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Obstáculos Estruturais e Funcionais na Criação de Escolas Inclusivas: o Caso do Sistema Alemão2 2 Traduzido do alemão para o português por Stefanie Herzog, com revisão técnica de Márcia Denise Pletsch.

Structural and Functional Obstacles in the Creation of Inclusive Schools: the Case of the German System

RESUMO

O presente ensaio visa identificar estruturas e obstáculos funcionais que se opõem à criação de um sistema escolar inclusivo. Essas reflexões serão tecidas tendo como exemplo o sistema alemão. Sua relevância, porém, se estende para além do contexto da Alemanha, já que desdobramentos e problemáticas parecidos podem ser encontrados em todos os sistemas escolares, o que tem por consequência a emergência de outras reflexões fundamentais, referentes à relação entre inovação, transformação e propensão à persistência de estruturas e de formatos procedimentais já diferenciados nas escolas.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação Especial; Inclusão; Transformação; Sistema educacional alemão

ABSTRACT

This essay aims to identify structural and functional barriers that oppose the creation of an inclusive school system. These reflections will be woven using the German system as an example. However, its relevance extends beyond the context of Germany, as similar developments and issues can be found in all school systems, which leads to the emergence of other fundamental reflections regarding the relationship between innovation, transformation, and the tendency to the persistence of structures and procedural formats already differentiated in schools.

KEYWORDS:
Special Education; Inclusion; Transformation; German educational system

1 Introdução

Neste ensaio, visamos identificar estruturas e obstáculos funcionais que se opõem à criação de um sistema escolar inclusivo. Essas reflexões serão tecidas tendo como exemplo o sistema alemão. Sua relevância, porém, se estende para além do contexto da Alemanha, já que desdobramentos e problemáticas parecidos podem ser encontrados em todos os sistemas escolares, o que tem por consequência a emergência de outras reflexões fundamentais, referentes à relação entre inovação, transformação e propensão à persistência de estruturas e de formatos procedimentais já diferenciados nas escolas.

Por décadas, o sistema escolar na República Federativa da Alemanha passou por um processo de diferenciação e desenvolveu suas estruturas e seus procedimentos, antes que, em meados dos anos 1970, inicialmente em Berlim e em alguns outros poucos lugares, escolas começassem a experimentar a integração de crianças com deficiência nas escolas comuns. Nas décadas seguintes, o movimento permaneceu restrito a escolas isoladas, projetos-piloto e experimentos escolares de pouco alcance em que se tentava trabalhar de forma integrativa e ensinar, juntas, crianças com e sem deficiência. Essencial para a avaliação dessa fase do desenvolvimento do sistema escolar alemão é que tais iniciativas integrativas não foram implementadas sistemática e amplamente - tratava-se invariavelmente de meras tentativas isoladas.

Por mais que algumas escolas tenham desenvolvido formas inclusivas muito boas de um ensino em conjunto, isso nunca levou a transformações amplas no âmbito estadual, muito menos no federal, no decorrer das quais se tivesse, sistematicamente, implementado o ensino integrativo e criado escolas inclusivas, pois tampouco tinha sido de interesse da administração da educação. Só houve uma mudança nesse sentido nos anos seguintes à ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2009, quando a República Federal da Alemanha passou a ter o compromisso de implementar um sistema escolar inclusivo em todos os níveis de ensino. Assim se criou uma situação em que um sistema desenvolvido ao longo de muito tempo se via diante de uma missão transformativa que, na verdade, demandava uma mudança substancial das estruturas vigentes - justo mudanças que, em reação à ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em grande parte da República Federal da Alemanha, não aconteceram (Weishaupt, 2016Weishaupt, H. (2016). Inklusion als umfassende schulische Innovation: Streitbare Anmerkungen zu einer wichtigen Schulreform. In V. Moser, & B. Lütje-Klose (Eds.), Schulische Inklusion Zeitschrift für Pädagogik Beiheft: Vol. 62 (1ª ed., pp. 27-41). Beltz Juventa.).

As tentativas de implementar estruturas escolares inclusivas não fracassaram completamente, mas tiveram avanços muito limitados e não se desenvolveu um sistema escolar cuja essência tivesse mudado de forma significativa. Este ensaio tem por objetivo traçar esse desenvolvimento e, sobretudo, expor os obstáculos estruturais e funcionais relativos à criação de um sistema escolar inclusivo. A relevância das dificuldades, que serão destacadas tendo como exemplo o contexto alemão, não se restringe ao caso desse país, mas podemos supor que essas dificuldades, obstáculos e resistências relativas à transformação sempre aparecem quando mudanças profundas, como a criação de um sistema escolar inclusivo, devem ser realizadas.

2 Desenvolvimento

A seguir, analisaremos, por meio de reflexões teórico-escolares, quais as estruturas e os princípios de funcionamento centrais dos sistemas escolares. Depois, em um próximo passo, nos aprofundaremos em duas especificidades especialmente críticas e importantes, em termos de inclusão, do sistema alemão. Aqui, se fará necessário analisar por que esses princípios estruturais dificultam de forma tão acentuada a implementação da inclusão. Por fim, investigaremos quais consequências se impõem a partir dessas reflexões e quais medidas podem ser tomadas nos diferentes níveis do sistema escolar e no contexto político-educacional.

2.1 Princípios funcionais e estruturais de sistemas escolares

Na discussão teórico-escolar, expõe-se geralmente o significado social de sistemas escolares em sociedades modernas. Na teoria da escola estadunidense, o fato de que, atualmente, estes foram, com poucas exceções, implementados globalmente e de que têm ajudado a incluir novas gerações nos procedimentos funcionais das sociedades é considerado um avanço e grande impulso modernizador (Baker, 2014Baker, D. (2014). The schooled society: The educational transformation of global culture. Stanford University Press.). Na discussão teórico-escolar em língua alemã, os pensamentos de Fend gozam de extrema importância devido à sua descrição de quatro funções centrais da escola, expostas pela primeira vez por volta de 1980 na sua Theorie der Schule [Teoria da escola] (Fend, 1980Fend, H. (1980). Theorie der Schule. Urban und Schwarzenberg.) e depois, novamente, quase 30 anos mais tarde, na Neue Theorie der Schule [Nova teoria da escola] (Fend, 2006Fend, H. (2006). Neue Theorie der Schule: Einführung in das Verstehen von Bildungssystemen. VS Verl. für Sozialwiss.).

A primeira é a função qualificadora (Qualifikationsfunktion), por meio da qual é demonstrado que determinadas competências e habilidades devem ser passadas à nova geração. A segunda é a função socializante ou aculturante (Sozialisationsoder Enkulturationsfunktion), por meio da qual se define a dimensão adicional na qual alunos e alunas, a nova geração, serão introduzidos aos conhecimentos sociais e culturais existentes bem como às suas devidas práticas, ambos caracterizados pela não especificidade e pela informalidade. Em terceiro lugar, temos a função alocadora ou seletiva (Allokationsoder Selektionsfunktion), com a qual é explicitado como os processos escolares de seleção, atrelados a processos avaliativos e de desempenho, implicam que o acesso a posições sociais não se dá de maneira aleatória, mas é conduzido seguindo princípios específicos. Além disso, Fend descreve, em quarto lugar, a função integrativa ou legitimadora (Integrationsoder Legitimationsfunktion) como a dimensão dos processos escolares que exerce a tarefa de estabilizar o poder, ou que, em outras palavras, contribui para que as formas existentes e constitutivas da sociedade sejam legitimadas e transmitidas às novas gerações de modo que os jovens em formação as aceitem e adotem.

Nesse sentido, essa vertente da teoria da escola se orienta fortemente no estrutural-funcionalismo segundo Parsons (1967)Parsons, T. (1967). Sociological theory and modern society. Free Press., pois fora elaborada no intuito de explicar como sociedades modernas se reproduzem com êxito, mantendo, conservando e desenvolvendo suas estruturas. Partindo dessa perspectiva, justamente funções tais quais a legitimadora, a qualificadora ou até mesmo a alocadora se tornam especialmente importantes. Aqui, no entanto, vale ressaltarmos que essa é uma maneira específica de entender a escola que exclui outros aspectos e perspectivas. Além disso, faz-se necessário indicarmos que essa vertente da teoria da escola é entremeada por certos princípios basilares das teorias da justiça.

A ideia da função alocadora e seletiva, por exemplo, é vinculada a princípios meritocráticos (Becker & Hadjar, 2017Becker, R., & Hadjar, A. (2017). Meritokratie - Zur gesellschaftlichen Legitimation ungleicher Bildungs-, Erwerbs-und Einkommenschancen in modernen Gesellschaften. In R. Becker (Ed.), Lehrbuch der Bildungssoziologie (3ª ed., pp. 33-62). Springer VS.). Determinadas posições políticas e econômicas na sociedade estão relacionadas a mais privilégios, a mais recursos, sobretudo econômicos, a mais liberdade de ação e a mais possibilidades de exercer influência social do que outras. E é aqui que, segundo essa perspectiva teórica, à escola é confiada e delegada a função de contribuir para a condução desses processos distributivos de forma significativa, reconhecendo e certificando a capacidade e a disposição para o desempenho escolar por meio de boas notas e bons diplomas, possibilitando, assim, o acesso individual a posições socialmente privilegiadas. A relação com a teoria da justiça consiste, então, na ideia de que desse modo seria construída uma justiça meritocrática: a função alocadora e seletiva reage em resposta a uma necessidade social. Ela seria funcional e, ao mesmo tempo, justa, já que dessa forma a distribuição de posições privilegiadas não depende mais do pertencimento a classes ou da herança de privilégios familiares, mas das capacidades e da disposição de cada indivíduo (Fend, 2006Fend, H. (2006). Neue Theorie der Schule: Einführung in das Verstehen von Bildungssystemen. VS Verl. für Sozialwiss.).

Que essa perspectiva omite uma série de aspectos, como os requisitos específicos para ser capaz de apresentar um bom desempenho na escola, foi comprovado pelas teorias da reprodução de desigualdades sociais no sistema educacional (Bernstein, 2005Bernstein, B. (2005). Theoretical Studies Towards a Sociology of Language. Class, Codes and Control: v.1. Taylor and Francis.; Bourdieu & Passeron, 2020Bourdieu, P., & Passeron, J. C. (2020). Les étudiants et leurs études. De Gruyter Mouton.; Lareau, 2013Lareau, A. (2013). Unequal childhoods: Class, race, and family life. Westview Press.; Solga, 2013Solga, H. (2013). Meritokratie: Die moderne Legitmation ungleicher Bildungschancen. In P. A. Berger, & H. Kahlert (Eds.), Institutionalisierte Ungleichheiten? Stabilität und Wandel von Bildungschancen (1ª ed., pp.19-38). Juventa.) e por vários estudos empíricos (Becker & Lauterbach, 2016Becker, R., & Lauterbach, W. (Eds.). (2016). Bildung als Privileg: Erklärungen und Befunde zu den Ursachen der Bildungsungleichheit (5., aktualisierte Auflage). Springer VS.). O fato de que os resultados de pesquisas que comprovam a reprodução de desigualdades sociais na escola vêm se multiplicando ao longo de décadas (Autor:innengruppe Bildungsberichterstattung, 2022Autor: innengruppe Bildungsberichterstattung. (2022). Bildung in Deutschland 2022: Ein indikatorengestützter Bericht mit einer Analyse zum Bildungspersonal. wbv Publikation. https://www.bildungsbericht.de/de/bildungsberichte-seit-2006/bildungsbericht-2022/pdf-dateien-2022/bildungsbericht-2022.pdf
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; Stanat et al., 2022Stanat, P., Schipolowski, S., Schneider, R., Sachse, K. A., Weirich, S., & Henschel, S. (2022). IQB-Bildungstrend 2021: Kompetenzen in den Fächern Deutsch und Mathematik am Ende der 4. Jahrgangsstufe im dritten Ländervergleich. Waxmann. https://doi.org/10.31244/9783830996064
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) mostra que está inserido um fator inicial de injustiça e que esse ideal da meritocracia, de um padrão de distribuição baseado em justificativas meritocráticas por meio das funções alocadora e seletova, não existe. Assim, conforme os argumentos convincentes de Berkemeyer (2020)Berkemeyer, N. (2020). Über die Schwierigkeit, das Leistungsprinzip im Schulsystem gerechtigkeitstheoretisch zu begründen: Replik auf Christian Nerowski. Zeitschrift für Erziehungswissenschaft, 23(2), 427-437. https://doi.org/10.1007/s11618-020-00932-2
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e Stojanov (2021)Stojanov, K. (2021). Bildungsgerechtigkeit als gesellschaftskritische Kategorie. Zur jüngsten Kontroverse in der Erziehungswissenschaft über Leistung und Gerechtigkeit im Bildungswesen. Zeitschrift für Pädagogik, 67(5), 784-802. https://doi.org/10.3262/ZP2105784
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, conexões com teorias liberais da justiça, como são apresentadas por Nerowski (2020)Nerowski, C. (2020). Zur Relevanz sprachlicher Präzision für die Rede über Schule, Leistung und Gerechtigkeit: Eine Antwort auf Nils Berkemeyer. Zeitschrift für Erziehungswissenschaft, 23, 455-459. https://doi.org/10.1007/s11618-020-00935-z
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e Tenorth (2020)Tenorth, H. E. (2020). Über die Schwierigkeiten der Pädagogik, über Leistung und Gerechtigkeit im Schulsystem zu reden: Eine Metakritik zu Berkemeyers Nerowski-Kritik. Zeitschrift für Erziehungswissenschaft 23, 439-449 https://doi.org/10.1007/s11618-020-00933-1
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, entre outros, estão sendo enfraquecidas de forma clara e com impactos imediatos nas figuras constitutivas dessas teorias. Independentemente disso, a função alocadora e seletiva, com essa fachada meritocrática, continua sendo vista, na teoria da escola, como o princípio central do funcionamento da instituição.

Outra variante formal da teoria da escola que, no que diz respeito à orientação principal, apresenta várias semelhanças, embora sua construção teórica seja elaborada de maneira diferente, já foi apresentada por Luhmann e Schorr, em 1979, e, depois, aperfeiçoada por Luhmann (2002)Luhmann, N. (2002). Das Erziehungssystem der Gesellschaft. Suhrkamp.. Trata-se de uma visão teórico-sistêmica que parte mais fortemente das funções do que das estruturas e que enxerga o processo de diferenciação de determinados procedimentos e estruturações a partir de uma perspectiva mais evolutiva (Luhmann, 2016Luhmann, N. (2016). Sistemas sociais: Esboço de uma teoria geral. Coleção Sociologia. Vozes.). Uma das bases teóricas principais desse pensamento é que os procedimentos que historicamente vêm se diferenciando e, na sequência, construindo estruturas representam soluções para problemas funcionais. Aquilo que na observação de sistemas escolares enxergamos como estruturas e procedimentos com existência concreta revelou, de certo modo, ser uma solução adequada para questões problemáticas que historicamente haviam sido postas e cujo enfrentamento era imprescindível. Caso contrário, não teria sido possível que se diferenciassem de tal maneira.

No entanto, é uma abordagem que não faz uma avaliação a partir de perspectivas relativas nem à teoria da justiça, nem a outros preceitos morais, éticos ou críticos à sociedade, mas lança, a princípio, um olhar meramente analítico sobre a questão. Quais formas de organização dos processos e procedimentos se desenvolveram, se impuseram e, depois, de maneira progressiva, continuaram a evoluir? As estruturas e os procedimentos assim diferenciados só podem ser vistos como positivos no sentido de que consistem em soluções práticas e viáveis, criadas para atender a necessidades sociais reais. Contudo, seria perfeitamente possível, porém raramente encontrado em Luhmann, prover-se de uma perspectiva crítica e analisar esses processos de diferenciação de estruturas específicas partindo das perguntas: Em que pontos outros desdobramentos teriam sido possíveis e quais seriam as vantagens e desvantagens de tais caminhos evolutivos alternativos? Pode-se, em comparação internacional, contrastar diferentes formas de estruturação dessa organização de procedimentos e, por essa via, fazer uso dessa abordagem teórica para fundamentar uma perspectiva crítica.

Como já dissemos, em Luhmann, e na maioria das referências feitas à teoria sistêmica luhmanniana, essa abordagem reflexiva dos processos não aparece, trata-se antes de desenvolver descrições de subsistemas sociais que atendam a necessidades funcionais específicas da sociedade, para assim chegar a uma descrição bastante complexa da sociedade moderna (Luhmann, 2007Luhmann, N. (2007). La sociedad de la sociedad. Herder.). Um dos sistemas funcionais da sociedade descritos na teoria sistêmica é o da educação, embora Luhmann e Schorr (1979)Luhmann, N., & Schorr, K. E. (1979). Reflexionsprobleme im Erziehungssystem. Klett-Cotta. se debruçaram sobretudo sobre o sistema escolar. A abordagem teórico-sistêmica aponta como central para o funcionamento dos subsistemas sociais a diferenciação dos meios de comunicação generalizados que se baseiam em distinções binárias e que conseguem orientar os diferentes processos de comunicação no âmbito desse sistema funcional. Sempre é possível recorrer a esse meio de comunicação generalizado e cada processo dela se orienta na distinção-guia binária (Luhmann, 2007Luhmann, N. (2007). La sociedad de la sociedad. Herder.).

Em relação ao sistema funcional da educação, ou seja, ao sistema escolar, essa abordagem teórica enfoca em particular o significado de um meio de comunicação generalizado que assumiu a forma do sistema de notas. Uma distinção binária entre bom e ruim, matizada no espectro de notas do sistema escolar em questão, contribui para que os processos de comunicação na escola ocorram de forma estruturada. Qualquer comunicação pode ser explicada, pode recorrer e se orientar nesse meio de comunicação generalizado com sua distinção entre bom e ruim, o que dá apoio aos processos escolares, também no sentido de que essa distinção-guia leva os alunos e as alunas a prestarem atenção nas aulas e, antes de mais nada, a participarem nelas, a aprenderem e a adquirirem conhecimento (Luhmann & Schorr, 1979Luhmann, N., & Schorr, K. E. (1979). Reflexionsprobleme im Erziehungssystem. Klett-Cotta.). Assim, surgiu uma solução que não só não atende às demandas meritocráticas por justiça, mas antes colabora para que os mecanismos de reprodução de desigualdades sociais sejam ofuscados e para que deixem de ser identificáveis como tais.

Quando relacionamos essas duas conceitualizações teóricas afins, fica evidente que a função seletiva da escola descrita na teoria da escola serve a uma alocação desigual de privilégios sociais com uma acepção de justiça mais meritocrática do que ideológica, em vez de representar uma solução funcional para as demandas que a garantia do processamento escolar e de ensino implica. Partindo dessa perspectiva teórica, os processos de seleção escolares criam, sim, uma distribuição desigual de privilégios sociais, distribuição essa que não pode mais ser considerada justa. Logo, o meio de comunicação generalizado da avaliação de desempenho, que opera com base na distinção binária bom/ruim, não serve para o processamento de uma função relevante para a sociedade fora do âmbito da escola - ou, se o faz, é somente de forma problemática. O meio de comunicação generalizado tem por objetivo a organização dos processos na própria escola, fato que hoje em dia já foi demonstrado por um número grande de estudos empíricos que descreveram a onipresença latente, porém passível de ser ativada a qualquer momento, da avaliação de desempenho no ensino e sua funcionalidade para a manutenção da ordem escolar (Breidenstein, 2018Breidenstein, G. (2018). Das Theorem der ‚Selektionsfunktion der Schule‘ und die Praxis der Leistungsbewertung. In S. Reh, & N. Ricken (Eds.), Leistung als Paradigma (1ª ed., pp. 307-327). Springer VS.; Dietrich, 2019Dietrich, F. (2019). Inklusion und Leistung: Rekonstrutionen zum Verhältnis von Programmatik, gesellschaftlicher Bestimmheit und Eigenlogik des Schulischen. In E. von Stechow, P. Hackstein, K. Müller, M. Esefeld, & B. Klocke (Eds.), Inklusion im Spannungsfeld von Normalität und Diversität; Band 1: Grundfragen der Bildung und Erziehung (1ª ed., pp. 195-205). Verlag Julius Klinkhardt, 2019.; Kalthoff, 2000Kalthoff, H. (2000). Wunderbar, richtig“: Zur Praxis mündlichen Bewertens im Unterricht. Zeitschrift für Erziehungswissenschaft, 3(3), 429-446. https://doi.org/10.1007/s11618-000-0042-3
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; Rabenstein et al., 2013Rabenstein, K., Reh, S., Ricken, N., & Idel, T. S. (2013). Ethnographie pädagogischer Differenzordnungen: Methodologische Probleme einer ethnographischen Erforschung der sozial selektiven Herstellung von Schulerfolg im Unterricht. Zeitschrift für Pädagogik, 59(5), 668-690.; Zaborowski, 2011Zaborowski, K. U. (2011). Leistungsbewertung und Unterricht: Ethnographische Studien zur Bewertungspraxis in Gymnasium und Sekundarschule. Studien Zur Schulund Bildungsforschung Ser. VS Verlag fur Sozialwissenschaften.).

Se recorrermos a outra perspectiva teórica, os mecanismos de seleção e a onipresente importância da avaliação de desempenho podem também ser interpretados como a descrição de uma estrutura coercitiva. Isso, no entanto, se manifesta na forma de um mecanismo que não é abertamente tematizado na qualidade de estrutura coercitiva ou que, de imediato, seria identificado como tal, mas que antes impacta o processamento cotidiano do fazer escolar e que caracteriza a normalidade desse contexto. Baseando-nos em Foucault (1977)Foucault, M. (1977). Der Wille zum Wissen. Sexualität und Wahrheit. Vol. 1. Suhrkamp., podemos entender a escola como um campo de ação de estratégias governamentais e de biopolítica que tem por objetivo moldar gerações inteiras e inseri-las nas lógicas funcionais da sociedade atual. Foucault (1976)Foucault, M. (1976). Überwachen und Strafen: Die Geburt des Gefängnisses. Suhrkamp. fala, entre outros, do sistema encarcerante e, com isso, chama atenção para o fato de que as estruturas historicamente estabelecidas de instituições como a escola produzem, cada uma, formas de subjetividade específicas do seu contexto histórico, que podem ser pensadas como efeitos de formas de poder que parecem não operar linear e hierarquicamente. Isso faz com que a dimensão da coerção, do cárcere, seja cada vez mais ofuscada quanto mais o processo de estabelecimento dessas formas de produção dos sujeitos avança e se normaliza nas formas concretas de configuração de instituições e de procedimentos escolares.

De um ponto de vista mais abrangente, o conceito foucaultiano de subjetivação e a ampliação e a continuação deste em Butler (2001)Butler, J. (2001). Psyche der Macht: Das Subjekt der Unterwerfung. Suhrkamp. e na recepção por parte das ciências da educação (Ricken & Balzer, 2012Ricken, N., & Balzer, N. (Eds.). (2012). Judith Butler: Pädagogische Lektüren. Springer VS.) analisam os processos que, no âmbito de contextos sociais em relação a discursos e práticas, se concretizam nos próprios sujeitos enquanto, ao mesmo tempo, produzem estes como tal. Para a argumentação desenvolvida aqui, a dimensão central das teorias de assujeitamento (Foucault) e de subjetivação (Butler), nas quais se tenta descrever com maior exatidão o impacto concreto de discursos e práticas nos sujeitos, é de suma importância. Visando compreender o contexto escolar, essa abordagem teórica direciona sua atenção para o fato de que os alunos e as alunas frequentam a escola não somente para aprender certas coisas e para, nela, participar de processos sociais de tal modo que adquiram conhecimento e competências na condição de indivíduos já constituídos como sujeitos. Antes, o processo de frequentar uma escola por anos e assim perpassar um sistema escolar em sua forma institucionalizada produz certas formas de sujeitos. Trata-se, aqui, de processos sujeitos à variação histórica e a mudanças ao longo do tempo, já que sempre acontecem no contexto de discursos universais com impactos na sociedade.

No entanto, eles ocorrem sobretudo nos processos concretos da aula, da turma e da escola como organização. Esses processos não passam pelos indivíduos sem deixar rastros, mas antes os produzem, subjetivando-os de um modo específico como alunos e alunas, e assim, na sequência biográfica, também como pessoas que se socializaram por meio da escola, pessoas que foram alunos e alunas. Portanto, fenômenos escolares, por exemplo, a orientação ao desempenho, a avaliação de desempenho, o ritmo de rotinas diárias, o condicionamento para ficar quieto e se comportar com disciplina no contexto da aula etc., não podem ser vistos como algo exterior aos indivíduos e sujeitos. São esses processos e elementos estruturais do fazer escolar que moldam, cunham e, de modo específico, criam os sujeitos, produzindo-os de forma subjetivadora. Isso não significa que eles se tornem idênticos e iguais, mas todos são confrontados com esses contextos institucionais, dos quais não conseguem se eximir, o que aponta para uma dimensão psíquica profunda que não foi levada em consideração nas reflexões teórico-escolares tematizadas no início deste ensaio.

Há um grande potencial na correlação entre estes dois complexos teóricos: entre os pensamentos teórico-escolares e as teorias de subjetivação, para poder entender como os processos escolares funcionam e por que ocorrem dessa forma, quais efeitos têm sobre os sujeitos, mas também como, por meio desses efeitos, o próprio funcionamento escolar é consolidado nos sujeitos (Urban, 2022Urban, M. (2022). Zur Bedeutung des schulischen Leistungsdispositivs für die Ausdifferenzierung und das Überdauern des Förderschwerpunktes emotionale und soziale Entwicklung - eine systemtheoretische Reflexion. In B. Badstieber., & B. Amrhein (Eds.), (Un-) mögliche Perspektiven auf herausforderndes Verhalten in der Schule: Theoretische, empirische und praktische Beiträge zur Deund Rekonstruktion des Förderschwerpunkts Emotionale und Soziale Entwicklung (1ª ed., pp. 77-95). Juventa Verlag.). A ligação entre essas duas vertentes teóricas ajuda não somente a compreender os processos operacionais, mas também é importante para compreender quais dificuldades e obstáculos surgem na implementação de estruturas inclusivas em um sistema escolar. As teorias de subjetivação ilustram por que a operacionalização do meio de comunicação generalizado chamado de avaliação de desempenho funciona relativamente bem do ponto de vista da lógica sistêmica. A orientação interior por avaliações impacta nos próprios alunos e alunas, incentivando-os a participar nas aulas e, assim, possibilitando o processamento do ensino. Nesse sentido, a subjetivação assegura a continuidade dos processos operacionais e das necessidades funcionais do sistema educacional.

São mecanismos universais que surtem efeito quando, em um sistema escolar, a avaliação de desempenho é embutida nos procedimentos do fazer escolar, sobretudo no ensino, como modalidade contínua. Com o passar do tempo, estruturas particulares e historicamente específicas se diferenciam nos diferentes sistemas escolares, organizando os procedimentos com relevância funcional e endurecendo-os em formas de difícil alteração. Em relação ao sistema escolar alemão, podemos descrever duas particularidades especialmente relevantes para esse contexto que adequam os processos de avaliação de desempenho a uma forma de seletividade altamente definida e que, entre outros, se opõem fortemente à transformação dele em um sistema inclusivo, bloqueando ou, pelo menos, dificultando-a imensamente. Trata-se, em primeiro lugar, da transição a um ensino secundário diferenciado por níveis de desempenho já após a quarta série e, em segundo lugar, da diferenciação do sistema de educação especial em oito tipos de escolas especiais e seus respectivos procedimentos específicos para determinar as necessidades educacionais especiais na qualidade de formas próprias da escola de determinar deficiências.

Uma transição seletiva, efetuada por volta dos dez anos de idade, do ensino primário para um ensino secundário diferenciado por níveis de desempenho acentua o efeito da avaliação de desempenho no sistema escolar alemão. A implementação precoce dessa transição no processo educativo - com sua triagem para as diferentes modalidades de ensino baseada no desempenho - como gargalo estrutural, bem como o fato de que a revisão das resultantes predeterminações para as futuras carreiras e conquistas educacionais passa a ser muito limitada ou, sobretudo no que diz respeito à mobilidade ascendente para modalidades de ensino superior, quase impossível, faz com que a seleção por desempenho tenha um impacto imenso nos processos escolares de subjetivação. Esse contexto escolar-estrutural acentua a importância da avaliação de desempenho já anterior ao ato de seleção propriamente dito após a quarta série. Podemos supor que a pressão subjetivadora e a importância de orientar-se nesse tipo de avaliação influenciem, em princípio, a trajetória escolar inteira, ou que sejam percebidas, o mais tardar, a partir da segunda série, assumindo grande importância para os alunos e as alunas.

Ao mesmo tempo, há vários indícios de que essa transição precoce para o ensino secundário também contribua para que as oportunidades educacionais de crianças de famílias desfavorecidas ou social e economicamente marginalizadas, de famílias nas quais o alemão não se configura como primeira língua, bem como de famílias cujos pais têm baixo nível de instrução e pouco capital cultural sejam ainda mais restritas (Werning et al., 2008Werning, R., Löser, J. M., & Urban, M. (2008). Cultural and social diversity: An analysis of minority groups in German schools. Journal of Special Education, 42(1), 47-54. https://doi.org/10.1177/0022466907313609
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). Esses mecanismos que reproduzem as desigualdades sociais no sistema escolar são duplamente invisibilizados e ofuscados tanto pelo princípio quanto pelos mecanismos da avaliação de desempenho. Esta possibilita que os motivos das diferenças no desempenho e nas competências observadas na escola sejam atribuídos unicamente à criança, sem levar em consideração o contexto familiar e o posicionamento socioestrutural específico da família com seus devidos impactos e aspectos, fatores de grande relevância para a socialização primária e para a participação dos processos educativos no contexto escolar.

Entretanto, da mesma forma, tampouco se consideram os próprios processos escolares. Referimo-nos aqui tanto a aspectos da estrutura escolar, por exemplo, a transição do ensino primário para o ensino secundário acima descrita, quanto a outros aspectos de grande importância, como a configuração do ensino. A avaliação de desempenho ofusca o modo como o ensino se dá na prática e as atividades de apoio educacional individual que são oferecidas ou não. A dimensão inteira da qualidade do ensino é invisibilizada pela avaliação de desempenho com seu esquema bom/ruim e, por meio da nota, transferida para um algarismo aparentemente objetivo. Além disso, essa suposta objetividade da nota é mesclada com justificativas meritocráticas, segundo as quais os processos seletivos devem ser vistos como justos, já que avaliam o desempenho de cada criança individualmente. Ainda será preciso aprofundar-se mais no fato de que as formas que os processos e estruturas assumiram ao se diferenciarem - e aqui sobretudo o forte arraigamento e impacto intensivo dos processos seletivos, atrelados a avaliações de desempenho, no sistema escolar alemão - prejudicam e dificultam enormemente a sua transformação em um sistema inclusivo.

A segunda particularidade estrutural do sistema escolar alemão dificulta do mesmo modo, senão ainda mais intensamente, a implementação dessa inclusão. Trata-se do desenvolvimento de um sistema de educação especial composto por oito tipos diferentes de escolas especiais para crianças com deficiências e outras especificidades no desenvolvimento. Embora as primeiras escolas especiais, na época chamadas de escolas assistenciais, tenham sido criadas já no século XIX, a implementação e a ampliação de um sistema de educação especial extremamente segregado na República Federal da Alemanha se deram sobretudo na segunda metade do século XX. Cristalizaram-se os seguintes tipos de escola: escolas especiais para as categorias de apoio educacional: dificuldades de aprendizagem, deficiência visual, deficiência auditiva, distúrbios da linguagem, desenvolvimento físico e motor, desenvolvimento intelectual, desenvolvimento emocional e social, bem como uma escola para doentes.

Junto ao desenvolvimento desses tipos, elaboraram-se internamente programas e métodos de detecção usados para verificar a existência de necessidades educacionais especiais, ou seja, de uma deficiência que requeresse apoio educacional especial. Melhor dizendo, desenvolveram-se procedimentos e terminologias por meio dos quais diferentes formas de deficiência foram traduzidas para categorias próprias da escola. O espectro de categorias vai do transtorno de aprendizagem, que hoje em dia é chamado de necessidade educacional especial de aprendizagem (sonderpädagogischer Förderbedarf im Lernen), a necessidades educacionais especiais decorrentes de deficiências sensoriais, físicas, motoras etc., e tem relação direta com os tipos de escolas especiais acima listados. O acesso a elas é acoplado ao método específico de identificação de necessidades educacionais especiais, e esta acarretava, ao longo de muitas décadas, automaticamente a transferência para uma das escolas especiais. Em outras palavras, a identificação de uma necessidade educacional especial resultava na inevitável expulsão da escola comum. Nesses casos, a criança era tirada da turma e também da escola para ser levada a uma nova escola fisicamente segregada.

Essa configuração estrutural do sistema escolar alemão fez com que as competências especializadas para atender crianças e adolescentes rotulados como especiais fossem todas alocadas às escolas especiais. Isso, ao mesmo tempo, significa que, nas escolas comuns, competências para lidar com um alunato heterogêneo e a capacidade de propor um ensino individualizante e acessíveis fossem implementadas somente de forma limitada e expressamente não relacionada aos oito tipos de necessidades educacionais especiais. Entendia-se que o ensino de crianças com essas necessidades era responsabilidade das escolas especiais e não das comuns. A responsabilidade percebida nestas últimas era mais a de identificar se a criança apresentava uma necessidade especial e se, por isso, deveria ser transferida a uma das escolas especiais.

Um quadro parecido ilustra também os impactos da diferenciação dessa estrutura escolar segregativa na disponibilização de recursos para apoiar e incentivar os processos educacionais das crianças com necessidades educacionais especiais. Também aqui se constata que esses recursos, inclusive as competências profissionais, não foram disponibilizados na escola comum, mas somente nas especiais. Assim, recursos e competências pedagógicas da educação especial não foram amplamente implementados no sistema, mas destinados especificamente ao setor das escolas especiais. Experiências com formas inclusivas de ensino puderam ser feitas, a partir de meados dos anos 1970, somente em projetos-piloto isolados e em experimentos escolares limitados à esfera local ou regional, sem resultar em uma modificação do sistema escolar de forma geral. Até a ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2009, vigorava o entendimento de que essa estruturação antiquada, baseada na separação das crianças com necessidades especiais, representasse um princípio central do sistema escolar alemão. Em relação a essa estrutura abrangente, faz-se necessário sublinhar a circunstância problemática de que recursos e competências da educação especial foram colocados em escolas especiais e não foram implementados de forma estruturada nas escolas comuns.

Com a ratificação dessa convenção, a Alemanha comprometeu-se formalmente a criar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, o que leva à conclusão de que também o sistema escolar devesse se tornar inclusivo e de que o sistema segregativo da educação especial e, por conseguinte, as instituições escolares especiais para pessoas com deficiências e outras especificidades do desenvolvimento fossem ou devessem ser dissolvidos. Esta é uma medida que, nos 15 anos desde a ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, não foi efetivada. Há grandes diferenças entre os estados federados no modo como reagiram à sua ratificação e como modificaram o sistema escolar que, na Alemanha, é de competência estatal. Em geral e na vasta maioria dos estados federados, verifica-se, porém, que só houve esforços insignificantes de desmontar o sistema de educação especial (Klemm, 2021Klemm, K. (2021). Inklusion in Deutschlands Schulen: Entwicklungen - Erfahrungen - Erwartungen. Beltz Juventa.). Em quase todos eles, aplicou-se uma estratégia que visa implementar atividades inclusivas nas escolas comuns, adicional ao sistema de educação especial existente. Aqui se evidencia um problema em nível terminológico, pois o entendimento de instituições de ensino inclusivas pretendido pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência consistia implícita e explicitamente na ideia de, e tinha por objetivo, que instituições especiais fossem desmontadas, ou nem sequer implementadas.

Quando, em um sistema escolar baseado na diferenciação entre escolas comuns e especiais - como é o caso do sistema alemão -, estas são mantidas e atividades ou estruturas adicionais supostamente inclusivas são implementadas, ocorre uma transformação terminológica muito problemática justamente porque, segundo esse entendimento de inclusão, o fator determinante - a extinção das instituições especiais - foi ignorado. Contudo, quando observamos os dados relativos à quantidade de crianças com necessidades educacionais especiais no sistema escolar alemão, identificam-se mudanças desde 2009. Estas, porém, são sobretudo um resultado do aumento geral dos alunos e das alunas com necessidades educacionais especiais. A quantidade de crianças que receberam instrução de forma segregada em instituições especiais baixou somente levemente desde 2009. Ao mesmo tempo, houve um grande número de novas crianças sendo rotuladas como pessoas com necessidades educacionais especiais (Klemm, 2022Klemm, K. (2022). Inklusion in Deutschlands Schulen: Eine bildungsstatistische Momentaufnahme 2020/21. Bertelsmann Stiftung. https://doi.org/10.11586/2022067
https://doi.org/10.11586/2022067...
). Trata-se aqui de crianças que passaram a receber, conforme esse entendimento, instrução inclusiva.

Apesar de haver alguns poucos estados federados em que o número de crianças com necessidades educacionais especiais em instituições de ensino segredadas diminuiu significativamente, para a República Federal da Alemanha como um todo vale a tendência descrita por Klemm (2021Klemm, K. (2021). Inklusion in Deutschlands Schulen: Entwicklungen - Erfahrungen - Erwartungen. Beltz Juventa., 2022Klemm, K. (2022). Inklusion in Deutschlands Schulen: Eine bildungsstatistische Momentaufnahme 2020/21. Bertelsmann Stiftung. https://doi.org/10.11586/2022067
https://doi.org/10.11586/2022067...
). Podemos interpretar esse fato como indício de que a estruturação com um sistema de educação especial dividido em oito tipos de escolas especiais para os diferentes tipos de deficiência, ou seja, de necessidades educacionais especiais, se provou deveras funcional para o processamento do sistema escolar alemão. A exclusão de crianças com deficiências e outras especificidades no desenvolvimento perturbariam o modus operandi do sistema escolar comum, processado por meio do desempenho, é altamente eficaz. Essas crianças perturbariam o sistema, pois invalidariam o efeito funcional da avaliação de desempenho. Em processos de subjetivação, elas não conseguem se adaptar com mais ou menos facilidade, melhor ou pior, a essa modalidade, uma vez que nem há como ensiná-las de outro jeito a não ser por meio de apoio específico e individual.

2.2 A problemática da implementação de ambientes inclusivos em um sistema escolar diferenciado e segregativo

Com base nas explanações fundamentadas nas teorias da escola e de subjetivação, bem como na descrição da forma específica como um sistema escolar, por exemplo, o alemão, se diferencia, podemos analisar agora quais mudanças a ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência estimulou na Alemanha. Aqui, a situação alemã deve servir de exemplo para todos os sistemas escolares que desenvolveram formas segregativas e que, no que concerne a missões transformativas, como a implementação de estruturas inclusivas, se veem diante de dificuldades e problemas parecidos.

Central para entender essas dificuldades na transformação é a circunstância de que a ideia e a reivindicação pela implementação de um sistema escolar inclusivo não surgiram do próprio sistema. Não se trata de um processo reformatório ou de uma diferenciação evolutiva que, aos poucos, ganha relevância e predomina dentro de um sistema escolar. A reivindicação por inclusão tampouco é reflexo de uma necessidade, seja dos profissionais, seja dos sistemas de organização, das crianças ou dos pais. Na verdade, é mais um impulso externo, especificamente oriundo da legislação, que se deu por meio da ratificação de um tratado internacional pelo parlamento alemão, ou seja, dentro do sistema político.

Por mais que o parlamento alemão detenha o poder legislativo, isso não significa que, com a ratificação, um sistema escolar inclusivo seja efetivamente implementado. Um agravante no sistema alemão é que a organização dos sistemas escolares cabe aos estados federados e não pode ser determinada pelo Governo Federal, embora a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência tenha sido ratificada em nível federal. Entretanto, a transformação dos sistemas escolares em inclusivos é, conforme determina a Constituição, competência dos estados federados. Esse, porém, não é o aspecto crucial.

O real motivo pelo qual tal implementação ainda não teve êxito está no fato de que essa mudança não configura um interesse, um objetivo genuíno do próprio sistema, mas se trata de um impulso político e legislativo vindo de fora, exigindo ações transformativas do sistema escolar que deveriam ser especificadas e realizadas dentro dele. O impulso externo por inclusão, portanto, deveria ser adotado em seu interior e implicar o desenvolvimento de novos procedimentos e novas estruturas para organizar e elaborar os processos de ensino (Urban, 2019Urban, M. (2019). Inklusion aus systemtheoretischer Perspektive: Ein Hinweis auf theoretische Komplikationen und die Skizzierung eines komplexen Forschungsprogramms. In M. Hartmann, M. Hummel, M. Lichtblau, J. M. Löser, & S. Thoms (Eds.), Facetten inklusiver Bildung (1ª ed., pp. 40-47). Verlag Julius Klinkhardt.). Impulsos externos, no entanto, são recontextualizados dentro de um sistema, o que significa que eles, no contexto de estruturas já existentes e diferenciadas, são reinterpretados, aplacados, adaptados e esvaziados.

Em relação ao sistema escolar alemão, tem se mostrado especialmente problemático o fato de que o ensino inclusivo representa uma contradição fundamental ao princípio da avaliação de desempenho. Acima explicitamos quão fundo o princípio e a avaliação de desempenho estão enraizados nos processos escolares e de ensino, servindo como base para a diferenciação de um meio de comunicação generalizado que opera com a codificação bom/ruim e que, por meio de notas de algarismos, conduz e orienta os processos escolares e, sobretudo, de ensino de forma centralizada. No ensino, porém, a inclusão não se deixa processar ou conduzir por meio desses mecanismos seletivos de avaliação de desempenho, e, quando se exige um formato inclusivo, é introduzido um princípio que não consegue dar sequência a essa lógica tão importante do ponto de vista funcional, sendo ela a principal orientadora da condução dos processos de ensino.

O ensino inclusivo visa incentivar e estimular os potenciais de cada aluno e aluna no processo de sua formação e desenvolver o melhor apoio possível para cada criança, uma abordagem diametralmente contrária ao modus operandi central de ensino em um sistema escolar seletivo que utiliza avaliações de desempenho a fim de disciplinar as crianças e organizar sua atenção para assim fazê-las aprender e assegurar a aprendizagem. Enquanto a relação entre avaliação de desempenho e apoio educacional não for fundamentalmente esclarecida e alterada, a inclusão escolar se apresentará primordialmente como um fator perturbador, um fenômeno incômodo, como algo que tem exigências que vão de encontro àquilo que é realmente importante na forma dominante de organizar o ensino.

Outra questão fundamental com que esse impulso externo para a transformação do sistema escolar tradicional em um inclusivo se depara é a já mencionada diferenciação do sistema de educação especial extremamente segregado em oito tipos de escolas especiais. Se, em um sistema como este, não for tomada a decisão essencial de desmontá-lo, mas, ao contrário, mantém-se o sistema antigo, complementando-o com fragmentos de inclusão nas escolas comuns, cria-se uma estrutura dupla na qual recursos são distribuídos inadequadamente e na qual nem todos aqueles destinados à educação especial estão localizados em um único lugar. Assim, torna-se significativamente mais difícil trazer as competências profissionais da educação especial para o sistema escolar comum e mudar as orientações e posições dos profissionais nessas escolas. Uma estrutura dupla promove a persistência de discursos que conceituam necessidades educacionais especiais como anomalias negativas e individuais de uma pessoa. E esse tipo de entendimento incentiva que se continue a atribuir a responsabilidade pelos alunos e alunas com necessidades educacionais especiais à educação especial, mantendo as formas tradicionais e não sensíveis à heterogeneidade do ensino.

Por último, mas não menos relevante, destaquemos outro aspecto de igual importância em que a criação de um sistema duplo resulta: a implementação ampla de formas péssimas de inclusão nas escolas comuns. É só mais uma consequência do fato de que os recursos para a inclusão não são alocados exclusivamente às escolas comuns, que, com a introdução desse sistema duplo no sistema escolar comum, não surge uma necessidade real por uma transformação profunda e que não se criam as condições para que boas escolas inclusivas se desenvolvam. Isso, por sua vez, nutre - como em um círculo vicioso - o ceticismo profundo para com o ensino inclusivo e para com um sistema escolar inclusivo entre os professores, nas administrações escolares e entre os pais.

3 Conclusão

A reivindicação política e legalmente fundamentada pela criação de um sistema escolar inclusivo em todos os níveis, além de ser um entre muitos pequenos impulsos inovadores, questiona as estruturas e os funcionamentos centrais dos sistemas escolares. Ela implica, portanto, uma missão transformativa que mexe com as bases e que, de fato, põe o sistema escolar diante de grandes desafios. Aqui é essencial lembrar que essa reivindicação por inclusão escolar pode e deve ser entendida como a reivindicação pela extinção de formas diretas e estruturais de discriminar pessoas com deficiência. Trata-se de um complexo político e legal que se apoia nos direitos humanos e civis universais e que aqui é reivindicado explicitamente para pessoas com deficiência. Desse ponto de vista, não estamos falando somente de questões mais ou menos significativas de como a administração nas escolas consegue determinar detalhes específicos do âmbito escolar, mas sim de uma reivindicação elementar, baseada nos direitos humanos, e de uma demanda à organização das escolas que não deve ser ignorada, pelo menos não em sociedades democráticas, orientadas nos direitos humanos e civis.

Quais medidas e possibilidades de reforma resultam desse entendimento da missão transformativa de implementar um sistema escolar inclusivo? Todas as reflexões aqui expostas indicam que a medida crucial é a extinção de sistemas segregativos de educação especial. O sistema escolar precisa ser substancialmente transformado e reformado e, com base nesse entendimento, as escolas especiais devem ser extintas em sua totalidade ou quase totalidade. Os recursos e as competências até então externalizados no sistema segregado de escolas especiais devem ser trazidos, de forma sistemática e estruturada, para o sistema escolar comum e devem ser usados e estar acessíveis nas escolas.

Ao mesmo tempo, as explanações precedentes têm mostrado que essa medida não terá êxito a menos que alguns funcionamentos elementares dos sistemas escolares extremamente seletivos sejam avaliados, desenvolvidos e transformados. Sobretudo a importância estrutural da avaliação de desempenho, uma modalidade do processo escolar que - em contraste com as modalidades de apoio individual bem como da assistência em processos educativos e de aquisição de competências - é significativamente mais potente e tida como central para orientar e garantir o ensino, descreve uma relação que demanda profundas mudanças. A extinção do sistema segregado de educação especial implicaria a obrigação de alterar e desenvolver o ensino e os procedimentos escolares também nesse quesito. Podemos enxergar esses dois aspectos como os requisitos cruciais e decisivos para que um sistema escolar, outrora organizado de forma segregativa, se transforme em um sistema inclusivo.

Em outro nível, em que, na prática, alterações são mais facilmente realizadas, outras medidas podem ser tomadas. Hoje, já é possível encontrar, no ensino escolar, abordagens acessíveis e sensíveis à heterogeneidade. Essas abordagens precisam ser desenvolvidas e aplicadas em larga escala e de forma decidida. Entre elas figuram modalidades do processo escolar, como a diferenciação por nível, a diferenciação do material didático, a utilização de diferentes ambientes e métodos de cooperação e de aprendizagem dos alunos e das alunas. Além disso, incluem-se a acessibilidade das tarefas docentes, substituindo a instrução pelo acompanhamento do processo de aprendizagem, e a aquisição de competências relativas à avaliação de necessidades especiais para acompanhar com mais precisão os processos individuais de aprendizagem e para desenvolver e fornecer materiais didáticos e ambientes apropriados. Inclui-se também a utilização de serviços de orientação por parte dos docentes que ou se ajudam de forma cooperativa, ou usam sistemas externos de assistência e suporte para desenvolver o ensino e as opções de apoio educacional.

Outra medida importante consiste no desenvolvimento de cooperações multiprofissionais entre professores com especializações distintas, entre professores e profissionais de apoio escolar, entre professores e assistentes sociais, bem como profissionais de outras áreas que atuam na escola. No entanto, para estabelecer a cooperação multiprofissional, é crucial que sejam remodelados ambientes nos quais a cooperação é, por meio da divisão de tarefas, organizada de tal modo que a responsabilidade por alunos e alunas com necessidades educacionais especiais seja delegada aos profissionais da educação especial da equipe. Esse tipo de cooperação serve para que, em um ambiente supostamente inclusivo, a responsabilidade e o cuidado com os alunos e as alunas com necessidades especiais não recaia sobre os professores regulares. Para se pôr em prática um sistema escolar inclusivo, é de grande importância que estruturas de cooperação multiprofissional sejam implementadas de maneira que a responsabilidade pela turma inteira de alunos e alunas, cada um com suas necessidades especiais individuais e específicas, seja assumida em conjunto.

Por último, vale ressaltarmos um ponto que podemos chamar de diferenciação de estruturas reflexivas no sistema escolar (Urban, 2022Urban, M. (2022). Zur Bedeutung des schulischen Leistungsdispositivs für die Ausdifferenzierung und das Überdauern des Förderschwerpunktes emotionale und soziale Entwicklung - eine systemtheoretische Reflexion. In B. Badstieber., & B. Amrhein (Eds.), (Un-) mögliche Perspektiven auf herausforderndes Verhalten in der Schule: Theoretische, empirische und praktische Beiträge zur Deund Rekonstruktion des Förderschwerpunkts Emotionale und Soziale Entwicklung (1ª ed., pp. 77-95). Juventa Verlag.). Até agora, os sistemas escolares têm desenvolvido somente de forma muito limitada a habilidade de observar seus próprios procedimentos e refleti-los criticamente. Essa reflexão, no entanto, é uma dimensão do próprio processo que é essencial para a avaliação, para a condução razoável e para o desenvolvimento consciente dos procedimentos, mas não somente quando o sistema escolar está em fase de remodelação rumo a processos inclusivos. Essa dimensão, que continuadamente visa à reflexão sobre processos e procedimentos para que estes possam ser aperfeiçoados e para que se atente a problemas que, na sequência, serão devidamente remediados, deveria ser parte integrante da organização escolar.

Referimo-nos mais especificamente à observação das práticas, das rotinas e dos esforços inovadores próprios do sistema, no âmbito dos quais são examinados tanto impulsos externos de transformação oriundos do entorno do sistema (de outras escolas, da política e da administração educacional, do direito, da economia) quanto perturbações internas. A diferenciação de tais estruturas demanda recursos significativos e deve ser incluída como componente permanente no planejamento e na organização de escolas. Trata-se de uma dimensão do desenvolvimento escolar que vai ao encontro do entendimento de escola como organização em aprimoramento e que pode ser considerada fundamental para o processamento escolar de todos os impulsos transformativos e inovadores. No caso de uma transformação tão substancial quanto a de um sistema escolar fortemente segregado em um que opera de forma inclusiva, ela é indispensável.

A argumentação do raciocínio aqui explanado orientou-se, a título de exemplo, no sistema escolar alemão e descreveu a partir dele problemas específicos. No entanto, levou-se sempre em consideração que as problemáticas, dificuldades e possíveis abordagens aqui apresentadas tivessem relevância também para sistemas escolares constituídos de forma diferente. De acordo com cada caso, será necessário transferir e adaptar as problemáticas estruturais e os procedimentos possíveis aos contextos específicos dos sistemas escolares nacionais. Temos certeza, porém, de que essa possibilidade existe e de que as problemáticas descritas abordam dificuldades e requisitos para a otimização de processos que valem para sistemas escolares modernos em geral, sobretudo no que concerne à diferenciação de estruturas sistêmicas reflexivas, à relação entre impulsos de inovação, processos de transformação e propensões à persistência e, principalmente, à transição para um sistema escolar inclusivo.

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    Traduzido do alemão para o português por Stefanie Herzog, com revisão técnica de Márcia Denise Pletsch.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2024
  • Revisado
    01 Ago 2024
  • Aceito
    15 Ago 2024
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