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O ensino industrial-manufatureiro no Brasil

Industrial-manufacturing education in Brazil

Resumos

O artigo apresenta a origem e o desenvolvimento do ensino de ofícios para trabalhadores das manufaturas e indústrias no Brasil, desde o século XVIII. A tese central é a de que os preconceitos contra o trabalho manual representam o mais importante determinante da desvalorização das escolas profissionais, assim como do sistema educacional dual no país. Desde 1942, o SENAI desempenhou um novo papel na formação da força de trabalho industrial brasileira, em termos de recrutamento de alunos, pedagogia, gestão e financiamento. Nos anos recentes, todavia, essa instituição perdeu a hegemonia conquistada no campo educacional, e prepara um conjunto de importantes decisões para se prevenir dos conflitos com o Estado e os sindicatos de trabalhadores.


The article presents the origin and the development of the training of works for manufactures and factories in Brazil, since eighteenth century. Its central thesis is that the prejudices against manual work represent the main determinant of the underevaluation of the professional schools, as well as the dual educational system within the country. Since 1942, SENAI performed a new role in the brazilian industrial labor force training, in terms of students recruitment, pedagogy, management and financing. Nevertheless, in the recent years, that institution has lost the hegemony acquired in educational field, and prepares a package of importants decisions in order to prevent conflicts with State and labores syndicates.


O ensino industrial-manufatureiro no Brasil

Industrial-manufacturing education in Brazil

Luiz Antônio Cunha

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO

O artigo apresenta a origem e o desenvolvimento do ensino de ofícios para trabalhadores das manufaturas e indústrias no Brasil, desde o século XVIII. A tese central é a de que os preconceitos contra o trabalho manual representam o mais importante determinante da desvalorização das escolas profissionais, assim como do sistema educacional dual no país. Desde 1942, o SENAI desempenhou um novo papel na formação da força de trabalho industrial brasileira, em termos de recrutamento de alunos, pedagogia, gestão e financiamento. Nos anos recentes, todavia, essa instituição perdeu a hegemonia conquistada no campo educacional, e prepara um conjunto de importantes decisões para se prevenir dos conflitos com o Estado e os sindicatos de trabalhadores.

ABSTRACT

The article presents the origin and the development of the training of works for manufactures and factories in Brazil, since eighteenth century. Its central thesis is that the prejudices against manual work represent the main determinant of the underevaluation of the professional schools, as well as the dual educational system within the country. Since 1942, SENAI performed a new role in the brazilian industrial labor force training, in terms of students recruitment, pedagogy, management and financing. Nevertheless, in the recent years, that institution has lost the hegemony acquired in educational field, and prepares a package of importants decisions in order to prevent conflicts with State and labores syndicates.

O ensino industrial-manufatureiro, destinado à formação da força de trabalho diretamente ligada à produção, é um tema que tem sido quase ignorado nos estudos sobre a gênese e as transformações da educação brasileira. Quando comparado com outros temas, como o ensino superior, o ensino secundário e até a educação física, o ensino industrial-manufatureiro aparece em nossa bibliografia definido mais pela omissão do que pelo conhecimento produzido a seu respeito.

Esse "espaço vazio" se explica, pelo menos em parte, pelo fato de que os historiadores da educação brasileira se preocupam, principalmente, com o ensino que se destina às elites políticas e ao trabalho intelectual, deixando o trabalho manual em segundo plano - atitude consistente, aliás, com sua própria formação. Quando a preocupação é com a "educação popular", são focalizados programas e atividades extra-escolares, notadamente os de iniciativa de organizações não propriamente educativas. Nessas condições, o trabalho manual acaba sendo percebido em função da carência de educação geral, seja da mera alfabetização, seja da escolarização obrigatória, mas incompleta.

Neste texto pretendo inverter tal ponto de vista, para tratar, afirmativamente, do ensino industrial-manufatureiro, como destinado ao trabalho manual. Em conseqüência, ficarão de fora (ou serão mencionados de passagem) outros segmentos também destinados à educação profissional como os cursos superiores e as instituições dotadas de uma certa ambigüidade, como as escolas técnicas de nível médio.1 1 Embora seu currículo, seus destinatários e os postos para os quais formam sejam nitidamente de trabalho intelectual, tanto o pensamento ingênuo quando o sofisticado situam as escolas técnicas no âmbito do trabalho manual.

Cabe, ainda, outra advertência. Ficarão de fora o ensino profissional destinado à formação da força de trabalho voltada para a agricultura, o comércio e os serviços. Mais do que uma parcialidade (que seria fácil de resolver), essa identificação resulta da própria história da educação profissional no Brasil, pois o "ramo" manufatureiro-industrial veio a ocupar uma posição hegemônica sobre os demais, servindo até mesmo de modelo para o conjunto das políticas educacionais do país.

O ensino de ofícios no Império escravocrata

Desde o início da colonização do Brasil, as relações escravistas de produção afastaram a força de trabalho livre do artesanato e da manufatura. O emprego de escravos como carpinteiros, ferreiros, pedreiros, tecelões etc., afugentava os trabalhadores livres dessas atividades, empenhados todos em se diferenciar do escravo, o que era da maior importância diante de senhores/empregadores, que viam todos os trabalhadores como coisa sua. Por isso, dentre outras razões, as corporações de ofícios (irmandades) não tiveram, no Brasil Colônia, o desenvolvimento de outros países.

Com efeito, numa sociedade onde o trabalho manual era destinado aos escravos (índios e africanos), essa característica "contaminava" todas as atividades que lhes eram destinadas, as que exigiam esforço físico ou a utilização das mãos. Homens livres se afastavam do trabalho manual para não deixar dúvidas quanto a sua própria condição, esforçando-se para eliminar as ambigüidades de classificação social. Aí está a base do preconceito contra o trabalho manual, inclusive e principalmente daqueles que estavam socialmente mais próximos dos escravos: mestiços e brancos pobres.

Vejamos, a propósito, uma passagem de carta escrita por um observador da vida colonial, argumentando contra os malefícios da escravidão:

Por outro princípio são prejudiciais os negros no Estado do Brasil, e é que como todas as obras servis e artes mecânicas são manuseadas por eles, poucos são os mulatos e raros os brancos que nelas se querem empregar, sem excetuar aqueles mesmos indigentes, que em Portugal nunca passaram de criados de servir, de moços de tábua, e cavadores de enxada. Observa-se que o que aqui vem servindo algum ministro é só bom criado enquanto não reflete que ele em casa de seu amo se emprega naquele serviço que nas outras só são da repartição dos negros e povos mulatos, motivo por que começa a perseguir logo o amo para que o acomode em algum emprego público que não seja da repartição dos negros e tão publicamente os empregam alguns amos, que se vêem perseguidos e mal servidos que os põem no meio da rua; se porém os amos se demoram em dar este despacho, os criados se antecipam, tendo por melhor sorte o ser vadio, o andar morrendo de fome, o vir parar em soldado e às vezes em ladrão, do que servir um amo honrado que lhes paga bem, que os sustenta, os estima, e isto por não fazerem o que os negros fazem em suas casas. (Vilhena, 1921, p. 139-140)

O texto transcrito acima sugere que a rejeição era menos diante do trabalho manual do que à condição social daqueles que o exerciam - os escravos e seus descendentes -, que não tinham o mesmo sinal étnico da liberdade e da dignidade - a cor da pele.

Assim, se havia a destinação do trabalho pesado e sujo (manual, evidentemente) ao escravo, havia, ao mesmo tempo, atividades manuais que os brancos livres queriam que ficassem preservadas para si. Nesses casos, as corporações de ofício faziam normas rigorosas, até mesmo com apoio das câmaras municipais, impedindo ou pelo menos desincentivando o emprego de escravos em certos ofícios. Em decorrência, procurava-se "branquear" esses ofícios, dificultando o acesso de negros e mulatos ao seu exercício. Mouros e judeus, dotados, também, de características étnicas "inferiores", eram arrolados nas mesmas normas restritivas, embora fosse improvável que seu número no artesanato do Brasil colônia merecesse cuidados especiais.

Assim, a defesa do branqueamento contra o denegrimento da atividade era, então, o complemento dialético do desprezo pelo trabalho exercido pelos escravos (pelos negros). Uma e outra expressavam, ideologicamente, não a discriminação do trabalho manual das demais atividades sociais, simplesmente, mas sim a daqueles que o executavam.

É por isso que considero mais correto dizer que foi a rejeição do trabalho vil (isto é: reles, ordinário, miserável, insignificante, desprezível, infame) que levou ao preconceito contra o trabalho manual. Se um dado trabalho manual não fosse socialmente definido como vil, ele não seria objeto de rejeição, como acontece, atualmente, com o trabalho do cirurgião.

Assim, não é de se estranhar que certas ocupações não atraíssem muitas pessoas para desempenhá-las. O resultado foi o trabalho e a aprendizagem compulsórios: ensinar ofícios a crianças e jovens que não tivessem escolha.

Desde os tempos coloniais, quando um empreendimento manufatureiro de grande porte, como os arsenais de marinha, por exemplo, exigia um contingente de trabalhadores não disponíveis, o Estado coagia homens livres a se transformarem em artífices. Não fazia isso, decerto, com quaisquer homens livres, mas com aqueles que social e politicamente não estavam em condições de opor resistência. Como na formação das guarnições militares e navais, prendiam-se os miseráveis. Procedimentos semelhantes eram adotados para com os menores destinados à aprendizagem de ofícios: os órfãos, os abandonados, os desvalidos, que eram encaminhados pelos juízes e pelas Santas Casas de Misericórdia aos arsenais militares e de marinha, onde eram internados e postos a trabalhar como artífices, até que, depois de um certo número de anos, escolhessem livremente onde, como e para quem trabalhar.

Uma instituição exemplar foi o Colégio das Fábricas, criado em 1809 no Rio de Janeiro para abrigar os órfãos da Casa Pia de Lisboa, trazidos na frota que transportou a família real e sua comitiva para o Brasil. Eles aprendiam diversos ofícios com artífices que vieram na mesma frota.

Se o Colégio das Fábricas não foi o primeiro estabelecimento de ensino profissional no Brasil, nem mesmo o que primeiro abrigou órfãos com esse propósito, ele foi a referência para os outros que vieram a ser instalados.2 2 O tema deste texto leva a deixar de lado as iniciativas joaninas na área agrícola. Pautado pela concepção mercantilista, que enfatizava a agricultura e o comércio "internacional" como fonte da riqueza das nações, o governo do príncipe João criou o Jardim Botânico do Rio de Janeiro - uma verdadeira estação agrícola experimental - e seu congênere da Bahia, assim como escolas de agricultura em diversas províncias. Embora minoritária, a iniciativa de educação manufatureira do Colégio das Fábricas prenunciava a orientação que viria a se mostrar predominante, pelo menos na esfera ideológica, a partir das primeiras décadas do século XX: o industrialismo voltado para o mercado interno. O padrão foi começar com o ensino de ofícios, em geral fora do estabelecimento (no cais, no hospital, nos arsenais militares ou de marinha). Mais tarde, foi acrescido o ensino das "primeiras letras", depois todo o ensino primário.

Entre 1840 e 1856, foram criadas as Casas de Educandos Artífices por dez governos provinciais, que adotaram o modelo de aprendizagem de ofícios vigente no âmbito militar, inclusive os padrões de hierarquia e disciplina. Algumas décadas mais tarde (1875), o mais importante estabelecimento desse tipo, o Asilo dos Meninos Desvalidos, foi criado no Rio de Janeiro. Os "meninos desvalidos" eram os que, de idade entre 6 e 12 anos, fossem encontrados em tal estado de pobreza que, além da falta de roupa adequada para freqüentar escolas comuns, vivessem na mendicância. Eles eram encaminhados pela autoridade policial a esse asilo, onde recebiam instrução primária, seguida de disciplinas especiais (álgebra elementar, geometria plana e mecânica aplicada às artes; escultura e desenho; música vocal e instrumental) e aprendiam um dos seguintes ofícios: tipografia, encadernação, alfaiataria, carpintaria, marcenaria, tornearia, entalhe, funilaria, ferraria, serralheria, courearia ou sapataria. Concluída a aprendizagem, o artífice permanecia mais três anos no asilo, trabalhando nas oficinas, com o duplo fim de pagar sua aprendizagem e formar um pecúlio, que lhe era entregue ao fim do triênio.

No período imperial, enquanto as instituições criadas, mantidas e administradas pelo Estado voltavam-se, predominantemente, para a formação compulsória da força de trabalho manufatureira a partir dos miseráveis, as iniciativas de particulares eram destinadas, principalmente, ao aperfeiçoamento dos trabalhadores livres, os que tinham disposição favorável para receber o ensino oferecido.

A partir de meados do século XIX, com o aumento da produção manufatureira no Brasil, começaram a ser organizadas sociedades civis destinadas a amparar órfãos e/ou ministrar ensino de artes e ofícios. Os recursos dessas sociedades provinham, primeiramente, das cotas pagas pelos sócios ou doações de benfeitores. Sócios e benfeitores eram membros da burocracia do Estado (civil, militar e eclesiástica), nobres, fazendeiros e comerciantes. O entrecruzamento dos quadros de sócios com os quadros da burocracia estatal permitia a essas sociedades se beneficiarem de dotações governamentais, as quais assumiam importante papel na manutenção das escolas de ofícios. Havia, também, sociedades que tinham nos próprios artífices seus sócios. Mas essas sociedades só subsistiram quando conseguiram organizar um quadro de sócios beneméritos que as dirigiam e mantinham com seus próprios recursos ou com subsídios governamentais que atraíam.

As mais importantes sociedades desse tipo foram as que criaram e mantiveram liceus de artes e ofícios. O primeiro deles surgiu no Rio de Janeiro, em 1858.

Em 1857 foi organizada, na capital do país, a Sociedade Propagadora de Belas-Artes, por iniciativa do coronel Francisco Joaquim Bethencourt, ex-aluno e professor da cadeira de arquitetura da Academia de Belas-Artes. O principal objetivo dessa sociedade de direito civil era o de "fundar e conservar o Liceu de Artes e Ofícios, em que se proporcionasse a todos os indivíduos, nacionais e estrangeiros, o estudo de belas-artes e sua aplicação necessária aos ofícios e indústrias, explicando-se os príncipios científicos em que ela se baseia".

Os recursos materiais necessários ao funcionamento do liceu resultavam de doações dos sócios, em dinheiro e em mercadorias, e, principalmente, de subsídios do Estado, conseguidos, também, pelos sócios, muitos deles altos funcionários da burocracia do Estado ou parlamentares.

Os cursos eram, em princípio, abertos, vedados apenas aos escravos. A insuficiência de recursos retardou bastante a abertura de oficinas. Até o fim do Império, o liceu dispunha, além das salas de aula, apenas de um gabinete de física, um laboratório de química mineral e outro de química orgânica. Parafraseando Fonseca (1961), pode-se dizer que o liceu era só de artes, não de ofícios, pois não dispunha de oficinas.

No período do Império, tanto as iniciativas do Estado voltadas para o ensino de ofícios, quanto as das sociedades civis, eram legitimadas por ideologias que pretendiam: a) imprimir a motivação para o trabalho; b) evitar o desenvolvimento de idéias contrárias à ordem política, de modo a não se repetirem no Brasil as agitações que ocorriam na Europa; c) propiciar a instalação de fábricas que se beneficiariam da existência de uma oferta de força de trabalho qualificada, motivada e ordeira; e d) favorecer os próprios trabalhadores, que passariam a receber salários mais elevados, na medida dos ganhos de qualificação. Ao fim do Império, com a chegada ao Brasil dos padres salesianos, um novo elemento ideológico foi incorporado a esse conjunto - o do ensino profissional como antídoto ao pecado.

Essas instituições e essa ideologia constituíram o legado do Império à República, no que se refere ao ensino de ofícios manufatureiros.

As escolas republicanas de aprendizes artífices

Foi dos positivistas que partiu a primeira manifestação havida no regime republicano com respeito à formação da força de trabalho, particularmente no tocante à aprendizagem de ofícios manufatureiros.

Logo após a proclamação da República, ainda em dezembro de 1889, Raimundo Teixeira Mendes, um dos principais dirigentes do Apostolado Positivista, entregou ao "cidadão ministro da guerra" Benjamin Constant um memorial em nome de cerca de 400 operários das oficinas do governo no Rio de Janeiro. Ele continha todo um plano, calcado no positivismo de Augusto Comte, para "incorporar à sociedade o proletariado a serviço da República", como modelo a ser seguido por todos os empregadores. Propunha medidas como o estabelecimento do salário mínimo, a remuneração adicional em função da produtividade, o descanso semanal, as férias remuneradas, a aposentadoria, a redução da jornada de trabalho para sete horas, as licenças para tratamento de saúde, a regulamentação da aprendizagem de ofícios, e outras.

O memorial faz referência a dois problemas de ordem geral, que afetariam a sociedade como um todo. Primeiro, as necessidades da produção, em particular a crescente demanda da indústria moderna que "vai exigindo do proletário cada vez maior instrução para bem manejar as máquinas". Segundo, as necessidades do Estado, que, "exigindo que cada cidadão cumpra espontaneamente o seu dever, vão impondo a cada um maior grau de moralidade e de instrução para a prática e o conhecimento do mesmo dever". Os proletários não poderiam, então, ser "moralizados" nem "instruídos" devido a diversos impedimentos materiais e suas repercussões morais: a mulher precisava trabalhar para ajudar a sustentar a prole e, assim, não tinha tempo nem disposição para "educar os filhos, amparar os anciãos e confortar os esposos"; os filhos precisavam trabalhar para viver, não sobrando ocasião para serem educados; os velhos não podiam ser amparados em meio a uma existência miserável, deixando, então, de ser, no lar, "o melhor incentivo para educar-nos e manter-nos no culto e na dedicação da Pátria".

A solução para ambos os problemas consistiria em "dignificar a pobreza, eliminando dela a miséria". Para isso, seria preciso que houvesse uma nova concepção de salário, não mais entendido como a paga do trabalho, mas sim como o "subsídio livremente dado pela sociedade a cada cidadão, a fim de poder este manter a família, que é a base de toda a ação cívica". As famílias ricas é que livremente deveriam sustentar as famílias pobres, em nome da sociedade, de modo que estas pudessem prestar os serviços que a Pátria e a Humanidade exigissem delas. Se assim se fizesse, a Ordem e o Progresso estariam assegurados. A Ordem, porque ao dever dos ricos de darem subsídio aos proletários corresponderia o dever destes de limitar suas pretensões ao seu destino. O Progresso, pois o trabalho é um dos deveres produtivos dos proletários.

A operacionalização da proposta consistiria na divisão do salário a ser pago a cada trabalhador em duas partes. Uma (o salário mínimo) deveria ser suficiente para garantir as finalidades morais resultantes da capacidade do chefe de manter, apenas com seu trabalho, todos os demais membros de sua família, permitindo à esposa e aos avós cumprirem seu papel moralizador. A segunda parte deveria ser variável, de acordo com a produtividade individual, de modo que se mantivesse a "justa emulação entre os trabalhadores" e se garantisse a "perfeição e agilidade dos operários".

No que concerne à aprendizagem de ofícios, os positivistas defendiam que as oficinas do Estado deveriam ter apenas aprendizes maiores de 14 anos. Eles só compareceriam às oficinas para seu trabalho/estudo durante quatro horas por dia, cinco dias por semana. Os aprendizes que tivessem algum membro da família trabalhando nessas oficinas não receberiam nenhum pagamento. Os demais receberiam uma quantia tal que, somada ao salário do chefe da sua família, resultasse num valor igual à parte fixa do salário pago pelo Estado aos seus operários. Os aprendizes seriam admitidos mediante requerimento de suas mães, e depois de prestarem concurso sobre as matérias ensinadas nas escolas primárias públicas.

O memorial manifestava a preocupação de manter o tempo livre para os aprendizes absorverem a educação materna, no sentido da moralização; de assegurar a instrução primária, instituindo o concurso para ingresso na aprendizagem; de pagar-lhes apenas o necessário para a complementação do salário de seus pais, evitando a tentação de alguns enriquecerem à custa do trabalho dos filhos; de valorizar a função das mães como educadoras, tanto no lar como no encaminhamento da instrução profissional dos menores.

Essas medidas não foram aceitas pelo governo, mas indiretamente influenciaram o decreto que limitou o emprego de menores nas fábricas da capital federal e na transformação do Asilo de Meninos Desvalidos no Instituto de Educação Profissional. Vejamos seus pontos principais.

O decreto n. 1.313, de 17 de janeiro de 1891, pretendia "impedir que, com prejuízo próprio e da prosperidade futura da pátria", fossem "sacrificadas milhares de crianças", proibindo o trabalho de menores de 12 anos, de ambos os sexos, nas fábricas do Distrito Federal. Fazia exceção para as tecelagens, que podiam empregar crianças de 8 a 12 anos, a título de aprendizado. Mesmo assim, estas tinham seu tempo de trabalho limitado a três ou quatro horas diárias, conforme a idade. As meninas de 12 a 15 anos e os meninos de 12 a 14 só poderiam trabalhar sete horas por dia, nunca mais de quatro horas consecutivas. Para todos os menores de 15 anos ficava proibido o trabalho noturno, assim como nos domingos e nos feriados nacionais, mesmo que fosse na limpeza das oficinas. O decreto descia a minúcias no tocante às condições higiênicas e de segurança, vedando a operação, pelos menores, de certas máquinas, bem como a manipulação de produtos explosivos e corrosivos. Para a garantia do cumprimento desses dispositivos, criava-se o cargo de inspetor-geral, diretamente subordinado ao Ministério do Interior, com o poder de aplicar multas aos infratores.

Na mesma direção de retardar o ingresso das crianças na força de trabalho e de propiciar maior eficácia na socialização familiar, o decreto 722, de 30 de janeiro de 1892, transformou o Asilo de Meninos Desvalidos no Instituto de Educação Profissional, incorporando a ele a Casa de São José, outra entidade assistencial pública. Os menores de 14 anos não podiam mais ser encaminhados às instituições de aprendizagem profissional, devendo ser abrigados em estabelecimentos a eles destinados. Os maiores de 14 anos deveriam percorrer toda a série dos ofícios, depois do que escolheriam um para se especializarem, conforme as respectivas inclinações individuais.

Mas a principal medida republicana ainda demoraria praticamente uma década.

Em 1909, o Brasil passava por um surto de industrialização, quando as greves de operários foram não só numerosas, como articuladas, umas categorias paralisando o trabalho em solidariedade a outras, lideradas pelas correntes anarco-sindicalistas. Neste contexto, o ensino profissional foi visto pelas classes dirigentes como um antídoto contra a "inoculação de idéias exóticas" no proletariado brasileiro pelos imigrantes estrangeiros, que constituíam boa parte do operariado.

Embora eufemística, a justificativa ao decreto de criação das escolas de aprendizes artífices anunciava esses objetivos ideológicos:

O aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existência; [...] para isso se torna necessário, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ociosidade, escola do vício e do crime. (grifo meu)

Convergente com essa ideologia conservadora havia outra, progressista - a do industrialismo. Ela consistia na atribuição à indústria de valores como progresso, emancipação econômica, independência política, democracia e civilização. Seus adeptos atribuíam à indústria a função de elevar o Brasil ao nível das nações civilizadas, pois ela permitiria ao país possuir os atributos próprios dos países da Europa e dos Estados Unidos. Só a indústria poderia resolver os problemas econômicos que afligiam o Brasil, pois só ela seria capaz de propiciar o desenvolvimento das forças produtivas, estabilizar a economia e levar o progresso a todas as regiões.

Ademais, o ensino profissional era entendido pelos industrialistas como um poderoso instrumento para a solução da "questão social". Mesmo com a intensificação dos conflitos sociais, os industrialistas brasileiros diziam que o Estado deveria cogitar do ensino obrigatório antes mesmo de instituir leis sociais.

A tradução dessa ideologia em medidas de política educacional esteve ligada à atuação decisiva de Nilo Peçanha. Como presidente do estado do Rio de Janeiro, ele baixou um decreto criando, em 1906, cinco escolas profissionais - três para o ensino manufatureiro (em Campos, Petrópolis e Niterói) e duas para o ensino agrícola (em Paraíba do Sul e Resende).

Em 1909, já presidente da República, Nilo Peçanha baixou o decreto 7.566, de 23 de setembro, criando 19 escolas de aprendizes e artífices, situadas uma em cada estado. Essa escolas formavam, desde sua criação, todo um sistema escolar, pois estavam submetidas a uma legislação específica que as distinguia das demais instituições de ensino profissional mantidas por particulares (fossem congregações religiosas ou sociedades laicas), por governos estaduais, e diferenciava-se até mesmo de instituições mantidas pelo próprio governo federal. Em suma, as escolas de aprendizes artífices tinham prédios, currículos e metodologia didática próprios; alunos, condições de ingresso e destinação esperada dos egressos que as distinguiam das demais instituições de ensino elementar.

A constituição desse sistema assumiu contornos mais nítidos a partir de 1919, com a incorporação da Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Braz, destinada a formar professores para as escolas de aprendizes artífices (Tavares, 2000). Esses contornos foram avivados a partir de 1931, quando a administração educacional diferenciou-se, já no âmbito do Ministério da Educação e Saúde, com a criação da Inspetoria do Ensino Profissional Técnico que, por sua vez, deu origem a outros organismos de âmbito e competência progressivamente ampliados.

Vou apresentar, em seguida, as características das escolas de aprendizes artífices como sistema.

Foram criadas, então, 19 escolas, uma em cada unidade da Federação.3 3 Algumas escolas foram instaladas nos prédios onde funcionavam estabelecimentos mantidos pelos governos estaduais (cedidos por estes), herdeiros, por sua vez, das casas de educandos artífices do período imperial. As exceções ficaram com o Distrito Federal e o Rio Grande do Sul. Naquele, o decreto dizia já existir o Instituto Profissional Masculino, e o Rio Grande do Sul, por sua vez, dispunha do Instituto Parobé, unidade da Escola de Engenharia de Porto Alegre, ambas instituições com organização e propósitos semelhantes aos que se determinava para as novas escolas.4 4 Um decreto federal de 1911 incorporou ao sistema das escolas de aprendizes artífices o Instituto Parobé.

Todas as escolas de aprendizes artífices se situavam nas capitais dos estados, com a exceção do Rio de Janeiro, que teve a sua localizada em Campos, cidade natal do presidente da República.5

A localização de cada escola na capital do estado (com a mencionada exceção do Rio de Janeiro) mostra uma preocupação mais política do que econômica. A população estava muito desigualmente distribuída pelas unidades da Federação, assim como as atividades manufatureiras, que se concentravam no Distrito Federal e em São Paulo. O primeiro já dispunha de uma instituição do mesmo tipo que o segundo veio a receber, em igualdade de condições com estados onde a atividade manufatureira era incipiente, como os do norte, do nordeste e do centro-oeste. Essa preocupação política se manifestou, ainda, na localização de cada escola sempre na capital do estado, sede do poder político, mesmo quando as atividades manufatureiras concentravam-se em outra cidade, como Juiz de Fora (e não Belo Horizonte), em Minas Gerais; e Blumenau (e não Florianópolis), em Santa Catarina.

Por baixo da capa legitimadora da ideologia industrialista (entre outras, a exemplo do assistencialismo), havia interesses mais palpáveis, em termos políticos, como o reforço do mecanismo de cooptação de setores locais das oligarquias pelo governo federal, controlado pelas frações latifundiárias das classes dominantes, ligados à agricultura cafeeira. Dito de outro modo: as escolas de aprendizes artífices constituíram uma presença do governo federal nos estados, oferecendo cargos aos indicados pelos políticos locais e vagas para alunos a serem preenchidas com os encaminhados por eles. A contrapartida não seria difícil de imaginar: o apoio político ao bloco dominante no plano federal.

Enquanto as escolas de aprendizes artífices obedeceram a um movimento centrífugo, pois foram instaladas de modo disperso, uma em cada estado, mesmo nos menores, o processo de industrialização apresentava uma tendência centrípeta. Não só as novas fábricas tendiam a se localizar no centro-sul, principalmente em São Paulo, como, também, para lá se transferiam atividades manufatureiras antes desenvolvidas em outras regiões do país.

A finalidade manifestamente educacional das escolas de aprendizes artífices era a formação de operários e contramestres, através de ensino prático e conhecimentos técnicos necessários aos menores que pretendessem aprender um ofício em "oficinas de trabalho manual ou mecânico que forem mais convenientes e necessários ao estado em que funcionar a escola, consultadas, quanto possível, as especialidades das indústrias locais". Como parte integrante de cada escola de aprendizes artífices, foram criados cursos noturnos obrigatórios, um primário (para os analfabetos) e outro de desenho (para os alunos que dele precisassem).6 6 Posteriormente, a obrigatoriedade desses cursos se estendeu a todos os alunos: em 1911, o de desenho, e em 1918, o curso primário. Eles passaram para o período diurno, ficando o período noturno reservado para os cursos de aperfeiçoamento (a partir de 1918), destinados aos operários que já se encontrassem no mercado de trabalho.

Cada escola de aprendizes artífices deveria possuir até cinco oficinas de trabalho manual ou de mecânica, conforme a capacidade do prédio escolar e as especialidades das indústrias locais, a juízo do governo (primeiro, do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio; e após 1930, do Ministério da Educação e Saúde). Desde 1918, o diretor de cada escola poderia criar mais oficinas, desde que tivesse recursos para isso e dispusesse de pelo menos 20 candidatos ao ofício correspondente.

No primeiro ano de funcionamento (1910) as escolas de aprendizes artífices receberam cerca de 2 mil alunos. Nos 33 anos de sua existência, passaram por elas 141 mil alunos, uma média de cerca de 4.300 por ano. No último ano de funcionamento dessas escolas (1942), havia estabelecimentos com um número diminuto de alunos. Apenas duas delas tinham um corpo discente da ordem de quatro centenas de alunos. Sete escolas tinham menos de 200 alunos, duas com menos de 100. Elas atingiram o volume máximo de alunos na década de 1920, após o que entraram em decadência. Os ofícios que eram ensinados em todas elas eram os de marcenaria, alfaiataria e sapataria, mais artesanais do que propriamente manufatureiros, o que mostra a distância entre os propósitos industrialistas de seus criadores e a realidade diversa de sua vinculação com o trabalho fabril.

Poucas eram as escolas de aprendizes artífices que tinham instalações para o ensino de ofícios propriamente industriais, de emprego generalizado. No entanto, em São Paulo, as condições de crescimento da produção industrial, aliadas à emulação do Liceu de Artes e Ofícios, levaram a um maior esforço de adaptação das oficinas às exigências da produção fabril. Assim, desde os primeiros anos de existência, a escola de aprendizes artífices paulista era uma das poucas que ofereciam ensino de tornearia, de mecânica e de eletricidade. Como as demais, ela mantinha oficinas voltadas para o artesanato, a exemplo da carpintaria e das artes decorativas, mas era das poucas que não ensinavam os ofícios de sapateiro e de alfaiate, existentes na grande maioria de suas congêneres.

Senai: Iniciativa pública, controle privado

Veremos, neste item, como a aprendizagem sistemática foi institucionalizada no SENAI, no contexto da reforma educacional empreendida pelo ministro da Educação Gustavo Capanema.

Numa primeira olhada, a concepção do ensino expressa na "lei" orgânica do ensino industrial (decreto-lei 4.073, de 30 de janeiro de 1942) concilia duas modalidades de formação de operários. A principal modalidade seria desenvolvida nas escolas industriais, herdeiras das antigas escolas de aprendizes artífices, então promovidas ao nível pós-primário (1º ciclo do ensino médio, ramo industrial). Aí seriam ensinados ofícios que exigiriam uma formação mais longa, em oficinas especializadas. A outra modalidade seria a aprendizagem, ministrada em "serviços", que associaria escola e trabalho, visando ao ensino de parte de cada ofício industrial.

Mas, numa olhada mais cuidadosa, surpreendemo-nos com a existência de um decreto que normatiza o Serviço Nacional de Aprendizagem dos Industriários (depois Industrial) uma semana antes daquela "lei" orgânica. Seria uma irracionalidade a normatização da espécie antes do gênero? Veremos, em seguida, que se trata de uma forma de racionalidade: a composição forçada de duas modalidades excludentes de formação profissional.

Desde o início do século, as empresas ferroviárias mantinham escolas para a formação de operários destinados à manutenção de seus equipamentos, veículos e instalações. A primeira delas, a Escola Prática de Aprendizes das Oficinas, foi fundada em 1906, no Rio de Janeiro, na Estrada de Ferro Central do Brasil. As práticas de ensino eram, no entanto, assistemáticas, o que significa que os aprendizes imitavam o mestre e desempenhavam as tarefas que este lhes atribuía, conforme o andamento da produção.

A grande densidade de estradas de ferro no Estado de São Paulo, ligando as frentes de expansão cafeeira ao porto de Santos, criou condições para que, na década de 1920, as atividades de ensino de ofícios das empresas ferroviárias fossem centralizadas e sistematizadas.

A iniciativa pioneira de aprendizagem sistemática teve início em 1924, com a criação da Escola Profissional Mecânica no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Quatro empresas ferroviárias que operavam nesse estado7 7 Eram elas: a Estrada de Ferro Sorocabana, a São Paulo Railway, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro e a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. fizeram um acordo com o Liceu, pelo qual enviariam cada uma dois aprendizes para freqüentarem um curso de quatro anos, realizando estágio nas oficinas de uma delas, situadas na capital. O ensino de ofícios visado pelo acordo apresentava duas inovações que vieram a ser difundidas posteriormente: a utilização das séries metódicas8 8 As séries metódicas foram desenvolvidas por Victor Della Vos, diretor da Escola Técnica Imperial de Moscou, a partir de 1875, para enfrentar a necessidade de formação de grande quantidade de trabalhadores qualificados para apoiar a expansão das ferrovias na Rússia. As séries metódicas logo substituíram os padrões artesanais de aprendizagem de ofícios, na Rússia e em outros países da Europa. e a aplicação de testes psicotécnicos para seleção e orientação dos candidatos aos diversos cursos.

Na criação da Escola Profissional Mecânica teve papel destacado o engenheiro suíço Roberto Mange, professor da Escola Politécnica de São Paulo, que atuou, também, mais tarde, nos empreendimentos dela derivados e até mesmo na criação do SENAI. Roberto Mange e outros engenheiros da Escola Politécnica, entre eles Armando Salles de Oliveira, destacaram-se na divulgação da doutrina da Organização Racional do Trabalho, sistematizada por Frederick Taylor, a ponto de, em 1931, fundarem, com o patrocínio da Associação Comercial e da Federação das Indústrias de São Paulo, o Instituto de Organização Racional do Trabalho - IDORT. Esta entidade passou a ganhar influência à medida que os efeitos da crise econômica de 1929 se somavam aos movimentos reivindicatórios de trabalhadores, provocando a diminuição da taxa de lucro. Essa situação era especialmente crítica nas estradas de ferro, não só porque seus trabalhadores estavam entre os mais organizados, como, também, devido ao efeito que a elevação dos custos do transporte acarretava a outras atividades econômicas, particularmente à exportação do café.

Para esses problemas, o IDORT apresentava o taylorismo como solução universal, propugnando o combate à desorganização administrativa das empresas, à utilização inadequada de matérias-primas, de força de trabalho e de energia motriz, assim como defendendo a implantação de um controle eficiente dos custos. A redução dos custos permitiria a elevação da produtividade e, em conseqüência, o aumento dos salários pagos aos trabalhadores, desincentivando os movimentos reivindicatórios. Mas, para que a produtividade geral se elevasse, seria necessário, também, aumentar a produtividade dos trabalhadores em termos físicos, para o que seriam indispensáveis os exames psicotécnicos, permitindo colocar "o homem certo no lugar certo" e selecionar os mais capazes; e o ensino sistemático de ofícios, apressando e barateando a formação profissional.

Para o ensino sistemático de ofícios, lançava-se mão das séries metódicas, já aplicadas com sucesso no Liceu de Artes e Ofícios; para os exames psicotécnicos, os procedimentos desenvolvidos por Henri Pieron, do Instituto de Psicologia da Universidade de Paris, e Léon Walter, do Instituto Rousseau da Universidade de Genebra, que deram cursos em São Paulo e tiveram suas obras traduzidas. Os exames psicotécnicos serviriam, também, para evitar a contratação de "agitadores", medida convergente com a adoção de fichas de identificação datiloscópica destinadas a evitar a reentrada nos quadros das empresas de trabalhadores despedidos por razões político-ideológicas ou outras.

A experiência da Escola Profissional Mecânica teve efeitos multiplicadores na Estada de Ferro Sorocabana, empresa estatal, cuja direção, imbuída da doutrina taylorista, encontrava-se empenhada em melhorar os resultados econômicos e enfrentar a concorrência do transporte rodoviário. Não lhe bastando o envio de alguns aprendizes ao Liceu de Artes e Ofícios, essa empresa organizou um Serviço de Ensino e Seleção Profissional - SESP, em 1930, incorporando as práticas pedagógicas e psicotécnicas que se divulgavam e se aplicavam, antes mesmo da criação do IDORT.

O SESP deu partida a um padrão de articulação institucional que persistiu por pelo menos seis décadas. Mediante acordo entre a direção da Estrada de Ferro Sorocabana e a Diretoria Geral de Ensino do Estado de São Paulo, a Escola Profissional de Sorocaba, oficial, forneceria o ensino de conteúdo geral aos aprendizes, enquanto o ensino propriamente profissional seria desenvolvido nas oficinas da empresa.

Cinco cursos eram ministrados no SESP: O curso de ferroviários, com quatro anos de duração, para as seguintes especialidades: ajustador, torneiro-fresador, caldeireiro, caldeireiro-ferreiro, ferreiro, eletricista, operador mecânico. O curso de aperfeiçoamento, para o pessoal já empregado nas oficinas, compreendendo disciplinas como português, matemática, desenho técnico, higiene, prevenção de acidentes, e outras. O curso de tração, para os foguistas e maquinistas; o curso de telégrafo e iluminação, para os aprendizes que já possuíssem formação profissional mecânica equivalente à 3ª série do curso de ferroviários, completando-a com mais um ano de aprendizagem. O curso de tráfego, visando a especialização dos departamentos de movimento e telégrafo, ensinando desenho e matemática. Nos seus dez anos de existência, o SESP ministrou cursos a 2.400 trabalhadores.

O aprofundamento da experiência do Liceu de Artes e Ofícios pelo SESP propiciou a extensão da aprendizagem sistemática a outras empresas ferroviárias do estado de São Paulo. O projeto de um Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional - CFESP foi elaborado por Roberto Mange e apresentado pelo IDORT às empresas ferroviárias e ao governo do estado, recebendo grande apoio do interventor, justamente o idortiano Armando Salles de Oliveira, como, também, da parte daquelas. O CFESP, criado por decreto em 1934, era constituído pelas ferrovias do estado de São Paulo, com recursos oriundos do governo e das próprias ferrovias, contando com administração autônoma. O governo estadual colaborou com os recursos materiais e humanos do SESP e professores para o ensino de caráter geral. A direção do Centro era constituída de dois delegados do governo estadual e um de cada companhia que aderisse ao empreendimento.

As atividades do CFESP iniciaram-se com a adesão de cinco empresas ferroviárias paulistas. Prestava-lhes serviços de seleção, de assistência técnica e de coordenação da aprendizagem sistemática nas escolas profissionais existentes junto às oficinas gerais, em diversos pontos do estado, oferecendo as instalações do SESP, em Sorocaba e em São Paulo, para uso comum. Em 1942 havia 16 escolas profissionais nas ferrovias paulistas, todas ligadas ao CFESP.

Outras empresas vieram a aderir ao Centro, para o que concorreu a Associação Brasileira de Engenharia Ferroviária na divulgação dos resultados alcançados. Em 1942, já haviam se associado à entidade nove ferrovias situadas fora do estado de São Paulo.

O CFESP distinguia-se, substancialmente, das escolas de aprendizes artífices em vários aspectos. Primeiro, a clientela restrita e selecionada (filhos de ferroviários, principalmente) e a formação para utilização também restrita (as estradas de ferro). Nas escolas de aprendizes artífices, os alunos eram, invariavelmente, órfãos e outros "desvalidos", oriundos do lúmpen-proletariado, mais interessados na comida gratuita do que no aprendizado propriamente. Segundo, a associação do Estado com as empresas, a fim de formar pessoal para todas elas. O Estado era útil às empresas como fornecedor de recursos e garantidor das regras de jogo. Nas escolas de aprendizes artífices, mantidas totalmente pelo Estado para a formação de operários para as empresas, era difícil para aquele perceber as diversificadas demandas destas. As empresas, por sua vez, tinham dificuldades de influir sobre o ensino devido à interveniência da burocracia educacional e dos padrões curriculares rígidos, quase uniformes. Enquanto as escolas de aprendizes artífices não possuíam uma pedagogia própria para o ensino de ofícios, limitando-se aos padrões artesanais da prática, a Escola Profissional Mecânica, do Liceu de Artes e Ofícios, o SESP e o CFESP tinham nas séries metódicas a espinha dorsal de uma pedagogia que se mostrou eficaz no atingimento dos objetivos almejados.9 9 As séries metódicas, assim como a colaboração Estado-empresa e escola-oficina, foram utilizadas, mais tarde, em todo o país pelo SENAI. Quando da criação desta instituição, em 1942, o CFESP foi a ele incorporado, constituindo a Divisão de Transportes e o núcleo de todo o Departamento Regional de São Paulo. O criador do Centro, Roberto Mange, foi o primeiro diretor do DR/SP do SENAI. Italo Bologna, também diretor do Centro, dirigiu o DR/SP por muitos anos, como, também, o Departamento Nacional. A influência do pessoal do CFESP incidiu, mais tarde, também, sobre o sistema de ensino industrial, no âmbito do próprio Ministério da Educação.

Embora as atividades do CFESP se desenvolvessem rapidamente em São Paulo, irradiando-se pelas ferrovias de outros estados, foi só com a adoção de um projeto industrialista de desenvolvimento, pelo Estado Novo, que foram dados os primeiros passos para a generalização da aprendizagem sistemática em nível nacional. Vejamos como se deu essa generalização.

A Constituição outorgada de 1937 continha um artigo que definia o papel do Estado, das empresas e dos sindicatos (ditos econômicos) na formação profissional das "classes menos favorecidas". Dizia o artigo 129:

O ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes menos favorecidas é em matéria de educação o primeiro dever do Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos estados, dos municípios ou associações particulares e profissionais. É dever das indústrias e dos sindicatos econômicos criar na esfera de sua especialidade, escolas de aprendizes destinados aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará o cumprimento desse dever e os poderes que caberão ao Estado sobre essas escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsídios a lhes serem concedidos pelo poder público.

Não se sabe ainda como esse dispositivo apareceu na Constituição, já que ela foi elaborada por juristas sem prévia experiência educacional, a não ser no ensino regular não-profissional. Todavia, não me parece fora de propósito supor a inspiração remota no projeto de lei apresentado pelo deputado Graco Cardoso à Câmara, em 1927, um dos diversos que viam no ensino profissional uma espécie de panacéia para os mais diversos problemas sociais, econômicos e culturais do país. O artigo 22 desse projeto dizia:

Os diretores de fábricas, explorações ou empresas industriais ficam obrigados a encaminhar aos cursos profissionais ou de aperfeiçoamento os menores, analfabetos ou não, colocados como aprendizes nos diferentes estabelecimentos, sob pena de multa que pelo Executivo será fixada.

O projeto não foi aprovado, mas a obrigação proposta acabou por vingar por outros meios. Cumpria, agora, ao Estado, dar forma ao dispositivo constitucional.

O Ministério da Educação, através da Divisão de Ensino Industrial, elaborou, em 1938, um projeto de regulamentação desse dispositivo constitucional. Estipulava-se a criação de escolas de aprendizes industriais mantidas e dirigidas pelos sindicatos dos empregadores e pelos estabelecimentos industriais. As escolas teriam oficinas próprias destinadas à prática dos aprendizes, isto é, dos trabalhadores maiores de 14 e menores de 18 anos. Os cursos durariam de 8 a 16 horas semanais, em horário coincidente com o período de trabalho, remunerando-se a atividade produtiva do menor. Cada empresa industrial teria a obrigação de empregar um número de trabalhadores menores igual ou superior a 10% do efetivo total de operários. Ao Estado caberia a tarefa de manter escolas de aprendizes onde os sindicatos e as indústrias não fossem capazes de fazê-lo. Os Ministérios da Educação e do Trabalho fiscalizariam as empresas e aplicariam sanções às infratoras.

Além desse projeto relativo ao aprendizado dos menores que trabalhavam, o Ministério da Educação elaborou outro, referente aos menores não-trabalhadores, de 11 a 14 anos de idade, sob a responsabilidade dos sindicatos dos empregados. Projetava-se a criação de escolas pré-vocacionais destinadas aos filhos ou irmãos de operários sindicalizados que idealmente houvessem terminado o curso primário com 11 anos, e não tivessem atingido, ainda, a idade mínima para o ingresso na força de trabalho.

As escolas seriam mantidas com recursos do imposto sindical, geridos conjuntamente por representantes dos sindicatos e dos Ministérios da Educação e do Trabalho.

O primeiro projeto foi enviado, ainda em 1938, à Confederação Nacional da Indústria e à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, presididas, respectivamente, por Euvaldo Lodi e Roberto Simonsen. Eles se manifestaram contrários, devido às despesas que as empresas teriam de arcar com o pagamento dos salários dos aprendizes e dos mestres, com os gastos de instalação e de operação das oficinas. Os líderes industriais não perceberam o quanto o anteprojeto atenderia aos seus próprios interesses, a médio e a longo prazo, ou priorizaram o lucro imediato - de um modo ou de outro, nada de contribuir financeiramente para a formação profissional da força de trabalho que eles próprios empregavam. É provável que a formação recente do capital industrial ainda não tivesse propiciado aos industriais uma visão dos seus interesses coletivos um pouco além do curto prazo. Por outro lado, a situação dos industriais de crescente dependência diante dos favores governamentais, em termos fiscais, alfandegários e creditícios, não encorajava uma resistência ativa ao projeto. Assim, aquelas entidades optaram pela resistência passiva, simplesmente não respondendo à consulta ministerial.

Diante disso, o governo baixou o decreto-lei 1.238, em 2 de maio de 1939, obrigando as empresas a manter cursos de aperfeiçoamento profissional para adultos e menores. Essa medida pretendia assegurar aos trabalhadores, fora do lar, condições mais favoráveis e higiênicas para a sua alimentação e propiciar-lhes, ao mesmo tempo, o aperfeiçoamento profissional. Para tanto, obrigava as empresas com mais de 500 empregados (de todos os setores econômicos) a reservar locais para a refeição dos trabalhadores e a promover o aperfeiçoamento profissional não só dos menores, como no projeto rejeitado, mas também dos adultos.

A reação dos empresários passou, então, da forma passiva para a forma ativa, recusando-se a cumprir as determinações do decreto. Diante disso, o próprio presidente da República Getúlio Vargas lhes teria dito que ou eles aceitavam assumir a formação profissional prevista pela Constituição, incluindo o custo financeiro, ou o governo manteria a forma definida pelo último decreto. Poderia haver até mesmo a atribuição da gestão de todo o sistema aos sindicatos dos trabalhadores. Sem melhor alternativa, a CNI e a FIESP consentiram e assumiram como criação sua o sistema SENAI que resultou do decreto-lei 4.048, de 22 de janeiro de 1942.10 10 Participantes dos acontecimentos entrevistados por mim forneceram a base para essa interpretação, contrária às versões oficialmente divulgadas.

Houve, decerto, pelo menos uma concessão importante por parte do governo: a estrutura descentralizada e federativa do SENAI, em tudo contrária ao centralismo do Estado Novo.

Vale a pena focalizar um fato sociopolítico importante: o suporte da consciência de uma classe social pode estar fora dessa classe. No caso do SENAI, vimos como os industriais não só não foram os elementos ativos em sua criação, como, também, resistiram todo o tempo à instituição da aprendizagem sistemática associando escola e trabalho, assim como à remuneração dos aprendizes. Apesar de isso ser do seu próprio interesse, foi preciso que o Estado, utilizando um poder arbitrário, típico do regime autoritário, obrigasse-os a assumir a instituição. Constatada a funcionalidade do SENAI para os interesses dos industriais, eles reescreveram a história, de modo a colocarem-se como os autores da idéia.

Vejamos, agora, como a aprendizagem industrial foi contraposta à outra modalidade de ensino industrial.

A "lei" orgânica do ensino industrial trouxe como principal inovação o deslocamento de todo o ensino profissional para o grau médio. O ensino primário passou a ter, então, conteúdo exclusivamente geral.

O deslocamento do ensino profissional para o grau médio teve a função principal de permitir que a própria escola primária selecionasse os alunos portadores de ethos pedagógico mais compatível com o prosseguimento dos estudos. As escolas de aprendizes artífices recrutavam os alunos provavelmente menos preparados e dispostos a prosseguir a escolarização, devido à sua origem social/cultural. Depois dessa medida, mesmo que o ensino industrial recrutasse os piores dentre os concluintes do ensino primário urbano, seu potencial de aprendizagem seria, muito provavelmente, superior ao dos "desvalidos" da situação anterior. Isso só foi possível, no entanto, após o crescimento da rede de escolas primárias mantidas, principalmente, pelos estados e municípios.

Ao contrário das modalidades de recrutamento das escolas de aprendizes artífices, de forte conteúdo ideológico ligado ao assistencialismo, as novas escolas industriais previam a realização de "exames vestibulares" e de testes de aptidão física e mental. A pobreza deixava de ser, então, critério suficiente para o aprendizado de um ofício, embora não perdesse seu caráter implicitamente necessário. A aptidão para o ofício, incluindo aí as atitudes consideradas adequadas para o desempenho de uma atividade industrial qualquer, passava a ser um fato prioritário na admissão.

O 1º ciclo do ensino industrial compreendia os cursos industrial básico, de mestria, artesanal e de aprendizagem. Os cursos de mestria e de artesanato tiveram duração efêmera ou nunca funcionaram (não se encontram registros deles nas estatísticas do Ministério da Educação). O curso industrial básico era desenvolvido nas escolas industriais em regime seriado, durante quatro anos letivos. Cada aluno praticava um ofício nas oficinas e nos laboratórios da escola, e assistia a aulas de cultura geral, cujo conteúdo era uma parte reduzida do previsto para o 1º ciclo do ensino secundário.

A aprendizagem estava prevista na "lei" orgânica de modo a integrar o conjunto mais abrangente do ensino industrial, como uma das suas modalidades, no 1º ciclo, mas de um modo tal que fosse regulada por legislação específica. Estipulava-se que os empregadores seriam obrigados a manter menores, em regime de aprendizagem, naquelas atividades cujo exercício exigisse formação profissional, a serem definidas pelo governo, em portarias do Ministério do Trabalho. A aprendizagem deveria ser conduzida metodicamente, em escolas mantidas pela indústria junto às oficinas ou nas suas proximidades, durante o horário de trabalho e sem prejuízo do salário dos menores. Sua duração seria de um a quatro anos, abrangendo disciplinas de cultura geral e cultura técnica. Previa, também, de modo implícito, a subordinação dessas escolas de aprendizagem a "serviços", numa alusão ao recém-criado Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial.11 11 A “lei” orgânica previa que os cursos de aprendizagem pudessem ser também desenvolvidos nas escolas industriais e técnicas, mediante convênio com empresas ou com “serviços”. 12 A “lei” orgânica, em sua formulação original, previa a possibilidade de articulação entre o curso de aprendizagem e o restante do sistema de ensino. O aprendiz que terminasse o curso e desejasse continuar seus estudos, mesmo que fosse no âmbito do ensino industrial, deveria candidatar-se à admissão na primeira série do curso básico. A posterior permissão de ingresso deles na 2ª série foi saudada pelos educadores da época como medida de grande alcance em termos de democratização do ensino, pois “abriria as portas da universidade aos simples aprendizes” (Fonseca, 1961, 1o vol., p. 292). Esse entusiasmo foi ainda maior quando, em 1950, uma portaria ministerial facultou aos concluintes de cursos de aprendizagem do SENAI, com três anos de duração, a matrícula nos cursos técnicos industriais do 2º ciclo. Todavia, essa portaria foi revogada sem ter produzido os efeitos esperados.

A "lei" orgânica distinguia, com nitidez, as escolas de aprendizagem das escolas industriais. Estas eram destinadas aos menores que não trabalhavam, enquanto as outras, pela própria definição de aprendizagem, aos que estavam empregados. Mas havia outra distinção importante. O curso de aprendizagem era entendido como uma parte da formação profissional pretendida pelo curso básico industrial. É o que diz o trecho seguinte: "Os cursos industriais [básicos] são destinados ao ensino, de modo completo, de um ofício, cujo exercício requeira a mais longa formação profissional" ("lei" orgânica do ensino industrial, art. 9º, parágrafo 1º). Em contrapartida, "os cursos de aprendizagem são destinados a ensinar, metodicamente, aos aprendizes dos estabelecimentos industriais, em período variável, e sob regime de horário reduzido, o seu ofício" (idem, art. 9º, parágrafo 4º).

Mais tarde, foi introduzida uma modificação na "lei" orgânica que reforçou essa concepção da aprendizagem como formação parcial. Permitia-se aos concluintes dos cursos de aprendizagem, de dois anos de duração, no mínimo, a matrícula na segunda série do curso básico industrial (do ofício correspondente), mediante a prestação de exames vestibulares.

Essa subordinação não se deveu apenas a uma concepção pedagógica muito particular a respeito da superioridade do ensino de ofícios em escola, onde o "ambiente fabril" era mais uma alegoria do que uma realidade viva. Ela expressou um conflito entre a pretensão do Ministério da Educação de controlar todo o ensino industrial, inclusive a aprendizagem, e a orientação da Presidência da República, partidária do seu controle pelas entidades patronais via Ministério do Trabalho. O fato de os projetos da "lei" orgânica e do SENAI terem sido levados pelo ministro Gustavo Capanema ao presidente no mesmo dia (5 de janeiro) e assinados em dias diferentes - o decreto-lei de criação do SENAI (22 de janeiro) antes da "lei" orgânica (30 de janeiro) - é resultado do forte e direto protagonismo de Vargas na solução desse conflito.

Hegemonia, ameaças e mudanças

Concebido no contexto da "lei" orgânica do ensino industrial, de 1942, como um apêndice, depois de duas décadas o sistema SENAI passou a ocupar uma posição hegemônica no que se refere à formação de operários qualificados. Demonstrando, pelo seu próprio funcionamento, a inviabilidade das escolas industriais (1º ciclo), produziu duas conseqüências da maior importância. Primeiro, reforçou a orientação dos educadores liberais no sentido de transformar o currículo da escola industrial, tendendo a fundi-la com a escola secundária. Segundo, passou a ocupar exatamente o mesmo lugar previsto pela "lei" orgânica para a escola industrial com as vantagens operativas da flexibilidade curricular e da autonomia diante da pesada máquina burocrática do Ministério da Educação.

A rede SENAI cresceu a um ritmo espetacular, modificando-se em função das ondas de mudanças do setor produtivo. Nos anos 40, iniciou suas atividades priorizando a aprendizagem industrial, para qualificar o operariado para a indústria nascente; nos anos 50, foi a vez da modalidade treinamento, correlativa à industrialização segundo os moldes da grande indústria; nos anos 90, a ênfase recaiu na polivalência. Nos anos 70, a ênfase na habilitação de técnicos de nível médio resultou mais da política educacional de profissionalização universal e compulsória no ensino de 2º. grau do que de mudanças efetivas do setor produtivo. Mas o ambíguo estatuto do SENAI, uma instituição privada criada por ato estatal, propiciou interpretações que ameaçaram seu próprio formato institucional. Vamos a elas.

A lei 2.613/55 criou o Serviço Social Rural, sob regime de autarquia que, como tal, era obrigada a ter seus balanços aprovados pelo Tribunal de Contas da União. Durante a tramitação no Congresso, essa dependência do SSR ao TCU foi estendida ao SESI, ao SESC, ao SENAI e ao SENAC.

Essas instituições recorreram da decisão, mas, desde então, interpretações conflitantes reconheceram ora o caráter público daquelas entidades (e sua dependência ao TCU), ora seu caráter privado (e independência desse tribunal), até que a reforma administrativa baixada pelo decreto-lei 200/67 resolveu essa pendência, ao menos provisoriamente, ao determinar que:

As entidades e organizações em geral, dotadas de personalidade jurídica de direito privado, que recebam contribuições parafiscais e prestam serviços de interesse público e social, estão sujeitas à fiscalização do Estado nos termos e condições estabelecidas na legislação pertinente a cada uma.

Passando do plano do Estado para o da sociedade, pode-se constatar o surgimento de novas ameaça ao estatuto privado do SENAI.

O mesmo processo que propiciou a hegemonia dessa instituição no ensino profissional, no âmbito do setor industrial, criou condições para que o exclusivo controle patronal fosse desafiado, o que seus dirigentes entenderam como sendo uma ameaça a sua sobrevivência.

A automatização e a polivalência - pelo menos o anúncio delas como sendo inevitáveis e generalizadas-, bem como outras formas de reestruturação industrial, levaram à previsão de que o número de trabalhadores empregados na indústria seria drasticamente reduzido, mesmo sem "desindustrialização" e até com crescimento da produção. Ainda que seus salários médios tendessem a crescer, previu-se que a receita do SENAI, vinculada à folha de salários, seria declinante, à medida que esse processo se desenvolvesse. A qualificação profissional dos trabalhadores requeridos pela indústria (assim como sua escolarização geral prévia) seria sensivelmente superior à do operário típico do regime fordista/taylorista, o que reduziria em muito a importância da aprendizagem industrial, razão de ser da contribuição compulsória. Não obstante, a instituição gasta com a aprendizagem a maior parte dos recursos, enquanto o número de alunos é diminuto nesse tipo de curso.

Os argumentos em prol do abandono da aprendizagem, reiterados pelos dirigentes e técnicos do SENAI, aludem ao fato de que as empresas demandam à instituição justamente o treinamento, não a aprendizagem (um pouco mais a qualificação). O paradoxo dessa argumentação reside no fato de que a polivalência é celebrada no discurso a respeito da mudança no requerimento das empresas em matéria de força de trabalho. Ora, os rápidos cursos de treinamento (algumas dezenas de horas), altamente especificados, não poderiam jamais formar para o trabalho polivalente.

Ademais, tem sido sugerido que o requisito de educação geral para os cursos de aprendizagem passe do fundamental para o médio, embora isso pareça resultar mais do diagnóstico a respeito da deterioração da qualidade do ensino público do que propriamente da valorização da elevação do nível dos conhecimentos. Em decorrência, há quem pense que, neste caso, já se trataria da habilitação profissional, não da aprendizagem.

A terceirização, a terciarização e a informalização estariam levando a mudanças na organização das empresas que afetariam igualmente a receita da instituição.

A terceirização consiste na transferência da produção de certos componentes a fornecedores ou, então, na transferência de serviços de apoio para empresas contratadas. Quando se trata de componentes ou serviços oferecidos por empresas não-industriais (ex: limpeza ou processamento de dados), a contribuição compulsória relativa à força de trabalho nelas empregada passa do SENAI para o SENAC.13 13 Ou nem para o SENAC, já que as empresas subcontratadas têm se caracterizado pelo emprego de trabalhadores temporários ou disfarçados de trabalhadores por conta própria - é a informalização, que será comentada adiante. Já a terciarização significa a redução absoluta ou relativa da produção industrial, simultaneamente ao crescimento da produção no setor serviços, como no exemplo mais visível da informática ou das telecomunicações.14 14 A rigor, a terciarização se dá, também, quando o crescimento do setor serviços é proporcionalmente maior do que o das atividades primárias e/ou secundárias. Também aqui a receita que poderia crescer é a do SENAC, em detrimento de seu congênere industrial. Não bastasse isso, tem havido um processo de fragmentação do sistema SENAI, com a montagem de "serviços" próprios para o setor de transporte rodoviário - o SENAT -, e já há projetos para entidades semelhantes para as telecomunicações e para a construção civil. A informalização é outro processo que afeta a contribuição compulsória, já que apenas a folha de pagamento com os trabalhadores regularizados é que serve de base para seu cálculo. À medida que as empresas se recusam a "registrar" seus empregados, elas deixam de recolher a contribuição devida ao SENAI.

A abertura da economia à concorrência internacional, mediante a drástica redução das taxas alfandegárias, levou os empresários a reivindicar do governo a redução do chamado "custo Brasil", isto é, do custo de produção no Brasil, especialmente dos fretes, dos juros e da força de trabalho. Entre os fatores de custo da força de trabalho cuja redução tem sido reivindicada estão as contribuições das empresas para o "Sistema S": SENAI, SESI, SENAC, SESC, SENAR, SENAT, SEST e SEBRAE. O argumento corrente é que se as contribuições respectivas deixarem de ser pagas, o custo da força de trabalho ficaria menor, e das duas uma: aumentaria diretamente o emprego ou reduzir-se-ia o custo da produção que levaria, indiretamente, a um aumento da produção e do emprego. De um jeito ou de outro, a redução do "custo Brasil" implicaria a extinção ou redução da contribuição compulsória para o SENAI.

Mas o entusiasmo do empresariado para com a extinção ou a redução da contribuição compulsória destinada ao SENAI e ao SESI, que soma 2,5% da folha de pagamento (um pouco mais para as empresas com um contingente superior a 500 empregados), não é compartilhado pelas entidades que se propõem a representá-los. Isto porque os recursos daqueles serviços são vultosos, importantes para essas entidades e os ocupantes de seus cargos, cuja projeção político-eleitoral é significativa. Afinal, o SENAI e o SESI, juntos, arrecadaram quase R$ 2 bilhões, em todo o país, em 1995. Isso explica a oposição da confederação e das federações da indústria ao projeto de mudança da legislação trabalhista de que resultou a lei 9.601, de 21 de janeiro de 1998. Criou-se a figura do "emprego temporário", correspondente a uma forte redução dos encargos salariais. As contribuições devidas ao SENAI e ao SESI foram reduzidas em 50%,15 15 A proposta original do governo era de reduzir de 90% a contribuição ao "Sistema S", mudada para 50% por causa das pressões em contrário. no caso dos trabalhadores empregados nesse regime. Os argumentos das entidades patronais, na oposição ao projeto, no que diz respeito à redução dessas contribuições, apelaram para a importância da formação profissional para o desenvolvimento industrial.

Durante a Assembléia Nacional Constituinte 1987/88, embora houvesse mais de uma sugestão no sentido de que as contribuições compulsórias existentes, como a do SENAI e a do Salário Educação, por exemplo, passassem a incidir sobre o faturamento das empresas, a reação do "Sistema S" e de certos órgãos da imprensa foi imediata e contrária. Para a manutenção do mecanismo existente de financiamento dessas entidades foi desencadeada uma campanha de âmbito nacional que recolheu 1,6 milhão de assinaturas, a mais apoiada, numericamente, de todo o processo constituinte. Por isso e por outros tipos de pressão, o mecanismo de financiamento então existente prevaleceu.

Do lado dos trabalhadores, surgiram propostas que defendiam a gestão tripartite do SENAI e entidades congêneres. Esta seria outra ameaça à instituição.

Depois que a Constituição de 1988 assegurou o status quo do SENAI e seus congêneres como órgãos privados, nova ameaça surgiu em artigo do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, oriundo da Câmara dos Deputados.

Pelo substitutivo Jorge Hage, a gestão patronal do SENAI não se alteraria, mas a instituição ficaria afeta a um conselho, no qual a participação estatal seria majoritária, e os empresários igualavam-se aos trabalhadores em número de representantes. Além do mais, o projeto inovava com a determinação de que os governos estaduais deveriam criar centros públicos de formação técnico-profissional, financiados com uma contribuição compulsória das empresas, à semelhança da que beneficia o SENAI, correspondente a 0,5% da folha de pagamento. Seria o setor público entrando diretamente na formação profissional, pela via dos sistemas estaduais de ensino. Essa idéia foi assumida pela Central Única dos Trabalhadores, aliás, participante do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública na LDB. Na resolução relativa à formação profissional, aprovada no 5º Congresso Nacional da entidade, realizado em São Paulo, em maio de 1994, além de reivindicar a criação de centros públicos de ensino profissional, à imagem do projeto de LDB da Câmara, a entidade aprovou a seguinte posição:

Defender a formulação pública das políticas de formação profissional, com amplo espaço para a participação dos trabalhadores na definição dos rumos dessa formação e, em especial durante a fase de formação profissional, orientar os treinadores no tocante à legislação sobre segurança e medicina no trabalho. Portanto, a CUT deve reivindicar a sua participação, nos termos da resolução da OIT que prevê a gestão tripartite (trabalhadores, empresários e Estado), na gestão de fundos públicos e nas agências e programas de formação profissional de alcance municipal, estadual, nacional e internacional. [...] Reivindicar a participação dos trabalhadores e do poder público na elaboração e avaliação de todos os programas e políticas de formação profissional, bem como na fiscalização da aplicação de todo e qualquer fundo de natureza pública e dos desenvolvidos nos locais de trabalho. "Temos hoje a situação insustentável em que 1% da folha de pagamentos das empresas é administrado por instituições como o SENAI. Esses recursos, que são patrimônio público, assim deveriam ser administrados" (resumo do texto aprovado no 1º Congresso dos Metalúrgicos do ABC). Nesse sentido, a CUT deve articular no Congresso Nacional uma emenda constitucional para esse fim, organizando uma ampla mobilização para sua aprovação. [...] Reivindicar que todos os recursos compulsórios ou na forma de incentivos destinados à formação e/ou requalificação profissional sejam considerados e administrados como fundos públicos, com a participação dos trabalhadores. Constituição de conselhos tripartites (trabalhadores, governo e empresários) para a gestão de agências de formação profissional (SENAI, SENAC, SESI, SENAR), ou de outras iniciativas complementares ao ensino regular de âmbito municipal, estadual, nacional e regional, visando rigoroso controle fiscal e formalização de processos sistemáticos de avaliação dos serviços prestados.

Ou seja: além de reivindicar gerir o SENAI participando (em igualdade de representação com o governo e o empresariado) dos conselhos da instituição, a CUT pretende que os recursos oriundos da contribuição compulsória possam ser direcionados para outras entidades.

Diante das ameaças que se delineiam, provindas de dentro e de fora da instituição, a direção do SENAI tem desenvolvido estratégias de enfrentamento, que, no entanto, não integram um plano coerente. Ao contrário, contêm contradições flagrantes, como veremos em seguida. A estrutura federativa do SENAI, que possibilita diversos arranjos de poder, propicia a diversidade de orientação num mesmo nível da instituição, como, também, e principalmente, entre seus diversos níveis.

A ação mais ambiciosa desenvolvida enquanto estratégia de enfrentamento das ameaças originou-se da própria direção nacional do SENAI, articuladamente com a Confederação Nacional da Indústria.

No sentido de assegurar a identificação das diversas instâncias do SENAI com os objetivos empresariais, os diretores dos departamentos regionais foram substituídos recentemente, priorizando-se, para ocupar os cargos, empresários no lugar de antigos funcionários da instituição. Com isso, procura-se garantir que a direção da instituição mantenha o caráter político e não burocrático, no sentido que Max Weber dá a esses termos. É o fim da administração do SENAI pelos quadros formados segundo as diretrizes da dupla Faria Góes - Roberto Mange.

No mesmo sentido, a confederação e as federações de indústria estão promovendo a integração financeira e administrativa com os órgãos a elas vinculados, de modo que será cada vez mais difícil separar as atividades de umas e outras, no caso em que houver extinção da contribuição compulsória de alguma delas.16 16 No entanto, tem havido uma contestação dessa prática pelos tribunais de contas da União, a quem o SENAI, como as demais entidades do "Sistema S", tem de prestar contas, efeito da ambigüidade original entre as esferas públicas e privadas. Interpretando a natureza do SENAI como instituição pública, alguns juízes têm multado diretores regionais por não promoverem licitações para a contratação de serviços. Estes, por sua vez, recusam-se a adotar essa prática, alegando seu caráter privado. Ademais, as fusões entre as entidades, inclusive os prédios e as administrações, assim como o regime de "caixa única", têm sido apontadas pelos juízes como práticas ilegais. No caso do SENAI, a orientação geral é a transferência de toda a atividade de educação geral, em todos os cursos, para o SESI, priorizando-os sobre os da escola pública.

Tudo somado, é possível afirmar que está em marcha um processo de mudança com várias velocidades, orientado pelo mercado, ou melhor, pela idéia hegemônica do que seja o mercado. Mas, o efeito inercial do aparato da confederação e das federações, assim como do próprio SENAI, tendente a manter o status quo, não é nada desprezível. A trajetória efetiva vai depender, portanto, da resultante de duas forças principais, ambas internas à instituição: a defesa da contribuição compulsória, reduzindo-se ao mínimo a aprendizagem, mesmo que isso deixe a instituição exposta à pressão das centrais sindicais, que pretendem obter a parceria do Estado para exercerem o controle social sobre o SENAI; e o abandono da contribuição compulsória, partindo-se para a busca de recursos no mercado e nas parcerias com órgãos públicos em projetos específicos, eliminando a aprendizagem dos cursos oferecidos, e enfatizando a assistência técnica e as consultorias.

De todo modo, parece que a estratégia que tende a prevalecer no enfrentamento de tal ameaça é o afastamento da área de ambigüidade pública/privada, marca da origem corporativa do SENAI. Assim, a entidade definiu como seu objetivo estratégico a busca da auto-sustentação, isto é, a possibilidade de operar no campo da educação profissional sem contar com a contribuição compulsória. Em conseqüência, a instituição se dispensaria de oferecer a aprendizagem industrial, o curso que absorve a maior parte dos recursos, para se dedicar aos que o mercado parece demandar com maior intensidade, e para os quais estaria disposto a pagar. Igualmente com a assistência técnica e as consultorias, áreas novas e promissoras.

Com essa reorientação estratégica, o SENAI parece estar fechando o flanco aberto à ameaça das centrais sindicais (inclusive dos sindicatos a que estão filiados seus próprios funcionários) de virem a participar da gestão da instituição, trazendo consigo maior participação do Estado nos conselhos. Com efeito, se a contribuição compulsória deixasse de ser cobrada, não haveria mais fundamento para que os trabalhadores, nem o Estado, participassem dos conselhos do SENAI, em igualdade de condições com os empresários. A ambigüidade estaria eliminada. De uma instituição de estatuto ambíguo, o SENAI teria abandonado a base estatal de sustentação, num processo de autoprivatização.

Mas, nesse movimento de translação sociopolítico-econômica, o SENAI assumiria uma posição de competidor num mercado onde já não é a única opção de formação profissional, onde a hegemonia que deteve passou a ser questionada. Para tanto, a instituição se convenceu de que deve competir buscando a "liderança de custos", vantagem que seus concorrentes não poderiam alcançar.

Quem são esses concorrentes? A resposta pode ser encontrada no âmbito da política do Ministério da Educação, especialmente a expressa no decreto 2.208/97 e seus desdobramentos.

No que diz respeito ao seu "cardápio de ofertas", as escolas técnicas federais foram instadas a ampliar em muito suas atividades. Os longos cursos técnicos de três a quatro anos de duração, juntando educação geral e educação profissional, seriam substituídos por cursos técnicos pós-secundários, também chamados de especiais, conforme a nomenclatura do SENAI. Concluintes do ensino médio, de caráter geral, fariam apenas a parte profissional de cursos técnicos, de preferência em cursos noturnos. Outra modalidade prevista é a de egressos do ensino fundamental cursando os módulos exclusivamente profissionais de cada especialidade, enquanto fariam o ensino médio paralelamente, na própria instituição ou não.

Outra grande novidade para as escolas técnicas, ao menos as da rede federal, é a ênfase no que a Secretaria de Educação Média e Tecnológica chama de educação não-formal: formação profissional de curta duração, qualificação profissional, retreinamento de trabalhadores (inclusive reconversão), capacitação de jovens e adultos para o trabalho. A tudo isso se soma a orientação para que as escolas atuem na prestação de serviços a empresas e a agências governamentais, procedimento que se espera gere significativa receita extra-orçamentária. Todos os cursos seriam montados na forma de módulos, de modo que possa haver flexibilidade no sistema: entradas e saídas diversas, certificação parcial e cumulativa.

Ainda que essas medidas não tenham até o momento resultado em mudança efetiva no quadro geral, já é possível perceber seu sentido. É o que chamei de senaização das escolas técnicas industriais e dos CEFETs (Cunha, 1998). Mas, considerando que a rede federal de ensino técnico-industrial foi levada a atuar nos cursos básicos do ensino profissional, esse termo deveria ser revisto. Com efeito, as escolas técnicas receberam o encargo de oferecer cursos de qualificação profissional, cursos rápidos às empresas e a destinatários que se apresentem voluntariamente, na ampliação do leque de seus cursos, além de partir para a geração de receitas próprias. No que diz respeito aos cursos técnicos, eles deixarão de ter um caráter mais generalista (ex: química), em proveito da maior especialização (como no SENAI; ex: alimentos e bebidas, cerâmica, plásticos...).

As escolas dessa rede podem estar no rumo de um processo de privatização, por virem a pautar-se pelas demandas imediatas das empresas e pela busca de recursos financeiros no mercado, seja pela venda de cursos a quem esteja disposto a pagar por eles (destinatários individuais e institucionais) seja pela apresentação de projetos às agências de fomento da educação profissional, em igualdade de condições com outros "competidores", como, por exemplo, e principalmente, o SENAI.

Como elemento impulsionador das mudanças dessas instituições, os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador desempenharão um papel estratégico. Mesmo constituindo um forte apelo para o crescimento das ONGs que atuam na educação profissional, os vultosos recursos do FAT poderão viabilizar, ao mesmo tempo, a autoprivatização do SENAI e a senaização das escolas técnicas federais e dos CEFETs.

Estaremos assistindo à translação institucional do SENAI, da ambigüidade público/privada para a nitidez da esfera privada, paralelamente à translação da rede federal de escolas técnicas, desde a esfera pública propriamente dita para um espaço de ambigüidade? Para esta rede, pelo menos em termos de busca de recursos no mercado e dos padrões de gestão, isso parece já estar se configurando.

Se bem-sucedida essa complexa política educacional, estará cumprido o vaticínio de demolição da herança varguista na formação da força de trabalho, em proveito de um modelo em que o Estado dedica-se à formulação de políticas, à indução financeira e, talvez, à avaliação (pelo que se pode deduzir de outras iniciativas no campo educacional), mas minimiza a execução direta. No limite, o que já foi um jogo de palavras poderá se transformar em expressão adequada: o ministério não ministra educação (a profissional, no caso), abrindo espaço para o crescimento do controle privado nesse campo.

LUIZ ANTÔNIO CUNHA é sociólogo, doutor em Educação pela PUC-SP, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de livros sobre política educacional, história da educação e sociologia da educação, com destaque para Educação e Desenvolvimento Social no Brasil (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975) e Educação, Estado e Democracia no Brasil (São Paulo: Cortez, 1991). E-mail: lacunha@iig.com.br

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  • 12
  • 1
    Embora seu currículo, seus destinatários e os postos para os quais formam sejam nitidamente de trabalho intelectual, tanto o pensamento ingênuo quando o sofisticado situam as escolas técnicas no âmbito do trabalho manual.
  • 2
    O tema deste texto leva a deixar de lado as iniciativas joaninas na área agrícola. Pautado pela concepção mercantilista, que enfatizava a agricultura e o comércio "internacional" como fonte da riqueza das nações, o governo do príncipe João criou o Jardim Botânico do Rio de Janeiro - uma verdadeira estação agrícola experimental - e seu congênere da Bahia, assim como escolas de agricultura em diversas províncias. Embora minoritária, a iniciativa de educação manufatureira do Colégio das Fábricas prenunciava a orientação que viria a se mostrar predominante, pelo menos na esfera ideológica, a partir das primeiras décadas do século XX: o industrialismo voltado para o mercado interno.
  • 3
    Algumas escolas foram instaladas nos prédios onde funcionavam estabelecimentos mantidos pelos governos estaduais (cedidos por estes), herdeiros, por sua vez, das casas de educandos artífices do período imperial.
  • 4
    Um decreto federal de 1911 incorporou ao sistema das escolas de aprendizes artífices o Instituto Parobé.
  • 5
    Há informações que dão conta de que essa preferência por sua cidade natal não se deveu a uma referência nepotista de Nilo Peçanha, mas às vicissitudes da pequena política fluminense, pois o presidente do estado do Rio de Janeiro Alfredo Backer não se dispôs a oferecer ao governo federal facilidades físicas para a instalação da escola na capital do estado, diante do que a Câmara Municipal de Campos adiantou-se em sediar o estabelecimento de ensino. Aliás, o presidente fluminense, sucessor de Nilo Peçanha, extinguiu duas das escolas profissionais criadas por ele, alegando falta de recursos e inadequação aos objetivos para os quais tinham sido criadas.
  • 6
    Posteriormente, a obrigatoriedade desses cursos se estendeu a todos os alunos: em 1911, o de desenho, e em 1918, o curso primário. Eles passaram para o período diurno, ficando o período noturno reservado para os cursos de aperfeiçoamento (a partir de 1918), destinados aos operários que já se encontrassem no mercado de trabalho.
  • 7
    Eram elas: a Estrada de Ferro Sorocabana, a São Paulo Railway, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro e a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro.
  • 8
    As séries metódicas foram desenvolvidas por Victor Della Vos, diretor da Escola Técnica Imperial de Moscou, a partir de 1875, para enfrentar a necessidade de formação de grande quantidade de trabalhadores qualificados para apoiar a expansão das ferrovias na Rússia. As séries metódicas logo substituíram os padrões artesanais de aprendizagem de ofícios, na Rússia e em outros países da Europa.
  • 9
    As séries metódicas, assim como a colaboração Estado-empresa e escola-oficina, foram utilizadas, mais tarde, em todo o país pelo SENAI. Quando da criação desta instituição, em 1942, o CFESP foi a ele incorporado, constituindo a Divisão de Transportes e o núcleo de todo o Departamento Regional de São Paulo. O criador do Centro, Roberto Mange, foi o primeiro diretor do DR/SP do SENAI. Italo Bologna, também diretor do Centro, dirigiu o DR/SP por muitos anos, como, também, o Departamento Nacional. A influência do pessoal do CFESP incidiu, mais tarde, também, sobre o sistema de ensino industrial, no âmbito do próprio Ministério da Educação.
  • 10
    Participantes dos acontecimentos entrevistados por mim forneceram a base para essa interpretação, contrária às versões oficialmente divulgadas.
  • 11
    A “lei” orgânica previa que os cursos de aprendizagem pudessem ser também desenvolvidos nas escolas industriais e técnicas, mediante convênio com empresas ou com “serviços”.
    12 A “lei” orgânica, em sua formulação original, previa a possibilidade de articulação entre o curso de aprendizagem e o restante do sistema de ensino. O aprendiz que terminasse o curso e desejasse continuar seus estudos, mesmo que fosse no âmbito do ensino industrial, deveria candidatar-se à admissão na primeira série do curso básico. A posterior permissão de ingresso deles na 2ª série foi saudada pelos educadores da época como medida de grande alcance em termos de democratização do ensino, pois “abriria as portas da universidade aos simples aprendizes” (Fonseca, 1961, 1o vol., p. 292). Esse entusiasmo foi ainda maior quando, em 1950, uma portaria ministerial facultou aos concluintes de cursos de aprendizagem do SENAI, com três anos de duração, a matrícula nos cursos técnicos industriais do 2º ciclo. Todavia, essa portaria foi revogada sem ter produzido os efeitos esperados.
  • 13
    Ou nem para o SENAC, já que as empresas subcontratadas têm se caracterizado pelo emprego de trabalhadores temporários ou disfarçados de trabalhadores por conta própria - é a informalização, que será comentada adiante.
  • 14
    A rigor, a terciarização se dá, também, quando o crescimento do setor serviços é proporcionalmente maior do que o das atividades primárias e/ou secundárias.
  • 15
    A proposta original do governo era de reduzir de 90% a contribuição ao "Sistema S", mudada para 50% por causa das pressões em contrário.
  • 16
    No entanto, tem havido uma contestação dessa prática pelos tribunais de contas da União, a quem o SENAI, como as demais entidades do "Sistema S", tem de prestar contas, efeito da ambigüidade original entre as esferas públicas e privadas. Interpretando a natureza do SENAI como instituição pública, alguns juízes têm multado diretores regionais por não promoverem licitações para a contratação de serviços. Estes, por sua vez, recusam-se a adotar essa prática, alegando seu caráter privado. Ademais, as fusões entre as entidades, inclusive os prédios e as administrações, assim como o regime de "caixa única", têm sido apontadas pelos juízes como práticas ilegais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2000
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