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Múltiplos sentidos da inclusão da pessoa com deficiência intelectual em processo de envelhecimento: narrativas familiares1 1 Apoio: Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó)/ Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Processo nº 302973/2022-2.

Múltiples sentidos sobre la inclusión de personas con discapacidad intelectual en el proceso de envejecimiento: narrativas familiares

RESUMO

Pessoas com deficiência intelectual estão vivendo mais e, em alguns casos, envelhecendo com os seus pais. O estudo objetivou analisar como as trajetórias de inserção social dos filhos, narradas pelos pais, contribuem para a defesa dos processos de inclusão em seus múltiplos sentidos. Materialidades empíricas foram geradas por meio de entrevistas narrativas com mães e um pai de pessoas com deficiência intelectual com mais de 53 anos, e a analítica foi inspirada na análise do discurso em Foucault. O estudo demonstra que cada momento histórico articula distintas noções de verdade às formas como pessoas com deficiência intelectual foram tratadas, desde a exclusão da escola, do trabalho, da vida afetiva e, mais recentemente, o movimento pela inclusão. A fragilidade da maioria dos pais entrevistados, em forma de saúde, de proteção, de segurança, aponta para a importância de políticas públicas de apoio a essa população, para que estes sujeitos possam viver e envelhecer com maior dignidade.

Palavras-chave:
Educação Especial; Deficiência Intelectual; Envelhecimento; Famílias; Inclusão

RESUMEN

Las personas con discapacidad intelectual viven más tiempo y, en algunos casos, envejecen con sus padres. El estudio tuvo como objetivo analizar cómo las trayectorias de inserción social de los niños, narradas por los padres, contribuyen para la defensa de los procesos de inclusión, en sus múltiples sentidos. Se generaron materialidades empíricas a través de entrevistas narrativas a madres y padres de personas con discapacidad intelectual mayores de 53 años, y el análisis se inspiró en el análisis del discurso de Foucault. El estudio apunta que cada momento histórico articula diferentes nociones de verdad a las formas en que las personas con discapacidad intelectual fueron tratadas, desde la exclusión escolar, laboral, afectiva y, más recientemente, el movimiento por la inclusión. La fragilidad de la mayoría de los padres entrevistados, en términos de salud, protección, seguridad, apunta para la importancia de políticas públicas de apoyo a esa población, para que estos sujetos puedan vivir y envejecer con mayor dignidad.

Palabras claves:
Educación Especial; Discapacidad Intelectual; Envejecimiento; Familias Inclusión

ABSTRACT

People with intellectual disabilities are living longer and, in some cases, aging with their parents. The study aimed to analyze how these people's trajectories of social insertion, narrated by their parents, contribute to the defense of inclusion processes in their multiple senses. Empirical materialities were generated through narrative interviews with mothers and a father of individuals with intellectual disabilities over 53 years of age, and the analysis was inspired by Foucault's discourse analysis. The study points out that each historical moment articulates different notions of truth to the ways in which people with intellectual disabilities were treated, from exclusion from school, work, affective life and, more recently, the movement for inclusion. The fragility of most of the parents interviewed, in terms of health, protection and security, points to the importance of public policies to support this population, so that these subjects can live and age with greater dignity.

Keywords:
Special Education; Intellectual Disability; Aging; Families; Inclusion

INTRODUÇÃO

A história registra diferentes formas de perceber a pessoa com deficiência, passando por misticismo, abandono, extermínio, segregação, exclusão, integração e, atualmente, ganha espaço o processo de inclusão. Todavia, esse movimento não acontece de forma linear, mas com descontinuidades. Durante séculos os "diferentes" ficaram à margem dos grupos sociais, mas à medida que o direito humano à igualdade e à cidadania se tornou motivo de inquietação, a percepção em relação à pessoa com deficiência também começou a se transformar.

Dreyfus e Rabinow (2010DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Tradução: Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.), amparados em Foucault, relatam processos de exclusão a exemplo do confinamento dos leprosos durante a Idade Média, os quais eram tidos como perigosos e perniciosos, mantidos isolados até o final desse período histórico. A partir disso, os leprosários foram esvaziados e seus ocupantes substituídos por um grupo maior de diversos: os loucos, os imbecis, os tolos, os bêbados, os devassos, os criminosos e os apaixonados. Uma história de confinamento e exclusão e uma nova forma de discurso e de institucionalização emergiram, pois nessa época o internamento deveria conter uma justificativa moral e social.

Os autores afirmam que, após a Revolução Francesa, o fato de o louco e o criminoso serem depositados no mesmo local começou a gerar movimentos de indignação. O internamento tornou-se um grande erro econômico a ser abolido ou substituído por algo mais científico, que separasse as categorias. Resquícios dessa história perduraram por muito tempo, ganhando aos poucos novas configurações, mas olhares clínicos e assistenciais marcaram e restringiram a vida de pessoas com deficiência, efeitos que perduram ainda hoje. Até pouco tempo atrás, diagnósticos clínicos apresentavam a estimativa de vida da pessoa com deficiência como breve. Esses diagnósticos frequentemente se consolidavam, pois as trajetórias de exclusão em diferentes esferas da vida, a exemplo de cuidados com saúde e com o bem-estar, eram fatores que contribuíam para abreviar as suas existências.

O envelhecimento da pessoa com deficiência intelectual é um fenômeno recente, segundo Ferreira (2012FERREIRA, Olívia Galvão Lucena; MACIEL, Silvana Carneiro; COSTA, Sônia Maria Gusmão; SILVA, Antonia Oliveira; PAREDES, Maria Adelaide Silva. Envelhecimento ativo e sua relação com a independência funcional. Texto & Contexto: Enfermagem, v. 21, n. 3, p. 513-518, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tce/a/fMTQ8Hnb98YncD6cC7TTg9d/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 05 jul. 2022.
https://www.scielo.br/j/tce/a/fMTQ8Hnb98...
), dado que a expectativa de vida desse grupo era considerada menor que a da população em geral. Hoje nos deparamos com o envelhecimento de pessoas com deficiência intelectual, pois suas vidas estão se estendendo em consequência de diversos fatores, entre eles o avanço das ciências sociais e da saúde e a melhoria nas condições de vida da população mundial, embora ainda existam muitas pessoas vivendo em condições precárias. Assim como seus pais, as pessoas com deficiência intelectual estão vivendo vidas mais longas e, em alguns casos, os pais e os filhos estão envelhecendo lado a lado.

Esse fenômeno acontece não por conta de a deficiência ter se modificado ao longo dos anos, mas pela forma como percebemos, compreendemos e agimos diante dela, oportunizando a esses sujeitos vivências similares às de qualquer outra pessoa.

Este artigo propõe-se a demonstrar como, ao longo da história, diferentes formas de produzir a pessoa com deficiência foram naturalizadas, desde o extermínio e abandono, até, na contemporaneidade, a conquista de espaços em debates e o reconhecimento da diferença. Este texto resulta da dissertação de Mestrado em Educação da primeira autora, sob orientação da segunda. O estudo procurou responder ao problema de pesquisa assim constituído: como as trajetórias de escolarização e inserção social dos filhos adultos com deficiência intelectual em fase de envelhecimento, narradas pelos pais, contribuem para a defesa dos processos de inclusão em seus múltiplos sentidos? Do problema de pesquisa derivaram as seguintes perguntas de estudo: como transcorreu o processo histórico de escolarização e inserção social de pessoas com deficiência intelectual na educação brasileira? Que mudanças os pais percebem na forma de tratar as crianças com deficiência, comparando a infância do filho e hoje? Que fatores sociais/educacionais, ao longo da vida, influenciaram a constituição do sujeito com deficiência intelectual na perspectiva dos pais? Quais os maiores desafios dos pais com relação ao processo de envelhecimento dos filhos com deficiência intelectual?

O olhar para o envelhecimento da pessoa com deficiência intelectual, assim como as práticas quanto à sua educabilidade e inclusão social e escolar, remete-nos a pensar em uma história não linear ou evolutiva. Diferente disso, indica uma história de descontinuidades e verdades construídas, quando as famílias, influenciadas pelas verdades da medicina, acreditavam que seus filhos com deficiência teriam pouco tempo de vida.

Contudo, de acordo com Pieczkowski (2017PIECZKOWSKI, Tania Mara Zancanaro. Educação de adultos com deficiência intelectual: diálogos com Paulo Freire. In: DICKMANN, Ivo; SILVANI, Herman; KERBES, Mariane; DEITOS, Roberto; WINCKLER, Silvana (orgs.). Pedagogia da memória. Chapecó: Sinproeste, 2017. p. 73-86. Disponível em: https://sinproeste.org.br/wp-content/uploads/2017/05/LIVRO-Pedagogia-da-Memoria.pdf. Acesso em: 5 jan. 2022.
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), o fato de as pessoas com deficiência estarem vivendo mais não significa que estejam vivendo melhor em uma sociedade baseada em princípios neoliberais, pois, ao envelhecerem, são duplamente discriminadas: como pessoas com deficiência (frequentemente compreendidas como não produtivas) e como pessoas idosas. Ainda, referenciando a autora, olhar para adultos e idosos com deficiência intelectual é uma questão emergente.

Muitos adultos ou idosos com deficiência intelectual hoje não vivenciaram o processo de escolarização e inclusão social, uma vez que a Educação Especial se constituía separadamente. O direito à inclusão efetivou-se nas últimas quatro ou cinco décadas, ganhando ênfase no Brasil especialmente a partir da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília-DF: SEESP, 2008. Disponível em: https://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf. Acesso em: 3 abr. 2021.
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).

METODOLOGIA

A pesquisa foi realizada com mães e um pai de pessoas com deficiência intelectual com mais de 53 anos. Foi realizada uma pré-investigação em um Centro de Atendimento Educacional Especializado em Educação Especial (CAESP) do Oeste de Santa Catarina ao qual estão vinculadas as pessoas com deficiência intelectual participantes do estudo, que determinou que teríamos os sujeitos para a investigação em número considerado satisfatório. A intenção inicial era entrevistar pais de idosos com deficiência intelectual, ou seja, acima de 60 anos. Considerando-se que o número seria limitado, foi ampliada a faixa etária, iniciando a partir de 53 anos.

No CAESP selecionado, os atendimentos pedagógicos são oferecidos diariamente, nos turnos matutino e vespertino, de segunda a sexta-feira, desde 1970. Vale ressaltar que alguns dos sujeitos pesquisados frequentam esse centro desde a sua fundação, ou seja, há mais de 50 anos.

Para desenvolver a pesquisa, em um primeiro momento houve um diálogo com a gestão da instituição para verificar a possibilidade da seleção desses sujeitos e fornecimento dos contatos dos familiares. Na sequência, foi preciso estabelecer os critérios para a definição do locus e dos sujeitos da pesquisa, que são: a) ser pai/mãe de adulto/idoso com idade de 53 anos ou mais e com deficiência intelectual; b) o filho frequentar o CAESP selecionado; e c) aceitar participar do estudo.

Para confirmar a viabilidade da pesquisa, foram identificadas oito famílias que atendiam ao primeiro e segundo critérios. Posteriormente, foram realizados telefonemas aos familiares, relatando os objetivos e a importância da sua participação.

Foram feitos oito contatos com pais, dos quais sete realizaram a entrevista. Um pai que seria entrevistado, por motivo de grave problema de saúde, não pôde participar e faleceu durante o período da investigação.

Durante as entrevistas realizadas, as mães e pais foram convidados a participar (no caso de ambos estarem presentes), não havendo um direcionamento para nenhum dos genitores. No entanto, apenas em uma família ambos participaram, e nas demais a mãe foi entrevistada, pois em três famílias o pai já era falecido e noutras três os pais apresentavam sérios problemas de saúde, estando acamados; um deles até mesmo faleceu durante o período do estudo. As famílias cuja participação foi das mães fizeram questão de que a entrevista fosse realizada em suas residências, especialmente em três delas, dada a necessidade de também cuidar de seus cônjuges. Já a família em que ambos os cônjuges participaram optou por realizar a entrevista na instituição. Salientamos que o estudo aconteceu em um período muito singular na história da humanidade, ou seja, no período crítico da pandemia da COVID-19. Por isso, todos os cuidados sanitários definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) foram tomados, como uso de máscara individual e de álcool gel e distanciamento social.

Como estratégia para a coleta de materialidades empíricas, optamos por entrevistas narrativas. A entrevista narrativa, para Andrade (2014ANDRADE, Sandra dos Santos. A entrevista narrativa ressignificada nas pesquisas educacionais pós-estruturalistas. In: MEYER, Dagmar E.; PARAÍSO, Marlucy Alves (orgs.). Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014. p. 175-196., p. 173), "é uma possibilidade de pesquisa ressignificada no campo de pesquisa pós-estruturalista em uma perspectiva etnográfica". A autora afirma, ainda, que "as narrativas são constituídas a partir da conexão entre discursos que se articulam, que se sobrepõem, que se somam ou, ainda, que diferem ou contemporizam" (Andrade, 2014ANDRADE, Sandra dos Santos. A entrevista narrativa ressignificada nas pesquisas educacionais pós-estruturalistas. In: MEYER, Dagmar E.; PARAÍSO, Marlucy Alves (orgs.). Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014. p. 175-196., p. 179).

Foi adotado um roteiro para conduzir as entrevistas narrativas que foram gravadas mediante consentimento, transcritas na íntegra e posteriormente organizadas em agrupamentos temáticos, considerando os aspectos mais relevantes e recorrentes. A analítica aconteceu pela perspectiva da análise do discurso, inspirada em referenciais foucaultianos.

Segundo Fischer (2001FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa, Porto Alegre, n. 114, p. 197-223, nov. 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/SjLt63Wc6DKkZtYvZtzgg9t/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 4 jun. 2021.
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), seguindo essa perspectiva, o pesquisador precisa considerar o discurso como um todo, analisando o que se diz e como se diz. Ainda, afirma a autora, Foucault salienta que os pesquisadores precisam ter atitudes metodológicas a fim de não se pautarem em questões subjetivas, analisando apenas "[…] ‘o que está por trás’ dos textos e documentos, nem ‘o que se queria dizer’ com aquilo […]" (Fischer, 2001FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa, Porto Alegre, n. 114, p. 197-223, nov. 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/SjLt63Wc6DKkZtYvZtzgg9t/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 4 jun. 2021.
https://www.scielo.br/j/cp/a/SjLt63Wc6DK...
, p. 221). Desse modo, é necessário "[…] atentar para a ideia de que palavras e coisas dizem respeito a fatos e enunciados, que a rigor são ‘raros’, isto é, não são óbvios, estão para além das coisas dadas […]", sendo plausível atentar-se às condições em que aquele discurso está sendo reproduzido (Fischer, 2012FISCHER, Rosa Maria Bueno. Trabalhar com Foucault: a arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012., p. 100). Sales (2014SALES, Shirlei Rezende. Etnografia + análise do discurso: articulações metodológicas para pesquisar em Educação. In: MEYER, Dagmar E.; PARAÍSO, Marlucy Alves (orgs.). Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. 2. ed. Belo Horizonte: Mazza, 2014. p. 113-134.), ao referir-se à análise de discurso com base em Foucault, afirma que: "[…] trata-se de analisar por que aquilo é dito, daquela forma, em determinado tempo e contexto, interrogando sobre as condições existentes do discurso".

Considerando-se os cuidados éticos da pesquisa, a instituição e os colaboradores envolvidos tiveram suas identidades preservadas, sendo os/as entrevistados/as identificados/as pela palavra "Entrevistado", seguida do número 1 (um), 2 (dois), 3 (três) e assim sucessivamente, de acordo com a ordem das entrevistas realizadas. Levaram-se em conta os aspectos legais previstos na Resolução 466/2012, que orienta as pesquisas envolvendo seres humanos. Essa resolução define que aos colaboradores da pesquisa devem ser garantidos o sigilo e o anonimato. O material analítico será armazenado por um período de cinco anos após o encerramento dos estudos.

Também foram adotados o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos participantes das entrevistas (TCLE), o Termo de Consentimento para Uso de Voz (TCUV), bem como a Declaração de Ciência e Concordância da instituição envolvida. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), sob Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 48967121.3.0000.0116, e somente após sua aprovação as entrevistas foram realizadas.

As informações que seguem visam situar o leitor acerca do contexto das materialidades empíricas geradas. Trata-se de mães e um pai com idades entre 77 e 84 anos, com instrução, na sua maioria de primeiro grau incompleto; apenas um dos entrevistados tem formação superior. Fazemos referência à pessoa com deficiência intelectual como "filho" quando mencionada de forma genérica, porém, manteremos a fidelidade ao gênero nos excertos de fala. Optamos por generalizar, sem diferenciação de gênero em cada intervenção, para preservar o anonimato dos entrevistados e simplificar a escrita (Quadro 1).

Quadro 1
Participantes da pesquisa.

Nesse contexto das entrevistas, algumas mães e pai relataram o sentimento bom de serem ouvidos em suas inquietudes, anseios e expectativas em relação ao filho. Declararam a pressão vivida em uma sociedade que define padrões de normalidade e segrega ou exclui quem se afasta desse padrão, bem como a sobrecarga vivida pela condição de ser idoso e conviver com um filho adulto com deficiência, prestes a se tornar um idoso.

As entrevistas narrativas foram organizadas em Agrupamentos Temáticos, termo inspirado em Andrade (2014ANDRADE, Sandra dos Santos. A entrevista narrativa ressignificada nas pesquisas educacionais pós-estruturalistas. In: MEYER, Dagmar E.; PARAÍSO, Marlucy Alves (orgs.). Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014. p. 175-196.), e a definição do conteúdo das narrativas para análise foi em razão da relevância e recorrência; os títulos emergiram dos próprios tópicos usados nas entrevistas.

ENVELHECIMENTO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

O envelhecimento das pessoas com deficiência intelectual é um fenômeno recente. O Estatuto do Idoso considera que esse grupo da população deve ter preferência na destinação de políticas públicas e recursos para a garantia de seus direitos. Além disso, a população idosa é considerada "especialmente vulnerável" pela Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2015BRASIL. Lei nº 13.146,de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil03/Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm. Acesso em: 02 jun. 2021.
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).

Se por um lado o envelhecimento populacional é considerado uma das principais conquistas sociais no mundo todo, por outro traz grandes desafios à sociedade atual. Estes desafios estão relacionados ao processo de vulnerabilização decorrente do envelhecimento e ao despreparo das sociedades para enfrentá-lo. (Tonezer, Trzcinski e Dal Magro, 2012, p. 1)

Ainda referenciando as autoras, é possível perceber a relevância de discutir o envelhecimento populacional e suas implicações para a sociedade como um todo. Ao se tratar do idoso com deficiência, acentuam-se as dificuldades de participação na vida social e os estigmas comunitários, não só em decorrência dos preconceitos, isolamento e diminuição das relações sociais e familiares, mas também pela carência de políticas públicas voltadas para essa população.

Segundo Veras e Caldas (2004VERAS, Renato Peixoto; CALDAS, Célia Pereira. Promovendo a saúde e a cidadania do idoso: o movimento das universidades da terceira idade. Ciências e Saúde Coletiva, v. 9, n. 2, p. 423-432, 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/%0D/csc/v9n2/20396.pdf. Acesso em: 6 nov. 2020.
https://www.scielo.br/pdf/%0D/csc/v9n2/2...
, p. 424), houve um aumento no envelhecimento da população mundial significativo: "O século XX se caracterizou por profundas e radicais transformações, destacando-se o aumento do tempo de vida da população como o fato mais significativo no âmbito da saúde pública mundial. Uma das maiores conquistas da humanidade foi a extensão do tempo de vida".

No que se refere à escolarização de pessoas com deficiência, há algumas décadas, aquelas que hoje são adultas e idosas, na região oeste de Santa Catarina, onde aconteceu a pesquisa, frequentavam instituições como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) ou permaneciam apenas em suas casas. A expectativa de vida dessas pessoas era breve e raramente elas se tornavam idosas. Quando isso acontecia, as famílias dessa região, frequentemente numerosas, dividiam as tarefas de cuidar do irmão ou irmã. A constituição familiar tem mudado muito nas últimas décadas, numa sociedade mais urbanizada, com famílias menores e outras organizações de trabalho. Referindo-se aos cuidados e atenção familiar às pessoas com deficiência, Pieczkowski (2017PIECZKOWSKI, Tania Mara Zancanaro. Educação de adultos com deficiência intelectual: diálogos com Paulo Freire. In: DICKMANN, Ivo; SILVANI, Herman; KERBES, Mariane; DEITOS, Roberto; WINCKLER, Silvana (orgs.). Pedagogia da memória. Chapecó: Sinproeste, 2017. p. 73-86. Disponível em: https://sinproeste.org.br/wp-content/uploads/2017/05/LIVRO-Pedagogia-da-Memoria.pdf. Acesso em: 5 jan. 2022.
https://sinproeste.org.br/wp-content/upl...
, p. 75) afirma:

Em contextos de famílias amplas, comuns até algumas décadas atrás, costumeiramente, um irmão era preparado desde a infância para essa missão, caso o filho sobrevivesse ao prognóstico clínico relativo ao tempo de vida. Não raro, a previsão de morte precoce se cumpria, quando as pessoas com deficiência viviam em casa, escondidas, às vezes, parte do tempo em espaços isolados, sem a interação social necessária. Quadros psíquicos como tristeza, depressão e desencanto por uma vida que não valia ser vivida não eram associados a essas pessoas como causas sociais, como agravantes da deficiência, e a morte precoce era naturalizada. Algumas décadas atrás, era comum pessoas com deficiência permanecerem nas famílias sem participar de escolas, devido ao descrédito quanto ao seu desenvolvimento e aprendizagem.

A autora relata um contexto vivenciado até pouco tempo por grande parte das famílias de pessoas com deficiência, entre elas, pessoas adultas com deficiência intelectual. Já na contemporaneidade, o que se apresenta são novos olhares acerca dessas pessoas, contribuindo, mesmo que aos poucos, para seu acolhimento na sociedade e na educação.

No estado de Santa Catarina, temos a Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE) (Santa Catarina, 2017SANTA CATARINA. Secretaria de Estado de Educação. Fundação Catarinense de Educação Especial. Envelhecer com deficiência intelectual: aspectos básicos sobre o cuidado e o acesso aos direitos. Florianópolis: DIOESC, 2017. Disponível em: https://www.fcee.sc.gov.br/informacoes/biblioteca-virtual/educacao-especial/envelhecimento. Acesso em: 7 jul. 2021.
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), que apresenta políticas para pessoas com deficiência intelectual em processo de envelhecimento. A fundação caracteriza-se como uma instituição de caráter beneficente, instrutivo e científico, dotada de personalidade jurídica de direito público, sem fins lucrativos, criada em maio de 1968. Está vinculada à Secretaria de Estado da Educação, como primeira instituição pública estadual do Brasil responsável pela definição e coordenação de políticas de educação especial.

A instituição identifica o processo de envelhecimento da pessoa com deficiência e destaca:

As pessoas com deficiência estão envelhecendo. Devido ao aumento da expectativa de vida, vivenciamos o envelhecimento conjunto de duas gerações: o da própria pessoa com deficiência e o de seu cuidador principal. Se antes apenas a pessoa com deficiência necessitava de cuidados, agora nos deparamos com a necessidade de cuidado também para quem cuida. E assuntos referentes à morte e ao luto começam a ser evidenciados e necessários de serem debatidos dentro da instituição e junto com as famílias. (Santa Catarina, 2017SANTA CATARINA. Secretaria de Estado de Educação. Fundação Catarinense de Educação Especial. Envelhecer com deficiência intelectual: aspectos básicos sobre o cuidado e o acesso aos direitos. Florianópolis: DIOESC, 2017. Disponível em: https://www.fcee.sc.gov.br/informacoes/biblioteca-virtual/educacao-especial/envelhecimento. Acesso em: 7 jul. 2021.
https://www.fcee.sc.gov.br/informacoes/b...
, p. 39)

Movida por essa evidência, a FCEE produziu uma cartilha intitulada Envelhecer com deficiência intelectual: aspectos básicos sobre o cuidado e o acesso aos direitos, que trata do cuidado e do exercício de direitos da pessoa com deficiência intelectual em processo de envelhecimento (Santa Catarina, 2017SANTA CATARINA. Secretaria de Estado de Educação. Fundação Catarinense de Educação Especial. Envelhecer com deficiência intelectual: aspectos básicos sobre o cuidado e o acesso aos direitos. Florianópolis: DIOESC, 2017. Disponível em: https://www.fcee.sc.gov.br/informacoes/biblioteca-virtual/educacao-especial/envelhecimento. Acesso em: 7 jul. 2021.
https://www.fcee.sc.gov.br/informacoes/b...
). Foi elaborada por iniciativa do Centro de Educação e Vivência (CEVI) e da própria FCEE, com o objetivo de qualificar o processo de cuidado diante do panorama atual de aumento na expectativa de vida da pessoa com deficiência intelectual, as particularidades presentes no seu envelhecimento e o consequente envelhecimento de seu cuidador e/ou familiares. A cartilha ampara-se na metodologia do Currículo Funcional Natural-CFN (Santa Catarina, 2017SANTA CATARINA. Secretaria de Estado de Educação. Fundação Catarinense de Educação Especial. Envelhecer com deficiência intelectual: aspectos básicos sobre o cuidado e o acesso aos direitos. Florianópolis: DIOESC, 2017. Disponível em: https://www.fcee.sc.gov.br/informacoes/biblioteca-virtual/educacao-especial/envelhecimento. Acesso em: 7 jul. 2021.
https://www.fcee.sc.gov.br/informacoes/b...
, p. 17), que valoriza:

[…] a aquisição de conhecimento e comportamentos que sejam úteis no seu espaço vital dentro e fora da FCEE. Tal necessidade vem da faixa etária do público atendido no centro — que requer inclusão social e produtividade — e da sobrecarga a cuidadores e familiares, muitos em idade avançada. O CFN tem como meta, justamente, o desenvolvimento de habilidades funcionais em ambiente natural, ou seja, contextos que justifiquem que usuário e profissional executem uma tarefa.

São muitas as questões que envolvem o tema do envelhecimento da pessoa com deficiência, como pensão por morte dos pais, acolhimento das pessoas com deficiência em situação de abandono na velhice, educação ao longo da vida, aposentadoria especial e tantas outras. Segundo informações contidas na cartilha (Santa Catarina, 2017SANTA CATARINA. Secretaria de Estado de Educação. Fundação Catarinense de Educação Especial. Envelhecer com deficiência intelectual: aspectos básicos sobre o cuidado e o acesso aos direitos. Florianópolis: DIOESC, 2017. Disponível em: https://www.fcee.sc.gov.br/informacoes/biblioteca-virtual/educacao-especial/envelhecimento. Acesso em: 7 jul. 2021.
https://www.fcee.sc.gov.br/informacoes/b...
, p. 21):

O binômio envelhecimento e deficiência, que emergiu recentemente no Brasil, tem tensionado a sociedade a debater esse tema e produzir conhecimento e propostas de trabalho que respondam satisfatoriamente a este desafio. Estamos falando de um terreno no qual o entendimento de quem é a pessoa com deficiência não está ainda totalmente claro aos atores envolvidos, sejam eles familiares ou profissionais, principalmente quando consideramos que até a década de 1980 idosos com DI [deficiência intelectual] passavam despercebidos pelas políticas públicas e centros de pesquisas. Porém, nos últimos trinta anos, a expectativa de vida dessa população obteve um aumento muito mais expressivo do que as taxas observadas na população em geral.

Diante dessas constatações acerca do envelhecimento da pessoa com deficiência, concomitantemente com o envelhecimento de seus cuidadores/familiares, sentimo-nos instigadas a pesquisar essa temática e contribuir com subsídios para a criação de políticas públicas de atenção a essa população.

NARRATIVAS DE MÃES E PAI DE PESSOAS ADULTAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E EM PROCESSO DE ENVELHECIMENTO

Estudos de vários autores, entre eles Pieczkowski, Lima e Ruhoft (2006PIECZKOWSKI, Tania Mara Zancanaro; LIMA, Abegair Farias de; RUHOFT, Tatiane. Estimulação Essencial em crianças com necessidades especiais de zero a três anos. Revista Educação Especial, Santa Maria, n. 27, p. 1-10. 2006. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/educacaoespecial/issue/view/218 . Acesso em: 30 out. 2022.
https://periodicos.ufsm.br/educacaoespec...
) e Gavenda e Pieczkowski (2021GAVENDA, Marizete Lurdes; PIECZKOWSKI, Tania Mara Zancanaro. Narrativas de mães de crianças com Síndrome de Down: a importância do envolvimento familiar na Estimulação Precoce. Revista Cocar, Belém, v. 15, n. 32, p. 1-19. 2021. Disponível em: https://periodicos.uepa.br/index.php/cocar/article/view/3759 . Acesso em: 30 out. 2022.
https://periodicos.uepa.br/index.php/coc...
) afirmam que, quando os pais recebem a notícia de que seus filhos apresentam deficiência, vivem inquietações, inseguranças, incertezas. Uma das preocupações que expressam é com relação a quem cuidará deles quando os genitores envelhecerem e/ou morrerem. Nesse sentido, Pieczkowski (2017PIECZKOWSKI, Tania Mara Zancanaro. Educação de adultos com deficiência intelectual: diálogos com Paulo Freire. In: DICKMANN, Ivo; SILVANI, Herman; KERBES, Mariane; DEITOS, Roberto; WINCKLER, Silvana (orgs.). Pedagogia da memória. Chapecó: Sinproeste, 2017. p. 73-86. Disponível em: https://sinproeste.org.br/wp-content/uploads/2017/05/LIVRO-Pedagogia-da-Memoria.pdf. Acesso em: 5 jan. 2022.
https://sinproeste.org.br/wp-content/upl...
, p. 75), escreve:

[…] quando o bebê difere do projeto dos pais, indagações acerca de seu futuro, que poderiam ser diluídas ao longo dos anos, são feitas pelos pais e familiares de uma só vez: Vai sobreviver? Vai falar? Vai caminhar? Vai aprender a ler e a escrever? Terá uma profissão? Será independente? Terá um relacionamento afetivo? Terá filhos? E quando nós morrermos, quem cuidará dele?

Vale salientar que a deficiência intelectual não é percebida precocemente e nem deve rotular um bebê, pois este estará em pleno desenvolvimento. Contudo, se a criança apresenta também alterações orgânicas, essas indagações podem surgir de imediato. Podem, também, emergir com a idade mais avançada, quando os pais percebem a deficiência ou esta é comunicada, seja por profissionais, seja por outras pessoas de suas relações sociais. Passado o momento inicial, as famílias com filhos com deficiência intelectual, especificamente os genitores/cuidadores, têm ainda outros desafios pela frente:

Se defrontam não apenas com as demandas enfrentadas pelas famílias com filhos com desenvolvimento típico (DT), mas também com as responsabilidades e os desafios associados à criação e educação de uma pessoa com DI, que precisará de atendimentos médicos e terapêuticos, cuidados e estimulação adequada […]. Além disso, atividades comuns para a maior parte da população, tais como a entrada da criança na escola, a alfabetização, o namoro e a entrada no mercado de trabalho, podem se constituir em desafios para as pessoas com DI e suas famílias. (Rooke, Almeida e Mejía, 2017ROOKE, Mayse Itagiba; ALMEIDA Bruna Rocha; MEJÍA, Cristina Fuentes. Intervenção com famílias de pessoas com deficiência intelectual: análise da produção científica. Revista de Psicologia, Ceará, v. 8, n. 2, p. 92-100, jul./dez. 2017. Disponível em: https://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/11878. Acesso em: 7 dez. 2020.
https://www.periodicos.ufc.br/psicologia...
, p. 93)

As narrativas dos entrevistados foram organizadas em três agrupamentos temáticos apresentados na sequência.

ESCOLARIZAÇÃO E INSERÇÃO SOCIAL DE PESSOAS ADULTAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

As análises das materialidades empíricas (narrativas dos entrevistados) foram tentativas de compreender o que as mães e um pai idosos pensam e têm a nos dizer a respeito da trajetória vivida por seus filhos adultos hoje, o que reverbera na família. Esses pais vivenciaram o nascimento, a infância e a adolescência em tempos repletos de discursos diferentes dos atuais, tidos como verdades. Foucault (1996FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 3. ed. Tradução: L. F. de A. Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996.) faz referência a "atos de fala", dizendo que estes formam discursos de acordo com certo regime de verdade, obedecendo a um conjunto de regras, dadas historicamente e afirmando verdades de um tempo.

Destacamos a afirmação de Foucault (1996FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 3. ed. Tradução: L. F. de A. Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996., p. 44) de que "todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo". Nesta afirmação, tratando-se de discursos em educação, concebidos como um conjunto de enunciados capazes de modificar saberes e poderes, destacamos as narrativas de mães, de um pai, e as referências que estes fazem a professores e médicos.

Dar visibilidade a essas trajetórias não tem a intencionalidade de responsabilizar seus autores pelo que expressam em relação às ações e implicações pelas quais e nas quais o cotidiano das pessoas com deficiência intelectual e profissional se produzia. No entanto, há implicações na trajetória escolar desses sujeitos, e por que não dizer na trajetória e na produção de suas relações posteriores com todas as dimensões daquilo que se considera como viver com cidadania: trabalhar, viver de forma independente, ir e vir.

Ao questionar o Entrevistado 1 acerca da escolarização de seu filho, ele declara:

[…] Ela foi até o terceiro ano e já a professora não quis mais que ele fosse na aula, porque o problema dela era no cérebro […]. A professora falou que não adiantava […]. Fomos para Santa Maria, daí o médico disse que não adiantava nós mandarmos ela na escola.

Essas declarações da professora e do médico expressam que existe um discurso de verdade para a época, quando a pessoa que apresentava alguma limitação cognitiva ou deficiência era encaminhada para instituições especializadas, que não substituíam a escola comum, mas representavam um espaço de guarda e proteção.

Outras manifestações do Entrevistado 1 retratam o desejo de que o filho tivesse as mesmas oportunidades de inserção escolar dos irmãos, com a tentativa de matriculá-lo na escola comum. Esse filho, quando criança, de acordo com o familiar, frequentou a escola até o terceiro ano primário, com muita dificuldade, até o momento em que a professora chamou a família para dar o seu parecer da falta de condições dele em permanecer na escola, em razão de um problema no cérebro, percebido pela professora e manifestado na dificuldade da criança em acompanhar os demais colegas nas atividades.

O Entrevistado 1, naquela época, aceitou o parecer da professora sem questionar, retirando o filho da escola. Posteriormente, buscou a opinião de um médico de um centro distante, de referência, na cidade de Santa Maria (RS), para consultar, pois não havia médicos especializados em sua cidade. O discurso médico reafirmou o parecer da professora de que a escola não era lugar para aquela criança. Sendo assim, a família acatou os pareceres e retirou o filho da escola comum.

Durante a entrevista, o familiar relatou que ele e seu cônjuge frequentaram o ensino primário até a quarta série e demonstra considerar o suficiente o que o filho estudou, até porque também os pais têm esse grau de escolaridade. Expressou ainda que a deficiência intelectual existente no filho, para a família, era algo praticamente irrelevante ou inexistente, pois o filho desempenhava várias atividades em casa. Em determinada idade surgiu uma deficiência visual e esta sim, para a família, representava uma barreira.

A irrelevância da existência da deficiência intelectual no filho reafirmou-se quando o Entrevistado 1 foi questionado quanto aos desafios vividos com um filho com esta característica. Para esta família a deficiência visual era percebida como uma limitação, porém a deficiência intelectual parecia ser compreendida como um jeito de ser, naturalizada, em uma família de baixa escolaridade. Ele complementou dizendo:

[…] Olha, é difícil, é difícil! Porque tem dias que ela fica nervosa, ela quer fazer o serviço também e às vezes ela não enxerga, daí ela se ataca, fica nervosa que meu Deus! […].

A ideia da inexistência de uma deficiência intelectual reafirmou-se quando o Entrevistado 1 foi questionado quanto a considerar apenas a limitação de visão no filho como um problema e a ausência de problema na cabeça, como havia afirmado a professora e respondeu:

[…] Não, é as vistas. Ela não tem problema nenhum! Até ela se lembra mais das coisas do que eu porque eu já passei muita coisa né… e ela se lembra […].

Na maioria dos relatos, ficou evidente a naturalização com que os pais tratavam o fato de o filho não frequentar a escola comum ou não ter oportunidades de trabalho. Para além das narrativas, nossas experiências profissionais e vivências de muitos anos com famílias similares a essas nos possibilitam afirmar que, para muitos pais, naquela época, para uma pessoa dita normal, estudar até a quarta série primária era um privilégio para poucos. Dessa forma, para os seus filhos que não se encaixavam nos padrões escolares, na percepção da autoridade de professores e médicos, a negação do direito à escola parecia ser uma verdade incontestável.

Mais um relato, proveniente do Entrevistado 6, reproduz o discurso da professora em determinado período em que não se falava em inclusão, assim como mostra a concordância do familiar, demonstrando a percepção da presença do filho naquele espaço com os demais:

[…] Ele, no primeiro ano, nós colocamos junto com os outros, mas a professora não aceitou, porque estragava a turma e ele não se comportava […], ele estragava a turma né… aí eu tirei ele… Sim, eu concordei e tirei porque estragava muito a turma […].

Isso nos fez lembrar os exemplos ouvidos no cotidiano escolar, da "laranja podre" que apodrece as demais, com base em uma concepção pedagógica ambientalista/higienista.

A inquietação a respeito da exclusão naturalizada, na política educacional brasileira, iniciou ao final da década de 1950, início de 1960, com a criação de instituições especializadas para o atendimento às pessoas com deficiência intelectual, a exemplo das Pestalozzi e das APAE. Tais instituições, com caráter filantrópico e assistencial, surgem para preencher lacunas do poder público e, por isso, possuem seu mérito.

O ingresso da pessoa com deficiência na escola comum ganhou força a partir da Conferência Mundial de Educação para Todos em 1994, quando foi proclamada a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994). Os discursos e verdades para este tempo e contexto eram de que pessoas com deficiência poderiam frequentar instituições especializadas para atendê-las ou permanecer apenas nos espaços domiciliares.

Após algumas leituras e reflexões, percebemos que Foucault tenta desnaturalizar discursos e permite-nos ver as coisas com outros olhares, provocando uma inquietação com suas descrições. Foucault (2009FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., p. 49), em seu livro A Ordem do Discurso, afirma que "[…] o discurso nada mais é que reverberação da verdade nascendo diante dos seus próprios olhos […]" e pode ser dito com a finalidade de tudo, tornando-se um jogo. Foucault (1988FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988., p. 96) destaca ainda que o "[…] discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta".

IN/EXCLUSÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: PERCEPÇÕES E TRATAMENTOS ACERCA DO DIFERENTE

Ao analisarmos as narrativas no agrupamento temático anterior, podemos perceber a inclusão ou falta dela vivida por pessoas com deficiência intelectual na década de 1960 e seguinte, por meio de discursos familiares, médicos e pedagógicos. Os familiares relatam, ao serem questionados quanto à percepção da diferença no tratamento com seus filhos e como é na atualidade, uma sensação de mudanças, de avanços neste sentido. O Entrevistado 1 relata:

[…] É bem diferente agora! Tudo diferente! Ihhh, nem comparar daquela época. Gente do céu! O que que tu vai [sic] dizer, dizer o que também, porque a gente naquela época não tinha instrução como agora… agora tem quem te dá conselho, como se diz, como diz o ditado, te instrui […].

Este familiar salienta que hoje é diferente, o que expressa na fala, porém não sabe dizer o que exatamente mudou. Acredita que, talvez, a pouca instrução ou falta de aconselhamento que teve antigamente tenha resultado em suas ações, que desencadearam o aceitar a não inclusão do filho em outro espaço que fosse a instituição especializada, e isto para a época era comum, era natural. É possível perceber que o entrevistado se culpabiliza ou chama para si a responsabilidade pela exclusão, quando atribui à falta de instrução individual e não à falta de políticas públicas voltadas à educação e inserção social de pessoas com deficiência.

A naturalização dos processos sociais age de forma que muitas vezes as pessoas se esqueçam de que eles foram inventados ou que dependeram de várias contingências históricas localizadas e datadas. Ao revisitar histórias, por meio das narrativas familiares, observamos uma época em que pouco se falava em inclusão escolar ou no trabalho, em que a sexualidade da pessoa com deficiência era tida como um tabu e a segregação em instituições especializadas era naturalizada.

Já nos últimos anos, a inclusão tornou-se um imperativo que poucos ousam contestar. Qualquer distribuição desigual é vista como uma disfunção, como uma situação que contraria a natureza do mundo. O natural seria que todos ocupassem igualmente os espaços sociais, e se assim não ocorre é porque alguns, em seu próprio benefício, operaram uma distribuição atípica contra os interesses dos outros e contra a natureza do mundo. Esses outros são os chamados excluídos.

A análise do discurso, na perspectiva foucaultiana, requer percebermos a história dos sujeitos pesquisados como a produção de um discurso orientado para a formação e a propagação de certos conhecimentos e de uma escrita resultante da complexa trama de acontecimentos. Não se trata de emitir juízo de valor, mas de compreender a trajetória de pessoas com deficiência intelectual e suas famílias em tempos e contextos que determinaram o modo como foi olhada e tratada a diferença, quando a exclusão foi naturalizada.

Baseados em uma filosofia da diferença, atenta à diversidade e à noção de verdade como construção que investe na diferença e sua percepção ao invés de mascará-la, é que podemos tensionar a exclusão e pensar em outras possibilidades de existência.

A CONVIVÊNCIA E O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO DOS FILHOS ADULTOS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

Embora vários debates estejam ocorrendo na contemporaneidade em torno da deficiência intelectual e do envelhecimento, na perspectiva de como é percebido o envelhecimento de pessoas com deficiência intelectual e sua qualidade de vida, cabe pensar como elas participam dos processos culturais e como constroem suas identidades, pois, em razão de sua capacidade mental, elas são desqualificadas em comparação aos modelos estabelecidos pelas áreas médica, biológica, social e educacional.

Ao buscarmos pessoas com deficiência intelectual em fase adulta e entrando no processo da velhice, constatamos algo que já chamava a atenção após alguns anos atuando na Educação Especial, que é o fato de uma minoria ainda estar convivendo com e sob os cuidados de mães e/ou pais. Grande parte dessa população já está sob cuidados de outros familiares.

Isso demonstra que aquela previsão que alguns médicos fizeram acerca da estimativa de vida para pessoas com deficiência intelectual não era uma verdade, mas produziu efeitos de verdade, como refere Foucault. Emerge uma nova verdade na contemporaneidade, que traz consigo novos desafios. Ao conversar com mães e um pai dessas pessoas, indagamos em relação ao futuro, e a resposta revelou uma preocupação unânime com relação aos cuidados com o filho, representada pelo relato do Entrevistado 1:

[…] Eu peço a Deus que morram eles dois antes do que eu (referindo-se ao filho e cônjuge) porque… tem a minha nora que me acompanha, mas ela também tem família e daí ao menos o que eu posso fazer estou ajudando, entendeu como eu quis dizer? […] Não tem quem cuida… tem os filhos, mas tudo casado e todos têm família… Daí a gente tem… me preocupo, tem noites que eu deito na cama e não durmo, começo pensar e peço a Deus que tenha misericórdia porque… que que tu acha [sic], não tem outro meio… como meu marido, tem que dar banho, tem que fazer barba, tem que vestir roupa, como é que vai ficar outra pessoa? Certo que tem os quatro… três filhas, mas as três também têm que trabalhar, têm família […].

Esta mãe idosa cuida do marido acamado e do filho adulto e em fase de envelhecimento, e sua maior angústia e medo é de vir a faltar na vida dos que dependem dela. Tem ciência de que, mesmo tendo outros filhos, isto não garante que terão disponibilidade para cuidar do irmão com deficiência e idoso.

O aumento da longevidade de pessoas com deficiência intelectual está relacionado aos avanços nos cuidados à saúde e ao desenvolvimento de programas sociais que atendam essa população. Embora seu envelhecimento seja reconhecidamente um bom motivo para celebrar, reconhecemos também seu caráter desafiador, processo enfrentado por idosos com e sem deficiência. Da perda de funcionalidades somadas à dependência relacionada à deficiência emergem indagações, especialmente das mães: com quem vai ficar quando eu não estiver mais aqui? Quem se responsabilizará pelos cuidados com ele?

Apenas um dos sujeitos pesquisados ainda tem mãe e pai em condições físicas e mentais de atendê-lo em suas necessidades. Os demais estão com pais acamados ou falecidos, o que nos mostra mais uma realidade: a sobrecarga vivida pela mulher-mãe-esposa-idosa. No relato do Entrevistado 6, fica explícita a preocupação do exercer o papel de mãe:

[…] Eu penso assim, às vezes, meu Deus, o que será de mim… o que será do meu filho o dia que vou falecer? Tem né, ele adora a neta, minha neta… mas ela vai casar, sabe lá se ele vai com ela, tem os filhos também. A minha filha que ele gosta muito, mas nunca é que nem a mãe… daí eu penso o que será dele, e a gente não sabe o dia de amanhã se será ele ou eu… mas a gente sempre espera a gente primeiro. Eu sei que ele vai ficar bem! Mas bem que nem junto comigo não, porque eu sei tudo como é que ele faz, o jeito dele, os irmãos também sabem, mas não têm paciência que nem a mãe… mãe é mãe!

Em nossa sociedade, geralmente, a mãe é responsável pelo cuidado do filho. Pimenta, Rodrigues e Greguol (2010PIMENTA, Ricardo de Almeida; RODRIGUES, Luiz Alberto; GREGUOL, Márcia. Avaliação da qualidade de vida e sobrecarga de cuidadores de pessoas com deficiência intelectual. Revista Brasileira de Ciências da Saúde, São Caetano do Sul, v. 14, n. 3, p. 69-76, 2010. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/rbcs/article/view/9687/5406. Acesso em: 5 jul. 2021.
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) ressaltam que a maior sobrecarga apresentada pelas mães pode, também, estar relacionada a uma responsabilidade atribuída por uma visão naturalizada do trabalho dos cuidadores. O trabalho das mulheres vem sendo relacionado, histórica e culturalmente, à esfera doméstica/maternal. Essa divisão sexual entre os cuidadores parece estar amparada na vivência da maternidade, determinando, assim, que as mulheres estariam preparadas para lidar com as atividades de cuidado na vida diária, como dar banho e comida.

Alves (2012ALVES, Paulo José Margalho Costa. Estudo de follow-up do processo de envelhecimento de adultos com deficiência mental. 2012. 66 f. Dissertação (Mestrado Integrado em Psicologia) – Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2012. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/6906. Acesso em: 3 jun. 2021.
https://repositorio.ul.pt/handle/10451/6...
) pondera que os idosos deficientes intelectuais são suscetíveis de enfrentar grandes transições nas suas vidas à medida que eles e suas famílias envelhecem. De acordo com o autor, a morte ou a doença dos cuidadores, bem como as alterações normais provocadas pelo envelhecimento, podem implicar uma significativa mudança no ambiente.

O envelhecimento traz mudanças significativas na vida do indivíduo com deficiência, nos mais variados aspectos, sejam eles sociais, emocionais, psicológicos, físicos ou neurológicos, ficando à mercê dos cuidados das pessoas com quem vivem. Um maior grau de independência da pessoa com deficiência contribui no momento em que seus genitores vierem a faltar, facilitando a tarefa de quem assumir os seus cuidados.

Contudo, como construir essa independência possível, se muitas pessoas com deficiência intelectual foram infantilizadas durante toda a vida e privadas de oportunidades sociais? Vygotsky (1989VYGOTSKY, Lev Semionovitch. Fundamentos da defectologia: obras completas. Ciudad de La Habana: Pueblo y Educación, 1989.) faz referência à deficiência primária (biológica) e secundária (agravamento da deficiência primária devido à privação social). Nesse sentido, Pieczkowski (2014PIECZKOWSKI, Tania Mara Zancanaro. Inclusão escolar de crianças com deficiência intelectual: influências de Vygotsky. In: PIECZKOWSKI, Tania Mara Zancanaro; NAUJORKS, Maria Inês. Educação, inclusão e acessibilidade: diferentes contextos. Chapecó: Argos, 2014. p. 189-216., p. 197), afirma que "[…] a criança que apresenta uma deficiência é percebida pela ótica da falta. Por conta dessa percepção, que reflete preconceitos históricos, é estigmatizada".

Isso evidencia a importância de que as pessoas com deficiência sejam vistas na sua completude, não como indivíduos a ser corrigidos, e que a diferença seja reconhecida. É nessa perspectiva que se sustenta a defesa da inclusão escolar de pessoas com deficiência, não de forma romanceada, não na expectativa da verdadeira inclusão, algo que está por vir, mas compreendendo-a como um processo que se movimenta na direção do reconhecimento da diferença e não define uma identidade padrão.

Ao pensarmos na trajetória dos sujeitos pesquisados, considerando-se que muitas vezes a sociedade não reconhece na pessoa com deficiência a capacidade de escolher, de tomar decisões, ressalta-se o papel da família no cuidado, sobretudo de idosos com deficiência, e a sobrecarga enfrentada pela família.

A escola especial mantida pela APAE, hoje denominada CAESP, é valorizada pelos entrevistados como o lugar onde os filhos puderam fazer amigos, se preparar para a vida com certa independência e adquirir conhecimentos necessários para suas interações sociais. A pesquisa mostrou que a maioria dos familiares avalia positivamente o ambiente institucionalizado pela segurança que proporciona, pelas atividades que realiza e pela atenção dos professores com os alunos. Os entrevistados expressaram ter receio de um dia ser encerrado o atendimento educacional aos seus filhos.

Como seria o desenvolvimento desses sujeitos com deficiência intelectual se, na sua infância e ao longo da vida, eles tivessem vivenciado mais oportunidades de escolarização, de inserção no trabalho, de relacionamentos afetivos? Isso não é possível responder, mas é possível inferir.

Mesmo que a inclusão possa ser compreendida como uma estratégia neoliberal de gerenciamento de risco, a escola representa um espaço de interação, aprendizagem e desenvolvimento. Vale salientar que as pessoas com deficiência intelectual pesquisadas, mesmo com a privação social que lhes foi imposta, apresentam certo grau de independência nas atividades cotidianas e provavelmente poderiam ter conquistado maior autonomia se as oportunidades sociais tivessem sido mais efetivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatamos, por meio de narrativas familiares, que a forma como ocorreu o processo histórico de inserção social de pessoas com deficiência intelectual nas décadas de 1960 e 1970 as excluía (e também pessoas com outras deficiências) da escola comum, do trabalho e da vida social, e isso era naturalizado.

Esses familiares, naquela época, perceberam essa exclusão em grande parte como algo natural. Manifestam a percepção a respeito das mudanças na forma de tratar as crianças com deficiência comparando a infância do filho e hoje. Ilustram diversos fatores sociais/educacionais, entre eles a negação do direito à escola comum, ao trabalho, à inserção social mais abrangente, o que influenciou a constituição das pessoas com deficiência intelectual e a forma como hoje se apresentam, na sua maioria, dependentes dos familiares.

No entanto, o que emergiu com muita intensidade na pesquisa foi o desafio de envelhecer lado a lado do filho adulto com deficiência e em fase de envelhecimento, trazendo as tribulações dessa fase, juntamente ao sentimento de medo com relação ao futuro, a quem se responsabilizará por cuidar de seu filho quando estas mães e pai falecerem.

Com a preocupação acerca da própria morte, as narrativas revelam a necessidade de suporte por parte de algum familiar. Constatamos que isso acontece, em alguns casos, com familiares que residem na mesma casa ou terreno, ou mesmo próximo. O que registramos aqui é algo para refletirmos, no sentido de que percebemos que as mães entrevistadas se sentem como se atrapalhassem a vida desses filhos que moram próximo e nos quais buscam amparo. As mães parecem sentir-se as únicas e grandes responsáveis pelo filho com deficiência. Contudo, ao mesmo tempo que esses familiares oferecem algum suporte, eles também o recebem, existe uma troca, de forma que não têm algumas despesas como aluguel, por exemplo. São familiares que beneficiam, mas também são beneficiados de alguma forma.

A fragilidade da maioria das mães e do pai entrevistados, em forma de saúde, de proteção, de segurança, aponta para a importância de políticas públicas de apoio a essa população, para que esses sujeitos possam viver e envelhecer com maior qualidade e dignidade. O apoio institucional que as famílias recebem do CAESP é salientado como imprescindível, como espaço de convivência, de acolhida, de amparo. Talvez esse seja o significado do termo "inclusão" nessa fase da vida, o que mostra que a palavra é de múltiplos sentidos. O sentido da inclusão transcende os muros da escola e passa a ter um significado de maior amplitude, ou seja, de luta política pela conquista da cidadania, pela busca de uma identidade sem estigmas pejorativos e pela autoestima desses sujeitos. As mães entrevistadas, ao se tornarem mães de filhos com deficiência intelectual, viveram em tempos ainda mais opressores do que hoje para o sexo feminino, nos quais seus papéis preestabelecidos pela sociedade eram de coadjuvantes, com pouca liberdade e possibilidades. Contudo, demonstram a sua importância e força na sociedade e na família ao revelarem seu protagonismo e presença indispensável.

Este estudo não considera encerradas as discussões anunciadas, mas deixa o registro de que é preciso desnaturalizar e tensionar os discursos difundidos sobre a norma e entender o outro em si mesmo, assumir a diferença como estado do mundo. A pessoa com deficiência não é alguém para ser corrigido, mas para ser reconhecido na sua singularidade. A pesquisa, com amparo foucaultiano, possibilitou pensar de outras formas, enxergar com outros óculos, contextos antes naturalizados. Foi uma oportunidade de ouvir atentamente, olhar com atenção e compreender por meio das narrativas das mães e um pai as trajetórias de seus filhos com deficiência intelectual, as angústias, especialmente das mães, em uma sociedade que classifica e padroniza. Permitiu, também, adentrar memórias de vivências familiares, correspondentes às formas possíveis de in/exclusão.

  • 1
    Apoio: Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó)/ Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Processo nº 302973/2022-2.
  • Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Dez 2022
  • Revisado
    04 Maio 2023
  • Aceito
    18 Maio 2023
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