Open-access Cristianismo de libertação, teologia da prosperidade e as perspectivas da luta de classes no Brasil

EL CRISTIANISMO DE LA LIBERACIÓN, LA TEOLOGÍA DE LA PROSPERIDAD Y LAS PERSPECTIVAS DE LA LUCHA DE CLASES EN BRASIL

RESUMO

Este texto apresenta uma síntese sobre a gênese, o desenvolvimento e o colapso do cristianismo de libertação em sua relação com a classe trabalhadora. Após a ofensiva do Vaticano, que qualificou a teologia da libertação como heresia em 1984, o espaço que as Comunidades Eclesiais de Base ocupavam passou a ser dominado por um novo segmento, atraindo seguidores especialmente entre os setores mais pauperizados para seus empreendimentos empresariais-religiosos. Diante disso, objetiva-se analisar o papel educacional exercido pelas Comunidades Eclesiais de Base na formação e na organização das massas trabalhadoras e as consequências de seu refluxo, que é concomitante aos processos de pentecostalização do cristianismo brasileiro. Desde então as massas se deparam com uma encruzilhada posta pelo crescimento das religiões (neo)pentecostais consorciadas à teologia da prosperidade, à medida que os movimentos populares e sindicais estão em refluxo.

PALAVRAS-CHAVE cristianismo de libertação; teologia da prosperidade; movimentos sociais populares; movimento sindical

RESUMEN

Este texto presenta una síntesis sobre la génesis, el desarrollo y el colapso del cristianismo de liberación en su relación con la clase trabajadora. Tras la ofensiva vaticana, que calificó como herejía la teología de la liberación en 1984, el espacio que ocupaban las Comunidades Eclesiales de Base (Comunidades Eclesiais de Base) pasó a ser dominado por un nuevo segmento, especialmente invitado entre los sectores más empobrecidos para sus emprendimientos empresariales: el religioso. Por esta razón, el objetivo es analizar el papel educativo que juegan las Comunidades Eclesiales de Base en la formación y organización de las masas trabajadoras y como consecuencias de su reflujo, que es concomitante con los procesos de pentecostalización en el cristianismo brasileño. Desde entonces, las masas se han enfrentado a una encrucijada planteada por el crecimiento de las religiones (neo)pentecostales asociadas con la teología de la prosperidad a medida que los movimientos populares y sindicales están en reflujo.

PALABRAS CLAVE cristianismo de liberación; teología de la prosperidad; movimientos sociales populares; movimiento sindical

ABSTRACT

This text synthesizes the onset, development, and collapse of Christianity of Liberation in its relationship with the working class. When the Vatican qualified the liberation theology as heresy in 1984, the space occupied by the Christian Base Communities (Comunidades Eclesiais de Base) became dominated by a new segment, attracting more underprivileged people to their religious business ventures. For this reason, this paper will analyze the educational role played by the Christian Base Communities in setting up and organizing the working masses and as a consequence of their reflux, which is concomitant with the processes of pentecostalization in Brazilian Christianity. Since then, the masses have been faced with a crossroads posed by the growth of (neo) pentecostal religions in a consortium with the prosperity theology as popular and union movements are refluxing.

KEYWORDS christianity of liberation; prosperity theology; popular social movements; trade union movement

INTRODUÇÃO

Os grupos religiosos pentecostais cresceram exponencialmente a partir da segunda metade do século XX, chegando a sua forma predominante atual, o neopentecostalismo1. Marcelo Badaró Mattos, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sistematizados por Ricardo Mariano, afirma que o crescimento percentual dessas Igrejas, aglutinadas em torno das ideias da dita “teologia da prosperidade”, chegou entre os anos de 2000 e 2010 a ser cinco vez maior que o crescimento da população brasileira como um todo. Os dados mostram que, na década de 1940, os evangélicos perfaziam 2,6% da população brasileira, passando para 3,4% na década seguinte, 4% em 1960, 5,2% em 1970, 6,6% em 1980, 9% em 1990, 15,4% em 2000, chegando a 22,2% em 2010. Mattos sustenta “que pode-se concluir que o avanço evangélico deu-se principalmente sobre um recuo do percentual de fiéis católicos” (Mattos, 2017, p. 145), que declinaram de 89,2% para 64,6% da população - queda de 24,6 pontos percentuais - entre 2000 e 2020. Enquanto isso, no mesmo período, os que se declararam evangélicos ao IBGE tiveram ascensão de 15,6 pontos percentuais, saindo de 6,6% para chegar, em 2010, à marca de 22,2%. Revela ainda o autor que

no caso das denominações pentecostais/neopentecostais, “permaneceram avançando, sobretudo, na base da pirâmide social: 63,7% dos pentecostais acima de 10 anos ganham até um salário mínimo, 28% recebem de um a três salários e 42,3% dos acima de 15 anos têm apenas o ensino fundamental incompleto”. (Mattos, 2017, p. 145-146)

Sendo assim, nota-se que as denominações religiosas evangélicas, movidas pelo crescimento das pentecostais, especialmente da tendência neopentecostal, cresceram ao tempo que a Igreja católica perdeu espaço nas comunidades habitadas pela população mais empobrecida. Isso nos moveu a buscar explicações para tal fenômeno. Essa alternância entre crenças religiosas e o interesse que conduz essas Igrejas a estar perto da base da classe trabalhadora não ocorre por acaso, e sua explicação está na realidade material que precisa ser conhecida em sua essência. Este texto foi construído com base nessa realidade objetiva e em estudos bibliográficos realizados acerca dessa temática, visando compreender o fenômeno inerente às concepções e práticas das Igrejas e suas reverberações na organização, na educação e na consciência da classe trabalhadora brasileira em seu conjunto.

Como explica Karel Kosik: é necessário que o exame de um fenômeno científico siga um método que possibilite novos resultados, e que se descubra o conteúdo que não está explícito no ponto de partida, mas que necessita de uma análise. Essa análise deve ser mediada pela identificação da célula nuclear do objeto, do fenômeno ou dos processos da realidade e de sua explicação categorial, a fim de se chegar ao fim de exegese e de se ter o mesmo fenômeno do ponto de partida, só que logicamente enriquecido - que possibilite sua exposição e de modo que o desconhecido deixe de ser um problema, pois se chegou, pela mediação do abstrato, à totalidade de múltiplas determinações e relações diversas (Kosik, 1976).

O exame das fontes que tratam do processo de substituição do lugar anteriormente ocupado pela Igreja católica e atualmente pelo neopentecostalismo está envolto numa totalidade, isto é, na realidade da sociedade capitalista. Como poderá ser observado neste texto, as tendências religiosas em questão movimentam-se, no interior da sociedade capitalista, com posicionamentos que vão da resistência ativa - visando melhorar ou transformar as relações sociais -, à total conformação - com um sistemático programa político voltado para a defesa dos postulados neoliberais, por meio dos quais se busca o consenso dos fiéis e seu comprometimento com a defesa intransigente e o aprofundamento da manutenção das relações sociais atualmente estabelecidas. Nas definições travadas historicamente nas Igrejas, sempre existiu um forte compromisso em disseminar a visão de mundo à qual se está afiliado, com base não só na atuação imediata com os crentes, mas imiscuindo-se na política e na educação escolar.

Diante do exposto, lançamos três hipóteses acerca da relação entre teologia da liberação, teologia da prosperidade e as perspectivas políticas e educacionais para as massas trabalhadoras:

  • o avanço dos movimentos ligados à teologia da prosperidade é simultâneo à implementação do neoliberalismo e, com efeito, as denominações religiosas disputam o consenso da visão de mundo inerente a esta fase imperialista do capital, na educação e na sociedade; logo, o neopentecostalismo busca a recristianização “pelo alto”, envolvendo-se com a política partidária e com a mídia eletrônica como formas de conduzir a “guerra espiritual”, e é igualmente guiado pela lógica empresarial e de neutralidade científica, que o faz agir pela defesa dos projetos legislativos de amordaçamento da prática pedagógica em torno da ideia de “escola sem partido”;

  • o Vaticano, durante o pontificado de João Paulo II, colaborou indiretamente para o progresso das entidades eclesiásticas e paraeclesiáticas neopentecostais - em que pesem as facções de tal igreja que aderiram à onda da pentecostalização por meio da “renovação carismática” - ao agir em prol da destruição do movimento do cristianismo de libertação, condenando sua variante, a teologia da libertação, de heresia e destroçando as Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Esse momento de vitória dos segmentos conservadores da Igreja católica destruiu um trabalho de educação e formação política das massas organizado pela Ação Católica, movimento que fora influenciado pelas atitudes renovadoras/progressistas desenvolvidas durante o pontificado de João XXIII;

  • o esvaziamento da atuação das CEB e a aproximação dos estratos mais pauperizados da classe trabalhadora ao neopentecostalismo os vinculam a um novo ethos, a ser prosseguido pelas atuais e novas gerações, no qual a perspectiva social e educativa popular vivenciada nas CEB a partir da década de 1960 se converte, paulatinamente, em empresarial e individualista/competitiva desde o final do século XX ao momento atual.

Ao analisar as hipóteses, será possível avaliar as estratégias das Igrejas com relação à sociedade e à formação de um ethos para as massas trabalhadores seguirem. Posto isso, iniciamos a análise pelo cristianismo de libertação e suas relações com as lutas proletárias na América Latina e no Brasil, chegando na sequência ao neopentecostalismo e sua teologia da prosperidade. Por último, apontamos possiblidades de resistência, que podem fortalecer a classe trabalhadora organizada, conforme perspectivas coerentes com seus interesses e necessidades.

O CRISTIANISMO DE LIBERTAÇÃO E AS LUTAS PROLETÁRIAS NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL

Após o golpe militar de 1964 no Brasil, como os partidos comunistas foram colocados na clandestinidade perante o estado de exceção explicitamente praticado na forma de perseguições, prisões, torturas, assassinatos, entre outros, os movimentos que se destacaram - como forma de resistência da classe trabalhadora à repressão - recorreram à luta armada e ao cristianismo de libertação.

Revela Michel Löwy (2016, p. 54) que “após 1967, muitos militantes e alguns dos principais líderes do PCB [...] deixaram o partido para fundar organizações de esquerda e engajar-se na luta armada”. Na mesma ocasião, cresceu no país um movimento de teólogos, intelectuais e integrantes da Igreja católica, que se espalhou por toda a América Latina e desenvolveu importante papel de conscientização política popular, denominado cristianismo de libertação.

Explica ainda Löwy que o cristianismo de libertação surgiu em meio a um processo de abertura da Igreja católica apoiado no Concílio do Vaticano II. Seus teólogos, de certo modo, foram autorizados a enfrentar velhas certezas dogmáticas. Isso, segundo Löwy, significou a implementação de uma conduta católica permeável a novas ideias e teorias. Abriu-se o catolicismo para o mundo e isso possibilitou que alguns de seus intelectuais, como teólogos e jesuítas, por exemplo, fossem “atraídos por análises e propostas marxistas - como ocorreu com grande parte dos intelectuais do continente durante a década de 1960” (Löwy, 2016, p. 60). Esse movimento foi, portanto, criado pelo envolvimento de cristãos em associações de bairro, sindicatos, movimentos estudantis, ligas camponesas, centros de educação popular, partidos de esquerda e organizações revolucionárias. Ele surgiu antes da teologia da libertação, como uma demonstração de insatisfação com a concepção dominante da Igreja, a “teologia do desenvolvimento”. A contribuição do cristianismo de libertação foi contundente ao orientar e organizar as lutas, promover a união entre movimentos proletários no Brasil e em outros países da América Latina.

A fim de dar sentido ao processo de abertura iniciado com o Concílio do Vaticano II, no ano de 1968, na cidade colombiana de Medellín, realizou-se a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Nesse evento foi aprovada a Declaração de Medellín, que, conforme sintetiza Eder Sader, consistiu em um “chamamento à ‘presença mais intensa e renovada da Igreja na atual transformação da América Latina’. Reconhecendo o momento como ‘decisivo’, aponta para a necessidade de conhecer o homem latino-americano” (Sader, 1988, p. 152). Representou tal conferência um processo conciliatório entre as alas conservadoras e progressistas, que enfatizaram as pautas referentes à denúncia das estruturas sociais que geram desigualdade, exploração e miséria. O autor define esse evento e sua declaração como decisivos para a formação das CEBs no continente latino-americano:

E daí decorrem recomendações para a “pastoral das massas”: estudos para se conhecer a religiosidade popular; impregnar manifestações populares, como romarias e peregrinações da “palavra evangélica”; “procurar a formação do maior número de comunidades eclesiais nas paróquias, especialmente nas zonas rurais entre os marginalizados urbanos. (Sader, 1988, p. 155)

No Brasil, foi a partir da reconfiguração de estruturas da Ação Católica que o cristianismo da libertação se aproximou das massas populares. Tal movimento foi criado e animado sob a organização e a direção intelectual de Alceu Amoroso Lima, um leigo que foi o intelectual de maior destaque da Igreja católica no país na primeira metade do século XX. Segundo Dermeval Saviani, a Ação Católica - estruturada a partir da década de 1930 em resposta ao crescimento do movimento renovador que ocorria na sociedade e na educação - comportava

uma militância mais ampla por meio de movimentos especializados destinados a aglutinar a juventude na Ação Católica abarcando as cinco vogais: Juventude Agrária Católica (JAC), Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Independente Católica (JIC), Juventude Operária Católica (JOC) e Juventude Universitária Católica (JUC), além das organizações dos adultos como os Homens de Ação Católica (HAC), “para os maiores de trinta anos e os casados de qualquer idade”, e a Liga Feminina de Ação Católica (LFAC), “para as maiores de trinta anos e as casadas de qualquer idade”. (Saviani, 2008, p. 256-257)

Na década de 1950 a Igreja católica iniciou um processo de renovação, adotando métodos pedagógicos e de análise filosófica da realidade referenciados no pensamento do padre Pierre Faure e baseados nas ideias de Montessori e Lubienska - a fim de manter a sobrevivência de seus colégios em um período em que os pais buscavam matricular seus filhos nas instituições escolares tidas como referência por sua vinculação com as práticas escolanovistas, em moda à época. “A Igreja necessitava renovar-se pedagogicamente sob o risco de perder a clientela. O caminho que a Igreja Católica encontrou para responder a essa exigência foi assimilar a renovação metodológica sem abrir mão da doutrina” (Saviani, 2008, p. 301-302).

O movimento renovador estende-se, então, para fora dos muros escolares no final da década de 1950 e no início da de 1960, lançando mão do processo de mobilização popular. Atendendo a essa tendência, a Igreja, inspirada no conceito de educação de base - criado e disseminado amplamente pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) para ser reproduzido nos países periféricos - e nas experiências educativas via rádio, deu origem ao Movimento de Educação de Base (MEB) e, posteriormente, afiliou-se ao Movimento Paulo Freire de Educação de Adultos (Fávero, 2006; Saviani, 2008). Para Saviani (2008, p. 303),

o MEB foi um movimento criado e dirigido pela hierarquia da Igreja Católica e o Movimento Paulo Freire, embora autônomo em relação à hierarquia da Igreja, guiava-se predominantemente pela orientação católica, recrutando a maioria de seus quadros na parcela dos movimentos estudantil vinculada à JUC.

Ainda esclarece esse autor que ambos os movimentos se inspiraram no personalismo cristão e na fenomenologia existencial, fato que se comprova no exame dos documentos do MEB realizado por Fávero (2006), cuja concepção ideológica e as noções das categorias consciência, politização, cultura popular, entre outras, são saturadas das noções filosóficas mencionadas.

De modo geral, há um consenso para a maioria dos estudiosos desse período de que o movimento renovador no Brasil liderado pela Igreja foi, de forma eclética e conciliária, uma alternativa inicial, reformista, à proposta capitalista, ao crescimento das ideias socialistas e comunistas no país, ao progresso das religiões pentecostais e da umbanda, à concepção de desenvolvimentismo e ao populismo, de adaptação ao reformismo pedagógico defendido pelos reformadores educacionais, que retiravam influência da igreja com a defesa da laicização do ensino. A mudança de postura e a adesão a um tom classista favorável às massas trabalhadoras sofreu a influência da produção intelectual desenvolvida no âmbito do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), bem como das contribuições de teóricos católicos que se aproximaram do marxismo - como foi o caso de um dos intelectuais mais influentes do MEB, o padre Henrique de Lima Vaz - e da participação de militantes comunistas que integravam a JUC e dirigiam a União Nacional dos Estudantes (UNE), além da aproximação com leigos que eram membros do Centro Popular de Cultura, da própria UNE, e foram simultaneamente educadores do MEB. Com tais aproximações e diante da necessidade de enfrentamento das forças contrarrevolucionárias que tramavam a tomada do poder (e efetivaram sua estratégia por meio do golpe de 1964), e especialmente após o Concílio do Vaticano II e a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, a influência popular amplificou-se no movimento de renovação católica, chegando, às vezes, a assumir uma perspectiva revolucionária e de defesa do socialismo, ainda que não fosse uma perspectiva predominante - bem diferente dos resultados que a hierarquia eclesiástica almejava nos momentos iniciais dessa renovação. Isso pode ser percebido no próprio MEB, que assume configuração de uma nova finalidade a partir dos anos de 1962 e 1963: a formação da consciência das classes populares, dos dominados (Sader, 1998; Fávero, 2006; Saviani, 2008; Cunha, 2009).

Durante o regime militar, as ações da Igreja foram reforçadas com o acolhimento de grupos derrotados pelas forças de repressão. A morte de Lamarca e Barreto pelo Exército, em dezembro de 1971, demarca essa nova fase, que se associa ao que Luiz Antonio Cunha identifica como crise de identidade dos partidos revolucionários, determinada pela falta de adesão das massas aos movimentos vanguardistas que adotaram a tática de guerrilha (Cunha, 2009). Para Eder Sader, a estratégia revolucionária não foi completamente extirpada. O que ocorreu foi certo revisionismo, cujo culto às virtudes da “paciência pedagógica” apontava para uma nova tendência de inserção das estratégias revolucionárias na formação das massas. Desse modo é que os grupos desgarrados dos partidos revolucionários se vincularam às ações coletivas de resistência organizadas no âmbito das pastorais da Igreja católica, em áreas rurais e nas periferias urbanas. Sendo assim, prospectavam “que ao longo dessas experiências - e desde que orientados por suas ‘vanguardas’ - os trabalhadores fariam o aprendizado que os levaria à consciência de classe” (Sader, 1988, p. 172). Entretanto, existia um conflito entre as teses da Igreja e a dos militantes, visto que as “pastorais não tinham um discurso capaz de dar conta dos problemas das lutas de classe e das condições da sociedade capitalista, tal como requeriam os militantes”. Com efeito, foi necessário aos militantes um ajustamento de suas teses, que foram “desarticuladas dos seus discursos de origem”, afinal “uma parcela crescente dos portadores das falas marxistas não estava mais ligada às organizações com programas e estratégias difundidas” (Sader, 1988, p. 177-178). Nutriam-se de teses formuladas por intelectuais como Gramsci e Paulo Freire. Na avaliação de Sader (1988, p. 168),

o fato é que, nessa “ida ao povo”, buscando ajudar num processo de fazer despertar a “consciência crítica”, o método Paulo Freire esteve mais presente que os escritos de Gramsci, “Que fazer”, de Lenin, os livrinhos de Mao e “Revolução na revolução”, de Debray de meteórica carreira. De um lado, porque o meio dominante de “ligar-se ao povo” foi através de processos educativos, a começar pela alfabetização. A demanda era grande, e a atividade - legal e aparentemente inocente - pôde ser bem desempenhada por estudantes avulsos como por militantes organizados. Os novos educadores se debruçaram sobre os livros de Paulo Freire - torceram o nariz para seu idealismo filosófico e humanismo cristão - e procuraram absorver suas orientações metodológicas para a alfabetização popular. [...] através do método Paulo Freire abria-se um lugar para a elaboração crítica e coletiva das experiências de vida individual e social dos educandos.

Ainda que não estivessem de acordo com a perspectiva revolucionária e não objetivassem a tomada do poder, as atividades desenvolvidas no processo de renovação da Igreja católica contribuíram para certa elevação das massas com relação ao conteúdo da realidade opressora e ao enfrentamento do regime militar. Com o endurecimento da ditadura e os ataques contra a ala progressista, a Igreja articulou-se com movimentos sociais e com o “novo sindicalismo”. Sader explica que, quando deflagrado o golpe em 1964, “a repressão se abateu sobre os núcleos da Ação Católica e mesmo o MEB e os sindicatos rurais [...] os setores mais conservadores, desbancaram os renovadores e os abandonaram à própria sorte os grupos perseguidos”. Foi daí que as “novas levas de militantes católicos preferiam as atividades nas quais se opunham à ordem vigente, correndo os mesmos riscos que a militância de esquerda”. Todavia, no ano de “1969, após a decretação do Ato Institucional n. 5, que marcaria o auge da militarização do regime”, os setores conservadores da hierarquia da Igreja não foram poupados e sofreram as consequências da perda de posição perante os militares. Com efeito, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ampliou seu apoio aos “agentes pastorais que se ligavam a organizações populares e eram perseguidos”, ainda mais depois das “arcas de barbarismo que impediam qualquer justificativa: um auxiliar de dom Helder fora sequestrado e martirizado e seu corpo deixado exposto pelos assassinos” (Sader, 1988, p. 150-151).

Nos momentos finais da ditadura brasileira, nota-se, segundo Leôncio Martins Rodrigues, o importante papel de alas progressistas da Igreja católica - para o movimento sindical brasileiro e, mais ainda, na aproximação e integração de vários movimentos populares e o sindicalismo autêntico2. Elas contaram não só com total apoio, mas também com a atuação direta de intelectuais que fundaram a teologia da libertação no processo de fundação, no final da década de 1970, do novo sindicalismo brasileiro, em torno da luta pelo fim do regime militar e por transformações sociais, cujas pautas revelam articulação com caráter político e fornecem indicativos de um projeto democrático e socialista.

Na avaliação de Löwy (2016), o cristianismo de libertação iniciado na década de 1960, em seu conjunto, ganhou impulso com a criação da teologia da libertação. Em 1971, com o livro do padre peruano Gustavo Gutiérrez intitulado Teologia da libertação: perspectivas, foi fundamental para “o surto revolucionário na América Central” e a “formação dos novos movimentos operários e populares no Brasil”. Segundo Löwy, tal conjuntura histórica não pode ser compreendida sem se considerar esse “fenômeno novo e inesperado - a radicalização de amplos setores cristãos e sua atração pelo marxismo” (Löwy, 2016, p. 59).

Os pobres eram vistos por esse padre peruano como sujeitos de sua própria libertação e não como objetos de pena e caridade e, com esse pensamento, Gutiérrez rechaça a teoria católica do desenvolvimento, que, sob seu ponto de vista, não era favorável à libertação dos povos. Ao propugnar a tomada de poder pelos subalternos, Gutiérrez fui um defensor da revolução socialista, da destruição radical do estado da sociedade capitalista, para ele a condição para a transformação das relações de propriedade (Löwy, 2016). Ainda segundo Löwy, nessa perspectiva se destacou também o empenho de pioneiros da teologia da libertação no continente, tais como: Hugo Asmann, os irmãos Leonardo e Clodovis Boff, Frei Betto, Ignácio Ellacuria - assassinados pelos militares de El Salvador -, Jon Sobrino e Pablo Ricards.

Rodrigues (1991) aponta para esse processo de “‘esquerdização’ do comportamento da Igreja em sua franca oposição ao governo militar” e para o “modelo econômico capitalista”, cuja contribuição da Pastoral Operária, a partir de 1974, foi fundamental para a aproximação do movimento sindical com os populares, tendo o bairro, nesse período, como um dos locais onde ocorria a articulação operária.

Embora houvesse certo apelo ao populismo, a metodologia de trabalho utilizada pela Igreja nas reuniões das CEB pautava temas que estimulavam a reflexão crítica das massas populares e contavam com a presença da militância, que instigava a conscientização e a ação política das massas. Basicamente o debate dos temas nas reuniões era dinamizado pelo método “ver-julgar-agir”. Sader esclarece que com tal método

se pretende efetuar uma reflexão crítica e voltada para a prática, de modo que as privações vividas deixem de ser consideradas como fatalidades. O “ver” consiste numa sucessão de observações de cada um dos presentes sobre o tema em questão (que pode ser o menor abandonado, os conflitos matrimoniais, o custo de vida, as drogas, as eleições ou qualquer outro que interesse os presentes), aduzindo elementos da experiência e as opiniões, muitas vezes refletindo as representações dominantes sobre o assunto. O objetivo é, do confronto das observações, caminhar das impressões superficiais para uma compreensão mais objetiva e que relacione o fata com suas causas. O momento de “julgar” implica o contraste entre a realidade observada e os valores de cristianismo, frequentemente através da questão “como é que Jesus agiria diante disso?” Os fatos da realidade são julgados por uma exigência ética, na medida em que a “palavra de Deus” é trazida para o plano do vivido presente. Finalmente, no “agir” trata-se de concluir sobre aquilo que aquelas pessoas poderiam fazer diante do problema. Por mais insignificante que possa parecer a iniciativa local diante da dimensão do problema tratado (a decisão de fazerem compras comunitárias depois de ter discutido sobre a carestia, por exemplo), o fundamental terá sido a experiência da possibilidade de intervir coletivamente sobre a realidade dada, engajando cada um pessoalmente nesse processo. (Sader, 1988, p. 160)

Este método de trabalho com grupos estava de acordo com as noções do personalismo cristão e da fenomenologia existencial e fazia-se presente em todas as ações de mobilização de educação popular da Igreja. Fundamentava-se basicamente nas categorias conscientização, politização, libertação e em ensinar a cultura popular. Ao modo do personalismo, o objetivo era atingir uma suposta libertação pessoal por meio da ação política (parte prática ou momento de ação após a conscientização), com base na comunicação das consciências, mediatizada pelo mundo. O conceito de libertação aqui não se associa ao de libertação nacional, tampouco ao de emancipação por meio de um processo coletivo, de caráter revolucionário, nas massas. A libertação é simplesmente um processo de “despertar das consciências”. A categoria é, portanto, atomizada, circunscrita na esfera da individualidade, sem negar a coletividade - cujo caráter é comunitarista e de valorização das experiências vividas pelo sujeito na produção da sua existência como ser social em meio à cultura popular. Como explica Sader (1988, p. 165):

Aparecendo mais deslocada dos processos de mudanças institucionais (não apenas de fato, como pode também acontecer com a noção de revolução, mas também de direito, porque pertence a um outro registro), a “libertação” não permite sua operacionalidade através de alguma racionalidade estratégica. Por isso mesmo suas manifestações na experiência cotidiana (vistas como sinais em sua direção) não são tanto grandes processos coletivos que afetem as estruturas sociais quanto o “despertar das consciências” e o desencantar de práticas através das quais cada pequena coletividade se sinta “sujeito de sua própria história”. Não tendo por objetivo central a instauração de uma nova estrutura, mas, antes que isso, a instrução de novos sentidos e valores nas ações humanas, a valorização prioritária é a que se refere à promoção dos indivíduos que ocorre no seio das comunidades.

Como destaca Osmar Fávero, os trabalhos de Paulo Freire e do Padre Henrique de Lima Vaz fundamentam a concepção filosófica da tríade conscientização-politização-libertação. Todo grupo cristão que se lançou na prática educativa e política a partir da década de 1960 inspirou-se nessa concepção. Tomando os trabalhos do padre Vaz como objeto de análise, Fávero explica que, com base na “dialética do senhor e do escravo”,

“o conflito de duas consciências que entraram em luta para dar ao mundo uma significação de serviço a uma delas”, e “o êxito da luta vai conduzir à servidão de uma das consciências”. Com base nessa dialética da dominação, em que o mundo serve de intermediário entre duas consciências em luta, afirma Vaz que a dialética de comunicação das consciências exige três termos: duas consciências que se opõem e o mundo que estabelece uma mediação entre essas consciências. E esse mundo deve ser conhecido e transformado com vista à realização plenamente humana do homem. (Fávero, 2006, p. 70)

Diante do exposto, é notável a esperança de uma conciliação de consciências entre as classes sociais, com possíveis resultados práticos benéficos para ambas as partes - entre dominadores e dominados. Espera-se, de acordo com essa tendência fenomenológica existencial e personalista cristã, que a comunicação das consciências resulte em paz entre as classes. A dominação não seria o problema. O grande entrave estaria na conduta dos dominadores, e a “significação, o sentido mais profundo da história, a síntese final, deve ocorrer ‘em termos de reconhecimento, de reconciliação; em termos de aceitação dos homens: que estes se aceitem entre si, como homens, através de suas exigências mais profundas como pessoas’” (Fávero, 2006, p. 70).

O idealismo dessas correntes estendia-se à noção de cultura popular. Demarcada pelo conceito antropológico de cultura, a defesa da elevação da cultura popular fortalece-se, no Brasil, no âmbito das diversas ações desenvolvidas por militantes, universitários e cristãos na década de 1960. Fávero (2006) aponta para a provável influência das discussões e experiências de movimentos europeus, particularmente do francês Peuple et Culture (PEC). Uma das coordenadoras nacionais do MEB, Vera Jaccoud, inovou ao propor um plano de trabalho de elevação da cultura popular para complementar o trabalho de educação de base no Brasil, após ter estagiado no PEC, na França, e ter conhecido a experiência de um projeto de animação cultural em Marrocos. Como as primeiras experiências do MEB foram por meio de escolas radiofônicas, especialmente para a população rural, a proposta de Vera foi de realização de “caravanas populares de cultura”. Dado o estudo em pauta, interessa-nos dessa proposta o entendimento do conceito de cultura popular tomado como referência pelas atividades das CEB em seu conjunto. A partir da polarização com a cultura das elites, predomina um sentido de

necessidade de ajudar o povo a formar “um pensamento seu”, através de conhecimento das realidades local, regional, nacional e internacional, em todos os setores de interesse: familiar, político, social e econômico, religioso e cultural, com vistas a propiciar o nascimento de uma “consciência popular”, de uma “consciência crítica” diante dos fatos e das notícias que chegam do meio rural. (Fávero, 2006, p. 82)

Ainda que com limites, como a falta de perspectiva de superação das classes sociais e as explícitas admissão e aceitação da existência de dominadores, as ações conduzidas pela Igreja católica, especialmente por meio das CEB, foi essencial para a elevação intelectual das massas populares e a luta por condições mais dignas de existência.

Acontece que o Vaticano empreendeu ofensiva contra o cristianismo de libertação e, em 6 de agosto de 1984, foi publicada a Instrução quanto a certos aspectos da Teologia da Libertação, da Congregação para a Doutrina da Fé, dirigida pelo cardeal Joseph Ratzinger, que “denunciou a teologia da libertação como uma nova heresia baseada no uso ‘indiscriminado’ de conceitos marxistas” (Löwy, 2016, p. 61). Uma das repercussões dessa prática conservadora no Brasil foi, no ano de 1985, a imposição do voto de silêncio aos integrantes da Igreja, movido por relato de Ratzinger e aplicado contra os irmãos Leonardo e Clodovis Boff (Fontes, 2010).

As consequências da ofensiva contrarrevolucionária do Vaticano abriram espaço não só para o enfraquecimento da própria Igreja católica como também para o progresso das igrejas evangélicas, atreladas às vertentes pentecostal e neopentecostal, nas comunidades em que o trabalho dos integrantes da teologia da libertação fora extinto. Sem dúvida, o aspecto destrutivo da “caça às bruxas” empreendida pelo cardeal Joseph Ratzinger e seu grupo conservador rendeu prejuízos maiores não à Igreja, mas às possiblidades de libertação dos trabalhadores do jugo da escravização social, especialmente nas periferias e favelas dos grandes centros urbanos, conforme explica Mattos (207, p. 145):

A quebra das CEB3 e dos movimentos por elas impulsionados serviu para afastar a Igreja Católica não só das parcelas mais organizadas, mas também das mais precarizadas da classe trabalhadora. Se nas lutas de trabalhadores rurais a Comissão Pastoral da Terra continuou e continua representando um instrumento a serviço da resistência, nas favelas e periferias das grandes cidades o encolhimento do catolicismo progressista abriu espaço para a ascensão pentecostal/neopentecostal.

Ao condenar a teologia da libertação como heresia, o Vaticano cooperava com a submissão dos povos explorados à violenta sede de poder neoliberal. Esta, na visão de David Harvey, não foi mais que um projeto voltado para restaurar o poder de uma classe, a burguesia, ameaçado pela perspectiva de os trabalhadores controlarem a sociedade, e pelas baixas na acumulação capitalista durante o processo de liberalismo embutido, ou seja, o estado de bem-estar social da perspectiva keynesiana. A Igreja católica foi coerente com essa nova investida do capital, cuja primeira experiência foi desenvolvida no Chile, na década de 1970, sob a ditadura de Augusto Pinochet e o comando do “The Chicago Boys” - grupo vinculado à Universidade de Chicago, que gestou a concepção neoliberal, e localmente à Universidade Católica de Santiago e ao grupo de empresários antiesquerdistas “Clube da Segunda-Feira” (Harvey, 2014). De todo modo, os efeitos foram trágicos para a classe trabalhadora, perante a ofensiva a fim de interditar sua organização e unidade em prol da transformação social, como se verifica na sequência.

OS EMPREENDIMENTOS EMPRESARIAIS/RELIGIOSOS E A APROXIMAÇÃO COM OS SETORES MAIS PAUPERIZADOS DA CLASSE TRABALHADORA

O refluxo da teologia da libertação deu espaço para a entrada vigorosa da concepção teológico-política-empresarial da teologia da prosperidade. Em sua essência, em sentido completamente antagônico ao do trabalho realizado pelas CEB, a concepção ideológica disseminada pelas denominações religiosas e paraeclesiáticas neopentecostais sustenta a profunda “adaptação à ordem por meio da ideia de esforço individual e alicerça uma expressão empresarial das igrejas em diversos setores econômicos, particularmente no das comunicações” (Mattos, 2017, p. 146). Com efeito, o forte apelo motivacional que fomenta a edificação de personalidades individualistas, competitivas e despudoradas pela cega ganância - pelo “vale-tudo” para conseguir um lugar de prestígio - está em conformidade com o estímulo geral do empreendedorismo, cuja estrutura tentacular ou de pirâmide financeira, que predomina nessas agremiações político-ideológicas ditas cristãs, se soma a

um projeto político orientado para a ocupação de espaços no aparelho de Estado por parte de lideranças religiosas com posturas conservadoras em relação aos costumes e, na maior parte das vezes, posições alinhadas ao neoliberalismo no debate político-econômico. (Mattos, 2017, p. 147)

Segundo Ricardo Mariano, o movimento neopentecostal representa a terceira onda das tendências pentecostais (as demais são pentecostalismo clássico e deuteropentecostalismo), e foi importada para o Brasil pela Igreja Nova Vida, fundada em 1960 pelo Missionário canadense Robert McAlister. As amostras iniciais da tendência neopentecostal foram popularizadas a partir da segunda metade dos anos 1970, tendo crescimento ascendente nas décadas de 1980 e 1990. Foi McAlister o mentor intelectual dos religiosos que deram sequência ao seu trabalho no Brasil e fundaram as primeiras denominações neopentecostais criadas no estado do Rio de Janeiro. Foi o caso de Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, criada no ano de 1977; de Romildo Ribeiro Soares, autoridade máxima da Igreja Internacional da Graça de Deus, concebida em 1980; e da Igreja Cristo Vive, fundada por Miguel Ângelo em 1986. “Estas três, ao lado da Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (Goiás, 1976), Comunidade da Graça (São Paulo, 1979), Renascer em Cristo (São Paulo, 1986) e Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (São Paulo, 1994)”, constam entre as principais igrejas neopentecostais surgidas no período” (Mariano, 2014, p. 32). Ainda conforme Mariano explica, tais denominações (Universal, Internacional da Graça de Deus e Cristo Vive) destacaram-se por práticas espetaculares que chamaram a atenção do público e que ainda atraem muitos adeptos. São exemplos “entrevistar demônios” e “combater cultos afro-brasileiros”. Todo o processo de quebra com o “legalismo pentecostal” teve início na Igreja que foi fonte originária das denominações neopentecostais, a Nova Vida. Foi nela que “Edir Macedo, R. R. Soares e Miguel Ângelo deram também seus primeiros passos rumo à Teologia da Prosperidade” (Mariano, 2014, p. 42) e que se desenvolveram as primeiras táticas tidas como inovadoras com relação ao que costumeiramente era praticado no âmbito das religiões pentecostais. O aspecto do mundanismo foi diferencial. Mais tarde, no escopo das denominações criadas por Macedo, Soares e Ângelo, esse aspecto exacerbou-se e foi além das entrevistas com demônios e duro combate às religiões de matriz africana, subsumindo também as marcas do sectarismo pentecostal clássico de vida devota, ascética, apolítica e à espera de salvação divina (Mariano, 2014).

Mariano elenca, pelo menos, seis aspectos de vinculação entre todas as tendências pentecostais. Para ele, pentecostais clássicos, deutoropentecostais e neopentecostais compactuam:

  • do antiecuminismo;

  • da organização das Igrejas centradas nas figuras de líderes fortes;

  • da necessidade de uso extensivo dos meios de comunicação de massa;

  • do apelo/estímulo à expressividade emocional nos cultos;

  • da participação ativa na política partidária;

  • da pregação da cura divina.

A fim de apresentar os aspectos que diferenciam a tendência dominante, isto é, o neopentecostalismo, afirma Mariano (2014, p. 36) que Igrejas que se circunscrevem nessa vertente são marcadas pela

  • “exacerbação da guerra espiritual contra o Diabo e seu séquito de anjos decaídos”;

  • “pregação enfática da Teologia da Prosperidade”;

  • “liberalização dos estereotipados usos e costumes de santidade”; e

  • “o fato de elas se estruturaram empresarialmente”.

Em suma, as diferenças teológicas em relação às vertentes anteriores, mas com ênfase no exorcismo; as diferenças comportamentais, com o abandono do ascetismo intramundano; e as diferenças sociais, com a diminuição do sectarismo, são demarcadores que tornam as neopentecostais uma tendência que ganhou organicidade e se alçou à condição predominante entre as pentecostais, a ponto de fazer com que as demais vertentes se sintam compelidas a realizar mudanças para se manterem e atraírem novos fiéis. Acerca das tendências, conclui o autor que:

o que justifica a divisão entre pentecostalismo clássico e deuteropentecostalismo é, sobretudo, o corte histórico-temporal, os quarenta anos que os separam. No caso do neopentecostalismo, porém, são suas consideráveis distinções de caráter doutrinário e comportamental, suas arrojadas formas de inserção social e seu ethos de afirmação do mundo [...] “quanto menos sectária e ascética e quanto mais liberal e tendente a investir em atividades extraigreja (empresariais, políticas, culturais, assistenciais), sobretudo naquelas tradicionalmente rejeitadas ou comprovadas pelo pentecostalismo clássico, mais próxima tal hipotética igreja estará do espírito, do ethos e do modo de ser das componentes da vertente neopentecostal. (Mariano, 2014, p. 37)

Por todos os dados e informações até aqui analisados, pode-se inferir que numerosa fração da classe trabalhadora está cada vez mais submetida à influência dessa tendência religiosa. Completamente oposto à teologia da libertação está o norte teológico do neopentecostalismo, isto é, a teologia da prosperidade. Tal concepção, inventada por Kenneth Hagin, foi rapidamente difundida entre pregadores e líderes ministeriais estadunidenses. O leitmotiv dessa teologia é a inteira dedicação a este mundo e a esta vida e, por essa razão,

seu discurso focaliza prioritariamente a existência neste mundo e promete que o cristão há de se dar bem nele. [...] Pretendem transformar a sociedade através da conversão individual e da inculcação da moral bíblica, mas também (o que é novo) da realização crescente de obras sociais, da participação na política partidária, da conquista de postos de poder nos setores privado e público e do uso religioso do rádio e da TV. (Mariano, 2014, p. 45)

A teologia da prosperidade é coirmã da teologia do domínio - sustentáculo da guerra espiritual. Da teologia do domínio deriva a exacerbação do exorcismo nos cultos de libertação, como ocorre na Igreja Universal, que concede “ao Diabo e aos demônios, identificados às entidades e aos desses das religiões afro-brasileiras e espíritas, destaque e importância sem precedentes”. A essencialidade da guerra espiritual extrapola os performáticos rituais de exorcismo, tanto que denominações não o praticam e nem por isso deixam de ser neopentecostais. O que está em jogo não se adstringe ao mundo invisível e possui consequências objetivas, convertidas em ações práticas no mundo concreto. Seu corolário é: a busca intensa da “recristianização da sociedade ‘pelo alto’, quer dizer, pela via político-partidária e, acrescentaria, pela mídia eletrônica” (Mariano, 2014, p. 44). Com efeito:

Invertem a postura pentecostal tradicional de rejeição à busca da riqueza, ao livre gozo do dinheiro, do status social e dos prazeres deste “mundo”. Em seu lugar pregam a Teologia da Prosperidade, doutrina que, grosso modo, defende que o crente está destinado a ser próspero, saudável e feliz neste mundo. [...] o principal sacrifício que Deus exige de seus servos, segundo essa teologia, é de natureza financeira: ser fiel nos dízimos e dar generosas ofertas com alegria, amor e desprendimento. [...] Sem culpas, sem rodeios ou escamoteações, esses crentes estão legitimamente interessados em bem viver a vida. Não é à toa que os testemunhos de bênçãos dos crentes bem-sucedidos levados ao rádio e à TV, além de discorrerem sobre conversão a Jesus, renúncia às religiões idólatras, casamentos restaurados, curas milagrosas, superação da depressão, do alcoolismo, do uso de drogas e até do envolvimento em crimes, falam de empregados que se tornaram patrões, aquisição de carros e imóveis luxuosos, de lucro nos negócios, de sucesso e vitória nas mais variadas atividades. (Mariano, 2014, p. 44-45)

É ainda específica ao neopentecostalismo a organização em torno de paraeclesiáticas, consubstanciadas pela teologia da prosperidade. Alguns exemplos dessas entidades são a Mocidade Para Cristo (MPC), a Associação de Homens de Negócio para o Evangelho Pleno (ADHONEP), o Comitê Cristão de Homens de Negócio (CCHN) e a interdenominacional Atletas de Cristo no Brasil. O exemplo da ADHONEP é emblemático sobre o modo de operação dessas entidades. Segundo Mariano (2014, p. 40), tal paraeclesiática possui como “principal estratégia conversionista” a realização de “jantares, almoços, cafés da manhã e banquetes para, por meio de testemunhos de bênçãos financeiras, conjugais e de cura, converter os convidados, geralmente profissionais liberais, empresários, executivos e até prefeitos e governadores”.

O modelo de relações humanas inerente à teologia da prosperidade é o mesmo do neoliberalismo, cuja base é o “empreendimento”. Com efeito, explica Luiz Carlos de Freitas, esse modelo “expressa o ‘empreendedorismo’ dos seres humanos, constituindo a fonte de liberdade pessoal e social e cuja organização mais desenvolvida é a ‘empresa’” (Freitas, 2018, p. 31). Tudo se resume “à ideia de ‘mérito’, de ‘resiliência na adversidade’: melhorar de vida depende do mérito acumulado, aproveitando oportunidades - algo que pode ser traduzido em ‘empreendedorismo’ e que Chauí (2017) define muito bem como ‘ser um vendedor de si mesmo’ em um livre mercado”. A visão comum inerente ao neoliberalismo “fornece também as bases para explicar o ‘fracasso’ dos indivíduos”. Seguindo a orientação de um dos principais apóstolos do neoliberalismo, James Buchanan, compactuam os neoliberais com a ideia de que “aquele que não se empenha, vindo a não ter como atender as suas necessidades futuras, ‘deve ser tratado como um membro de inferior espécie, similar [...] aos animais que são dependentes’” (Freitas, 2018, p. 115).

Esse é o novo modelo de cristianismo em ascensão em nosso país e do qual nossa classe trabalhadora tem estado muito próxima desde o declínio dos movimentos afiliados à teologia da liberação. Em síntese, ocorreu a migração do ethos da libertação individual, mediado por uma consciência crítica de mundo e de homem, afirmador da solidariedade comunitária, para um ethos do empreendedorismo, mediado pela consciência individualista e egoísta, afirmador do mundo dos melhores, do qual as “frutas podres” devem ser eliminadas.

A desastrosa situação mais recente mostra toda a regressão e destruição de princípios fundamentais, entre eles o respeito à vida, a que os movimentos da teologia da prosperidade estão alinhados. Perante a atual pandemia do novo coronavírus responsável por provocar a doença COVID-19, de grande letalidade no mundo, muitos desse grupos religiosos corroboram a postura do presidente da República e seus correligionários. Desde o primeiro momento, Jair Bolsonaro age com deboche e em prol da disseminação da pandemia, com total desprezo pelas vidas humanas. Sua atitude foi reforçada por seus ministros mais leais e seus filhos, que se utilizam de suas funções parlamentares para executar seus serviços de comandantes do “gabinete do ódio”4. Por isso, sua postura e a de seus seguidores tem sido a de relativizar o contexto global de caos nos sistemas de saúde e funerários e de crescente letalidade, e até mesmo de propagar curas místicas desde que os fiéis paguem por isso5.

Muitas das lideranças de tais Igrejas aproveitaram-se da oportunidade e foram eleitas para cargos executivos e legislativos. A Convenção das Assembleias de Deus publicou em seu site nota sobre o seu orgulho de “ter ajudado a eleger 110 vereadores, 5 prefeitos e 4 vice-prefeitos ligados a ela nos últimos pleitos” (Dip, 2018, p. 25). Ao descrever a atuação da bancada evangélica no Congresso Nacional, Andrea Dip narra a prática da “Comissão Pró-Política”, que se ocupa de ampliar atividade política dos evangélicos a ela ligados e da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), presidida por Hidekazu Takayama (Partido Social Cristão do Paraná - PSC-PR), “que responde a processo do STF por peculato, estelionato e crime contra a ordem tributária” (Dip, 2018, p. 26). Por intermédio de projetos de lei, projetos de emenda constitucional, uso da palavra durante as seções e a realização de cultos na Câmara dos Deputados Federal, revela-se o projeto de poder da “bancada da Bíblia”.

O pastor e capelão do culto - que acontece semanalmente na Câmara - é o deputado Francisco Eurico da Silva, o Pastor Eurico (PSB-PE), que cumpre seu segundo mandato6. Com as palmas das mãos direcionadas aos céus e olhos fechados, ele conduz a oração de abertura. Membro atuante da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional (FPE), Eurico é coautor de um PL que visa a sustar o decreto que permite o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais. É também o autor de um projeto de decreto legislativo (PDL) cujo objetivo é derrubar a resolução do Conselho Federal de Psicologia que estabelece normas de atuação em relação à orientação sexual e proíbe a terapia de reorientação sexual, conhecida como “cura gay”. Apresentou também o PL n. 6.055/2013, para revogar a lei que garante o atendimento obrigatório e integral às pessoas que foram vítimas de violência sexual. [...] Pastor Eurico disse: “Vá até esses delinquentes mirins e ofereça uma boa casa, vida com dignidade, escola, tudo. Você vai encontrar um monte que não quer, que quer viver na bandidagem. Hoje é 16 anos; se amanhã for para 14, eu voto a favor, não quero nem saber. [...] Cadeia é lugar onde se pensa. O problema é que aqui se afrouxa a cadeia. O nosso sistema tem que mudar? Tem. A condição é sub-humana? É. Vive feito bicho? Vive. Em uma cela para dez [pessoas] tem cinquenta. Eu sei disso. Mas não fui eu que cometi crime. Todo menino bandido agora passou a ser boa pessoa. O que esse pessoal quer? Pega os meninos e leva para casa, para viver com sua família”. (Dip, 2018, p. 23-25)

Além desses posicionamentos, a “bancada da Bíblia” defende outras bandeiras no âmbito da segurança pública - na mesma perspectiva apontada por Francisco Eurico da Silva -, da família tradicional, da militarização das escolas, do Projeto Escola Sem Partido.

Essa bancada foi decisiva para a deflagração do golpe institucional de 2016, que deu sequência à ofensiva da classe dominante e foi perpetrado pela articulação entre a grande mídia, o judiciário e expressiva parte do parlamento a fim de facilitar que as medidas a favor da acumulação capitalista, que não foram completamente exequíveis nos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pudessem ser garantidas. Elas incluem: o cerceamento do direito de greves dos trabalhadores; reformas trabalhistas; terceirização irrestrita; reforma do ensino médio de acordo com os interesses de empobrecimento da formação dos mais pobres e implementação de uma Base Nacional Comum Curricular coerente com essa perspectiva esfaceladora da educação da classe trabalhadora; destruição de programas de incentivo ao desenvolvimento científico; instituição de programa de apoio à militarização da escola, ao mesmo tempo em que as escolas públicas sofrem severas restrições financeiras, mediante a ampliação das políticas de congelamento do gastos, para desviar os gastos governamentais, para rentabilizar os investimentos privados por meio do pagamento de juros da dívida pública; intervenção nas unidades por meio da escolha de reitores não eleitos democraticamente; reforma da previdência, que praticamente tira da maior parte dos trabalhadores brasileiros a possiblidade de uma aposentadoria digna, entre outras ações que expressam a ofensiva do capital sobre o trabalho.

Todo o ocorrido demonstra que as Igrejas, ainda que resolvam adotar uma postura progressista, não devem conduzir o proletariado. Nada impede que instituições religiosas ou quaisquer outras se coloquem ao lado da defesa dos interesses das massas, mas é a classe trabalhadora organizada que deve assumir a responsabilidade de lutar pela transformação da sociedade. Responsabilizar Igrejas ou delas ter dependência significa deixar as massas sob a condução de interesses que podem ser alterados e tornar-se rapidamente conservadores. Por esse motivo, é necessário que as consciências sejam libertadas de “qualquer assombração religiosa”, como defendeu Karl Marx. E “o governo e a Igreja devem antes ser excluídos de qualquer influência sobre a escola”, a fim de que ocorra a necessária elevação intelectual de uma consciência proletária desantropomorfizada e de que o Estado possa “receber do povo uma educação muito rigorosa” (Marx, 2012, p. 46), ao ter a classe, que necessita transformar a sociedade, destruindo a forma atual do Estado burguês, por meio do aniquilamento das classes, condição para a igualdade real e essencial entre todos os sujeitos.

Posto isso, demanda-se um novo posicionamento por parte dos movimentos populares e revolucionários. Cada vez mais, sindicatos, partidos e movimentos de luta populares deparam-se com a iminência de reavaliação de suas estruturas convencionais, estratégia e táticas. Diante do exposto, na encruzilhada histórica que vivemos, o que fazer?

O QUE FAZER? AS PERSPECTIVAS PARA O DESENVOLVIMENTO DA LUTA POLÍTICA EM TORNO DOS INTERESSES HISTÓRICOS DOS TRABALHADORES

A história mais recente dos movimentos proletários, especialmente na década de 1990 - com o recuo de partidos políticos de esquerda e o enfraquecimento dos sindicatos brasileiros, mediante a atitude da maior central do país, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), de adotar um sindicalismo propositivo de conciliação com o governo e os patrões -, aponta para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) como o primeiro em defesa e de acordo com as necessidades históricas impostas pelas perspectivas hegemônicas, que clamam pela superação das relações de exploração. Entretanto, outro movimento também teve esse entendimento e foi concebido para organizar os trabalhadores colocados na humilhante situação de não ter acesso a moradia nas áreas urbanas. Trata-se do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Dois grandes fatos recentes demonstram que o MTST desempenhou um papel de mobilização que, na década de 1980, era típico dos movimentos sindicais. No primeiro deles, o MTST, com outros movimentos sociais da classe trabalhadora, impulsionou o crescimento do movimento grevista no país, a partir das ainda que contraditórias jornadas de junho de 2013. Por se tratar de um movimento, como descreve Mattos (2017), mais ou menos espontâneo, essas jornadas foram objeto de disputa por parte da classe dominante brasileira que, de maneira oportunista, aproveitou-se para infiltrar-se em suas representações sob o pretexto de que estava, de maneira apartidária, lutando contra a corrupção no país. Ainda segundo a análise desse autor, o “legado de junho” foi ambíguo, pois ao tempo que alimentou as lutas proletárias, com a realização de greves e ocupações urbanas da luta pela moradia, trouxe de “volta às ruas (50 anos após as mobilizações reacionárias que justificaram o golpe de 1964)” as “organizações financiadas por representações nacionais e internacionais do capital, com bases sociais dos setores médios, apresentando pautas explicitamente reacionárias” (Mattos, 2017, p. 143), como, por exemplo, apelos pela intervenção e instauração de um novo regime militar, somados aos clamores por maior neoliberalização da economia.

Do ponto de vista do interesse da classe trabalhadora, as “jornadas de junho”, por meio dos movimentos grevistas e das ocupações urbanas, organizaram-se para apresentar um conjunto de pautas urgentes e necessárias que extrapolavam as preocupações com a inclusão pelo consumo, que foi central nos governos conciliatórios com a classe dominante, sob a liderança do PT. Tratava-se, portanto, da exposição de uma pauta que retratava o conjunto de necessidades imediatas da classe trabalhadora, que estava esquecido pelo poder público e pelos organismos sindicais e partidos políticos de esquerda, envoltos no destrutivo projeto da institucionalização e burocratização. As lutas dos movimentos populares exigiam condições dignas de vida e trabalho que se relacionam com temas urgentes da atualidade, como transporte urbano, violência policial, mais gastos governamentais na saúde e educação, e essa pauta “unificava interesses imediatos tanto dos setores formais quanto informais” que não se calaram na “reivindicação por direitos sociais universais” (Mattos, 2017, p. 142).

O grande desafio daquele contexto, que acabou colaborando para o crescimento da estratégia de infiltração da classe dominante, ainda de acordo com Mattos, foi que não havia uma “organização ou conjunto de organizações da classe que pudesse unificar aquelas demandas dispersas das ruas em um programa e centralizar a luta em direção a sua efetivação”, sobretudo em um cenário em que

partidos de esquerda e centrais sindicais não tiveram papel nas convocações e foram inclusive hostilizados pela maioria dos manifestantes, em parte como consequência do desgaste dos governos petistas - e da associação, no senso comum, de toda a esquerda com o PT. (Mattos, 2017, p. 142-143)

Quando se fala que as “Jornadas de Junho” foram praticamente espontâneas e que seu legado, do ponto de vista da classe trabalhadora, não pode ser continuado, em outras palavras se está anunciando que não houve um conjunto de organizações e movimentos articulado. Talvez essa articulação esteja ou possa vir a estar em curso, tomando-se como referência o segundo grande fato, que demonstra o desempenho significativo do MTST em mobilizar as massas populares. Conforme indica Mattos, a construção da Frente Povo sem Medo, que teve início por iniciativa do MTST, representou “um passo nessa direção”. Contudo, o autor chama a atenção para o seu “caráter conjuntural”, indicando dois problemas a ela inerentes. O primeiro refere-se ao fato de que se tratou a Frente Povo sem Medo como “uma frente de lutas contra o governo Temer e suas políticas de ataque aos direitos da classe trabalhadora”. Ora, estaria tal frente limitada a esse aspecto malfazejo? Em outras palavras, a unidade não tecia táticas em torno de uma estratégia de superação. Aglutinava-se apenas em aspectos defensivos e movia-se a reboque da destruição de direitos perpetrada pelo governo golpista de Michel Temer. O segundo aspecto criticado por Mattos reside no que ele classifica como “atuação dúbia das organizações dirigidas pelo projeto ‘Lula 2018!’”. Para ele, essa bandeira limitou a atuação dos movimentos sociais organizados na Frente Povo sem Medo. Todavia, o autor ainda acredita que essas contradições podem ser superadas e que a frente pode reorganizar-se a fim de “gerar algo mais sólido no futuro” (Mattos, 2017, p. 150).

Refletindo sobre a possibilidade de articulação e permanência de uma organização que unifique os movimentos sociais e sindicais de toda a classe, ao tempo que critica, Mattos também reconhece a necessidade de que os sindicatos sejam repensados, pois ainda dispõem de condições e de recursos materiais para se agregarem ou liderarem um processo robusto de lutas de interesse da classe, em seu conjunto. Por isso o autor menciona com otimismo o potencial que a Central Sindical e Popular (CSP) Conlutas possui de iniciar a realização dessa tarefa:

Tendo em vista as características da classe trabalhadora, que impõe a necessidade de organização não apenas nos locais de trabalho, mas também nos territórios sociais em que a força de trabalho se reproduz (moradia, alimentação, lazer etc.), a integração em entidades, mesmo as centrais exclusivamente sindicais, tende a ser insuficiente para articular lutas imediatas e históricas do “conjunto da classe”. Daí a importância da proposta original da CSP Conlutas (Central Sindical e Popular) de organizar não apenas sindicatos, mas também os diversos movimentos sociais que atuam em lutas relacionadas ao conjunto da experiência de vida coletiva da classe trabalhadora. (Mattos, 2017, p. 142)

Sendo assim, do ponto de vista histórico-concreto, pode-se perceber que, na mesma perspectiva do conjunto da América Latina, porém com suas particularidades, os movimentos da esquerda e a luta objetiva dos trabalhadores pela transformação da sociedade têm encontrado limites. Estes somam crises estruturais do capital às diretrizes e planos equivocados dos movimentos proletários brasileiros, que vão desde insurreições esmagadas pela força das armas a serviço da burguesia até a traição abjeta após a burguesia triunfar em seus interesses de acumulação capitalista, e logo em seguida atacar os trabalhadores que se irmanaram com ela em frentes populares no passado e se converteram em inimigos, tendo suas organizações e partidos lançados na clandestinidade, ou direitos revogados após a conquista do poder pelo grupo monopolista de burgueses que nunca foi - e pela sua natureza nunca será - capaz de concretizar a revolução nacional-democrática. Nem a burguesia, nem as igrejas ou outras organizações fora do movimento proletário podem responder pelas tarefas que só mesmo o proletariado organizado pode realizar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, o avanço da teologia da prosperidade está totalmente coadunado com o projeto destrutivo e regressivo do neoliberalismo e o conservadorismo explorador e genocida. A expressão dos movimentos empresariais-religiosos está plenamente de acordo com os interesses das camadas dominantes e contra as necessidades reais dos trabalhadores.

Esse cenário teve cooperação direta da Igreja católica. Ele foi fruto do Vaticano, que colaborou indiretamente para o progresso dos empreendimentos empresariais-religiosos, quando da agitação em torno das ideias conservadoras que se voltaram para a destruição do movimento do cristianismo de libertação, condenando sua variante, a teologia da libertação, de heresia e destroçando as CEB.

Embora tenha nascido do cristianismo de libertação, do compromisso com a luta dos povos por emancipação e igualdade, e parte dele tenha encontrado no marxismo inspiração para defender e se articular com os interesses históricos da classe trabalhadora, de transformação da sociedade, internamente o movimento Teologia da Libertação padecia de fragmentação. E, de modo geral, não consiste em um movimento dos trabalhadores, mas em um movimento da Igreja, que foi de grande valor histórico para a classe, mas converteu-se em ameaça para o desenvolvimento das lutas dos trabalhadores - fato que explicita que qualquer movimento que tente assumir as tarefas de lutar pelos trabalhadores retira deles a independência de uma luta que só a eles pertence, embora as cooperações sejam bem-vindas no movimento emancipatório da classe.

De nosso ponto de vista, confirmam-se assim as três hipóteses lançadas na introdução deste texto. O caminho de aproximação com o movimento evangélico ligado à teologia da prosperidade é o caminho do neoliberalismo, a menos que essas igrejas revolucionem sua diretriz de acordo com a concepção materialista, histórica e dialética, algo que entra em total contradição com a visão de mundo mistificada e burguesa que sustenta essas Igrejas. Desse modo, cabe aos movimentos sociais, sindicais e aos partidos políticos das massas livrar-se de quaisquer dependências e reedificar a luta pela transformação que implica a urgente superação do modo de produção capitalista pelos trabalhadores e a instituição da democracia verdadeira, por meio da revolução permanente, impossibilitando à humanidade a regressão à atual condição de escravização social ao capital.

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  • RODRIGUES, L. M. As tendências políticas na formação das centrais sindicais. In: BOITO JR., A. (org.). O sindicalismo brasileiro nos anos 1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 11-42.
  • SADER, E. Quando novos personagens entram em casa: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
  • SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2008 (Coleção Memória da Educação).
  • 1
    O pentecostalismo surgiu da divisão no interior dos movimentos protestantes (sociologicamente classificadas como protestantismo histórico) ocorrida no final do século XIX, em torno do conflito que se deu pela interpretação do segundo capítulo do livro bíblico de Atos dos Apóstolos. A primeiras igrejas pentecostais a chegar ao Brasil foram a Comunidade Cristã no Brasil (em 1910) e a Assembleia de Deus (em 1911). Como fruto dessa nova variante do evangelismo, sua nova marca - que foi motivo de disputa com os demais evangélicos e levou à criação das novas denominações - foi a ênfase nos “dons do Espírito”. Dá-se destaque à glossolalia, que se tornou o principal destaque na primeira fase de progresso dessas igrejas. Um segundo momento de avanço do pentecostalismo no Brasil ocorre com a chegada da igreja do Evangelho Quadrangular, na década de 1950, que apresenta novas estratégias de mobilização de seu público e acaba por determinar um novo período do pentecostalismo, no qual prevalece a ênfase na “cura divina”. Por último, a partir da década de 1970, o movimento pentecostal fez com que a cura divina perdesse seu protagonismo para os atos espetaculares de exorcismo, da “guerra espiritual” e da teologia da prosperidade. Ricardo Mariano tipifica essas três variantes do pentecostalismo como: 1) pentecostalismo clássico (das igrejas Assembleia de Deus e Comunidade Cristã no Brasil); 2) deuteropentecostalismo (cuja Igreja do Evangelho Quadrangular foi pioneira); e 3) neopentecostalismo (vertente atualmente predominante, cuja Igreja Universal é “ponta de lança”). Em meio a essas tendências circula uma multiplicidade de denominações religiosas e entidades paraeclesiáticas (Mariano, 2014).
  • 2
    Sindicalismo autêntico é o nome do movimento que surgiu no final da década de 1970 e no início da de 1980. Sua história remete ao V Congresso da Confederação Nacional dos Trabalhadores Industriais, realizado no Rio de Janeiro em julho de 1978 (Rodrigues, 1991). Mattos destaca que esse surgimento foi marcado pelas greves dos metalúrgicos do ABC Paulista nos anos de 1978, 1979 e 1980 (Mattos, 2005, p. 294). Para esse autor, o referido período inaugurou a fase de ascensão das lutas operárias, promovendo “a reentrada dos trabalhadores na cena política brasileira”.
  • 3
    Para se ter uma noção das implicações do desmonte, pode-se considerar a dimensão do que o trabalho das Comunidades atingiu no país. Segundo Sader, as “CEB se multiplicaram, primeira e principalmente na zona rural, mas também tomaram conta da periferia das grandes cidades. Em 1981 calculava-se em 80 mil para todo o país, mas os números eram muito imprecisos” (Sader, 1988, p. 156).
  • 4
    Responsável por disseminação de informações mentirosas, isto é, fake news, que beneficiaram a ascensão da extrema-direita no processo eleitoral de 2018 e, atualmente, espalham mentiras sobre a pandemia a fim de confundir, desinformar e agitar a população contra inimigos políticos e em defesa dos interesses de determinados grupos econômicos dominantes. Enquanto isso, muitas vidas foram e estão sendo ceifadas em plena ascendência da COVID-19 no país, em sua maioria entre os mais pobres.
  • 5
    O Ministério Público Federal enviou notícia-crime ao Ministério Público do estado de São Paulo para que Valdemiro Santiago de Oliveira, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), fosse investigado por prática de estelionato. O religioso aparece em vídeo divulgado em diversas páginas da internet anunciando a cura da COVID-19 por meio de feijões mágicos que brotam com a escrita “Sê tu uma bênção” - slogan místico-publicitário da organização religiosa, conforme publicação divulgada com o título MPF pede que Ministério Público de São Paulo apure conduta do pastor Valdemiro Santiago. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/mpf-pede-que-ministerio-publico-de-sao-paulo-apure-conduta-do-pastor-valdemiro-santiago. Acesso em: 11 maio 2020.
  • 6
    Atualmente está exercendo seu terceiro mandato na Câmara dos Deputados.
  • Financiamento: O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2020
  • Aceito
    26 Abr 2021
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