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EDITORIAL

EDITORIAL

Este número apresenta um primeiro conjunto de quatro artigos abordando, por perspectivas diversas, a educação de jovens e adultos e a escolarização de crianças das camadas mais pobres da população.

O primeiro deles, "Quando a escrita ressignifica a vida: diários de um agricultor - uma prática de escrita 'masculina'", de Vania Grim Thies e Eliane Peres, analisa os diários escritos por um agricultor gaúcho, com escolarização primária, que durante 36 anos (1972-2008) registra sua vida por escrito, escrevendo rigorosamente todos os dias. Nas conclusões do trabalho, as autoras indicam que a escrita dos diários foi, para o agricultor, "uma forma de existir no cotidiano", de registrar sua história e a de sua família, e deixar marcas do passado como uma herança às novas gerações. Afirmam ainda que entendem a escrita como uma prática social e cultural complexa e significativa e, nesse sentido, tratam os diários como um patrimônio do escrito.

O segundo, "Espaços, recursos escolares e habilidades de leitura de estudantes da rede pública municipal do Rio de Janeiro: estudo exploratório", de Roberta Araújo Teixeira, traz os resultados de um estudo exploratório realizado no ano de 2007 em três escolas municipais participantes do Projeto Geres (Estudo da Geração Escolar 2005). Considerando que os espaços escolares possuem importante dimensão educativa e que a materialidade da escola é fator relevante na constituição de práticas escolares capazes de constranger ou de estimular conhecimentos e competências, Roberta Teixeira buscou compreender, no interior das escolas investigadas, o conjunto de fazeres pedagógicos ativados que guardassem relação direta com o desenvolvimento de habilidades básicas de leitura e escrita. Utilizando registros fotográficos das salas de aula e observando cantinhos de leitura, murais e salas de leitura, identificou aspectos relevantes das instituições pesquisadas pautados na natureza, disposição, usos e funções de espaços e objetos relacionados à promoção da leitura. Contribui, assim, para o entendimento dos recursos da escola e da eficácia escolar como fatores promotores de aprendizagem.

O terceiro, "Escolarização em assentamentos no estado de São Paulo: uma análise da Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária 2004", de Maria Clara Di Pierro e Marcia Regina Andrade, constata que o direito à educação só estava assegurado às crianças que frequentavam as séries iniciais do ensino fundamental; nos demais níveis e modalidades, inclusive na educação de jovens e adultos, a oferta escolar era insuficiente. O analfabetismo absoluto alcançava 12% da população jovem e adulta e 40% dela tinha, no máximo, quatro anos de estudos. Só há centros educativos em 30% dos assentamentos, reflexo das políticas públicas que privilegiam o transporte escolar para as cidades. Embora as condições materiais de estudo fossem razoáveis, as escolas dispunham de poucos meios para enriquecer o currículo e as práticas pedagógicas, cuja referência dominante é a cultura urbana. As autoras registram que a política oficial é contestada pelos movimentos sociais, que reivindicam a construção de escolas no campo capazes de desenvolver uma proposta educacional integrada ao universo cultural do campesinato e ao seu projeto político de transformação social.

O quarto, "Práticas e eventos de letramento em meios populares: uma análise das redes sociais de crianças de uma comunidade da periferia da cidade do Recife", de Ana Cláudia Ribeiro Tavares e Andréa Tereza Brito Ferreira, relata as práticas e os eventos de letramento em uma comunidade, a partir dos momentos de interação das crianças com a escrita, pela ótica de suas redes sociais de pertencimento. Afirma que o reconhecimento das práticas de letramento constitui redefinições nas situações de interação, pois, à medida que as crianças passam a confiar no "outro", constroem um fator de valoração que as leva a considerar que é significativo participar dos eventos em que a leitura e a escrita são cruciais para fazer sentido em suas relações sociais.

O segundo conjunto apresenta artigos mais diferenciados, os dois primeiros abordam aspectos importantes da prática educativa e os seguintes analisam pontos teóricos relevantes para a fundamentação da educação.

Filomena Maria Gonçalves da Silva Cordeiro Moita e Fernando Cézar Bezerra de Andrade discutem a indissociabilidade do trinômio ensino-pesquisa-extensão como princípio orientador da qualidade da produção universitária, a partir da análise de experiência realizada durante o estágio de docência na pós-graduação, considerado excelente oportunidade de praticar a referida indissociabilidade. Na experiência procuraram relacionar o conhecimento científico e o saber de educadores e educandos de uma escola pública em João Pessoa, no estado da Paraíba, a fim de produzir conhecimento acerca da articulação entre relações de gênero, violência e jogos eletrônicos.

Por sua vez, Márcia Ondina Vieira Ferreira, afirmando que discutir educação é discutir trabalho docente, apresenta os significados oferecidos por dirigentes da Confederación de Trabajadores de la Educación de la República Argentina (CTERA) aos conceitos de "trabalhador em educação" e de "profissional docente". Os resultados das entrevistas realizadas com um homem e duas mulheres indicam que, na elaboração dos sindicalistas, não há contradição entre ser trabalhador e buscar a profissionalidade, e que a defesa da identidade de trabalhador em educação articula a luta contra a retirada de direitos trabalhistas e o papel protagonista do professorado no desenvolvimento de projetos educacionais.

O artigo de Maria da Graça Jacintho Setton analisa a socialização como fato social total, a partir de duas teorias da ação que discutem o processo de socialização: a teoria do habitus, de Pierre Bourdieu, e a desenvolvida por Bernard Lahire, que, em uma interpretação particular e crítica a Bourdieu, propõe uma leitura contemporânea da socialização, cunhando a expressão homem plural.

Ainda nesse conjunto, Alceu Ravanello Ferraro examina três auto-res que expressam versões típicas do liberalismo europeu do século XVIII: o liberalismo de Mandeville, que teme a instrução do povo; o liberalismo de Smith, que requer uma instrução mínima (ler, escrever e contar) para todos os trabalhadores; e o liberalismo de Condorcet, que defende uma educação comum, universal, pública, gratuita e obrigatória. Afirma que, com base no princípio da igualdade de todos os se-res humanos, Condorcet contrapõe-se a Mandeville e avança além de Smith, os quais fundamentam suas posições apenas no princípio da liberdade. Afirma ainda que o confronto estabelecido entre eles pode constituir-se em referência não só para o entendimento do tipo de liberalismo que vingou no Brasil no tempo do Império, em especial no momento da reforma eleitoral de 1881, a qual, ao introduzir a eleição direta, determinou a exclusão dos analfabetos do direito de voto, mas também pode servir de referência para o entendimento do que se passa hoje no país.

O terceiro conjunto, uma forma de apresentação original da seção Documentos, apresenta quatro textos sobre o processo preparatório da VI Conferência Internacional de Educação de Adultos - a CONFINTEA VI. Organizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e prevista para acontecer em Belém do Pará, em maio do ano corrente, foi adiada pelo governo brasileiro, como medida preventiva motivada pela Influenza A (H1N1), e deverá ser realizada de 1 a 4 de dezembro, ainda em Belém.

As conferências internacionais vêm sendo realizadas pela UNESCO de 12 em 12 anos desde 1949, logo após a criação da UNESCO e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A última edição ocorreu em Hamburgo (Alemanha), em julho de 1997, e a sexta conferência será a primeira realizada no hemisfério sul e num país emergente. Antecedendo a CONFINTEA VI foram realizadas cinco conferências regionais preparatórias, na África, na América Latina e Caribe, e na Pan-Europa. Para compor um painel sobre essa preparação, solicitou-se a três especialistas da América Latina, África e Europa que elaborassem textos dialogando com os relatórios das respectivas conferências regionais.

A escolha dessas regiões não foi arbitrária. A África e América Latina possuem vários traços comuns: um passado de colonização que deixou marcas indeléveis no presente, situações multiétnicas e multilinguísticas complexas, passados recentes dominados por governos pouco democráticos, persistentes níveis de pobreza e desigualdade. No caso africano, esses traços comuns são ainda mais agudos e exacerbados com a tragédia adicional da pandemia da AIDS que ataca fortemente a população. A Europa constitui, de um lado, a origem do processo colonizador espelhado nos continentes africano e sul-americano e, de outro, o berço da aprendizagem e educação de adultos e hoje quiçá a região que apresenta a legislação e políticas mais avançadas no campo da aprendizagem ao longo da vida.

Para a América Latina, Lidia Mercedes Rodriguez, da Universidade de Buenos Aires e da Universidade Nacional de Entre Rios, ambas na Argentina, aborda a educação de adultos na perspectiva de direitos humanos, frisando a importância da educação como política pública e a necessidade de resgatar a herança latino-americana da educação popular democrática. Aponta a tensão existente no continente entre políticas voltadas para a melhoria da situação baseadas no discurso centrado na relação custo-benefício e políticas que buscam restaurar na educação de jovens e adultos a sua vocação transformadora, seguindo a tradição freireana. Indica temas que considera predominantes nos países do continente: preocupação com o meio ambiente, atenção à multiculturalidade, relação entre educação e saúde, cultura da paz e direitos humanos. Destaca ainda o reconhecimento de alguns segmentos especiais das populações: mulheres, jovens, migrantes, pessoas com deficiência e privadas da sua liberdade. E afirma que ainda não se consolidou uma proposta alternativa para incorporar as grandes massas aos processos educativos na região.

No caso da África, John Aitchison, professor da Universidade KwaZulu de Natal, na África do Sul, um dos autores do relatório regional africano, destaca o contexto complexo da educação de jovens e adultos no continente e os desafios que a maioria de seus países enfrenta para oferecer um mínimo de educação para sua população. O legado do processo de descolonização nas décadas de 1950 e 1960, caracterizado em diversos casos por regimes autoritários, configura-se como um lento processo de democratização construída sobre uma base econômica frágil e uma situação de pobreza endêmica. Apesar dos avanços duramente conquistados na busca de universalizar a educação primária para todas as crianças, a educação de jovens e adultos continua sendo identificada com a alfabetização e compreendida como educação compensatória ou de segunda chance, marginalizada e colocada em desvantagem no que diz respeito aos recursos. Os educadores são em geral subqualificados, mal remunerados e com pouco acesso à formação. O autor enfatiza insistentemente o papel crítico das universidades no campo da pesquisa e da formação para o avanço da educação de jovens e adultos no continente e lamenta a ausência do mundo acadêmico dessa empreitada.

Heribert Hinzen, diretor do Instituto para Cooperação Internacional da Associação Alemã de Educação de Adultos, frisa a importância histórica do intercâmbio internacional para os avanços em termos de ideias, concepções e modelos no campo da educação de adultos. No seu texto, analisa o processo recente de debate em torno da educação ao longo da vida na Alemanha e na Europa, destacando o papel da Comissão da União Europeia e da Associação Europeia de Educação de Adultos, os debates provocados pelo Ministério da Educação e Pesquisa da Alemanha (BMBF) e pelo Parlamento alemão, bem como a influência catalisadora do processo preparatório para a CONFINTEA VI. No debate europeu, destaca a importância da Declaração de Lisboa (2000), do Plano de Ação para a educação de adultos: sempre é tempo de aprender (2007) e do grupo de trabalho criado pelo BMBF para a construção de propostas de inovação para a educação ao longo da vida. Nesse sentido, a Conferência Regional da Europa, América do Norte e Israel, promovida pela UNESCO e realizada na Hungria, e o seu documento final, aproveitaram e sintetizaram parcialmente esse rico processo de discussão. Apesar de apontar a necessidade de uma abordagem de aprendizagem e educação de adultos mais integrada, articulando as dimensões econômica, social e cidadã essenciais para o desenvolvimento sustentável, pessoal e comunitário, Hinzen conclui sua análise com uma nota otimista: "De todos os pontos de vista, o reconhecimento do significado da educação de jovens e adultos ao longo da vida, depois de um período de muita dureza, voltou a crescer".

Os três artigos, em conjunto, propiciam tanto uma visão da complexidade do campo da educação de jovens e adultos na perspectiva mundial e da especificidade do contexto de cada região, quanto uma compreensão da importância desses estudos comparativos para o enriquecimento das bases conceituais e teóricas que fundamentam as nossas práticas onde quer que aconteçam.

Complementando os relatos continentais, Sérgio Haddad, da Ação Educativa, discute a participação da sociedade civil brasileira na preparação da VI CONFINTEA. Para tanto, historia como veio se dando essa participação ao longo da história recente do Brasil, na relação entre o poder público e a sociedade civil, em ocasiões de confronto e outras de diálogo com as políticas públicas de educação de jovens e adultos. Retoma o processo preparatório relativo à V CONFINTEA, ocorrida em 1997, em Hamburgo, na Alemanha, e a consequente formação dos fóruns estaduais de educação de jovens e adultos e dos encontros nacionais desses fóruns, os ENEJAs, conformando um modo particular de participação.

Este número já estava em final de produção editorial quando recebemos a triste notícia do falecimento do colega e amigo Nilton Bueno Fischer, vítima de ataque cardíaco, aos 62 anos de idade.

Em sua homenagem, estamos publicando um de seus últimos textos, parte de uma investigação coletiva sobre educação não-escolar de adultos, coordenada por Sérgio Haddad.

Complementando os textos sobre a VI CONFINTEA, foi inserida a resenha do livro Os sentidos do direito à educação, de Jane Paiva.

A Comissão Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009
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