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Distantes, mas nem Tanto: Proximidades do Conceito de Deficiência na Defectologia de Vygotsky e no Modelo Social da Deficiência

Distant, but not so Much: Proximity to the Concept of Disability in Vygotsky Defectology and in the Social Model of Disability

RESUMO

O presente ensaio, realizado mediante processo de revisão literária, apresenta os principais conceitos relativos à categoria deficiência desenhados pela literatura nominada “modelo social da deficiência” e pela Defectologia de Vygotsky. Objetiva, considerando a importância que citadas correntes teóricas desempenham hodiernamente no campo dos estudos sociais, assinalar pontos de encontro e diferenciação entre ambas as literaturas, as quais, embora aparentemente incomunicáveis, versam sobre problemáticas congruentes erigidas a partir de um mesmo alicerce metodológico: o materialismo histórico. Após o destaque de uma série de argumentos e motivos em comum, o texto finaliza afirmando que a distância temporal que separa o forjar das duas literaturas não as impediu de visualizar, no combate às opressões vivenciadas pelas pessoas com deficiência, parte da solução pretendida para a construção de um mundo mais acessível, por isso, melhor, mais justo e solidário.

PALAVRAS-CHAVE:
Psicologia Sócio-histórica; Modelo social; Deficiência; Justiça social; Estudos sociais

ABSTRACT

The present essay, carried out through a literary review process, presents the main concepts related to the disability category designed by the literature named “social model of disability” and by Vygotsky’s Defectology. It aims, considering the importance that the aforementioned theoretical currents play today in the field of social studies, to highlight points of encounter and differentiation between both literatures, which, although apparently incommunicable, deal with congruent issues raised from the same methodological foundation: the historical materialism. After highlighting a series of arguments and reasons in common, the text concludes by stating that the temporal distance that separates the forging of the two literatures did not prevent them from viewing the fight against oppression experienced by people with disabilities as part of the intended solution for intended solution for building a more accessible world, therefore, better, fairer and supportive.

KEYWORDS:
Socio-historical Psychology; Social model; Disability; Social justice; Social studies

1 Introdução

A representação da ideia de deficiência parece se fazer presente na condição humana desde os mais distintos povos e cronologias que se têm notícia. Parte dessa sensação, seguramente, relaciona-se ao fato de raros se mostrarem os registros culturais que não mencionem em nenhuma de suas linhas algum evento que hoje seria nominado sob essa plêiade simbólica. Da escrita pictográfica e cuneiforme, passando pelo estilo hieroglífico até a chegada ao alfabeto propriamente dito, presenciamos inúmeras representações de corporalidades com diversos comprometimentos de maneira constante e persistente ao longo da história.

Todavia, essa suposta constância imagética, longe de incorporar uma verdade inconteste, soa um tanto quanto artificial, posto que o significado que atribuímos à ideia de deficiência se mostre absolutamente instável. Sobre esse aspecto, imperioso se faz ressaltar que dito vocábulo somente apareceu no século XVIII (Davis, 2014Davis, L. J. (2014). Enforcing normalcy: disability, deafness, and the body. Verso Books.). Anteriormente a esse período, os registros literários demarcavam a existência de cegos, surdos, aleijados, anões, retardados, loucos, leprosos, impuros, débeis, bruxas, monstros etc., mas não de deficientes, visto que dita terminologia ainda não estivesse formulada. Assim sendo, podemos asseverar que fisicalidades com comprometimentos existiram desde sempre e nos mais variados espaços, já corpos com deficiência denotam um conceito da modernidade instituído pela anteposição à ideia de eficiência, pois vinculado às relações materiais de produção implantadas no seio do capitalismo.

É inconteste que as mais diferentes sociedades edificaram variados sistemas de crenças e práticas relativas à maneira pela qual se relacionavam com corpos com comprometimentos, criando distensões nas formas de incorporação desses sujeitos na comunidade com base em atributos socialmente valorizados definidos a partir da relação de causalidade entre limitação apresentada e atividade econômica esperada. Sob essa interação, em sociedades guerreiras, a deficiência física se configurava em séria restrição e motivo de marginalização social, podendo comprometimentos intelectuais passarem despercebidos ou secundarizados.

Não por acaso, o infanticídio grego concentrava suas ações sobre crianças nascidas exclusivamente com comprometimentos físicos, não se aplicando a outras limitações. O advento do sistema capitalista de produção, embora não altere radicalmente a lógica interpretativa do fenômeno em si, reordena seus vetores ao configurar um novo cenário social no qual a métrica do ideal é substituída paulatinamente pela ideia de normal, cujo acabamento dá início a um longo e tortuoso processo de institucionalização caracterizado pela fixidez na busca do idêntico, fato inexistente em épocas pretéritas.

Em vista disso, concordamos com Garland-Thomson (2002)Garland-Thomson, R. (2002). Integrating disability, transforming feminist theory. NWSA Journal, 14(3), 1-32. https://doi.org/10.2979/NWS.2002.14.3.1
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de que podemos entender o conceito de deficiência como uma categoria artificial que compreende o estabelecimento de determinadas características sob a insígnia da distinção, tomando essa fotografia como dinâmica e contingente, pois transmuta entre povos, culturas e períodos históricos. Sob esse retrato, não é de se estranhar que algumas condições consideradas como deficiência deixem de assim ser encaradas a partir de eventos que alterem definições primevas, estabelecidas quase sempre arbitrariamente mediante um conjunto de relações de poder. Um exemplo, nesse sentido, ocorreu em 1973 quando a American Psychiatric Association (APA) removeu o homossexualismo de seu manual diagnóstico por entender que o desejo pelo mesmo sexo não deveria mais ser tratado como transtorno psiquiátrico, (Silverstein, 2009Silverstein C. (2009). The implications of removing homosexuality from the DSM as a mental disorder. Archives of Sex Behavior, 38(2), 161-163. https://doi.org/10.1007/s10508-008-9442-x
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), supressão somente ocorrida após intensas lutas ativistas manifestadas por movimentos sociais.

Destacada fotografia representacional nos auxilia a visualizar a mobilidade e a complexidade da conceituação da deficiência, por isso sua compreensão jamais pode ser realizada de forma meramente estatística. Complexa e dialética, a deficiência não é uma coisa, mas, sim, uma ideia que, como qualquer representação, muda ao longo do tempo.

Afirmado o caráter histórico e transitivo da categoria aqui trabalhada, a nós parece evidente que a ideia de deficiência sofreu sua maior transformação nas últimas quatro décadas se tomarmos por comparativo angular o núcleo imaginário primevo dessa representação (originada no século XVIII e de fundamentação nuclearmente médica), uma transfiguração calcada na ampliação de direitos sociais via luta política. Evidente que, nesse ínterim temporal, houve mudanças revolucionárias na medicina as quais permitiram avanços na qualidade de vida das pessoas com deficiência que eram impensáveis em tempos pretéritos, elementos que jamais podem ser secundarizados. Contudo, entendemos que a mudança mais radical em termos de relação para com a experiência da deficiência está na descoberta de que a vida dessas pessoas se mostrava limitada em maior intensidade por arbitrariedades sociais, econômicas, culturais, educacionais, legais e políticas do que propriamente por especificidades sensoriais, físicas, intelectuais, psicológicas ou comportamentais.

No campo teórico, foram duas as principais teorias que nos permitiram acercarmo-nos do caráter histórico-cultural-material expresso pela deficiência: o modelo social da deficiência e a Defectologia de Vygotsky. Sublinhadas correntes teóricas não se encontraram no tempo - uma vez que Vygotsky falecera em 1934 e os teóricos do modelo social principiaram suas contribuições a partir dos anos de 1970 -, não sendo encontradas citações do bielorrusso no texto dos londrinos, embora existam congruências entre ditas literaturas, muitas das quais não ditas. Na busca dessas intersecções que este ensaio se desdobrará, o qual, dedilhado mediante processo de revisão literária, objetiva captar a essência desses pensamentos sobre a categoria deficiência com vistas a estabelecer aproximações inéditas entre tais correntes teóricas. Começaremos nossa análise pela apresentação do modelo social da deficiência.

2 O modelo social da deficiência

A literatura nominada “modelo social da deficiência” teve por marco constituinte o estabelecimento de uma crítica radical à interpretação médica/clínica da deficiência. Citada corrente teórica surgiu como parte do desdobramento das ações promovidas por movimentos ativistas de pessoas com deficiência contra o fenômeno da institucionalização, não descendendo do ambiente tradicional da academia, fato que auxilia na compreensão de seus principais postulados (Oliver, 1990Oliver, M. (1990). The Politics of Disablement. Macmillan.).

As primeiras produções desse corpo teórico derivaram da interpretação original feita pela Union of the Physically Impaired Against Segregation (UPIAS) de que a deficiência consistia em uma forma de opressão materializada por uma organização social que marginaliza pessoas que apresentam comprometimentos (físicos, sensoriais, psicológicos, intelectuais e comportamentais), as quais se veem desnecessariamente isoladas e excluídas da plena participação social. Sob essa perspectiva, as pessoas com deficiência seriam um grupo oprimido na sociedade (UPIAS, 1976Union of the Physically Impaired Against Segregation. (1976). Fundamental principles of disability union of the physically impaired against segregation. London.).

Se olharmos atentamente para essa definição, perceberemos a existência de uma clara distinção entre comprometimento (derivado de lesão, má funcionamento, transtornos ou perda de funcionalidade) e deficiência (proveniente de exclusão social). Nesse cabedal de relações, enquanto o comprometimento é de ordem individual e privada, a deficiência é social, coletiva, pública; por conseguinte, o principal elemento de análise em termos causais da categoria deficiência não derivaria da condição clínica ou do suposto fracasso adaptativo de algumas pessoas, mas das estruturas opressoras da sociedade. No entendimento de Oliver (1996)Oliver, M. (1996). Understanding disability: from theory to practice. MacMillan., sublinhada tese se mostra fundamental para que as pessoas com deficiência sejam encaradas não sob a perspectiva da tragédia pessoal ou de uma natureza supostamente incompleta, mas, sim, como vítimas coletivas de uma sociedade indiferente e discriminatória.

Cabe ressaltar que a distinção entre comprometimento e deficiência aqui destacada se deriva de uma clara alusão ao paralelo feminista entre sexo e gênero tracejado por Rubin (1975)Rubin, G. (1975). The traffic in women: notes on the political economy of sex. In R. Reiter (Org.), Toward an anthropology of women (1ª ed., pp. 157-210). Monthly View Press. e realizada a partir da diferenciação entre natureza e cultura inicialmente projetada por Lévi-Strauss (1982)Lévi-Strauss, C. (1982) As estruturas elementares do parentesco. Vozes.. Não por acaso, as teses de Rubin (1975)Rubin, G. (1975). The traffic in women: notes on the political economy of sex. In R. Reiter (Org.), Toward an anthropology of women (1ª ed., pp. 157-210). Monthly View Press. e da UPIAS (1976)Union of the Physically Impaired Against Segregation. (1976). Fundamental principles of disability union of the physically impaired against segregation. London. são separadas pelo intervalo de apenas um ano.

Outra tese feminista apropriada pelo modelo social da deficiência diz respeito à diferenciação na ocupação de espaços públicos e privados, associando os primeiros (geralmente lotado por homens) à ordem econômico-política e o segundo (majoritariamente preenchido por mulheres) aos afazeres familiares, distinção esta geradora de profundas desigualdades sociais. Barton (1998)Barton, L. (1998). Discapacidad y Sociedad. Morata. assevera que algo parecido ocorrera em relação às pessoas com deficiência, as quais, desde a assunção do modo de produção capitalista e sua expulsão dos postos de trabalho, foram relegadas às esferas privadas e apartadas das arenas de decisões políticas.

Baseado nesses supostos, o modelo social da deficiência operou uma crítica radical ao processo de institucionalização - que despersonalizava as pessoas com deficiência, impedindo-as de serem vistas como responsáveis pelas próprias escolhas - e ao modelo médico/individual, linguagem dominante no trato com a deficiência desde a Idade Moderna e cujo entendimento substituiu gradativamente àquele perfilhado pelo modelo religioso/moral.

No entendimento de Oliver (1996)Oliver, M. (1996). Understanding disability: from theory to practice. MacMillan., o modelo individual patologiza a deficiência por resumi-la como expressão causal do déficit biológico/corporal percebido e ao propor como única alternativa de enfrentamento a essa condição o estabelecimento de um conjunto de intervenções clínicas sobre os próprios sujeitos. Sob esse escopo teórico, trata-se a condição clínica do sujeito, tornado paciente, pouco ou nada se versando sobre os processos sociopolíticos que marginalizam essas pessoas, justificando-se, inclusive, a separação social da pessoa com deficiência como momento necessário à reorganização existencial que lhe permitirá voltar ao convívio coletivo posterior.

Ao posicionar a deficiência não como correlata à existência de comprometimentos biológicos, mas, sim, a partir de uma estrutura social insensível a tais diferenças em virtude de um rígido padrão normativo, que é arbitrário, o modelo social rompe pela raiz o nexo explicativo característico do saber médico e da ideia de reabilitação (Barnes, 1998Barnes, C. (1998). The social model of disability: a sociological phenomenon ignored by sociologists?. Cassel.). A partir de então, as dificuldades e as marginalizações enfrentadas pelas pessoas com deficiência, longe de espelharem um fenômeno natural, passam a ser vistas como intencionais e derivadas de uma tecnologia disciplinar característica da modernidade. Em vez de ser uma experiência humana natural, a deficiência é o que pode acontecer com corpos comprometidos vivendo em espaços delineados por diversas barreiras (sociais, físicas, pedagógicas, atitudinais, comunicativas, políticas, programáticas ou de transporte) e subjugados ao interdito.

Perfilhado a essa posição, Oliver (1996)Oliver, M. (1996). Understanding disability: from theory to practice. MacMillan. assevera que a deficiência representa tudo aquilo que impõe restrições aos corpos com comprometimentos, variando de preconceito individual à discriminação institucional, da negação aos serviços de saúde ao afastamento das esferas políticas, de prédios públicos inacessíveis a sistemas de transporte inutilizáveis, de educação segregada aos esquemas de exclusão de trabalho. Perante essa lógica, são as barreiras que incapacitam as pessoas com deficiência e não seus comprometimentos.

Para Beckett e Campbell (2015)Beckett, A. E., & Campbell, T. (2015). The social model of disability as an oppositional device. Disability & Society, 30, 270-283. https://doi.org/10.1080/09687599.2014.999912
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, a apropriação dessas ideias fez com que, onde anteriormente havia somente uma falta de esperança e sensação de falha individual, derivada da noção recebida de ter um corpo com defeito, se estimulassem novas formas de pensar as quais posicionavam a deficiência como forma de opressão, tornando-a não apenas contingente, mas também injusta.

E como bem sinaliza Abberley (1987)Abberley, P. (1987). The concept of oppression and the development of a social theory of disability. Disability, Handicap & Society, 2(1), 5-19. https://doi.org/10.1080/02674648766780021
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, afirmar que as pessoas com deficiência são oprimidas envolve uma série de elementos. Em um nível empírico, compreende argumentar que essas pessoas podem ser consideradas como um grupo cujos membros estão em uma posição inferior a outros membros da sociedade porque são pessoas com deficiência. Significa, ademais, arrazoar que essas desvantagens estão dialeticamente relacionadas a uma ideologia ou conjunto de ideologias que justificam e perpetuam a situação de capacitismo. Por fim, abrange a afirmação de que tais desvantagens e ideologias não são naturais ou inevitáveis; logo, podem ser transformadas mediante ação social-política organizada.

Sob um verniz materialista, o modelo social asseverou que diferentes sociedades/culturas podem produzir relações e ambientes distintos nas formas de incorporação da pessoa com deficiência. Assim sendo, a história das pessoas que apresentam comprometimentos, tornados ou não deficiência, não tenderia da exclusão para a inclusão como somos forçosamente levados a acreditar pela modernidade. Inexiste uma linha evolucionista na maneira pela qual as sociedades se relacionaram com aquilo que definiram como desvio. Tanto o é que, especialmente no caso das pessoas com deficiências, a história do capitalismo materializou a consubstanciação de uma complexa dialética entre mercantilização e mudança espacial que desativou a força de trabalho desses sujeitos, gerando uma exclusão laboral não presenciada nas sociedades anteriores. Por isso, a marca da exclusão é mais característica de um conjunto de relações produtivas e espirituais que do fenômeno propriamente dito, daí a necessidade de situá-lo historicamente. E é com base nesse historicizar da deficiência que percebemos como o modelo médico/ individual se concentrou efetivamente em questões de prevenção e reabilitação de comprometimentos biológicos e transtornos, vistos como acarretadores indeléveis de deficiência, enquanto o modelo social focou seus esforços na criação de legislação antidiscriminação, na remoção de barreiras, na afirmação de direitos civis e na promoção de vida independente, concentrando seus empenhos na luta política mais ampla e não em intervenções individuais. A grande ideia por traz deste corpo epistemológico reside na quebra do vínculo causal entre a condição do comprometimento e a situação social da deficiência, composto que possibilitou a focalização nas causas reais de marginalização experimentadas pelas pessoas com deficiência: o não reconhecimento, a discriminação, a exclusão socioeconômica e a não representatividade nas principais esferas políticas.

A publicização dessas ideias, além de eficaz no fortalecimento de movimentos ativistas, materializou adicionalmente uma sensação de conforto psicológico nas pessoas com deficiência por meio da melhoria da autoestima e da construção de um sentido positivo dessa identidade, interpretada como fundamental ao incremento da riqueza cultural produzida pela humanidade.

Afirmar a experiência das pessoas com deficiência como enriquecedora não representava pouca coisa em um cenário de avanço dos controles médicos sobre a sociedade. Ademais, pressupor que a mudança necessária se daria pela transformação das geografias sociais e relações interativas e não por uma mutação corporal individual, tal qual tangia o modelo de reabilitação, também representava um avanço digno de nota.

Não por acaso, ditos supostos fortaleceram lutas travadas por coletivos de pessoas com deficiência que se mostraram angulares em termos instrumentais, posto promoverem campanhas por vida independente e pela conquista de direitos civis que transformaram a vida de milhões de pessoas. Sublinhadas lutas também contribuíram à redefinição do próprio significado da categoria deficiência para os indivíduos e para a sociedade como um todo. A partir de então, pessoas com deficiência não precisariam mais se identificar em termos de limitações ou déficits, podendo se reconhecer mediante práticas de resistência, solidariedade e orgulho, conscientização que leva a novas demandas por mudança social e reforma política.

Esse verdadeiro movimento de libertação de pessoas com deficiência, para nos valermos de um termo utilizado por Morris (1992)Morris, J. (1992). Personal and political: A feminist perspective on researching physical disability. Disability, Handicap & Society, 7(2), 157-166. https://doi.org/10.1080/02674649266780181
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, nos faz rememorar uma célebre passagem de Fanon (2008)Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Editora da UFBA. quando este, ao descrever o processo de construção da consciência para si nos negros, afirma que há momentos em que o homem negro estava trancado em seu corpo e, somente quando adquiriu consciência da necessidade de si mediante a dialética entre sujeito e objeto, percebeu que seu corpo não era a causa da estrutura da consciência, mas objeto da consciência. O entendimento de que as lutas das pessoas com deficiência devem ser dirigidas para a mudança da sociedade e não de seus corpos permite cortar pela raiz a máxima de Procusto de que a anatomia era o destino. Não, não o era. Escorado nesses supostos, Oliver (1990)Oliver, M. (1990). The Politics of Disablement. Macmillan. afirma que, ao transformar-se a sociedade, a deficiência também se modificará, podendo até desaparecer, desestruturando a maneira pela qual o fenômeno era interpretado ao enfatizar que a própria sociedade fabrica culturalmente inúmeros comprometimentos e deficiências, quer pela existência de guerras, pela negativa de tratamentos médicos, pela fome e desnutrição, pelo trabalho precarizado e frenético ou pela falta de assistência, elementos estes derivados das incontáveis injustiças promovidas pela humanidade no afã em explorar o outro.

Poderá se objetar que dita literatura desconsidera os inúmeros benefícios promovidos pelo tratamento médico e pela reabilitação na vida das pessoas com deficiência; contudo, tal posição é deveras frágil. Não podemos esquecer que o modelo social distingue enfaticamente comprometimento de deficiência. Portanto, a crítica que se faz à atuação médica não se refere às intervenções clínicas em si, mas à colonização da vida das pessoas com deficiências pelo primado do comprometimento. Desse modo, o modelo social não nega a existência concreta de comprometimento físico, sensorial, psicológico, intelectual ou de transtornos comportamentais, tampouco deixa de considerar a necessidade de tratamento para essas formas existenciais como importantes, visualizando na inação de recursos médicos, inclusive, parte do processo de materialização da própria deficiência. Contudo, assevera que a deficiência é histórica, política e socialmente produzida. É disso que se trata.

Para além dessa contestação, outra potente crítica ao modelo social assevera que a distinção entre comprometimento e deficiência é de validade duvidosa, dada a dificuldade em definir onde termina o comprometimento e começa a deficiência em virtude do entrelaçamento dialético entre os componentes biológicos e sociais (Shakespeare, 2006Shakespeare, T. (2006). Disability rights and wrongs. Routledge.). Com base nessa arquitetura, Shakespeare (2006)Shakespeare, T. (2006). Disability rights and wrongs. Routledge. critica a ideia da deficiência como construção social, destacando-a como um absurdo empírico que ameniza em demasia o aspecto biológico óbvio, assim como as limitações geradas por alguns comprometimentos (físicos, sensoriais, intelectuais e comportamentais) que causarão restrições de participação independentemente das transformações promovidas nas estruturas sociais. Em vista disso, Shakespeare e Watson (2001)Shakespeare, T., & Watson, N. (2001). The social model of disability: an outdated ideology?. In S. N. Barnartt, & B. M. Altman (Eds.), Exploring theories and expanding methodologies: Where we are and where we need to go (1ª ed., v. 2, pp. 9-28). Emerald Group Publishing Limited. afirmam que o modelo social já teria sua validade ultrapassada no tempo, devendo ser implodido pelas raízes.

Ledo e duplo engano. Em primeiro lugar, o modelo social da deficiência não nega a existência objetiva e fáctica do comprometimento. Não se questiona o fato de que algumas pessoas não podem andar, processar imagens com a retina ou ouvir sons. Não é disso que versa a ideia de construção social da deficiência. O que se questiona é o significado atribuído por sistemas culturais a esses comprometimentos, os quais não se mostram estáveis ao longo do tempo, assim como a derivação de soluções passando unicamente pelas vias individuais, esquecendo-se que as estruturas sociais configuraram de maneira intencional uma série de barreiras as quais impedem pessoas com deficiência de participarem paritariamente da vida ordinária. Em segundo lugar, é absolutamente contraproducente entender que o modelo social está ultrapassado, posto que ativismo de pessoas com deficiência originado de suas ideias ainda se trata de uma empreitada que necessita seduzir mais pessoas para se tornar uma força efetiva nas cartografias políticas.

Ora, não podemos esquecer que foi a partir do modelo social que aprendemos a interpretar a deficiência como uma experiência que demanda mais do que fatos médicos. Nesse sentido, o que se mostra ultrapassado é uma versão empobrecida que toma a construção social da deficiência em oposição à existência de intervenções clínicas. Que antepõe social e biológico como vias incomunicáveis. Cabe frisar que o modelo social se coloca em anteposição a uma forma individual de encarar a deficiência e não às práticas médicas propriamente ditas. A revolução que a medicina pode promover no tratamento de condições complexas de saúde e a construção de uma sociedade democrática na qual caibam todos os corpos caminham dialeticamente na feitura de um mundo mais justo e acessível.

A prática médica não é embaraço, mas parte da solução de justiça pretendida; assim, sua negação é criminosa e promotora de marginalizações desnecessárias. O problema está no entendimento de que a vida da pessoa com deficiência necessite sempre de supervisão médica, equívoco cuja contestação deu azo à ideia de vida independente. Vida independente, como pontua Brisenden (1986)Brisenden, S. (1986). Independent living and the medical model of disability. Disability, Handicap & Society, 1(2), 173-178. https://doi.org/10.1080/02674648666780171
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, não se refere ao fato de alguém poder fazer tudo sozinha, mas, sim, à premissa de que as pessoas, mesmo com comprometimento severos, possuem o direito de assumirem o controle sobre suas próprias vidas e a condução de seus desejos. Tal conceito

não pode ser aplicado a alguém que vive em um ambiente institucional porque a rotina de suas vidas será pré-determinada, em maior ou menor grau, pelas necessidades dos profissionais responsáveis p ela instituição. No entanto, pode ser aplicado à pessoa com comprometimento mais grave que vive na comunidade e organiza toda a ajuda ou cuidado de que precisa como parte de um estilo de vida escolhido livremente. (Brisenden, 1986Brisenden, S. (1986). Independent living and the medical model of disability. Disability, Handicap & Society, 1(2), 173-178. https://doi.org/10.1080/02674648666780171
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, p. 178)

Dito isso, importa asseverar que o modelo social denota uma forma de participação e inserção cultural poderosa para um coletivo sistematicamente excluído das arenas de poder, consequentemente tem muito a oferecer em termos de protagonismo político. Como pontua Charlton (1998)Charlton, J. (1998). Nothing about us without us: disability, oppression and empowerment. University of California Press., a participação política é um direito indispensável na luta pelo atendimento dos interesses e das perspectivas das pessoas com deficiência, sendo o modelo social a literatura que mais estimulou a realização dessas práticas, engendrando novas subjetividades e formas de estar no mundo, proclamando inaugurais ideias e aspirando outras geografias sociais, muitas das quais ainda em construção, representação imagética que nos faz rememorar uma passagem de hooks (2019)Hooks, B. (2019). Teoria feminista: da margem ao centro. Perspectiva., para quem as margens, mais que um local de privação, também podem ser o local da possibilidade, um espaço de resistência. Das margens ao centro traduz a perspectiva aberta pelo ativismo de pessoas com deficiência inaugurado pelo modelo social.

Apresentados os elementos daquilo que nominamos “modelo social da deficiência”, destacaremos, neste momento, as principais ideias da Defectologia de Vygotsky, constructo teórico que exerce pronunciada interferência no campo da Educação e Psicologia no que se refere a um entendimento materialista-histórico da deficiência.

3 A defectologia de Vygotsky

Vygotsky teve uma vida curta, mas de vasta produção intelectual. Nasceu em 1986 em Orsha, na Bielorrússia, e faleceu em Moscou no ano de 1934. Suas primeiras experiências como pesquisador ocorreram nos anos de 1920, em Gomel, consistindo na criação de um laboratório de Psicologia com o objetivo de estudar relações de aprendizagens em crianças surdas, cegas e deficientes intelectuais (Vygodskaya, 1995Vygodskaya, G. L. (1995). His Life. School Psychology International, 16(2), 105-116. https://doi.org/10.1177/0143034395162002
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). Desde então, a análise da deficiência “permaneceu no centro de seus interesses científicos durante toda sua curta vida” (Shuare, 1990Shuare, M. (1990). La psicologia soviética como yo la veo. Editorial Progresso., p.72). Não por acaso, a primeira compilação de textos publicados por Vygotsky foi batizada pelo autor de “Questões de educação de crianças cegas, surdo-mudas e com retardo mental” (Prestes, 2010Prestes, Z. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: análise das traduções de Lev Seminovicht Vigostki no Brasil repercussões no campo educacional [Tese de Doutorado, Universidade de Brasília]. Repositório da UnB. http://repositorio2.unb.br/jspui/handle/10482/9123
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).

Apoiado nessas experiências primevas, Vygotsky elaboraria suas principais teses educacionais e conceitos psicológicos. Por consequente, mostra-se impossível entender a teoria do bielorrusso sem as experiências geradas pela vivência da deficiência, uma vez que, como pontua Shuare (1990)Shuare, M. (1990). La psicologia soviética como yo la veo. Editorial Progresso., Vygotsky viu nessa condição as perspectivas balizadoras de sua teoria, “cujo núcleo de sentido é o profundo otimismo nas possibilidades do homem como sujeito da atividade, criador de sua própria história, artífice de seu desenvolvimento” (p. 72).

Isso posto, causa estranheza que sublinhadas ideias sejam pouco retratadas na abrangência geral do pensamento vygotskyano, conforme assinala Giest (2018)Giest, H. (2018). Vygotsky’s Defectology: a misleading term for a great conception. Educação, 41(3), 334-346. https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.3.31725
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. Essa constatação se mostra ainda mais surpreendente se tomarmos em conta que a aparição pública que tornara Vygotsky célebre no campo acadêmico, ocorrida no Congresso Russo de Defectologia, em 1924, se deu justamente a partir de uma apresentação que colocou de cabeça para baixo os supostos da antiga defectologia ao enfatizar a primazia do social sobre o biológico na materialização da deficiência, raciocínio simbolizado na seguinte passagem:

Provavelmente a humanidade vencerá, tarde ou cedo, a cegueira, a surdez e a debilidade mental. Porém, as vencerá muito antes no plano social e pedagógico que no plano médico e biológico. É possível que não esteja distante o tempo em que a pedagogia se envergonhe do próprio conceito de “criança deficiente”, como assinalamento de um defeito insuperável da sua natureza [...]. Todavia, fisicamente, a cegueira e a surdez existirão durante muito tempo na terra. O cego seguirá sendo cego e o surdo, surdo, porém deixarão de ser deficientes porque a defectividade é um conceito social. (Vygotsky, 1997Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., p. 82)

Sublinhado posicionamento nos permite perceber uma clara distinção feita por Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A. a qual vincula a materialidade da deficiência à existência de barreiras sociais, uma contribuição original e anterior àquela que seria estabelecida posteriormente em linhas semelhantes pelo modelo social da deficiência. No entender de Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., a deficiência possui duas matrizes: primária (de caráter orgânico em função de causas biológicas exógenas e endógenas); e secundária (vinculada à alteração do desenvolvimento gerada pela interação entre um corpo com comprometimento biológico e um ambiente planejado para não incorporar tal diferença). Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A. assinala que as causas primárias da deficiência podem obstaculizar o domínio de competências e conhecimentos considerados ordinários à cultura corrente, fenômeno que possivelmente levaria a um desenvolvimento irregular desses indivíduos. Todavia, para o referido autor, o elemento determinante nas dificuldades experimentadas por esses sujeitos seria de natureza secundária e não primária, pois vinculados aos processos de interação social.

Para Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., o comprometimento orgânico não resultará causalmente em subdesenvolvimento humano, uma vez que esse processo dependerá da forma pela qual nos relacionamos com o meio externo mediante utilização de ferramentas/signos culturais, entendimento que reordenou as formas de relação com a experiência da deficiência ao conferir à atividade pedagógica o papel de molar ao desenvolvimento, sobrepondo-se, inclusive, ao tratamento clínico-terapêutico.

Esse é o sentido vygotskyano da afirmação de que a educação social vencerá a deficiência. Para tanto, é fundamental que as pessoas com comprometimentos interajam de maneira participativa com a totalidade do meio social de forma a se apropriar dos conhecimentos disponíveis intuindo captar, interpretar, se relacionar, contestar e transformar o mundo: um intento que demanda obrigatoriamente a aquisição de ferramentas e signos produzidos para dar sentido à nossa história. Em vista disso, Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A. assevera que a dimensão analítica de uma deficiência deve ser percebida mais pela ausência de apropriação desses instrumentos culturais do que propriamente pelo comprometimento orgânico do sujeito.

Para as pessoas com comprometimentos, o acesso aos signos e às ferramentas culturais configuram-se como potências constitutivas do próprio desenvolvimento em escala geométrica, daí a célebre afirmação de Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A. de que um ponto no braile fez mais pelos cegos que milhares de anos de filantropia, pois é o acesso aos conhecimentos acumulados pelas gerações que nos precederam que nos preenche de humanidade e nos insere na roda da história.

Escorado nesses supostos, o pensador bielorrusso edifica uma de suas teses mais originais, qual seja: o processo de desenvolvimento nos seres humanos transcorre sem que obrigatoriamente ocorram modificações biológicas em seus corpos, algo impensado em outras espécies, e cuja existência fáctica somente é possível em virtude de esse desenvolvimento ser governado por outras leis que as da genética, tendo uma origem histórico-cultural. Exatamente devido a essa peculiaridade, presente exclusivamente nos humanos, que as pessoas com comprometimentos biológicos podem se apropriar do conjunto de relações sociais características de uma cultura ordinária mesmo quando suas estruturas são pensadas para não acomodarem essas corporalidades, elemento apenas possível em virtude da preservação da capacidade de utilização de ferramentas e signos nesses sujeitos, princípio absolutamente estranho à norma evolucionária.

A maneira pela qual Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A. compreendeu o fenômeno da deficiência se mostrara muito distinta do entendimento corrente expresso pela antiga defectologia, uma vez que, em vez de tomar essa experiência sob a perspectiva da privação, a sopesou a partir de uma abordagem diferencial positiva que deu luz à valorização dos processos de transformação histórico-dialéticos que nos constitui enquanto humanos, os quais se mostram irrepetíveis e potencialmente criadores de cultura. Sob esse olhar, a experiência da deficiência materializa um novo e abundante caminho existencial, raciocínio desconcertante aos supostos que a entendiam unicamente como limitação, déficit e tragédia pessoal. Assim sendo, as limitações percebidas e vivenciadas decorreriam mais das consequências de um conjunto de marginalizações culturais praticadas por sobre esses sujeitos que propriamente de suas limitações orgânicas, logo, não derivaria de uma condição biológica, mas da própria estrutura de uma sociedade não acessível e injusta. Não por acaso, é perceptível a todo o momento nos escritos de Vygotsky (1997Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., 2000Vygotsky, L. S. (2000). Obras escogidas: problemas del desarrollo de la psique. Tomo III. Visor.) uma intensa preocupação para que os comprometimentos biológicos não transmutem em desvantagens culturais as quais seriam as verdadeiras causadoras da condição de deficiência.

Nesse diapasão, a tese fundamental da nova Defectologia engenhada por Vygotsky é a de que no desenvolvimento das crianças com deficiência se operam as mesmas leis contidas no desenvolvimento das demais crianças e que, portanto, “a criança cujo desenvolvimento está complicado pelo defeito não é simplesmente uma criança menos desenvolvida que seus contemporâneos normais, senão desenvolvida de outro modo” (Vygotsky, 1997Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., p. 12).

Descende desse princípio geral a ideia do duplo papel desempenhado pelo comprometimento orgânico na formação da personalidade da criança, qual seja: de um lado, é limitação, diminuição de desenvolvimento, debilidade; de outro lado, justamente por originar dificuldades, é estímulo ao desenvolvimento intensificado e elevado manifestado mediante processos de compensação (Vygotsky & Luria, 1996Vygotski, L. S., & Luria, A. R. (1996). Estudos sobre a história do comportamento: símios, homem primitivo e criança. Artes Médicas.).

E é justamente sobre o conceito de compensação que se desenha a maior contribuição de Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A. ao entendimento da categoria deficiência. Sublinhada representação teórica não designa uma relação simplista de substituição de determinadas funções comprometidas tal qual se estas fossem absorvidas por outros órgãos, muito pelo contrário. No escopo da Psicologia histórico-cultural, a compensação se estabelece no entrelaçamento cultural do sujeito ao meio e não pela correção biológica da desvantagem ou pelo desenvolvimento sobrenatural de sensibilidades mágicas.

Nesse sentido, a compensação estaria dirigida à eliminação das desvantagens e dificuldades sociais causadas por comprometimentos orgânicos, tendo por objetivo engenhar interações as quais permitam às pessoas se apropriarem da cultura e se inserirem no tecido social de maneira paritária. Sob essa lógica, a pessoa que apresenta comprometimentos não necessariamente será alguém com deficiência, uma vez que essa relação se concretizará somente a partir do insucesso dos mecanismos de compensação, que, como qualquer processo de luta, tem o resultado incerto. Ainda assim, no entender de Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., os mecanismos de compensação sempre se configurarão como processos criadores de construção e reconstrução psíquicas promotores de vias alternativas de desenvolvimento, muitas das quais inovadoras, criativas e absolutamente raras que podem suplantar, inclusive, o estágio de desenvolvimento esperado para certo período.

Isso ocorre, no entender de Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., pelo fato de as forças motrizes do desenvolvimento humano se mostrarem mais intensas nos cenários de inadaptação, uma vez que tal condição leva ao aparecimento dos processos de supercompensação. Para o bielorrusso, quanto mais adaptado estamos ao meio, menores se mostram nossas buscas por transformar à realidade, dada a acomodação de nossos interesses. Tal perspectiva abre flancos impensados à atividade pedagógica ao demarcar que o comprometimento não é “unicamente fonte de pobreza psíquica, é também fonte de riqueza; não é unicamente debilidade, é também fonte de energia” (Vygotsky, 1997Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., p. 47), uma tese fundamental, posto que se os comprometimentos orgânicos fossem considerados como limitando seus sujeitos de maneira incondicional não restaria qualquer espaço de intervenção para educadores nessas situações.

Com as limitações derivadas de comprometimentos orgânicos/biológicos, estão colocadas as forças para sua superação ou nivelamento, o que jamais havia sido destacado até então na academia, fato que materializa a posição original de Vygotsky em seu tempo e, concomitantemente, destaca as imensas potencialidades e os desafios do campo educacional, pois cabia a este a tarefa de levar os estudantes a novos conhecimentos mediante diversificação e complexificação dos processos de aprendizagem.

Como a cultura ordinária obstaculiza por muitas vezes o processo de apropriação para as pessoas com funções orgânicas comprometidas, o ato educativo intencional acaba se revestindo ainda de maior importância sobre esse coletivo, e uma educação estreita interferirá decisoriamente nas possibilidades de desenvolvimento desses sujeitos, posto que, para Vygotsky (2001)Vygotsky, L. S. (2001). Psicologia pedagógica. Martins Fontes., a aprendizagem catalise e anteceda o desenvolvimento humano.

Destacada interferência dá-se em virtude da descoberta pelo bielorrusso de que, durante o processo de desenvolvimento psíquico, o que muda não são as funções ou a estrutura das funções psicológicas, mas, sim, as relações entre as funções, as quais geram novos patamares qualitativos de desenvolvimento humano. Com isso, Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A. bombardeia as concepções que dimensionavam o potencial da pessoa com deficiência a partir da soma matemática de seus comprometimentos, posto que a dialética característica do desenvolvimento humano tornava tal equação muito mais complexa. Uma dialética dada pelo caráter decisório que o meio social e as interações coletivas desempenham na formação de nossas características humanas as quais nos diferenciam de qualquer outra espécie viva.

No caso humano, não se nasce humano, mas torna-se humano a partir da apropriação do conjunto de produções culturais das gerações que nos antecederam mediante relação com outras pessoas. O outro é parte indissociável do eu, entendimento que transmutado à educação permitiu a Vygotsky e Luria (1996)Vygotski, L. S., & Luria, A. R. (1996). Estudos sobre a história do comportamento: símios, homem primitivo e criança. Artes Médicas., tomando de empréstimo uma velha expressão de Feuerbach, sentenciarem que aquilo que parece ser impossível para um torna-se possível para dois. Ou, ampliando horizontes, o que é improvável no plano do desenvolvimento individual se concretiza como possibilidade no plano do desenvolvimento social. Descende desse princípio a ideia de que, em termos de aprendizagem, importa mais o que os estudantes fazem com a ajuda de outras pessoas do que realizam de maneira individual (ideia posteriormente batizada de zona de desenvolvimento proximal), constructo profundamente inovador até os dias atuais.

O conjunto dos elementos aqui apresentados nos permitem afirmar que vários dos postulados mais importantes da Psicologia Histórico-Cultural foram idealizados a partir de estudos que analisaram a experiência da deficiência, dentre os quais podemos citar: a) o entendimento do desenvolvimento humano como arquitetado dialeticamente por duas linhas de ação, biológica e cultural (método genético de desenvolvimento); b) a sobreposição em termos qualitativos dos compostos culturais/sociais sobre os biológicos na formação da personalidade e das funções psíquicas superiores; c) a constatação de que os processos psicológicos, o desenvolvimento humano e a relação que estabelecemos com o mundo descendem da apropriação de signos, ferramentas e outros artefatos culturais; d) a ideia de que o ensino-aprendizagem alavanca e potencializa o desenvolvimento; e) a representação de zona de desenvolvimento proximal e o papel do outro na formação do eu; f) por fim, o suposto de que a inclusão da pessoa com deficência ao meio coletivo tem o condão de promover impactantes transformações na totalidade das relações sociais, reordenando conceitos de justiça e igualdade.

A dimensão desses potentes achados redesenharam o campo da Psicologia e Educação ao implodir o entendimento da categoria deficiência como sendo de menor valia na compreensão do humano. A pedra que os construtores rejeitaram se tornou a pedra angular, alertava Vygotsky (1996)Vygotsky, L. S. (1996). Obras escogidas: psicología infantil. Tomo IV. Visor Dist. S. A., ao pontuar que o menosprezado campo da Defectologia permitiu contribuições inéditas à compreensão do processo de formação da psique humana.

Infelizmente, parcela significativa dos escritos sobre Vygotsky ignoram a importância angular desempenhada pela experiência da deficiência na composição de sua obra, cuja razão de ser muito possivelmente está ligada ao próprio termo “Defectologia”, o qual projeta uma relação da deficiência como defeito; entretanto, não podemos nos esquecer que qualquer autor está situado no tempo e na história, logo, somente pode dialogar mediante a utilização de linguagem disponível no contexto que o circundava, que, no caso da Rússia do século XX, se valia da nomenclatura Defectologia como a ciência que estudava as pessoas com comprometimentos. Importa aqui asseverar que, embora com um termo problemático, as ideias de Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A. se mostraram profundamente revolucionárias e mudaram a forma de visualizarmos a experiência da deficiência, que é o que vale ao fundo e fim.

Apresentadas as principais contribuições de Vygotsky à análise da categoria deficiência, passemos agora ao estabelecimento das relações/conexões entre o pensamento do bielorrusso e as ideias desenvolvidas pela literatura nominada “modelo social da deficiência”, intuindo apontar pontos de encontro e desencontros em suas linhas argumentativas.

4 Distantes, diferentes, mas congruentes: o conceito de deficiência em Vygotsky e no modelo social

Tentar demarcar as proximidades e as distâncias da ideia de deficiência trabalhada no seio do modelo social e na Defectologia de Vygotsky não parece das tarefas mais fáceis, dada a distância cronológica e o contexto histórico bastante distinto que separam ditas correntes teóricas. Ainda assim, aventuramo-nos a realizar dito movimento em função da centralidade assumida por tais pensamentos no campo dos estudos sociais, especialmente nas áreas de Educação, Educação Especial, Sociologia e Psicologia.

O primeiro aspecto a ser pontuado quanto a essa intenção reside na constatação da discrepância de objetivos estruturantes de cada corpo teórico em si. Vygotsky procurou, quando da criação de sua nova Defectologia, contribuir para o progresso educacional da Rússia pós-revolucionária, marcada pela fome e pelo analfabetismo. É nesse cenário que se iniciou o desenvolvimento de seus trabalhos psicológicos com crianças cegas, surdas e com deficiências intelectuais, tendo por interesse inserir essas crianças nas estruturas educacionais correntes, a fim de verificar seus potenciais de aprendizagem, fato revolucionário à época.

A preocupação educacional no trato com essas crianças se exaspera a todo o momento na obra de Vygotsky (1996Vygotsky, L. S. (1996). Obras escogidas: psicología infantil. Tomo IV. Visor Dist. S. A., 1997Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., 2000Vygotsky, L. S. (2000). Obras escogidas: problemas del desarrollo de la psique. Tomo III. Visor., 2001)Vygotsky, L. S. (2001). Psicologia pedagógica. Martins Fontes., constituindo seu núcleo de pensamento e ação. Já o mesmo não podemos dizer em relação à literatura nominada “modelo social da deficiência”, a qual insurge mediante ativismo social organizado gestado na luta contra a institucionalização, cujos objetivos centrais se vinculam à ocupação de espaços de poder pelas pessoas com deficiência com base no suposto de que pela política certas coisas são negadas a algumas pessoas e tornadas acessíveis a outras. Essa diferença de partida, ainda que ambas as correntes se perfilhem ao campo do materialismo histórico, marcará uma distinção evidente das literaturas aqui consideradas; todavia, também existe uma série de pontos de contato que aproximam destacados referenciais teóricos e não podem ser desconsiderados.

Certamente, o primeiro desses elementos diz respeito à diferenciação entre componentes biológicos e sociais na consideração da deficiência. Para Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., a materialização da deficiência envolve causas primárias (ligadas às questões orgânicas) e secundárias (vinculadas à alteração de desenvolvimento em virtude de restrição social), se estabelecendo o elemento determinante na disponibilização de oportunidades ou na experimentação de restrições sociais a essas pessoas sobre o segundo componente, uma vez que está relacionado ao conjunto de negações ou fruições culturais que estreitam ou ampliam as possibilidades de desenvolvimento humano. Em estrutura semelhante, mas não idêntica, os teóricos do modelo social da deficiência edificaram um composto gnosiológico que realiza uma clara distinção entre comprometimento e deficiência: o primeiro vinculado às lesões/mal funcionamento orgânico e a segunda à coleção de opressões manifestadas por uma sociedade insensível à diferença da deficiência (UPIAS, 1976Union of the Physically Impaired Against Segregation. (1976). Fundamental principles of disability union of the physically impaired against segregation. London.).

Nesse sentido, em ambas as teorias, existe a preocupação constante de que os comprometimentos ou causas primárias não se transformem em deficiências pela materialização de desvantagens socioculturais. Tanto Vygotsky quanto os teóricos do modelo social da deficiência afirmam que o comprometimento somente se materializa em deficiência em condições específicas, quer por meio de opressão social (modelo social), quer pela negação das fruições da cultura (Defectologia em Vygotsky). A diferença entre as suposições reside no fato de que, enquanto os teóricos do modelo social da deficiência aspiram como obrigatória a transformação das barreiras e geografias sociais que nos circundam (elemento certamente influenciado pelo fato de essa literatura ser produzida pelas mãos de pessoas com deficiência envolvidas em ativismo político), a defectologia de Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., embora tome esse pressuposto como da mais relevada importância, toma como pedra angular de seu constructo a análise da transformação dos sujeitos pelas relações modificativas da educação a partir da apropriação de signos e ferramentas.

Justamente em virtude desses elementos, podemos asseverar que a literatura de Vygotsky (1996Vygotsky, L. S. (1996). Obras escogidas: psicología infantil. Tomo IV. Visor Dist. S. A., 1997Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., 2000Vygotsky, L. S. (2000). Obras escogidas: problemas del desarrollo de la psique. Tomo III. Visor., 2001)Vygotsky, L. S. (2001). Psicologia pedagógica. Martins Fontes., conquanto preocupada ao fundo e fim com a questão social, não se trata de um modelo social de deficiência stricto sensu tal qual a literatura londrina, na medida em que o foco de concentração do bielorrusso esteja concentrado na análise da construção do desenvolvimento individual operado a partir da apropriação externa do conjunto de relações sociais que nos circunda, fenômeno que traduz meridianamente a ideia de que as funções sociais se manifestam inicialmente como produto do coletivo e depois como órgãos da individualidade.

Em Vygotsky (1997)Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., temos a exemplificação de um modelo individual apoiado sob outro alicerce em relação à perspectiva corrente de verniz médico/clínico, um modelo fincado em uma dialética materialista histórica que toma o sujeito como produto de relações sociais e o desenvolvimento humano como processo que se realiza para além dos caracteres da espécie. Trata-se de uma abordagem dinâmica que pode funcionar como bússola orientadora crítica do saber médico sobre perspectivas outras que aquelas estabelecidas pelo modelo social da deficiência, dialogando, inclusive, sobre lacunas manifestadas pelos londrinos como a relativização da questão do comprometimento orgânico/biológico e a não consideração da complexidade do desenvolvimento individual gerado a partir da presença de comprometimentos biológicos (Oliver, 1990Oliver, M. (1990). The Politics of Disablement. Macmillan.).

Adicionais distinções presenciadas no corpo de produção das duas teorias devem ser vistas a partir do prisma de que a questão da deficiência, embora crucial nos textos de Vygotsky (1996Vygotsky, L. S. (1996). Obras escogidas: psicología infantil. Tomo IV. Visor Dist. S. A., 1997Vygotsky, L. S. (1997). Obras escogidas: fundamentos de defectología. Tomo V. Visor Dist. S. A., 2000Vygotsky, L. S. (2000). Obras escogidas: problemas del desarrollo de la psique. Tomo III. Visor., 2001)Vygotsky, L. S. (2001). Psicologia pedagógica. Martins Fontes., não resumia a totalidade de sua obra, perpassada por outras indagações. Já no caso dos teóricos do modelo social, tal problemática se configurava como único objeto de estudo. Logo, não é de se estranhar que Vygotsky, por exemplo, não tivesse como uma de suas inquietações a análise histórica desse fenômeno, jamais perquirindo a manifestação da deficiência ao longo do tempo e da história tal qual fizeram os londrinos que destacaram as contradições e, especialmente, o conjunto de opressões materializadas com maior intensidade durante a implantação do sistema capitalista de produção (Barton, 1998Barton, L. (1998). Discapacidad y Sociedad. Morata.; Davis, 2014Davis, L. J. (2014). Enforcing normalcy: disability, deafness, and the body. Verso Books.; Finkelstein, 2007Finkelstein, V. (2007). The ‘social model of disability’ and the disability movement. The Disability Studies Archive UK, 1, 1-15.; Oliver, 1990Oliver, M. (1990). The Politics of Disablement. Macmillan.).

Contudo, entendemos que, para além de diferenças identificáveis entre os dois arcabouços teóricos, existe uma série de proximidades as quais se mostram mais profícuas em termos de análise social quando comparadas às distinções destacadas, podendo contribuir, inclusive, no desenvolvimento futuro de um arcabouço progressista no que diz respeito ao entendimento da categoria deficiência. Uma dessas proximidades reside na contestação da ideia de deficiência como tragédia pessoal. Sobre esse aspecto, as duas correntes teóricas visualizam na fruição da experiência da deficiência uma forma de alavancar e intensificar a produção cultural humana. Trata-se de uma vida rica que alarga as dimensões do fazer humano.

Essa forma de visualizar uma experiência que desde a modernidade foi tomada sob adjetivos trágicos produziu grande repercussão na geração de ideias no campo da Educação, Educação Especial, Sociologia, Psicologia, entre outras, alterando a maneira pela qual a cultura ordinária se comportou quanto a esse fenômeno. Desde então, percebeu-se que os processos de exclusão, além de baseados no tempo e na história, também são produzidos espacialmente; no entanto, a consideração de algo ou alguém como pertencente a um determinado contexto possui implicações na forma pela qual nos relacionamos com ele. Com base nessa ideia, desenvolve-se parte proeminente dos argumentos em defesa de uma geografia social cada vez mais acessível em virtude do suposto de que destacada construção beneficiará a totalidade dos atores sociais, especialmente aqueles historicamente excluídos das esferas do poder.

Assim sendo, podemos asseverar que o saber produzido pela experiência da deficiência atua de maneira revolucionária à contestação do ordenamento social existente. Não por acaso, Abberley (1987)Abberley, P. (1987). The concept of oppression and the development of a social theory of disability. Disability, Handicap & Society, 2(1), 5-19. https://doi.org/10.1080/02674648766780021
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afirma que as pessoas com deficiência não desejam o padrão de normalidade atual, pois perceberam que ele é parte dos processos de exclusão operados hodiernamente. O desejo está em alargar esse padrão normativo de forma que ele incorpore todas as corporalidades e estabeleça como ponto de partida uma crítica radical ao capacitismo.

A posição dos teóricos do modelo social e de Vygotsky ao contestar frontalmente o entendimento de que o conceito de deficiência se resuma à mera presença de comprometimentos biológicos ou perda de funcionalidade confere um caráter histórico, dá uma nova dinâmica à compreensão do fenômeno e nos permite redesenhar os mapas estéticos do mundo. Isso porque, ao enfatizar a riqueza e a beleza nas mais variadas expressões corpóreas humanas, sublinhadas literaturas criticam tanto o padrão de normalidade impresso pela cultura moderna como a acomodação do identitário ao idêntico, fenômeno promovido no tempo presente e que tem como objetivo cardeal o apagamento de qualquer diferença expressa pelos seres humanos, entendendo-as como desvio a ser normalizado. Dito isso, podemos asseverar que ambas as literaturas prestam contribuições inegáveis à visualização de uma sociedade que tome o outro como parte do eu e a diferença cultural, corporal e estética como componentes fundamentais na construção de uma sociedade acessível, por isso justa em suas mais altas expressões.

Finalizamos este texto afirmando que a distância temporal que separa o forjar das duas literaturas não as impediu de visualizar, no combate às opressões vivenciadas pelas pessoas com deficiência, parte da solução pretendida para a construção de um mundo melhor, mais solidário e menos egoísta. Nada sobre nós sem nós, mais que um brado gritado pelas pessoas com deficiência, constitui-se como fundamento imperativo de um novo tempo, de um futuro com possibilidades mais alargadas de reconhecimento, representação e distribuição material. Um mapa imaginado tanto por Vygotsky como pelos teóricos do modelo social. Cabe a nós desenhá-lo na prática, que é o critério da verdade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2023
  • Revisado
    15 Dez 2023
  • Aceito
    22 Dez 2023
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