RESUMO
Este artigo propõe-se a analisar de que forma gênero, raça e classe se articulam para construir as inserções, vivências e identidades das mulheres negras no campo acadêmico. Assim, o presente estudo se construiu pela aplicação de 28 questionários semiestruturados e pela realização de 15 entrevistas individuais com alunas e egressas do curso de Licenciatura em Química do Instituto Federal do Rio de Janeiro-campus Duque de Caxias. Este estudo articula conceitos de Pierre Bourdieu com estudos de alguns autores negros, como: Djamila Ribeiro, Carla Akotirene e Silvio Almeida. Os resultados iluminam não só os dispositivos mobilizados pelas participantes para a permanência e êxito no curso, como também apresenta outras discussões a respeito da construção das relações no campo acadêmico e da superação das violências simbólicas em suas trajetórias acadêmicas.
Palavras-chave:
Interseccionalidade; Mulheres Negras; Identidade Docente; Formação de Professores
ABSTRACT
This article aims to analyse how gender, race and class are articulated to build the insertions, experiences and identities of black women in the academic field. Therefore, this study was built from the application of 28 semi-structured questionnaires and 15 individual interviews with students and graduates of the Degree in Chemistry of the Instituto Federal do Rio de Janeiro, Duque de Caxias campus. This study links Pierre Bourdieu’s concepts with studies of black authors such as Djamila Ribeiro, Carla Akotirene and Silvio Almeida. The results not only highlight the devices mobilized by the participants for their permanence and success in the course, but also present other discussions about the construction of relationships in the academic field and the overcoming of the symbolic violence in their academic trajectories.
Keywords:
Intersectionality; Black Women; Teacher Identity; Teacher Training
RESUMEN
Este artículo se propone analizar cómo se articulan género, raza y clase para construir las inserciones, vivencias e identidades de las mujeres negras en el campo académico. Así, este estudio se construye a partir de la aplicación de veintiocho cuestionarios semiestructurados y quince entrevistas individuales con estudiantes y egresados de la Licenciatura en Química del Instituto Federal de Río de Janeiro-campus Duque de Caxias. Este estudio articula los conceptos de Pierre Bourdieu con estudios de algunos autores negros, como Djamila Ribeiro, Carla Akotirene y Silvio Almeida. Los resultados iluminan no solo los dispositivos movilizados por los participantes para la permanencia y el éxito en el curso, sino que también presentan otras discusiones sobre la construcción de relaciones en el campo académico y la superación de la violencia simbólica en sus trayectorias académicas.
Palabras clave:
Interseccionalidad; Mujeres Negras; Identidad Docente; Formación Docente
INTRODUÇÃO
Pensar a sociedade atual de forma alheia às questões que emergem da diversidade é reforçar a ideia de diferença como algo natural, individual, que marginaliza os processos que produzem e legitimam as classificações em um contexto político e histórico. Nessa perspectiva, a construção identitária só pode ser compreendida com um olhar que reconheça sua inserção em determinados contextos.
No campo acadêmico, entendendo-o como um contexto marcado por posições hierárquicas e lutas concorrenciais entre seus agentes, que buscam o acúmulo de mecanismos de distinções, as identidades docentes são construídas de forma relacional (Bourdieu, 2012BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.). Ao estudar as relações de poder assimétricas, sociais e politicamente construídas no campo, cabe a percepção de que o gênero, a classe e a raça são conceitos sociais criados, que se relacionam promovendo distinções entre os grupos, o que muitas vezes permite o reconhecimento de padrões culturais que orientam uma lógica diferenciadora subordinante das características e dos comportamentos sociais (Akotirene, 2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.).
Vivemos em um sistema cis, hétero, machista, capitalista e racista, portanto questionar as naturalizações é essencial para compreender a perspectiva multicultural que se associa às diferenças na construção das vivências e dos lugares de fala. Entende-se com Ribeiro (2019)RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019. que esse lugar de fala é composto inicialmente de sua localização social, ou seja, é importante entender os diferentes lugares e vivências dos sujeitos envolvidos no estudo, que nos permitem romper com a lógica de que somente os grupos subalternos nas hierarquias sociais falem de determinados assuntos, buscando também a reflexão daqueles inseridos nas normas hegemônicas.
Considerando esse cenário, cabe também uma pequena reflexão sobre a noção de raça e todo o simbolismo que o termo e seus derivados carregam, uma vez que é imprescindível analisar os dispositivos que vêm constituindo distinções entre os sujeitos com base nos sentidos culturais atribuídos. O racismo, que opera por meio de práticas nem sempre conscientes, atribuindo privilégios e vantagens a certos grupos, baseando-se em imagens culturais que legitimam a diferenciação dos negros e produzindo violências simbólicas, que segundo Bourdieu (2007)BOURDIEU, Pierre. Escritos da educação. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. ocorrem diante da naturalização e aceitação de regras e valores do grupo dominante. Assim, o racismo pode ocorrer de três formas:
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Racismo individualista: manifesta-se principalmente de forma direta como um "preconceito" e é considerado por muitos como um comportamento de um indivíduo ou grupo isolado e que deve ser punido (Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.; Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.).
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Racismo institucional: conjunto de práticas ou omissões institucionais, muitas vezes sutis, naturalizadas e reproduzidas, que afetam negativamente os grupos raciais, como a falta de acesso a algum serviço, distinções na distribuição de serviços e diminuição nas chances de ascensão ou ocupação de postos em decorrência da raça (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.).
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Racismo estrutural: ocorre em decorrência da estrutura social e da naturalização das relações desiguais entre raças nos comportamentos dos indivíduos e nas instituições, ou seja, permite engendrar condições sociais para a discriminação sistemática, considerando sua inserção política e histórica (Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.). Há então a naturalização e separação entre suas condições sociais reais e seu pertencimento de classe.
Assim, o racismo manifesta-se objetivamente quando políticas econômicas atribuem diferenciações e vantagens a certos grupos sociais sem considerar a desigualdade racial, e subjetivamente ao reforçar
(…) a desigualdade, a alienação e a impotência necessárias para estabelecer o sistema capitalista. O racismo faz com que a pobreza seja ideologicamente incorporada quase que como uma condição "biológica" de negros e indígenas, naturalizando a inserção no mercado de trabalho de grande parte das pessoas identificadas com estes grupos sociais com salários menores e condições de trabalho precárias. (Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 172)
Portanto, a diferença só se constrói calcada em significados, representados e interpretados culturalmente, utilizando uma referência. Para isso, é fundamental visualizar, com base nas relações entre os sujeitos, os mecanismos que decorrem da diferença daquela que é historicamente tida como identidade natural ou adequada, o "homem branco heterossexual de classe média urbana" (Louro, 2008LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, v. 19, n. 2, p. 17-23, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pp/a/fZwcZDzPFNctPLxjzSgYvVC/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 25 abr. 2021.
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, p. 22).
É, então, urgente desconstruir também a polarização de gênero e problematizar os arranjos mais diversos que são constituídos pelos espaços e instâncias de opressão, assim como os lugares de resistência e poder (Louro, 1997LOURO, Guacira Lopes. Género, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. 179 p.). Ou seja, no interior de uma sociedade, é fundamental considerar os mais diversos grupos étnicos, raciais, religiosos e de classe, para visualizar a constituição das diversas formas de manifestar o gênero.
Nesta perspectiva, o presente artigo analisa como as mulheres negras do curso de Licenciatura em Química do Instituto Federal do Rio de Janeiro, localizado no município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro (IFRJ-CDuC), se percebem e vivenciam a instituição de ensino superior. O enfoque dado a esta escrita pauta-se pelo entendimento das relações não imparciais que os sujeitos deste estudo assumem em seus sentidos e relações com o campo. Com isso, é realizada uma análise e interpretação das nuances de sentidos possibilitados pela dinâmica relacional no espaço acadêmico, onde as objetividades e subjetividades se tornam indissociáveis na construção da identidade docente.
É fundamental, então, pensar nas mais distintas formas de ser mulher, o que implica o entrecruzamento de gênero, raça e classe que este trabalho busca realizar. Embora sejam inegáveis as conquistas ao longo dos anos das mulheres negras, no que tange ao acesso ao ensino superior, deve-se pensar de forma interseccional para visualizar a coexistência de diversos eixos de subordinação que definem as formas de "estar" no campo, entendendo que uma série de diferenças não se desenvolve de forma isolada e tampouco se ausenta na construção de privilégios e desigualdades (Crenshaw, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Femininos, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 out. 2020.
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; Akotirene, 2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.; Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.).
A PERMANÊNCIA NO CAMPO ACADÊMICO
A Região Sudeste é a que concentra maior quantidade de instituições de ensino superior (IES) públicas e privadas no país no âmbito de formação docente, segundo dados do Enade 2014, e, consequentemente, a que oferta o maior contingente de matrículas nos cursos de Licenciatura e Pedagogia (Gatti et al., 2019GATTI, Bernardete Angelina; BARRETTO, Elba Siqueira de Sá; ANDRE, Marli Elisa Dalmazo Afonso de; ALMEIDA, Patrícia Cristina Albieri de. Professores do Brasil: novos cenários de formação. Brasília: UNESCO, 2019.). Ao mesmo tempo, tem-se que os cursos de formação docente possuem as mulheres como maioria, havendo também uma segregação de gênero nos tipos dos cursos, em que as mulheres correspondem a 93,7% nas graduações em pedagogia, 59,6% em química e 30,7% em física. Quanto à raça, a proporção de negros é superior a 51,0% em todos os cursos; já a respeito da classe, o maior contingente (61,2%) possui renda de até três salários-mínimos (Gatti et al., 2019GATTI, Bernardete Angelina; BARRETTO, Elba Siqueira de Sá; ANDRE, Marli Elisa Dalmazo Afonso de; ALMEIDA, Patrícia Cristina Albieri de. Professores do Brasil: novos cenários de formação. Brasília: UNESCO, 2019.).
Entretanto, talvez o dado mais alarmante no que tange aos estudantes dos cursos de licenciatura é que cerca da metade dos alunos que ingressam não se forma, o que não só representa um gasto de recursos sem que haja retorno na efetivação da formação, como "[mascara] também formas abertas ou veladas de retenção que [pode ser explicada] por meio das variáveis de contexto, mas que também [é] em parte [devida] às dinâmicas intrínsecas ao seu funcionamento" (Gatti et al., 2019GATTI, Bernardete Angelina; BARRETTO, Elba Siqueira de Sá; ANDRE, Marli Elisa Dalmazo Afonso de; ALMEIDA, Patrícia Cristina Albieri de. Professores do Brasil: novos cenários de formação. Brasília: UNESCO, 2019., p. 130).
No campo acadêmico, muitas vezes se configura um discurso de oportunizar a todos, uniformemente, meios "democráticos" de acesso àquilo que até então não lhes era oferecido; entretanto, se marginaliza o fato de que as condições para entrada e permanência frequentemente se configuram como estratégia de legitimação das desigualdades e segregações existentes.
Evidencia-se, então, que tão fundamentais quanto as políticas de acesso ao ensino superior são as de permanência, que garantem meios para que o aluno conclua sua trajetória na graduação. Conforme apontado por Gonçalves e Ambar (2015)GONÇALVES, Renata; AMBAR, Gabrielle. A questão racial, a universidade e a (in)consciência negra. Lutas Sociais, v. 19, n. 34, p. 202-213, 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/25767. Acesso em: 10 fev. 2019.
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, tais aspectos envolvem também condições simbólicas de existir na instituição e podem ser classificados de duas formas: 1. permanência material, que é mais objetiva e relativa principalmente ao custo de manutenção; e 2. permanência simbólica, que ultrapassa o econômico, visualizando também de que forma as estruturas sociais atuam na garantia do pertencimento do grupo.
Muito da permanência simbólica envolve a forma com que as mulheres negras são percebidas e vivenciam o campo acadêmico e as relações que são construídas com base nisso. Quando suas inserções ocorrem como corpos estranhos a tal ambiente e elas vivenciam situações de isolamento, não dominando a linguagem da instituição, restam-lhes duas alternativas quando não a evasão: 1. renunciar a sua cultura, incorporar e se adequar aos códigos linguísticos, condutas e valores impostos pela academia; ou 2. denunciar e confrontar as diversas formas de racismo individual, institucional e estrutural presentes nesses ambientes, o que por si só já é um processo doloroso (Gonçalves e Ambar, 2015GONÇALVES, Renata; AMBAR, Gabrielle. A questão racial, a universidade e a (in)consciência negra. Lutas Sociais, v. 19, n. 34, p. 202-213, 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/25767. Acesso em: 10 fev. 2019.
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; Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.).
Dessa forma, reconhecer os fatores sociais e culturais que são determinantes para construir a trajetória formativa das futuras professoras é fundamental, pois não só resgata a dimensão pessoal de como suas experiências impactam a formação profissional como também elucida a influência das instituições de ensino no acolhimento desse público e na manutenção ou desconstrução das desigualdades sociais (Gatti et al., 2019GATTI, Bernardete Angelina; BARRETTO, Elba Siqueira de Sá; ANDRE, Marli Elisa Dalmazo Afonso de; ALMEIDA, Patrícia Cristina Albieri de. Professores do Brasil: novos cenários de formação. Brasília: UNESCO, 2019.).
Ao supor, por exemplo, que todas teriam condições de acessar e se manter nesse sistema de ensino, a influência de diversos fatores e dispositivos que os sujeitos precisam mobilizar para permanecer no campo é reduzida a uma lógica puramente meritocrática e ingênua (Silva et al., 2015SILVA, Lindomar Pinto; DIAS, Luciana Costa Freitas; SILVA, Luciana Costa Freitas. Ensino Superior, mobilidade social e dominação: uma análise à luz dos conceitos de Bourdieu e da teoria institucional. Revista de Administração, Contabilidade e Economia, Santa Catarina, v. 14, n. 3, p. 1145-1174, nov. 2015. Disponível em: https://periodicos.unoesc.edu.br/race/article/view/6328. Acesso em: 21 ago. 2021.
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). Dito isso, instituições escolares, ao promoverem ações com objetivos igualitários para sujeitos com origens sociais distintas, reforçam as desigualdades sociais e escolares e exigem um comportamento adequado, familiaridade e obediência ao padrão de uma cultura e valores dominantes (hooks, 2013HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.).
Uma vez participante do campo, os agentes desenvolvem formas que permitem operar e permanecer nele, produzindo os mais diversos comportamentos, como a docilidade ou a crítica, de acordo com o valor que se espera que esses mecanismos possam mobilizar para a aquisição de capitais. Segundo Bourdieu (2007)BOURDIEU, Pierre. Escritos da educação. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007., os capitais são as disposições utilizadas pelos sujeitos para atuar no campo, sendo o cultural formado com base nas qualificações intelectuais transmitidas pela família e escola; o econômico ligado aos fatores de produção e conjuntos de bens econômicos; o social relativo às relações sociais que são mobilizadas de acordo com interesses e necessidades; e o simbólico relativo ao crédito atribuído às posições ou bens que conferem ao seu detentor prestígio e vantagens sociais.
Assim, embora cada sujeito tenha diferentes volumes de capitais acumulados, é possível perceber em algumas situações que seu valor de prestígio e reconhecimento permite sua conversão em outros, como no investimento que os pais com menor capital cultural fazem na escolarização dos filhos, principalmente aqueles que devem suas posições de classe ao capital cultural adquirido na escola (Bourdieu, 2012BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.).
Ao estudar os agentes que compõem o campo é necessário não só um olhar sobre a variedade na estrutura e volume dos capitais em determinadas situações, como também a compreensão de que toda estratégia comporta uma dimensão política e científica que varia de acordo com sua posição no campo, seu reconhecimento como sujeito e o uso de diferentes disposições nos conflitos intelectuais que fazem parte. Considerar os dilemas da inserção de grupos marginalizados no ensino superior incorre, portanto, na necessidade de iluminar as origens sociais e como a relação com o outro é construída, pois demanda perceber como as ações dentro do campo são pautadas por estratégias que engendram lutas e diferenças naturalizadas.
METODOLOGIA
A escolha por uma análise qualitativa para este trabalho busca observar diversas variáveis e suas combinações e se distanciar da mera objetificação das mulheres negras, que legitima o sistema de dominação e lhes nega a característica de sujeitos (Collins, 2016COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro.Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-127, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/MZ8tzzsGrvmFTKFqr6GLVMn/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2021.
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). Assim, realizou-se aqui um estudo considerando a diversidade dos discursos e subjetividades das participantes, dividido em duas etapas.
A primeira delas consistiu na aplicação de questionários semiestruturados online, por meio de Formulários do Google com 28 perguntas abertas e fechadas obrigatórias sobre o perfil socioeconômico e a trajetória acadêmica das participantes. Utilizou-se como base o material elaborado por Valentim (2012)VALENTIM, Daniela Frida Drelich. Ex-alunos negros cotistas da UERJ: os desacreditados e o sucesso acadêmico. Rio de Janeiro, 2012. 234 f. Tese (Doutorado em Educação) – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2012., Silva et al. (2015)SILVA, Lindomar Pinto; DIAS, Luciana Costa Freitas; SILVA, Luciana Costa Freitas. Ensino Superior, mobilidade social e dominação: uma análise à luz dos conceitos de Bourdieu e da teoria institucional. Revista de Administração, Contabilidade e Economia, Santa Catarina, v. 14, n. 3, p. 1145-1174, nov. 2015. Disponível em: https://periodicos.unoesc.edu.br/race/article/view/6328. Acesso em: 21 ago. 2021.
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e Miceli (2016)MICELI, Mariana Sant’Ana. As cartas são jogadas muito cedo: trajetórias universitárias de jovens provenientes das classes populares na Universidade Federal de Santa Catarina. 2016. 479 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2016..
Nesta etapa, participaram 28 mulheres, sendo nove alunas cursando o sexto, sétimo e oitavo períodos do curso de Licenciatura em Química do IFRJ-CDuC em 2020.1 e 18 egressas do curso em tal período. A tabulação das respostas foi feita automaticamente pelos Formulários do Google e, em seguida, a pesquisadora organizou e analisou os dados utilizando a função Tabela Dinâmica da planilha do programa Microsoft Excel.
A identificação das mulheres para a etapa se deu com base nos dados coletados diretamente na Secretaria de Graduação do IFRJ — campus Duque de Caxias — e dos dados do projeto de pesquisa "A trajetória acadêmica do licenciando em Química do IFRJ-CDuC: mapeando vivências e construindo estratégias de permanência", realizado na instituição para mapear o perfil e a trajetória acadêmica dos licenciandos.
A opção de utilizar questionários nessa etapa de pesquisa visou à coleta de dados para elaborar o perfil do grupo pesquisado e futuramente relacioná-lo com os dados que seriam obtidos em momentos seguintes da pesquisa. Além disso, este instrumento permitiu a identificação das mulheres que teriam interesse em participar da próxima etapa, a entrevista individual.
O perfil elaborado para o grupo de nove licenciandas respondentes do questionário consiste em mulheres negras com idades entre 20 e 24 anos (8), residentes no município de Duque de Caxias (7), solteiras (8) e que cursaram o ensino fundamental em escolas particulares (5) e o médio em instituições públicas (6). Já quanto ao perfil das 19 egressas do curso participantes desta primeira etapa, concluintes entre 2014 e 2019, tem-se a maioria residente em municípios da Baixada Fluminense (13), solteira (12), com idade entre 25 e 29 anos (13) e que cursou maior parte do ensino fundamental (15) e do ensino médio (16) em instituições particulares.
A segunda etapa de coleta de dados se deu com entrevistas individuais a 15 mulheres negras, sendo cinco licenciandas e dez egressas, que se disponibilizaram a participar durante a etapa anterior. As entrevistas ocorreram por meio da plataforma online e gratuita Google Meet, tendo duração média de 50 minutos. O registro foi realizado durante as entrevistas por gravações de áudio e vídeo, previamente autorizadas pelas participantes. Após a realização de cada entrevista, realizou-se a transcrição do material utilizando o programa Microsoft Word.
Posteriormente, foi feita a análise e interpretação dos dados coletados, seguida da decomposição dos dados, estabelecendo-se relações e buscando-se os sentidos das falas. Para tal, inicialmente se realizou uma leitura visando à percepção do conjunto e das particularidades do material para possibilitar a estruturação da análise, que contemplou categorizações e a distribuição nas seguintes unidades de análise:
-
inserção acadêmica e profissional;
-
influência familiar;
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possíveis violências ao longo das trajetórias acadêmicas;
-
a construção de mecanismos de permanência e pertencimento.
Cabe destacar que todas as mulheres participantes do estudo que resultou nos dados desta pesquisa concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido previamente à coleta de dados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Nesta seção serão apresentados os resultados elaborados mediante uma síntese interpretativa das unidades de análise, articulando-as com os objetivos do estudo, os dados obtidos com a metodologia utilizada e a base teórica.
Para esta pesquisa, todas as participantes que se autodeclararam pretas e pardas foram agrupadas como negras na análise dos resultados. Os resultados serão aqui apresentados por eixo temático de análise, intitulado com base em trechos das entrevistas realizadas. As participantes foram listadas em ordem alfabética e serão utilizados os termos "aluna" e "formada" seguidos de um número para distingui-las, conforme a sua situação no curso e sua ordem de participação nesta pesquisa.
IMPACTOS DOS PRIMEIROS MOMENTOS NO CURSO E DA CULTURA INSTITUCIONAL
Inicialmente, analisando a inserção no ensino superior, foi observado nos questionários que mais da metade das mulheres negras almejava outra graduação antes de se inserir no curso de Licenciatura em Química do IFRJ-CDuC, correspondendo à cinco licenciandas e 14 egressas do total de 28 participantes. Ao analisar as principais motivações para a escolha do curso do Instituto Federal, as justificativas frequentemente apontam para uma adequação das expectativas e da possibilidade de almejar a formação de nível superior conforme o capital cultural e econômico de origem, determinando a escolha delas por aquilo que visualizavam como maior chance de permanência e êxito.
Assim, foi percebido durante as entrevistas que diversos mecanismos foram mobilizados pelas mulheres negras ao longo de suas trajetórias acadêmicas a partir do momento que passaram a integrar a instituição. A respeito dos impactos nos primeiros momentos da vivência do ensino superior, por exemplo, percebeu-se que frequentemente a entrada nessa nova modalidade é marcada por estranhamentos, pela sensação de um "novo mundo", como em:
Eu acho que o que me marcou foi o medo de "caramba, estou chegando num lugar totalmente diferente de tudo que eu vivi, nova, não sabendo nada da vida". (Formada 09)
Assim, aqueles que não compartilham dos gostos, posturas e conhecimentos, ou seja, não possuem volumes de capital cultural herdado da família e o habitus escolar de acordo com aquilo que encontram na instituição comumente destacam as mais diversas formas de visualizarem o seu não pertencimento inicial no campo acadêmico. Ou seja, vivenciam violências simbólicas diante da manutenção dos privilégios de uma estrutura social excludente na instituição (Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre. Escritos da educação. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.; Pereira e Passos, 2007PEREIRA, Samara Cristina Silva; PASSOS, Guiomar de Oliveira. Desigualdade de acesso e permanência na universidade: trajetórias escolares de estudantes das classes populares. Linguagens, Educação e Sociedade, n. 16, p. 19-32, 2007. Disponível em: https://silo.tips/download/desigualdade-de-acesso-e-permanencia-na-universidade-traj-etorias-escol-ares-de. Acesso em: 18 ago. 2020.
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). Trata-se, portanto, de uma carência também de capital simbólico específico, que permitiria a familiaridade com a dinâmica imposta pela nova modalidade de ensino e o acesso às posições privilegiadas na relação com os demais agentes do campo, o que acaba demandando estratégias para que essas estudantes se adequem à nova cultura, aos comportamentos e valores impostos a elas no ensino superior (Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre. Escritos da educação. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.).
Em alguns momentos foi possível até mesmo perceber como a ausência de pessoas que pudessem se identificar fisicamente e culturalmente na turma afeta negativamente as participantes:
(…) minha turma tinha muitas pessoas que tinham vindo de escola particular, tanto que eu lembro que no período que eu ingressei não ocuparam todas as vagas, inclusive as da minha cota não ocuparam todas, né? E aí, eu fiquei meio perdida, assim, eu já esperava que isso fosse acontecer. Mas eu fiquei meio perdida tanto nessa questão de não me identificar, né? (Aluna 03)
A Aluna 3 traz em seu discurso uma evidência da suposta normalidade esperada dos arranjos construídos nos ambientes, que por diversas vezes impõe aos sujeitos as identidades que são tidas como naturais ou adequadas para a norma hegemônica, reproduzindo a ordem social e segregações que mantêm as hierarquizações entre os grupos e reforçam a ideia de que alguns ambientes não são para todos (Louro, 2000LOURO, Guacira Lopes. Corpo, escola e identidade. Educação e Realidade, v.25, n. 2, p. 59-76, jul.-dez., 2000. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/46833/29119. Acesso em: 16 mar. 2021.
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; Bourdieu, 2012BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.; Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.).
As dificuldades ao entrarem na graduação também se relacionaram à ausência de informações sobre sua estrutura e organização física. Com isso, fica claro que, quando se exige certa competência econômica, linguística, cultural e social daqueles que vivenciaram a educação básica de forma distinta à dos "herdeiros" dos segmentos mais favorecidos, a legitimação da ordem social que se baseia em privilégios é mantida, cabendo à instituição a tarefa de promover formas de romper com isso (Pereira e Passos, 2007PEREIRA, Samara Cristina Silva; PASSOS, Guiomar de Oliveira. Desigualdade de acesso e permanência na universidade: trajetórias escolares de estudantes das classes populares. Linguagens, Educação e Sociedade, n. 16, p. 19-32, 2007. Disponível em: https://silo.tips/download/desigualdade-de-acesso-e-permanencia-na-universidade-traj-etorias-escol-ares-de. Acesso em: 18 ago. 2020.
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).
Para muitos, o ambiente universitário torna-se uma mistura de felicidade com angústia por suas dificuldades e estranhamentos, uma vez que ao longo de suas trajetórias anteriores essas mulheres foram estimuladas a idealizar o conhecimento e as relações no contexto educacional de forma igualitária (hooks, 2013HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.). Dessa forma, a permanência das mulheres negras na instituição também se dá por meio da construção simbólica de sua inserção nas relações no campo acadêmico, que são fundamentais para definir como tais mulheres são vistas e se enxergam neste contexto, bem como se irão incorporar ou confrontar a cultura institucional (Gonçalves e Ambar, 2015GONÇALVES, Renata; AMBAR, Gabrielle. A questão racial, a universidade e a (in)consciência negra. Lutas Sociais, v. 19, n. 34, p. 202-213, 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/25767. Acesso em: 10 fev. 2019.
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).
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DOCENTE E A NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO
Conforme apontado em momentos anteriores, tem-se o baixo percentual de concluintes como um dos maiores desafios a serem superados nas licenciaturas (Lima Junior et al., 2013LIMA JUNIOR, Paulo; OSTERMANN, Fernanda; REZENDE, Flavia. Análise dos condicionantes sociais do sucesso acadêmico em cursos de graduação em física a luz da sociologia de Bourdieu. Revista Ensaio, v. 15, n. 1, p. 113-129, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epec/a/dCPfmbXZHYtDntMg3g7hJxJ/?lang=pt. Acesso em: 19 jun. 2019.
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). Isso também foi observado nas vivências de oito de 15 participantes das entrevistas, entre elas alunas e formadas, o que demonstra que não houve muita mudança em tal característica do curso ao longo dos últimos anos. A esse respeito, há diversas situações que atravessam o cotidiano acadêmico dos alunos e podem culminar na saída precoce do curso. Entretanto, destaca-se que a licenciatura, para muitos, não é a primeira opção no ensino superior, então pode servir até mesmo como uma inserção temporária, um vínculo institucional "reserva", enquanto essas pessoas aguardam novas oportunidades que se adequem melhor ao que inicialmente idealizaram como pretensão profissional. Isso, no entanto, nem sempre se consolida, como é visto nas falas abaixo:
Eu pensava em entrar ou em Direito ou em Farmácia, aí eu pensei que se eu iniciar e se eu entrar para Farmácia, eu consigo cortar algumas matérias. E eu entrei só por entrar assim. (Formada 01)
Até o meu terceiro ou quarto período mais ou menos, eu ainda tinha ideia de talvez ir para um outro curso, então eu acho que talvez esse foi o meu maior desafio, encarar que agora eu estava gostando daquilo e seria aquilo. (Formada 10)
Além disso, foi possível identificar também outros fatores associados à precariedade da formação básica como grande desestímulo em continuar no curso. Das 15 entrevistadas, 13 afirmaram já terem sido reprovadas em algum momento, e oito delas mencionam disciplinas dos primeiros períodos da graduação. Foi observado também que a maior parte das mulheres associam a experiência a frustações e inseguranças, às vezes questionando sua possibilidade de concluir a graduação:
Eu estou pensando uma palavra para definir, porque eu diria infernal. Ai, foi muito triste a experiência da reprovação, eu nunca tinha reprovado na vida, aí entrei para o IFRJ e reprovei, foi péssimo. Foi desmotivador reprovar, eu diria isso, desmotivador. (Aluna 05)
Eu nunca tinha reprovado na vida, aí na faculdade de início eu reprovei logo duas matérias. Reprovei acho que pré-cálculo e tratamento de dados. Eu fiquei supermal, eu fiquei "Ai meu Deus, não vou conseguir". Acho que foi isso que me impactou de verdade(…) Foi horrível, horrível. Nadar, nadar, nadar e morrer na praia. (Formada 01)
Lembro que no primeiro semestre já foi um baque muito grande, a realidade da graduação é totalmente diferente do ensino médio, o ritmo de estudo é outro e no primeiro semestre já tinha reprovado química geral e aquilo já me deu um baque. Eu falei "Como é que vai ser se eu estou num curso de química e a primeira matéria que eu reprovo é química? Então não tenho vocação para isso, vou embora, não quero mais fazer isso!". (Formada 07)
Os relatos das participantes ressaltam duas realidades que normalmente pouco dialogam: a educação básica e o ensino superior, principalmente quando nos referimos às instituições reservadas às classes populares. Segundo Bourdieu (2007)BOURDIEU, Pierre. Escritos da educação. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007., a entrada no ensino superior é um momento de estranhamento para todos os agentes, independentemente da posição que ocupam no campo, entretanto aqueles que são mais privilegiados em termos de capital cultural e econômico ao longo de sua trajetória anterior conseguem decifrar e se apropriar melhor dos códigos da instituição. A esse respeito, é possível verificar, por exemplo, que das 13 entrevistadas que mencionaram terem reprovado na graduação somente cinco tinham mães que acessaram o ensino superior, não necessariamente concluindo a modalidade, e três possuíam pais na mesma situação.
A reprovação nos momentos iniciais do curso não diz respeito, portanto, a qualquer incompetência intelectual, como algumas afirmam ter pensado diante dos primeiros insucessos, mas são frequentemente fruto da exigência institucional de conhecimentos de valores, normas e cultura que até então estiveram distantes dessas alunas. Tal percepção é fundamental até mesmo para se pensar a construção da identidade da mulher negra nesse contexto de violência simbólica que pode fazê-la não só invisibilizar suas origens, como também interiorizar uma inferioridade ao se comparar com os demais, conforme se vê nos trechos a seguir:
Eu também esquecia, que eu tinha um tempo bem mais reduzido e uma bagagem muito menor do que as pessoas que estavam na minha turma. Então, assim, não era nem uma questão necessariamente de comparativo, é… de falar: "não, mas fulano tem isso." Não, eu não atribuía ao desempenho da pessoa o que ela tem ou o que ela não tem, mas eu não levava em consideração, que eu não era tão legal comigo mesma, digamos assim, dá para perceber esses pontos. (Aluna 03)
(…) eu via todo mundo, a galera de escola pública era do CPII, era do próprio IFRJ, era do CEFET, CEFETEQ e eu ficava "pô, essa galera sabe para caraca e eu não sei nada, eu vim da escola estadual e só fiz um cursinho porque minha mãe pagou com muito sacrifício". E aí eu ficava naquela dúvida se eu ia conseguir realmente ou não, mas eu consegui. (…) Eu acho que hoje as pessoas têm muita ideia de que eu sou meio nerd mas na época da faculdade eu sentava com aquela galera do fundão, eu queria fazer parte daquilo ali e essa é a minha dificuldade, manter o foco de eu conseguir, porque a galera tinha uma base e eu não. Então se eu ficasse lá com eles, eles já sabiam e eu tinha que lutar por dois para ter o mesmo conhecimento que eles. (Formada 05)
Conforme Collins (2016)COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro.Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-127, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/MZ8tzzsGrvmFTKFqr6GLVMn/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2021.
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, com base na consciência construída pelas mulheres negras a respeito de sua localização na sociedade e nos mecanismos de opressão, torna-se possível articular a crítica social com suas ações. Comumente também os estudantes entram na graduação buscando mobilidade social e, com o decorrer de suas vivências, acabam modificando seus interesses, opiniões e concepções (hooks, 2013HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.). Assim, nesse contexto de lidar com as dificuldades encontradas no ensino superior, observa-se que as participantes criaram alguns mecanismos para se manterem firmes diante das fragilidades na formação básica e do nível escolar exigido na graduação (Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre. Escritos da educação. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.). Isso as leva a modificarem os hábitos de estudo para conseguirem suprir a lacuna entre seus capitais culturais de entrada e aquilo que a instituição idealiza como cultura de referência do aluno que acessa a instituição.
É importante, então, destacar que o cenário do curso é permeado não só por uma seleção no acesso, mas também pela permanência, sendo o sucesso acadêmico fortemente atrelado à capacidade de os agentes das mais distintas origens e volumes de capital cultural familiar e escolar herdado mobilizarem mecanismos para lidar com suas desvantagens. Assim, as violências se desenvolvem perante os limites da escolaridade monocultural, que se pauta numa euro-heteronormatividade e faz com que as identidades docentes construídas sejam permeadas por práticas curriculares distantes das culturas e vivências dos alunos. Exige-se dos estudantes, então, uma constante mobilização de mecanismos para superar tal violência simbólica desse contexto educacional que ainda demonstra não estar efetivamente preparado para lidar com a chegada de grupos subalternos (Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre. Escritos da educação. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.).
Quanto a isso, indaga-se ainda até que ponto o curso vem realmente mudando seu funcionamento em termos de estrutura institucional, decisões ou omissões e como isso vem impactando a construção das identidades das mulheres negras.
RACISMO E COLORISMO: AS VIOLÊNCIAS DO ESPAÇO RELACIONAL
O simbolismo da permanência das estudantes negras no campo acadêmico, assim como das violências que são produzidas ao longo desse processo, permite também visualizar de que forma o pertencimento institucional é construído e como atuam as estruturas sociais no estabelecimento das trocas e disputas entre os agentes de tal espaço relacional. Merece destaque então a consciência crítica de si, que é construída pelas mulheres negras considerando seus lugares na sociedade e as mais diversas formas de opressão (Collins, 2016COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro.Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-127, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/MZ8tzzsGrvmFTKFqr6GLVMn/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2021.
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). Assim, ao questionar se as participantes já haviam sofrido ou presenciado alguma situação de discriminação na instituição de ensino superior, sete de 15 apresentaram algum relato. Cabe destacar que os trechos mais detalhados do ocorrido foram dados pelas alunas que frequentavam o curso:
Eu prefiro sentar na frente, e como o meu cabelo é muito volumoso, eu já, no primeiro período. Isso foi, acho que, só uma vez ou duas, mas me marcou muito. Foi no primeiro período que fizeram, eu nem lembro exatamente o que falaram, mas fizeram piadinha com meu cabelo (…) Eu entendi também como racismo aquela situação que eu mencionei, né? Do meu colega, que eu falei que eu ia puxar uma disciplina que tem uma retenção elevada, né? E aí, ele fez questão de falar o quanto era difícil, quando ele achava que era puxado para mim, e não sei o que, e quando eu fui ver a grade dele estava com dez matérias, né? Enfim, foram mais nesses momentos também. E alguns, assim, nesse sentido também, não tem muito como qualificar, mas eu também sinto que é, quando eu estou conversando sobre algum assunto e as pessoas não me deixam falar. (Aluna 03)
(…) então às vezes eu já passei por algumas situações de ter colegas que não chegaram a falar assim "ah, você não sabe porque você é mulher", mas muitas questões que eles deram assim de "eu sei mais porque eu sou homem, porque eu entendo tudo". E questões raciais. Agora sim, eu lembrando, é sempre um comentário do tipo "eu não sou racista, mas eu não concordo com tal coisa". Então, assim, eu acho que não foi racismo direto, mas sempre foi uma coisa. (Aluna 04)
Neste ponto é fundamental, então, trazer à discussão o corpo e aquilo que as relações entre os sujeitos possibilita pela leitura que é feita das marcas dele (Louro, 2000LOURO, Guacira Lopes. Corpo, escola e identidade. Educação e Realidade, v.25, n. 2, p. 59-76, jul.-dez., 2000. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/46833/29119. Acesso em: 16 mar. 2021.
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). Na sociedade brasileira, construída com marcas da colonialidade, as pessoas negras vivenciam a discriminação racial, que se reforça num sistema de opressão, comumente se traduzindo em falas ou comportamentos preconceituosos, como apontado nas narrativas das alunas e egressas (Ribeiro, 2019RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019.).
As identidades passam a ser construídas também com a marca do olhar do outro, pela lógica de diferenciação e subordinação que segrega apoiada em características físicas e comportamentos sociais e pelo espaço que o corpo ocupa nas relações estabelecidas no campo acadêmico, considerando raça, classe e gênero (Gonzalez, 2011GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro-latino-americano. In: Caderno de Formação Política do Círculo Palmarino: Batalhas de Ideias, n. 1, p. 12-20, 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%20um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf. Acesso em: 20 jun. 2020.
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; hooks, 2013HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.). Os sujeitos colocados como objeto de opressão poderão mesmo dizer nunca terem vivenciado qualquer situação de racismo, o que não significa que, considerando as demais formas de racismo além do individual, eles não tenham sofrido em termos de direitos e oportunidades por conta de sua posição social (Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.; Ribeiro, 2019RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019.).
O racismo latino-americano constitui-se, então, pautado por uma ideologia do branqueamento, em que se reproduz e perpetua os valores de uma cultura ocidental branca, produzindo muitas vezes uma negação da própria raça e uma fragmentação da identidade negra (Gonzalez, 2011GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro-latino-americano. In: Caderno de Formação Política do Círculo Palmarino: Batalhas de Ideias, n. 1, p. 12-20, 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%20um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf. Acesso em: 20 jun. 2020.
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).
Estar no campo é entender que as diferenças se relacionam para construir tal inserção e perceber também que a construção da noção de raça se dá permeada pelos traços físicos e por outras características étnico-culturais, como valores, costumes, origem social e geográfica (Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.). Nesta perspectiva, é fundamental discutir como o colorismo está colocado em meio às dinâmicas raciais, entendendo-o como a mobilização de diferentes sentidos com base em características físicas, como tom da pele e traços fenotípicos dos corpos das mulheres negras inseridas nos mais diversos espaços sociais (Fontana, 2020FONTANA, Larissa da Silva. Uma mistura que transita no espectro racial: efeitos do colorismo no processo de identificação de mulheres negras no Brasil. In: HAU, Héliton Diego; FÁTIMA, Wellton da Silva (Org.). Raça, gênero e sexualidade em perspectivas discursivas: efeitos e práticas da/na violência. v. 2. São Paulo: Pimenta Cultural, 2020. p. 49-67. Disponível em: https://www.pimentacultural.com/livro/raca-genero-2/. Acesso em: 03 out. 2020.
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; Devulsky, 2021DEVULSKY, Alessandra. Colorismo. São Paulo: Pólen, 2021.). Para tal, traz-se o seguinte relato:
Eu olho para mim, eu falo "eu não sou branca" e aí é muito complicado isso, porque eu entendo, as pessoas me veem como branca, eu queria me ver como vocês me veem, mas eu não consigo. E aí, como as pessoas me veem como branca e ok, talvez eu seja branca mesmo, mas eu não consigo me enxergar com branca, então é muito complexo (…) No ensino médio, as pessoas falavam sobre mim, aquilo me deixava mal, me tratavam mal, falavam mal do meu cabelo, falavam mal da minha aparência e aquilo me fazia muito mal, mas quando eu entrei na graduação, já depois de ter passado por esse processo, na verdade, eu estava começando a assumir o meu cabelo cacheado e eu já estava me sentindo meio poderosa (…). (Aluna 02)
A fala da Aluna 02 demonstra como, apesar de ela ter marcado no questionário a categoria parda ou preta, ou seja, ser considerada para este estudo como negra e relatar episódios na trajetória escolar que a marcaram por ela apresentar traços fenotípicos que culminaram em distinções pejorativas, muitos no IFRJ-CDuC a enxergam como branca. Sendo a identidade uma atribuição cultural, ou seja, significada e interpretada no contexto de uma cultura, grupos diferentes podem nomeá-la de forma distintas de acordo com aquilo que colocam como características importantes e notáveis (Louro, 2000LOURO, Guacira Lopes. Corpo, escola e identidade. Educação e Realidade, v.25, n. 2, p. 59-76, jul.-dez., 2000. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/46833/29119. Acesso em: 16 mar. 2021.
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). Por vezes, é possível identificar tal impacto na construção identitária, como colocam suas narrativas, em que as mulheres que são negras de pele mais clara também vivenciam o racismo e, portanto, expressam suas experiências de racismo como forma de reconhecimento de sua identidade negra e pertencimento ao grupo racial. "É o modo pelo qual se constitui um lugar de enunciação que legitima uma identidade racial, atravessada por sentidos de resistência aos discursos dominantes que marginalizam e depreciam os sentidos acerca de se dizer negra" (Fontana, 2020FONTANA, Larissa da Silva. Uma mistura que transita no espectro racial: efeitos do colorismo no processo de identificação de mulheres negras no Brasil. In: HAU, Héliton Diego; FÁTIMA, Wellton da Silva (Org.). Raça, gênero e sexualidade em perspectivas discursivas: efeitos e práticas da/na violência. v. 2. São Paulo: Pimenta Cultural, 2020. p. 49-67. Disponível em: https://www.pimentacultural.com/livro/raca-genero-2/. Acesso em: 03 out. 2020.
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, p. 54).
Assim, há um entrelugar ocupado pelas mulheres negras de pele clara nos processos de subjetivação, onde muitas vezes elas não são consideradas nem pretas e nem brancas, o que afeta a construção das percepções que tem de si e, ao mesmo tempo, a forma como elas são lidas e se relacionam com os demais indivíduos do campo (Fontana, 2020FONTANA, Larissa da Silva. Uma mistura que transita no espectro racial: efeitos do colorismo no processo de identificação de mulheres negras no Brasil. In: HAU, Héliton Diego; FÁTIMA, Wellton da Silva (Org.). Raça, gênero e sexualidade em perspectivas discursivas: efeitos e práticas da/na violência. v. 2. São Paulo: Pimenta Cultural, 2020. p. 49-67. Disponível em: https://www.pimentacultural.com/livro/raca-genero-2/. Acesso em: 03 out. 2020.
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; Devulsky, 2021DEVULSKY, Alessandra. Colorismo. São Paulo: Pólen, 2021.).
É fundamental perceber então que os significados das características que diferem os sujeitos se alteram de acordo com cada contexto cultural, como também se modificam no decorrer da existência dos indivíduos e das culturas (Louro, 2000LOURO, Guacira Lopes. Corpo, escola e identidade. Educação e Realidade, v.25, n. 2, p. 59-76, jul.-dez., 2000. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/46833/29119. Acesso em: 16 mar. 2021.
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). No contexto histórico de miscigenação da população negra, as identidades são definidas pela relação com uma outra e pela forma com que as diferenças estão postas no espaço de um curso localizado no município de Duque de Caxias, que, conforme apontado pelo TCE (2010)TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (TCE-RJ). Estudos Socioeconômicos dos Municípios do Estado do Rio de Janeiro – Duque de Caxias. 2010. Disponível em: < https://www.tcerj.tc.br/portal-tce-webapi/api/arquivos/86ca8221-e6c9-4004-cddc-08d8cc6b6e1e/download >. Acesso em: 13 out. 2021.
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, é um município de maioria negra, com maior autodeclaração de pardos quando comparados aos pretos.
Assim, diferenças de tratamentos constituem-se nas lutas concorrenciais dentro dos espaços e não passam despercebidas por aqueles que vivenciam as mais diversas formas de violência física ou simbólica reservadas aos corpos não brancos nesse contexto de mito de democracia racial e manutenção da ordem social excludente (Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre. Escritos da educação. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.; Fontana, 2020FONTANA, Larissa da Silva. Uma mistura que transita no espectro racial: efeitos do colorismo no processo de identificação de mulheres negras no Brasil. In: HAU, Héliton Diego; FÁTIMA, Wellton da Silva (Org.). Raça, gênero e sexualidade em perspectivas discursivas: efeitos e práticas da/na violência. v. 2. São Paulo: Pimenta Cultural, 2020. p. 49-67. Disponível em: https://www.pimentacultural.com/livro/raca-genero-2/. Acesso em: 03 out. 2020.
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).
A INFLUÊNCIA DOS PROGRAMAS DE ASSISTÊNCIA NA PERMANÊNCIA
Tão essencial quanto o acesso das mulheres negras ao ensino superior é garantir meios para que haja a permanência material e simbólica na instituição (Gonçalves e Ambar, 2015GONÇALVES, Renata; AMBAR, Gabrielle. A questão racial, a universidade e a (in)consciência negra. Lutas Sociais, v. 19, n. 34, p. 202-213, 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/25767. Acesso em: 10 fev. 2019.
https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/a...
). Assim, ao longo da análise dos questionários e entrevistas com as participantes, foi observado que alguns indicadores se repetem nas características do grupo, o que parece ser determinante para aumentar as probabilidades do sucesso acadêmico delas.
A proximidade do curso às residências das participantes, por exemplo, reduziu o custo e tempo de deslocamento até a instituição e foi apontado por seis entrevistadas como um dos principais fatores que contribuíram para que elas permanecessem no curso.
Diversos obstáculos de inserção e permanência atingem as mulheres negras de formas distintas às dos demais grupos e traduzem-se de modos diversos nessa sociedade de "capitalismo patriarcal-racista dependente" (Gonzalez, 2011GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro-latino-americano. In: Caderno de Formação Política do Círculo Palmarino: Batalhas de Ideias, n. 1, p. 12-20, 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/271077/mod_resource/content/1/Por%20um%20feminismo%20Afro-latino-americano.pdf. Acesso em: 20 jun. 2020.
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, p. 17). Reforça-se aqui, portanto, que a escolha do curso e a percepção daquilo que pode ser mobilizado pelas alunas para o êxito estão associadas, como é o caso, à consideração das condições de deslocamento (Bourdieu, 2012BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.). Esta análise corrobora o que hooks (2013)HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. afirma ao salientar que a classe social não só contribui para a construção de valores, ações e relações sociais como também determina a forma com que o acesso ao conhecimento é possibilitado.
Nessa perspectiva, o Instituto Federal do Rio de Janeiro oferece um Programa de Assistência Estudantil (PAE), que busca por meio algumas ações contribuir para a permanência, o desempenho e o êxito de seus alunos, concedendo bolsas, auxílios e atendimentos especializados. Segundo a instituição, entende-se por bolsa uma remuneração oferecida ao estudante envolvido em atividades acadêmicas no âmbito de ensino, pesquisa e extensão que não excedam 20 horas semanais. Já os auxílios são os benefícios para custear despesas básicas dos estudantes no que tange a moradia, alimentação, transporte e recursos didáticos, bem como atendimento especializado, que compreende apoio biopsicossocial e pedagógico. É permitido que o estudante acumule auxílios ou uma bolsa com auxílios.
Ao verificar nos questionários o quantitativo de alunas em curso e formadas que fizeram uso de algum auxílio durante a graduação, tem-se que somente oito não solicitaram nenhum, ou seja, 20 participantes foram contempladas por tal política de assistência institucional. Desse total, a maior procura foi pelo custeio do transporte, seguido da alimentação e do apoio didático. Durante as entrevistas, foi evidenciado o quanto tal recurso foi determinante para a permanência de algumas estudantes no curso, como ilustra a seguinte fala:
Eu lembro que às vezes eu não tinha dinheiro para ir para faculdade e aí o PAE, que era o Programa de Assistência Estudantil, me salvava. Quando eles depositavam o PAE, eu falava "graças a Deus, o dinheiro do ônibus", porque eu pegava dois ônibus para poder chegar, não é longe, mas também era contramão de onde eu moro para o IF. (Formada 03)
Pode-se observar também que 15 respondentes dos questionários solicitaram mais de um auxílio, porém nenhuma necessitou do auxílio moradia, que é destinado àqueles que saíram do seu local de origem para residir nas proximidades do campus. A maioria das 28 alunas e ex-alunas negras mapeadas com o questionário tem renda inferior a 1,5 salário-mínimo por indivíduo da família. No entanto, 25 afirmaram necessitar ou ter necessitado do suporte financeiro familiar durante a graduação. Tal dado reforça o provável investimento familiar no custeio dos estudos e/ou demais itens que envolvem a permanência nesses cursos, ainda que públicos, como transporte e alimentação, por exemplo. Ou seja, há mobilização do capital econômico familiar a fim de manter as alunas no curso, onde elas irão adquirir maior volume de capital cultural e social (Bourdieu, 2012BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.).
Foi observado também que 12 das 28 alunas e egressas responderam no questionário que exerceram atividade remunerada antes dos 18 anos. Além disso, dez formadas trabalharam durante a graduação para ajudar no sustento da família e seis declararam que ajudaram a família financeiramente durante a formação continuada.
Constata-se, assim, que a trajetória acadêmica dessas mulheres tem uma característica relativa à classe que as distingue no campo, no sentido de elas terem que suprir também uma necessidade econômica familiar durante a formação inicial e continuada, o que provavelmente já ocorria durante as etapas anteriores de ensino, quando se considera o percentual que trabalhou antes dos 18 anos. Uma aluna, ao ser entrevistada, menciona ainda que o horário do curso, embora permita a maior participação nas atividades acadêmicas, às vezes é um impedimento para elas realizarem alguma atividade remunerada.
Reforça-se então que, em decorrência do racismo estrutural, frequentemente para a mulher negra inexiste a possibilidade de parar de trabalhar (Akotirene, 2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.; Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.). Neste ponto, cabe ainda destacar que, das 13 entrevistadas que foram reprovadas durante a graduação, seis trabalharam antes dos 18 anos, e o mesmo quantitativo necessitou exercer atividade remunerada durante a graduação para ajudar no sustento da família. Assim, tais características entrecruzam-se, gerando novos dilemas para o êxito nos estudos, pois essas alunas necessitam enfrentar também a falta de capital econômico, que, caso existisse em maior volume, poderia garantir melhores condições para, por exemplo, a dedicação exclusiva ao curso da graduação.
A situação financeira costuma ser uma preocupação tanto para as estudantes quanto para suas famílias, antes mesmo de elas iniciarem o curso (Pereira e Passos, 2007PEREIRA, Samara Cristina Silva; PASSOS, Guiomar de Oliveira. Desigualdade de acesso e permanência na universidade: trajetórias escolares de estudantes das classes populares. Linguagens, Educação e Sociedade, n. 16, p. 19-32, 2007. Disponível em: https://silo.tips/download/desigualdade-de-acesso-e-permanencia-na-universidade-traj-etorias-escol-ares-de. Acesso em: 18 ago. 2020.
https://silo.tips/download/desigualdade-...
). Diante da escassez de recursos e das demandas financeiras para permanência e custeio ao longo da graduação, muitas recorrem às oportunidades que as instituições disponibilizam em termos de atividades acadêmicas, que acabam garantindo maior capital econômico na forma de apoio financeiro e acesso a recursos como computador e internet e, ao mesmo tempo, ampliam o capital cultural ao intensificarem o contato com sua área de estudos (Pereira e Passos, 2007PEREIRA, Samara Cristina Silva; PASSOS, Guiomar de Oliveira. Desigualdade de acesso e permanência na universidade: trajetórias escolares de estudantes das classes populares. Linguagens, Educação e Sociedade, n. 16, p. 19-32, 2007. Disponível em: https://silo.tips/download/desigualdade-de-acesso-e-permanencia-na-universidade-traj-etorias-escol-ares-de. Acesso em: 18 ago. 2020.
https://silo.tips/download/desigualdade-...
).
Perante o questionamento sobre as alunas terem ou não participado/ainda participarem de algum projeto de pesquisa ou extensão, monitoria, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), residência pedagógica ou Programa de Educação Tutorial (PET) durante a graduação, das 28 mulheres que responderam ao questionário, foi observado que somente duas responderam negativamente, das quais uma mencionou na entrevista que realizava pesquisa em outra instituição. Das 26 que responderam afirmativamente, o quantitativo que recebeu bolsa durante a inserção corresponde a 25 mulheres. Ao longo da entrevista, foi perceptível em diversos momentos o papel fundamental que as bolsas recebidas têm tido para manter as alunas na licenciatura, como se vê no seguinte relato:
Eu percebo que em alguns períodos eu só conseguia ir para o IF porque eu tinha bolsa, a minha bolsa era toda na passagem. Então eu acho que tem alguns alunos que, se não tivessem bolsa, que se não tivessem ajuda de PAE, não conseguiam ir (…) Acho que a questão dos projetos, da importância tanto para a formação quanto para questão do dinheiro, que muitos alunos só conseguem ir para o IF por causa da bolsa, isso é muito real. (Aluna 01)
Neste ponto cabe destacar que, assim como os programas de iniciação científica, PET e residência pedagógica, o PIBID oferece bolsas aos alunos vinculados ao programa e que se dedicam a realizar atividades pedagógicas em instituições de ensino conveniadas.
Ao longo das entrevistas realizadas, a participação no PIBID foi mencionada por quatro participantes como um incentivo determinante para a continuidade no curso. Percebe-se assim a contribuição de tal programa não só para auxiliar na manutenção financeira das alunas no curso, como também sendo outro lócus de formação da identidade docente. Trata-se de um "terceiro espaço" na formação inicial dos professores, onde o diálogo entre a graduação e a escola acontece, superando a perspectiva pontual e fragmentada, que desconsidera a complexidade das relações escolares, e, assim, atribui novos significados à profissão (Felício, 2014FELÍCIO, Helena Maria dos Santos. O PIBID como "terceiro espaço" de formação inicial de professores. Revista Diálogo Educacional, v. 14, n. 42, p. 415-434, 2014. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/dialogoeducacional/article/view/6587. Acesso em: 10 jun. 2021.
https://periodicos.pucpr.br/dialogoeduca...
, p. 422).
Em outras duas entrevistas, foi importante perceber como os projetos de pesquisa ofertados na instituição possibilitam também maior apropriação e construção de vínculos no campo acadêmico:
Tinha até uma segregação socioeconômica, mas involuntária. Por exemplo, a maior parte dos meus colegas de turma era do Rio, então tinha poucas pessoas realmente de Caxias, mas muitas pessoas tinham carro e muitas pessoas locais de melhor acesso que eu, então eu não consegui sair com os meus colegas de turma, por exemplo (…) Então, se fosse para a gente almoçar, fazer PIBID, iniciação científica, a gente conseguia almoçar junto ali próximo, era possível da gente fazer, a gente sempre sentou muito para ficar conversando e tirando dúvidas, sempre teve uma união no sentido de entender as disciplinas, por exemplo. (Formada 05)
No relato da Formada 05, nota-se que agentes com os mais variados volumes de capital econômico fazem parte do campo acadêmico, que são fundamentais para determinar como as relações são construídas entre os sujeitos e, por conseguinte, o capital social de cada um nesse espaço relacional (Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre. Escritos da educação. 4. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.). Dessa forma, ainda que por diversas vezes a entrevistada tenha enfrentado a violência simbólica da exclusão dos contextos extrainstitucionais por suas condições financeiras, fica evidente que a socialização que os projetos e programas da instituição lhe possibilitaram foi essencial para que ela pudesse se relacionar com alguns colegas da instituição.
Considerando o exposto aqui até agora, observa-se que as alunas, ao entrarem no curso, vivenciam uma série de condições adversas em função do volume das diferentes formas de capital que possuem em decorrência de sua origem social. As condições oferecidas pela instituição e a forma com que elas mobilizam mecanismos para aumentar seu pertencimento no curso vêm sendo essenciais neste processo; em outras palavras, condições para a permanência vêm sendo possibilitadas, aumentando as chances do sucesso acadêmico.
AFETIVIDADE E REPRESENTATIVIDADE COMO UM INCENTIVO AO ÊXITO PROFISSIONAL
Na constituição do indivíduo como pessoa, a relação com o outro promove processos de identificação e incorporação e, por outro lado, também constrói condutas de oposição (NPDGIRASSOL, 2015NPDGIRASSOL. Coleção grandes educadores: Henri Wallon. Youtube. ATTA: Mídia e Educação, 2015. 1 vídeo (42:30 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ebt2iaiV9U8. Acesso em: 15 abr. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=ebt2iaiV...
). Assim, busca-se aqui, por meio da Teoria de Psicogênese de Henri Wallon, descrita por La Taille et al. (2019)LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 27. ed. São Paulo: Summus, 2019., elucidar como se estabelece a retroalimentação entre afetividade e inteligência, em que as conquistas do plano afetivo e cognitivo se complementam, definem personalidades e constroem identidades.
Para tal, cabe inicialmente afirmar que a afetividade se refere a ser afetado pelas mais diversas situações, provocando reações internas e externas; ou seja, toda atitude é permeada pelo afeto, seja ele positivo ou negativo, e influencia a forma com que os sujeitos reagem a ela (La Taille et al., 2019LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 27. ed. São Paulo: Summus, 2019.; Mahoney e Almeida, 2019MAHONEY, Abigail Alvarenga; ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. Afetividade e processo ensino-aprendizagem: contribuições de Henri Wallon. Psicologia da Educação, São Paulo, n. 20, 2019. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/pdf/psie/n20/v20a02.pdf. Acesso em: 12 abr. 2021.
https://pepsic.bvsalud.org/pdf/psie/n20/...
). Já a emoção representa a exteriorização da afetividade, de modo que a atividade emocional é um resultado da ligação entre o social e o biológico, estabelecendo sistemas de atitudes que promovem o vínculo entre a consciência afetiva e o racional, permeados pelo social (La Taille et al., 2019LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 27. ed. São Paulo: Summus, 2019.). Além disso, é por intermédio dela que se torna possível acessar a linguagem e o simbolismo da cultura; ou seja, a interação entre o professor e o aluno não se limita à esfera cognitiva, tendo a afetividade papel fundamental no desenvolvimento, na aprendizagem e na tomada de consciência de si e do outro na sociedade (NPDGIRASSOL, 2015NPDGIRASSOL. Coleção grandes educadores: Henri Wallon. Youtube. ATTA: Mídia e Educação, 2015. 1 vídeo (42:30 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ebt2iaiV9U8. Acesso em: 15 abr. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=ebt2iaiV...
; Mahoney e Almeida, 2019MAHONEY, Abigail Alvarenga; ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. Afetividade e processo ensino-aprendizagem: contribuições de Henri Wallon. Psicologia da Educação, São Paulo, n. 20, 2019. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/pdf/psie/n20/v20a02.pdf. Acesso em: 12 abr. 2021.
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).
Nesse sentido, quando foi perguntado às mulheres negras o que tem sido/foi mais gratificante no IFRJ-CDuC, observou-se que nove de 15 entrevistadas destacaram as relações construídas com os professores, muitas mencionando até mesmo que a estrutura do campus, com um único curso de ensino superior, favorece a construção de vínculos mais próximos com os docentes:
Mais gratificante eu acho que é, por ser um instituto pequeno, a gente tem uma proximidade muito grande com os nossos professores, então foi muito bom aprender com todos eles tudo, tanto numa questão mais social e mais pessoal, quanto em questão de conteúdo. Então as coisas eram muito mais fáceis e isso foi muito bom. (Aluna 02)
A questão de ter contato com os professores, porque tinha muito isso de falar para o professor que não consegue e ele falar "consegue sim, vamos conversar!", de ter essa abertura para conversar com os professores, de tirar dúvidas também, dos professores estarem próximos a ponto de saber o que estava acontecendo na nossa vida para aconselhar a gente, "não desiste não, vou te ajudar". (Formada 09)
Assim sendo, segundo Wallon, ao longo do processo de apropriação da linguagem, apoiando-se no ato motor, o indivíduo desenvolve a inteligência discursiva e as ações conforme suas representações de realidade e relações com o outro (NPDGIRASSOL, 2015NPDGIRASSOL. Coleção grandes educadores: Henri Wallon. Youtube. ATTA: Mídia e Educação, 2015. 1 vídeo (42:30 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ebt2iaiV9U8. Acesso em: 15 abr. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=ebt2iaiV...
; La Taille et al., 2019LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 27. ed. São Paulo: Summus, 2019.). O processo educacional e de construção das identidades sobre a influência da afetividade é composto, então, do acolhimento recebido e desenvolvimento proporcionado, respeitando-se as especificidades dos sujeitos, da incorporação ou oposição de comportamentos e valores durante a aprendizagem, da influência das experiências dos docentes com o olhar sensível sobre o aluno e dos conflitos das relações no ambiente educacional (Mahoney e Almeida, 2019MAHONEY, Abigail Alvarenga; ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. Afetividade e processo ensino-aprendizagem: contribuições de Henri Wallon. Psicologia da Educação, São Paulo, n. 20, 2019. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/pdf/psie/n20/v20a02.pdf. Acesso em: 12 abr. 2021.
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).
Importa destacar também que cinco entrevistadas distinguiram as relações construídas com professores das disciplinas específicas e pedagógicas. As falas de tais mulheres apontam para uma relação mais distante e com menos diálogo fora dos conteúdos curriculares com os professores das matérias "mais duras", o que pode ter relação direta com as hierarquias que são construídas no espaço acadêmico, onde comumente se tem uma dicotomia entre saberes pedagógicos e específicos, teoria e prática, muitas vezes reproduzindo a ideia de maior prestígio de determinados conteúdos em detrimento de outros.
Tanto o aluno quanto o professor são afetados um pelo outro e pelo contexto em que estão inseridos e, dependendo de como esse processo ocorre, ele pode levar tanto a consequências positivas quanto a dificuldades no processo de ensino-aprendizagem, insatisfações e descompromissos (Mahoney e Almeida, 2019MAHONEY, Abigail Alvarenga; ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. Afetividade e processo ensino-aprendizagem: contribuições de Henri Wallon. Psicologia da Educação, São Paulo, n. 20, 2019. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/pdf/psie/n20/v20a02.pdf. Acesso em: 12 abr. 2021.
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).
Dessa forma, torna-se um equívoco pensar o processo de ensino-aprendizagem sem visualizar a influência da relação interpessoal entre professor e aluno e considerar as práticas pedagógicas pelo viés da tripla dimensão entre a história de seus atores, suas demandas atuais e o que se pretende para o futuro (NPDGIRASSOL, 2015NPDGIRASSOL. Coleção grandes educadores: Henri Wallon. Youtube. ATTA: Mídia e Educação, 2015. 1 vídeo (42:30 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ebt2iaiV9U8. Acesso em: 15 abr. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=ebt2iaiV...
; La Taille et al., 2019LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 27. ed. São Paulo: Summus, 2019.). A esse respeito, considerando ainda o contexto do ensino superior, a forma como tem ocorrido o acesso das mulheres negras a esta etapa de escolaridade nos últimos anos e, conforme apontado por hooks (2013)HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013., a ausência de professoras negras no ensino superior podem fazer com que as alunas com as mesmas características físicas nem sequer visualizem isto como uma possibilidade profissional. Isso foi apontado pela Formada 05 ao descrever como lidou com o fato de, ao longo de sua graduação, haver poucas pessoas negras no corpo discente e docente da instituição:
Você só tem duas opções, ou você entende que aquela posição não é para você porque não tem ninguém ali igual e, se você estiver, você é um impostor. Ou você "tudo bem, não tem ninguém lá e eu vou ser a primeira a chegar lá para trazer outras pessoas". (Formada 05)
Portanto, foi importante verificar também que oito entrevistadas tiveram professoras negras na graduação. Visualizar tal perfil docente contribui para romper com os estereótipos acerca do lugar de "ignorância" que por diversas vezes recai sobre a população negra e da mulher na sociedade, ainda muito marcada pelo racismo e pelo machismo. Pensando o processo de fortalecimento da autoestima dessas graduandas, isso pode representar uma forma de reivindicar e se apropriar de um espaço que por anos esteve alheio à diversidade de raça e gênero, ou seja, uma forma de deixar de "ver a si mesma como um corpo num sistema que não se acostumou com a sua presença ou com sua dimensão física" (hooks, 2013HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013., p. 181).
A existência de professoras negras na instituição, muitas vezes trazendo consigo trajetórias semelhantes às das alunas do curso, pode fazer delas representantes das tantas outras que foram excluídas e, pela identificação e relação construídas, servir como incentivo para a permanência (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.). É o que se vê em:
Mas eu acredito que só de ter a presença dessa outra professora eu já me sentia bem, assim, tipo só de olhar para ela e me ver, até porque ela é muito parecida mesmo, é baixinha, ela tem tipo um cabelo parecido com meu, ela tem uma cor parecida com a minha, então assim, ela foi inclusive a primeira professora preta que eu vi quando eu cheguei no IFRJ. E aí eu falei: "caramba, tem uma professora!" (…) Vê-las ali exercendo mesmo, sabendo que elas também tinham passado por situações, que passavam e passam com certeza, situações de desagradáveis, meio que me encorajava de certa forma. (Aluna 03)
Porque você ver mulheres negras, cientistas e que têm, teoricamente, a mesma formação que você, você se espelha nelas. Você fala "caraca, eu também posso chegar ali, não é impossível, não é um campo totalmente fechado para a gente". Então eu via espelho, eu me via nelas. (Formada 01)
Eu achava ela maravilhosa, porque ela cresceu perto da onde eu cresci, então ela foi uma menina negra que veio de um bairro pobre, um bairro humilde e aí fez faculdade, mestrado e doutorado aí voltou para dar aula numa instituição federal, conseguiu sair do bairro mais humilde foi para um bairro melhor. Então ela foi assim, uma ascensão, sabe? Eu admiro isso. Quando eu descobri que ela cresceu perto da onde eu cresci eu falei "Nossa!" (Formada 03)
Assim, discute-se aqui como as identidades em formação se ressignificam diante do encontro com os outros e da possibilidade de visualizar neles semelhanças e êxito profissional, um exemplo positivo a ser seguido.
Toda aprendizagem ocorre pela síntese dos contextos e realidades vivenciados, que serão gradualmente substituídos pelo processo de diferenciação, em que a categorização do pensamento e sua relação com a cultura, os valores, conceitos e o contexto histórico-social constroem diferentes formas de agir e pensar, ou seja, vão estabelecendo diferenciações cada vez mais específicas conforme as oportunidades culturais dos sujeitos (La Taille et al., 2019LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 27. ed. São Paulo: Summus, 2019.).
Assim, os conhecimentos e as ações dos sujeitos são determinadas e determinantes para a qualidade das relações afetivas estabelecidas no campo acadêmico, sendo este um espaço de afetar e ser afetado. O conhecimento, a cultura e a vida cotidiana complementam-se, desenvolvendo nos indivíduos os mais diferentes comportamentos, em que o eu e o outro se constituem no plano simbólico gradualmente, por meio da diferenciação, identificação e oposição (Bourdieu, 2012BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.; La Taille et al., 2019LA TAILLE, Yves de; OLIVEIRA, Marta Kohl de; DANTAS, Heloysa. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 27. ed. São Paulo: Summus, 2019.).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste estudo, buscaram-se respostas para as indagações sobre a forma com que a identidade docente das mulheres negras participantes da pesquisa é construída ao longo do curso de Licenciatura em Química do IFRJ-CDuC, o que vem contribuindo para tal, quais os dispositivos que são mobilizados no campo acadêmico e de que forma se constrói o pertencimento étnico-racial das mulheres negras na graduação.
Utilizando a constatação que o racismo não se constitui perante a diversidade entre os sujeitos, mas sim a desigualdade entre eles (Kilomba, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.), os dados analisados a respeito da permanência das mulheres negras no ensino superior iluminam que as alunas e egressas tiveram que lidar com diversas dificuldades com o propósito de permanecerem na graduação.
Suas vivências e, por conseguinte, a construção das identidades docentes das mulheres negras participantes desta pesquisa, desde o início do curso, foram marcadas por estranhamentos, dificuldades financeiras, desafios, frustações e quase desistências, fazendo que elas frequentemente necessitassem mobilizar mecanismos para a adequação e incorporação dos códigos legitimados na instituição. Assim, foi possível observar que os novos comportamentos e gostos foram construídos à medida que foi necessário mobilizar estratégias para pertencer ao campo.
Ao visualizar a inserção e as relações construídas no cotidiano do campo acadêmico, foi possível identificar não só a violência simbólica representada pelas diferenças de capital cultural e econômico, como também a forma com que as características fenotípicas, por vezes, provocaram comentários pejorativos e preconceituosos. Isso, em certos momentos, trouxe às participantes uma indagação e incerteza sobre se elas poderiam ou deveriam pertencer àquele espaço.
Considerando que a construção da percepção de si muitas vezes se dá pautada por um padrão cultural e embranquecido dominante, é fundamental destacar também que a possibilidade de algumas entrevistadas se identificarem em termos de características físicas e/ou origem social com docentes negras da instituição, segundo os relatos, vem contribuindo para promover maior pertencimento ao espaço educacional e reforçar as chances de êxito com a visualização da trajetória e do sucesso profissional de semelhantes.
Foi fundamental entender, ao longo do estudo, como a tomada de consciência de si, de forma analítica e emocional, em um campo que por vezes reproduz opressões se tornou um importante mecanismo de análise a respeito da possibilidade de desestabilizar a norma hegemônica e de essas mulheres construírem criticamente suas identidades docentes, distanciando-se da lógica que reforça sua posição à margem (Collins, 2016COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro.Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-127, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/MZ8tzzsGrvmFTKFqr6GLVMn/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 20 abr. 2021.
https://www.scielo.br/j/se/a/MZ8tzzsGrvm...
; Ribeiro, 2019RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019.).
Embora se entenda que, indiretamente, analisando-se as relações construídas no campo acadêmico, foi visualizado como a branquitude está posta perante a identidade da negritude que se constitui, reforça-se a necessidade de um trabalho que dê continuidade e questione a tradição acadêmica branca e que ilumine os mecanismos que são mobilizados por ela para manter seus privilégios acadêmicos e sociais.
Os dados obtidos ao longo deste estudo não permitiram visualizar também com clareza se a construção da identidade docente ao longo do curso provocou o rompimento com a reprodução de estereótipos e estratificações sociais no fazer docente das formadas e até que ponto os códigos incorporados na vivência da instituição se refletem em suas atividades como professoras de química. Acredita-se então que, em uma pesquisa futura, na qual se aprofunde o olhar sobre a inserção profissional e a prática pedagógica das egressas, seja possível verificar tais questões.
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Financiamento:
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
01 Abr 2023 -
Revisado
24 Jul 2023 -
Aceito
31 Jul 2023