantemente dissolvidos e encenados em novos contextos.

Enquanto precursora do desaparecimento e da invisibilidade, a i-margem coagula rastros de indiscernibilidade. Pois faz do ato de tornar-se invisível em um vindo a ser uma imagem, na descrição do espaço onde reside o domínio dos afetos, um lugar de uma situação puramente ótica ou sonora, prenúncio de uma ação: um espaço qualquer. Uma imagem inserida em um espaço qualquer seria aquela refletida em um espaço singular de conjunção virtual. I-margem, um espaço não determinado que expõe qualidades puras.

Irrompe, aqui, a dúvida se o espaço do se tornar invisível é conjuração de afetos.

Se considerarmos o close-up desta terceira lição, conseguiremos uma pista para seguir com a dúvida. É um enquadramento de tal forma que o vídeo faz sujeito na imagem, para desaparecer, em seguida, ou ao menos, nos dar a chance de assim percebermos o movimento. O que é lançado, nesta terceira lição, pelo close-up do desaparecimento na imagem, é algo similar ao exemplo que Deleuze empresta de Dickens em um romance que se inicia assim: "foi a chaleira que começou…" Anne Sauvagnargues (Raniere e Hack, 2020RANIERE, Edio; HACK, Lilian. Somos nada mais que imagens: Entrevista com Anne Sauvagnargues. Revista Polis e Psique, [S. l.], v. 10, n. 1, p. 6-29, 2020. https://doi.org/10.22456/2238-152X.97503
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) pergunta: mas como pode uma chaleira começar? A chaleira não é um personagem humano! Mas isso começa com a chaleira, começa com um afecto que está na chaleira e que lança sua pequena subjetivação de chaleira no texto de Dickens, ou em um close-up no cinema.

O que permite abrir à invisibilidade da imagem nesta parte do vídeo de Steyerl são os interstícios do gesto, que coatuam com a velocidade da percepção. "Como se o real e o imaginário corressem um atrás do outro em torno de um ponto de indiscernibilidade" (Deleuze, 2013DELEUZE, Gilles. A Imagem Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2013., p. 16). Nesse contexto, a i-margem pode se aproximar do conceito de personagem vidente, sem se satisfazer com os esquemas sensorimotores, buscando por uma pluralidade de maneiras de estar no mundo.

A i-margem envolve-se em uma nuvem de pequenas percepções que são os traços das suas antigas ligações ao sentido verbal (ainda que virtual). É uma imagem-nua, discutida por GIL (2005)GIL, José. A imagem-nua. In: GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções. Estética e metafenomenologia. 2. ed. Lisboa: Relógio D'Água, 2005. p. 87-118.. Não é uma superfície colorida, exilada, ou um gesto que se esgotaria em si próprio; ou um rosto que nada quisesse significar. "Pelo contrário, a sua nudez é a condição da sua aderência às camadas expressivas, através de pequenas percepções; da sua mobilidade interna como campo de forças que não param de agitar-se e de agir sobre a pregnância das formas" (p. 33).

A imagem-nua rodeia-se de atmosferas, uma vez que na sua atmosfera se esboçam formas que retêm e inscrevem forças. O gesto é uma dessas inscrições, um espaço que não pode ser habitado como um fenômeno permanente ou totalmente cognoscível (Harbord, 2015HARBORD, Janet. Agamben's cinema: psychology versus an ethical form of life. NECSUS European Journal of Media Studies, v. 4, n. 2, p. 13-30, 2015. https://doi.org/10.5117/NECSUS2015.2.HARB
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).

Para Agamben, nos primórdios do cinema, o filme, ao colocar o corpo em movimento, pareceria libertar-nos da potência sedutora da imagem estática, libertar o gestual. O gestual, porém, é registrado apenas para ser subordinado novamente — subsumido em um fluxo de imagens que deixa cada gesto sujeito à identificação e delimitação. Para libertar o filme dessa estabilização do gesto, devemos, segundo Agamben, devolver o filme ao momento congelado da imagem. Essa prática de quebrar o fluxo de imagens é, entretanto, rara.

Parece-me que o vídeo de Steyerl tem este desejo, de correntezas de imagens que desaparecem. A imagem não pode escapar para uma exterioridade, a primazia ontológica da vida, porque trazer a vida ao presente é transformá-la em outra imagem, passível de captura e controle. Assim, devolve-se o momento congelado da imagem, já com o efeito de seu desaparecimento.

É uma didática que se respalda no fato de que estamos lidando com imagens que pensam sobre outras imagens; "o diferencial da abordagem steyerliana, no entanto, é a sua tendência a ir além do representacional, para refletir sobre as condições mesmas da produção, distribuição e recepção das imagens em questão" (Mamone, 2023MAMONE, Felipe Bortoluzo. A vida das imagens: materialidade e circulação em Hito Steyerl. 2023. 204 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) — Escola de Comunicação e Artes. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023., p. 121).

Essa linguagem da prática se exercerá segundo uma constante tradução de precariedades, condicionamentos, problemáticas, infraestruturas etc., em constelações críticas que presentifiquem tanto uma imagem quanto as relações que permitem sua existência como tal (Steyerl, 2008STEYERL, Hito. A Language of practice. In: LIND, Maria; STEYERL, Hito (ed.). The Greenroom: reconsidering documentary and contemporary art. New York: Sternberg Press, 2008. p. 220-227.).

O regime da imagem pode ser resistido pela potência de a imagem não atestar a vida como reserva irredutível, mas sim uma potência que nunca aparece como tal, ou apenas no momento da recusa de passar à margem, mantida sempre "na" i-margem. Como esse momento, em vez de separar a verdadeira vida original da falsa cópia secundária, no vídeo separa-se a imagem de si mesma, da potência que ela carrega em si não realizada e que não é nem verdadeira nem falsa.

A primeira separação é aquela imposta pelo poder, que nos separa de nossos próprios poderes potenciais e os transforma em imagem. Então devemos redobrar essa separação, retornando à imagem para separar esses poderes aqui congelados. O resultado não é uma travessia para além da imagem, mas uma descriação da imagem que a libera em um estado de indecidibilidade, de margeamentos possíveis, de dobras do exterior para o interior. Uma força vital da i-margem.

De acordo com Agamben, essa indecidibilidade da imagem está, é claro, sempre em absoluta proximidade com a zona do poder soberano (controle sobre a Terra e todas as coisas pelas imagens de alta resolução) como zona de indistinção, na qual essa indistinção constitui o material da decisão. O papel da "ausência de imagem da imagem" nessa indecidibilidade é suspender esse poder. Alcançar essa potência suspensa requer a detenção de determinada imagem, ponto em que a imagem enquanto imagem se destaca e é exibida como tal. Revelar a imagem, encontrar o gesto, requer a adição homeopática de um pouco mais de separação para permitir que ela seja vista em vez de desaparecer na ordem do visível.

Neste ponto, a didática encontra sua política, pelo gesto, o instante que antecede o desaparecimento da imagem nessa obra analisada. Podemos arriscar que seja também o instante do nascimento de uma imagem indiscernível, a i-margem, "o exprimido, o afeto, um complexo por ser composto de todos os tipos de singularidades que ele umas vezes reúne e nas quais outras vezes se divide" (Deleuze, 2009DELEUZE, Gilles. A Imagem Movimento. Lisboa: Assírio a Alvin, 2009., p. 163).

E, novamente, deparamo-nos com uma problemática que agora se enuncia com essa constituição de uma zona de vizinhança, de indiscernibilidade entre a imagem e o visível, da qual a i-margem opera por uma espécie de contágio em âmbito subindividual e de borda. De acordo com Juliana Fausto (2020)FAUSTO, Juliana. A cosmopolítica dos animais. São Paulo: Editora n-1, 2020., ali onde Agamben vé o maior perigo (a imagem despertencer de seu sentido ético), Deleuze e Guattari situam, de modo quase inverso, uma linha de fuga, aquele minúsculo riacho, sempre corre(ndo) entre os segmentos, escapando de sua centralização, furtando-se à sua totalização.

Como se refugiar com o afeto: em uma zona de indistinção como um lugar onde dois termos devem se manter separados ou no contágio da borda?

A respeito dos dinamismos que essa pergunta propõe, encontro em Orlandi (2021)ORLANDI, Luiz B. L. Que se passa entre ensinar e aprender? APRENDER, ano XV, n. 25, DOSSIÊ DELEUZE & GUATTARI E A EDUCAÇÃO, p. 12-40, jan./jun. 2021. https://doi.org/10.22481/aprender.i25.9637
https://doi.org/10.22481/aprender.i25.96...
algo importante, extraído de Espinosa:

esteja atuando em lances do ensinar ou recebendo passes no aprender, cada participante desse jogo — esteja ele dotado de ideias claras e distintas ou de ideias confusas — depende de uma dinâmica de afetos, depende de um dinamismo do seu poder de afetar e do seu poder de ser afetado, dinamismo esse caracterizável como aumento ou diminuição da potência de agir ou da potência de pensar. A vida é impensável sem eles, a vida como ela é ou tal como vivida — em mútuas transversalizações com os mais variados processos e fluxos do real (…) Eles estão em cada caso, latentes ou faiscando. Eclodindo ou devindo imperceptíveis. (p. 27)

Sigamos com as lições da obra de Steyerl. Na quinta lição, voltamos ao alvo de resolução abandonado no deserto. Imagem primeira (assim iniciamos o texto) ou, nas palavras de José Gil, uma "imagem intensiva", impondo-se à vista como um todo e em bloco e que, por isso, é inevitavelmente uma imagem perdida. É uma imagem contida.

Várias camadas de representação surgem ao mesmo tempo. Versões de Second Life da banda The Three Degrees cantam seu hit When will I see you again? no mundo dos não lugares desenhados por arquitetos da quarta lição. Os avatares são seguidos por uma versão granulada do YouTube de uma cena física das pessoas da banda. Ao mesmo tempo, palavras de sinalização são projetadas ao redor da tela: "tire isso de verdade", "voe para longe com drone", "pixels sequestram guindaste de câmera" e "equipe de filmagem é amarrada por pessoas invisíveis apenas vistas de cima"; proclamam sem uma relação clara com o que realmente acontece na interface. As pessoas de pixel aparecem novamente, dançando em trajes de tela verde e perfurando alvos de resolução, os proxies brancos fazem gestos estranhos em esboços tridimensionais de um shopping, e a equipe de filmagem que cuidou da produção do filme parece desaparecer.

Embora a aspiração de ser invisível e a aspiração de se hibridizar por meio da proliferação de imagens pareçam ser incompatíveis, elas estão intimamente ligadas, e ambas aparecem na "didática" de Steyerl.

Mas como não ser visto e ser transformado em uma imagem de baixa resolução, facilmente circulável e vivente em vários meios, pode ser alguma coisa distinta da vida nua a que Agamben se refere como o perigo de a imagem fugir do visível? — embora seja isso, na realidade, que ocorreu com a imagem usada para calibrar a melhor definição das máquinas analógicas, no deserto estadudinense.

Será preciso retomar a ideia do indiscernível. Para Deleuze (1997)DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997., uma zona de indiscernibilidade "se estabelece entre dois termos, como se eles tivessem atingido o ponto que precede imediatamente sua respectiva diferenciação: não uma similitude, mas um deslizamento, uma vizinhança extrema, uma contiguidade absoluta" (p. 90).

Ora, as margens criadas na encenação das imagens no vídeo adensam, contraem e fazem conjurar na tela digital o alvo de calibração, abandonado, com várias rachaduras, por onde a terra do deserto passa, como feixes de um rio que não corre para lugar algum. Está ali, esquecido. Perdido. Contido. As filmagens em close desses caminhos de fratura da calibração são como um refúgio deslizante, que se derrama sobre superfícies indistintas, um espaço/fundo em que a imagem se perde, indistinguível, sombria. "A Terra se confunde com a própria desterritorialização, é uma terra infinitamente movediça, sem fundo nem base" (Lapoujade, 2015LAPOUJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. Tradução: Laymert Garcia dos Santos. São Paulo, Brasil: N-1 Edições, 2015., p. 41).

Em entrevista concedida a Jordan (2014)JORDAN, Marvin. Hito Steyerl, Politics of Post-Representation. DIS Magazine. 2014. Disponível em: https://dismagazine.com/disillusioned-2/62143/hito-steyerl-politics-of-post-representation/. Acesso em: 20 nov. 2013.
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, a artista explica que, esteticamente, poderíamos descrever essa condição como opacidade em plena luz do dia: você poderia ver qualquer coisa, mas o que exatamente e por que não é muito claro. Há muitas superfícies brilhantes e bem iluminadas, mas elas não revelam nada além de si mesmas como superfície.

A finalização do vídeo é um encontro, díspar e intensivo, de várias superfícies em sobreposição contínua. Uma retomada, ao gosto das didáticas das sínteses unitárias. O o que se vislumbra, porém, é uma paisagem heteromórfica, muito instigante às aprendizagens das imagens e às suas dobras e destituições de sentido. Um excesso de luz, como se não houvesse mais noite. Tal como no filme There will be no more night (Mubi, 2018). Com locução em formato de entrevista, a edição do filme interroga as gravações de vídeo das forças armadas americanas e francesas no Afeganistão, Iraque e Síria, criando narrativas que permitem ao filme desviar as imagens de propaganda de guerra e mostrar até onde pode levar o desejo de ver, quando usado sem limites. É também uma opacidade com muitas superfícies brilhantes.

Essa superfície opaca, embora excessivamente iluminada, auxilia-nos a seguir mais um pouco com a i-margem, apoiando-nos na proposição de Gil (2005)GIL, José. A imagem-nua. In: GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções. Estética e metafenomenologia. 2. ed. Lisboa: Relógio D'Água, 2005. p. 87-118. sobre as pequenas percepções. Elas oferecem uma saída à ressignificação ou ao recognoscível.

Invisíveis, assinalam confusamente o signo, anunciando-o, quer dizer, esboçando através desse anunciar a relação significante. Mas, esboçam esta relação alterando e invertendo a relação semiótica: significam negando a inscrição visível do signo numa matéria (fônica, óptica, tátil) — serão invisíveis e insensíveis; esquivam à percepção a relação de reenvio para o referente, de tal maneira que parece ser a imagem-nua (e a presença que implica, coisa ou representação) a segregar pequenas percepções, para que elas remetam a um outro objeto; em suma, parece ser a imagem-nua a significar as pequenas percepções a fim de que estas signifiquem por seu turno o objeto a que a imagem se refere. (GIL, 2005GIL, José. A imagem-nua. In: GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções. Estética e metafenomenologia. 2. ed. Lisboa: Relógio D'Água, 2005. p. 87-118., p. 111-112)

A imagem-nua surge em um processo de retroação e corte. É um modo de desaparecimento que prescinde de o gesto permanecer virtualmente à espreita. O papel do intervalo, nas pequenas percepções, no vídeo de Steyerl, não é o de reenviar para um sentido global e englobante que interpreta o signo visível e que dá todo o seu sentido ao conjunto da imagem-nua. Não se trata de um sorriso, mas de um mexer discreto do lábio, quando todo o rosto se mantém imóvel.

A questão aqui são as potências da invisibilidade, o como não ser visto.

E é também com José Gil que encontramos algumas brechas à efetuação da i-margem nesse contexto. Mais detidamente nas pequenas percepções e como elas nos convidam a pensar as aprendizagens das imagens, nos meios em que germinam ou individuam.

No diferir de intensidades com que as imagens circulam a realidade e a margeiam, tal como no sonho, uma condição de consciência muito presente ao longo deste texto, a aprendizagem das imagens pode ser pensada com base em dois momentos de apreensão das pequenas percepções: quando impressionam os sentidos sem impressionar a consciência. E quando se fazem lembrar à memória. São destaques de José Gil (2005)GIL, José. A imagem-nua. In: GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções. Estética e metafenomenologia. 2. ed. Lisboa: Relógio D'Água, 2005. p. 87-118., que se adensam com o que já apresentei até este momento. Diz o autor que não apreendemos as pequenas percepções enquanto tais (enquanto infinitesimais, imperceptíveis, intersticiais) a não ser porque elas começam a forçar (e após um intervalo, por pequeno que seja) a atenção e a consciência. Esse é o jogo de Steyerl em sua didática do desaparecimento. "Ao orientar-se pela coordenação de imagens-coisas e coisas-imagens em seu difuso entrelaçamento contemporâneo, a artista deflagra igualmente um entrelaçamento entre a esfera da representação e sua existência enquanto experiência simbólica concreta" (Mamone, 2023MAMONE, Felipe Bortoluzo. A vida das imagens: materialidade e circulação em Hito Steyerl. 2023. 204 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) — Escola de Comunicação e Artes. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023., p. 121).

Quando as pequenas percepções, dispersas, velozes, irônicas, corpóreas, estão quase encarnando-se em um objeto, uma imagem, o vídeo faz um corte em que as pequenas percepções continuem com uma condição de imperceptibilidade. O que as imagens apre(e)ndem neste jogo é deslocar-se do campo de forças da significação e permanecerem no plano da sensação, compondo aprendizagens para a didática do desaparecimento.

UM SEM FUNDO

Tratei neste texto sobre um problema central do pensamento, que é o da invenção das ideias. A i-margem foi o pretexto. É um "díspar" como unidade de medida, isto é, sempre uma diferença de diferença como elemento imediato (Deleuze, 2000DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Lisboa: Relógio D'água, 2000.). Não surge de um fundamento, mas, ao contrário, de uma liberação da linguagem tornada independentemente da palavra de ordem. Como um relâmpago, formula-se o problema: os sujeitos como traços infinetisimais das singularidades, um interstício diferencial.

Com base nas teorizações de José Gil (2005)GIL, José. A imagem-nua. In: GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções. Estética e metafenomenologia. 2. ed. Lisboa: Relógio D'Água, 2005. p. 87-118. partilhamos um interesse comum para as pesquisas em educação, que é pensar como liberar a consciência dos objetos, dos seres, em um ato político da visibilidade. O autor afirma que o segundo momento da apreensão das pequenas percepções é quando elas parecem tornar-se signos em relação com o objeto (o rosto inteiro, mas também a pessoas e o resto do universo). É quando a pedagogia do objeto se conflui com a possibilidade da comunicação, como descrito antes. E o autor afirma que, assim, verificamos que as pequenas percepções interpretam já o intervalo. O intervalo é o espaço-tempo das baixas resoluções, uma das características do desaparecimento em imagem. Se há interpretação que vise compreender a totalidade do sentido, criando certo tipo de esquematização, uma didática pelas imagens, o indiscernível não é apre(e)ndido pela imagem. "Tudo se passa como se as pequenas percepções franqueassem a barreira dos recortes do sentido do conteúdo pela expressão" (Gil, 2005GIL, José. A imagem-nua. In: GIL, José. A imagem-nua e as pequenas percepções. Estética e metafenomenologia. 2. ed. Lisboa: Relógio D'Água, 2005. p. 87-118., p. 104).

Todavia, no limiar da função de representação resultante dessa invasão ao intervalo, a i-margem opera sobre as suas aprendizagens e as de outras imagens, intensificando o fato de a esquematização nunca se realizar completamente, porque a invisibilidade das pequenas percepções, apesar de tudo, permanece. José Gil cita o exemplo de que continuamos a ver no rosto a expressão da amabilidade, embora reconhecendo e apreendendo nela a hipocrisia.

Um jogo paradoxal entre visível e invisível, menos desejante de sínteses que ordenem ou julguem como o fazem didáticas e pedagogias da (des)ocultação, ou da revelação, que trocam uma experiência por uma prática, produzindo discursos fundantes, que sempre serão distintos dos acontecimentos disparadores da liberação das diferenças.

A aprendizagem das imagens, o seu apre(e)nder no limiar, no abismo, no i-margear a significação, para um veloz retorno ao mundo invisível das virtualidades, sem se e nos permitir capturar apenas parcialmente nas redes de significação recognoscível, verte-se, entorna-se em uma pedagogia do incapturável, em uma terra/Terra imiscuída por fendas e vazamentos, rios de pixels e feixes de luz que não deixam ver. E em uma superfície intensiva, sem fundo, sem ter sido fundada, fundamentada.

  • 1
    A maioria das experiências de educação não são intencionais e são mais bem concebidas como a formação constante (bem como a deformação) de sujeitos não estáveis. Não se resgata experiência em nome de um ideal elevado, portanto, ao contrário da imposição e compulsão prática educativa comum ao legado humanista, elas não requerem justificação (Bojesen, 2021).
  • 2
    São profissionais da área da saúde que se dedicam ao estudo e investigação das anomalias visuais.
  • Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Processo 425691/2018-7.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2023
  • Revisado
    21 Nov 2023
  • Aceito
    13 Dez 2023
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