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O efeito da "crise do arrasto" no mergulho de altura

The effect of "drag crisis" on plunge dive

Resumos

Neste trabalho será investigado o movimento de queda de uma esfera através do ar seguida de um mergulho através da água. Consideramos a esfera sob a ação da força gravitacional, arrasto hidrodinâmico e força de empuxo, tanto no ar quanto na água. Como o empuxo na água torna-se maior que a força gravitacional, a esfera atinge uma profundidade máxima de mergulho antes de retornar à superfície. Considerando a expressão de arrasto quadrático com coeficiente constante nos dois fluídos, obtivemos uma expressão analítica relacionando a altura da queda com a profundidade máxima do mergulho. Em seguida comparamos esta expressão com resultados numéricos considerando o coeficiente de arrasto dependente da velocidade e o empuxo variável à medida que a esfera penetra através da interface ar-água. Comparações entre os resultados analíticos e numéricos demonstram que a "crise do arrasto" desempenha um papel importante nos primeiros instantes após o mergulho, influenciando significativamente na profundidade máxima alcançada.

coeficiente de arrasto; crise do arrasto; queda livre; mergulho de altura


In this paper we investigate the downward movement of a ball through the air followed by a dive in water. We consider the sphere under action of gravitational force, hydrodynamic drag and buoyancy force, both in air and water. As the buoyancy in water becomes larger than the gravitational force, the ball reaches a maximum depth of dive before returning to the surface. Considering the expression of quadratic drag with constant coefficient in the two fluids, we obtained an analytical expression relating the height of fall with the maximum depth of the dive. We compare this expression with numerical results which considers the drag coefficient dependent on speed and variable buoyancy while the ball passes through the air-water interface. Comparisons between the analytical and numerical results show that the "drag crisis" plays an important role at the first instants after the dive, with a significant influence on the maximum depth reached.

drag coefficient; drag crisis; free fall; plunge dive


ARTIGOS GERAIS

O efeito da "crise do arrasto" no mergulho de altura

The effect of "drag crisis" on plunge dive

Tiago Kroetz1 1 E-mail: kroetzfisica@gmail.com.

Departamento de Física, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Pato Branco, PR, Brasil

RESUMO

Neste trabalho será investigado o movimento de queda de uma esfera através do ar seguida de um mergulho através da água. Consideramos a esfera sob a ação da força gravitacional, arrasto hidrodinâmico e força de empuxo, tanto no ar quanto na água. Como o empuxo na água torna-se maior que a força gravitacional, a esfera atinge uma profundidade máxima de mergulho antes de retornar à superfície. Considerando a expressão de arrasto quadrático com coeficiente constante nos dois fluídos, obtivemos uma expressão analítica relacionando a altura da queda com a profundidade máxima do mergulho. Em seguida comparamos esta expressão com resultados numéricos considerando o coeficiente de arrasto dependente da velocidade e o empuxo variável à medida que a esfera penetra através da interface ar-água. Comparações entre os resultados analíticos e numéricos demonstram que a "crise do arrasto" desempenha um papel importante nos primeiros instantes após o mergulho, influenciando significativamente na profundidade máxima alcançada.

Palavras-chave: coeficiente de arrasto, crise do arrasto, queda livre, mergulho de altura.

ABSTRACT

In this paper we investigate the downward movement of a ball through the air followed by a dive in water. We consider the sphere under action of gravitational force, hydrodynamic drag and buoyancy force, both in air and water. As the buoyancy in water becomes larger than the gravitational force, the ball reaches a maximum depth of dive before returning to the surface. Considering the expression of quadratic drag with constant coefficient in the two fluids, we obtained an analytical expression relating the height of fall with the maximum depth of the dive. We compare this expression with numerical results which considers the drag coefficient dependent on speed and variable buoyancy while the ball passes through the air-water interface. Comparisons between the analytical and numerical results show that the "drag crisis" plays an important role at the first instants after the dive, with a significant influence on the maximum depth reached.

Keywords: drag coefficient, drag crisis, free fall, plunge dive.

1. Introdução

O mergulho de altura é uma estratégia de caça muito utilizada por aves marinhas para atingir grandes profundidades e surpreender as presas [1]. Para isso as aves se lançam em queda livre para que a energia cinética adquirida possa vencer o alto empuxo e arrasto enfrentado após atravessar a interface ar-água. Este tipo de mergulho também é praticado como modalidade esportiva e como divertimento por humanos, onde penhascos são utilizados para lançarem-se na água de grandes altitudes oferecendo um razoável risco e grande emoção aos praticantes [2].

Na dinâmica do mergulho de altura estão presentes três forças principais, tanto no movimento através do ar quanto através da água: o peso, o empuxo e o arrasto hidrodinâmico. O arrasto hidrodinâmico é um assunto muito pouco explorado em livros de física em nível de graduação. Mesmo quando o arrasto é tratado, na maioria dos casos considera-se apenas a dependência linear com a velocidade [3], embora este seja um caso muito restrito.

Movimentos verticais sob a ação de forças de arrasto foram explorados obtendo-se equações de movimento em função do tempo [4] e sob o ponto de vista das energias potencial e cinética [5]. Além disso, o arrasto hidrodinâmico também foi explorado experimentalmente em laboratório didático investigando as velocidades terminais de esferas [6]. Uma atenção especial foi dedicada ao fenômeno da "crise do arrasto" no movimento da bola de futebol na Ref. [7]. O presente trabalho pretende abordar o efeito da força de arrasto quadrático e da força de empuxo em um movimento que se dá em duas etapas, cada uma em um fluído diferente. Dedicaremos nossa atenção no papel desempenhado pela "crise do arrasto" neste movimento, uma vez que este fenômeno é muitas vezes negligenciado, (ex: Refs. [4, 5]) Utilizamos nesta investigação o problema de mergulho de altura. Neste problema estarão presentes assuntos relacionados à área de hidrodinâmica e hidrostática simultaneamente. Além de ser um bom exercício a ser exposto em sala de aula por envolver diferentes tópicos de mecânica, ainda é uma demonstração de como o arrasto quadrático com coeficiente constante permite um tratamento analítico apresentável aos anos iniciais da graduação.

Obteremos uma expressão analítica em que a profundidade máxima (h) atingida por uma esfera sob a água é relacionada com a altura inicial (H) da qual a esfera é solta acima da água. Para isso considera-se a densidade da esfera (ρe) menor do que a da água (ρ2) e maior do que a densidade do ar (ρ1). Sendo assim, além da força gravitacional o corpo estará sujeito a uma força de empuxo e a uma força de arrasto, ambas contrárias à velocidade. Estas forças estarão agindo tanto na queda através do ar quanto no mergulho através da água. O problema em questão pode ser visualizado através da Fig. 1.


Também faremos uma abordagem mais rigorosa do problema, considerando a equação completa da força de arrasto e a dependência entre o coeficiente de arrasto (CA) e o número de Reynolds (Re) no domínio 0 < Re < 1 x 106. Este intervalo de Re inclui a queda acentuada do coeficiente de arrasto que se dá aproximadamente em Re ≈ 2 x 105, chamada "crise do arrasto". Neste caso a impossibilidade de encontrarmos uma expressão analítica para a dependência h(H) exige a solução numérica do problema através de métodos de integração de equações diferenciais. Neste trabalho utilizamos o método de Runge-Kutta de quarta ordem para obtermos a dependência h(H) e comparamos com a expressão analítica encontrada considerando apenas o arrasto quadrático com coeficiente constante.

2. Força de arrasto em uma esfera em um meio viscoso

Um objeto movimentando-se em um meio viscoso está sob a ação de uma força contrária à sua velocidade dada pela equação do arrasto

onde ρ é a densidade do meio através do qual o objeto a se movimenta, A é a área da seção transversal (dada por A = πr2 no caso de uma esfera com raio r), v a sua velocidade instantânea e CA o coeficiente de arrasto do movimento. O coeficiente de arrasto CA em geral não é um valor constante, mas dependente do número de Reynolds (Re) do movimento.

O número de Reynolds é uma grandeza adimensional dada pela razão entre duas forças: a força de inércia do fluído que tende a favorecer o movimento (ρv) e a força de viscosidade do fluído contrária ao movimento (η/D). Nestas relações ρ é a densidade do fluído, η a viscosidade dinâmica do fluído e D o tamanho característico do corpo (ou o diâmetro no caso da esfera). Sendo assim, Re para a esfera será dado pela seguinte expressão

A dependência entre CA e Re se dá de forma bastante complexa. Esta dependência não possui expressão analítica exata. No entanto, para o caso da esfera, pode-se encontrar vastamente tal dependência na forma gráfica em literatura específica de hidrodinâmica.

Um dos comportamentos mais interessantes que se pode notar na dependência CA(Re), é o fato do coeficiente de arrasto sofrer uma diminuição repentina para um determinado valor de Re. Para o caso de uma esfera lisa esta diminuição ocorre na região da curva próximo a Re ≈ 2 x 105. No caso de esferas rugosas esta queda acontece para valores menores de Re, dependendo do grau de rugosidade. Com isto a força de arrasto sofre uma diminuição considerável a altas velocidades. Este fenômeno, denominado "crise de arrasto", deve-se à mudança de regime laminar para turbulento do fluído na região da "camada limite" de ar que envolve a esfera. Este fenômeno foi didaticamente abordado na Ref. [7]

Diversas expressões baseadas no ajuste de pontos experimentais já foram propostas para expressar a dependência CA(Re) [8]. Uma das equações mais simples propostas é a expressão de White [9], válida para valores de Re pertencentes ao intervalo 0 < Re < 2 x 105 e escrita como

Apesar da simplicidade, esta equação não corresponde a um bom ajuste além de não incluir a "crise de arrasto". Utilizaremos neste trabalho uma expressão proposta por Morrison em [10], cuja validade se dá dentro do intervalo 0 < Re < 1 x 106. Desta forma, a expressão de Morrison representa bem a queda de CA quando Re > 2 x 105. A expressão de Morrison é dada por

Pode-se observar na Fig. 2 o gráfico da expressão de Morrison em escala logarítmica. Nota-se a queda abrupta de CA para valores de Re > 2 x 105.


Devido à dependência não linear entre o coeficiente de arrasto (CA) e o número de Reynolds (Re) (e consequentemente com a própria velocidade), torna-se impossível obter uma equação de movimento exata para uma esfera sob a ação de um arrasto hidrodinâmico. No entanto, algumas aproximações podem ser feitas para os domínios de Re < 1 e para 2 x 103 < Re < 2 x 105. Estas aproximações resultam em um arrasto proporcional a v para objetos deslocando-se a baixas velocidades e proporcionais a v2 para corpos deslocando-se com velocidades maiores.

Movimentos como o de microorganismos imersos em água e grãos de poeira suspensos no ar possuem valores de Re relativamente pequenos devido à baixa velocidade envolvida e/ou a alta viscosidade do fluido. Nestes casos o primeiro termo da Eq. (3) ou da Eq. (4) torna-se predominante sobre os outros e podemos considerar CA ≈ 24 / Re ou seja, CA ≈ 12η/ ρrv. Sendo assim a força de arrasto para casos em que a velocidade da esfera é muito pequena e/ou a viscosidade do fluído é muito alta, pode ser aproximada por

onde b' é a constante de arrasto linear, dada por

A esta equação de arrasto diretamente proporcional à velocidade dá-se o nome de arrasto de Stokes.

Para a grande maioria dos movimentos de queda através de fluídos viscosos como o ar ou a água, Re atinge valores muito elevados durante a maior parte do movimento. Neste caso a equação do arrasto linear não pode ser utilizada. Nota-se pela Fig. 2 que para valores de Re pertencentes ao domínio 2 x 103 < Re < 2 x 105 o coeficiente de arrasto é aproximadamente constante ≈ 0,42. Portanto, nas situações em que Re atinge altos valores (mas antes de atingir a "crise do arrasto") a força de arrasto a qual estará sujeita a esfera será dada por

onde b é a constante de arrasto quadrática dada por

em que passa a ser um valor constante.

3. Cálculo analítico da profundidade do mergulho

Nesta seção obteremos uma expressão em termos de funções elementares que relacione a profundidade do mergulho da esfera com a altura da queda acima do nível da água. Para isto consideraremos a equação do arrasto quadrático de coeficiente constante, tanto para o movimento através do ar quanto através da água. Não será considerada a variação gradual da força de empuxo à medida que a esfera penetra na interface ar-água. Esta aproximação será razoável desde que o raio da esfera não seja demasiadamente grande. Ao final desta seção serão feitas limitações mais específicas quanto ao tamanho máximo da esfera para que a "crise do arrasto" não ocorra durante o movimento através do ar.

É importante frisar que ao longo de um movimento de queda a partir do repouso, Re assume valores compreendidos desde o domínio linear (1 < Re) até o quadrático (103 < Re < 2 x 105). Além disso, no instante em que a esfera atinge a superfície da água o valor de Re aumenta subitamente, podendo ultrapassar o limite de Re ≈ 2 x 105 durante uma fração de segundos, devido à descontinuidade nos parâmetros de densidade e viscosidade do fluído. Consideraremos desprezível o intervalo de tempo durante o qual a esfera passa por valores de Re diferentes do regime quadrático. Esta suposição equivale a de desprezarmos o efeito da "crise do arrasto" e do arrasto linear. A validade desta suposição será verificada ou não quando compararmos o resultado analítico obtido com as simulações computacionais da próxima seção.

O cálculo será desenvolvido através do teorema trabalho-energia conforme proposto na Ref. [5]. A variação da energia mecânica será dada como o trabalho realizado pelas forças não-conservativas. Como as forças de arrasto e empuxo serão contrárias à velocidade desde a liberação da esfera até sua profundidade máxima sob a água temos que

onde FA e FE representam a força de arrasto e a força de empuxo e dK e dU uma variação infinitesimal na energia cinética e potencial gravitacional da esfera respectivamente. O arrasto considerado será dado pela Eq. (7) FA= bv2 e o empuxo escrito como FE = ρVg, sendo ρ a densidade do fluído V o volume da esfera e g a aceleração da gravidade. No movimento de queda, os valores de dy serão negativos, fazendo com que a variação de energia mecânica total seja também negativa.

Utilizando as expressões de K e U dadas respectivamente por K = mv2/2 e U = mgy, sendo m a massa da esfera, escreve-se a Eq. (9) como

que pode ser rearranjada na forma

Realizando a integral em ambos os lados em relação às variáveis K e U respectivamente, obtemos a seguinte expressão

em que os índices 1 e 2 referem-se aos limites inferior e superior de energia cinética e potencial gravitacional tomadas na integração. Esta integral deve ser resolvida tanto para o movimento através do ar quanto para o movimento através da água. Por isso, as variáveis com índices 1 e 2 apenas serão reinterpretadas através de mudanças de notação em cada parte do movimento.

Ao considerarmos este cálculo para a primeira parte do movimento, que compreende desde a posição inicial y = H até a final em y = 0, mudamos a notação da Eq. (12) para K1KH, U1UH, K2K0 e U2U0. Neste caso teremos KH = 0 (uma vez que a esfera é liberada do repouso), UH = mgH e U0 = 0. Isolando K0 na Eq. (12) e considerando as mudanças de notação e igualdades mencionadas podemos escrever a energia cinética da esfera imediatamente antes de atingir a água como sendo

onde ρ1 e b1 correspondem respectivamente à densidade e constante de arrasto quadrático do ar.

Após a esfera alcançar à posição y = 0, passamos a considerar o movimento através da água. Mudamos a notação da expressão (12) para a segunda parte do movimento, que compreende desde a nova posição inicial y = 0 até a final y = -h. Para isso, fazemos K1K0, U1U0, K2Kh e U2Uh. Neste caso teremos Kh = 0 (na profundidade máxima a esfera estará momentaneamente em repouso), Uh = -mgh, U0 = 0. A energia cinética no nível da água será K0 dada pela expressão (13). Evidenciando a variável h na expressão (12) e considerando a mudança de notação mencionada, obtemos

onde ρ2 e b2 correspondem respectivamente à densidade e constante de arrasto quadrática da água. A expressão final h(H) é obtida substituindo K0 pela expressão (13) na equação anterior e escrevendo a massa da esfera como m = ρeV, onde ρe é a densidade da esfera e V = 4πr3/3 o seu volume. Desta maneira reescrevemos a Eq. (14) após algumas manipulações algébricas na forma

Surpreendentemente, este resultado indica que a profundidade atingida a partir de uma queda não depende do valor da aceleração da gravidade. Ao utilizarmos a expressão da constante de arrasto quadrático dada pela Eq. (8), a dependência h(H) pode ser escrita em termos das densidades do ar, da água e da esfera, além de também depender do raio da esfera e do valor constante assumido pelo coeficiente de arraso , como mostra a equação abaixo

Ao se fazer H = 0 verifica-se facilmente o resultado já esperado indicando que quando a altura da queda é nula a profundidade atingida também será nula. Quando a altura da queda H é extremamente grande, a esfera alcança a velocidade terminal antes de atingir a água e a profundidade máxima atingirá um limite dado por

Para que a Eq. (16) tenha sua validade respeitada, deve-se tomar o cuidado de que a velocidade terminal da esfera no ar corresponda a valores de Re < 2 x 105. Acima deste valor, a "crise do arrasto" diminui drasticamente o valor de CA e o arrasto quadrático deixa de ser uma boa aproximação no ar. A velocidade terminal é alcançada quando a força de arrasto somada ao empuxo iguala-se ao seu peso, ou seja, + Vρg = Vρe g. Utilizando V = 4πr3/3 e b = 0,5ρπr2, escrevemos a velocidade terminal no ar como

Substituindo a Eq. (18) na Eq. (2), pode-se escrever uma expressão para o número de Reynolds quando a esfera atinge a velocidade terminal (ReT) como

Para sabermos o raio máximo da esfera que seguramente não ultrapassará o valor limite de Re = 2 x 105 enquanto estiver em queda antes de atingir a água, substituímos na equação acima os parâmetros referentes ao ar à temperatura de 20 ºC e pressão de 1 atm que correspondem a: η1 = 18,3 x 10 - 6 Pa.s e ρ1 = 1,204 kg/m3. A esfera considerada possui uma densidade de ρe = 950 kg/m3. Assumimos um valor de coeficiente de arrasto constante ≈ 0,42. Encontramos assim um raio máximo para que a "crise do arrasto" não ocorra no ar de rmax ≈ 3,6 cm.

É importante frisar que esta limitação assegura apenas a validade do cálculo analítico da primeira parte do movimento. No instante em que a esfera atravessa a interface ar-água, os parâmetros de densidade e viscosidade do fluído mudam subitamente, fazendo com que a razão entre os números de Reynolds imediatamente antes e imediatamente depois da esfera atingir a água seja Re2/Re1 = (ρ2η1)/(ρ1η2) ≈ 15. Em muitas situações este acréscimo de Re faz com que os primeiros instantes em que a esfera movimenta-se através da água aconteçam durante a "crise do arrasto". Na próxima seção investigaremos as consequências de negligenciarmos a redução de CA durante estes breves instantes.

4. Resultados numéricos

Investigamos a dinâmica da queda da esfera através de dois meios viscosos utilizando um procedimento computacional que leva em consideração a variação do coeficiente de arrasto de acordo com a Eq. (4). Desta forma, podemos comparar os resultados analíticos e numéricos e verificar a validade da aproximação de arrasto quadrático durante todo o movimento.

As posições da esfera durante a queda foram obtidas em função do tempo, considerando a integração numérica através do método de Runge-Kutta de quarta ordem do seguinte sistema de equações diferenciais ordinárias

em que os três termos da Eq. (21) representam a força gravitacional, o arrasto hidrodinâmico e o empuxo, respectivamente. A dependência entre o coeficiente de arrasto e a velocidade CA(v) será dada pela expressão (4) ao substituirmos Re por 2ρrv/η.

A integração numérica das equações diferenciais é realizada mudando-se os valores dos parâmetros do fluído no instante em que a parte inferior da esfera toca a superfície da água. Temos desta forma

assim como

Levamos em conta nesta abordagem o aumento gradual do empuxo e do arrasto nos instantes em que a esfera encontra-se parcialmente submersa, ou seja, quando a posição de seu centro de massa estiver no intervalo -r < y < r. O empuxo considerado será proporcional ao volume submerso sendo este o de uma calota esférica. Este volume é dado por V = πl2(3r - l) / 3, onde l = r - y corresponde à altura da calota quando o centro de massa da esfera encontra-se em y. A área transversal a ser considerada no arrasto corresponde à base da calota esférica submersa. Esta área é dada por A = πa2, onde a = corresponde ao raio da base da calota quando o centro de massa da esfera encontra-se em y. Desta maneira consideramos as seguintes mudanças no volume e área a serem empregados na integração numérica

Realizamos a integração numérica para valores de condições iniciais de posição que variaram entre H = 0 m a H = 100 m. Para cada condição inicial a integração numérica foi realizada até o instante em que a velocidade deixava de ser negativa. Desta forma, a posição neste instante corresponde à profundidade máxima atingida h para o valor de altitude H de lançamento considerado. Mostramos na Fig. 3 a dependência entre a profundidade máxima alcançada h em função da altura da queda H antes do mergulho obtida através da Eq. (16) (em vermelho na versão online) e através da integração numérica (em preto na versão online) para três intervalos de H.



Nota-se pela Fig. 3 (c) que os resultados numéricos e analíticos diferem significantemente para alturas de queda maiores que H = 1 m. A mais drástica suposição feita para a obtenção da Eq. (16) foi considerarmos o coeficiente de arrasto aproximadamente constante e igual a ≈ 0,42 durante todo o movimento. A integração numérica revela que esta consideração torna irreal o resultado analítico obtido, uma vez que as profundidades atingidas previstas analiticamente são bastante inferiores àquelas obtidas por integração numérica considerando o coeficiente de arrasto variável.

Com o intuito de detectarmos em quais instantes o coeficiente de arrasto deixa de ser aproximadamente constante, obtivemos os valores de CA em função das posições ocupadas pela esfera. Desta forma, investigamos o comportamento do coeficiente de arrasto ao longo do movimento de queda. As curvas podem ser vistas na Fig. 4, onde consideramos três condições iniciais distintas. A região da curva próxima a y = 0 podem ser vistas amplificada no primeiro gráfico.



Os gráficos da Fig. 4 revelam que tanto no início quanto ao fim do movimento, o coeficiente de arrasto atinge valores bastante elevados. Apesar disso, na maior parte do movimento o valor de CA é muito próximo do valor assumido como constante no cálculo analítico ≈ 0,42. No entanto, quando y = r (momento em que a esfera atinge a água) o valor de CA diminui drasticamente evidenciando a "crise do arrasto". Cálculos numéricos revelaram que a "crise do arrasto" dura aproximadamente 0,2 s para H = 100 m, enquanto o movimento completo de queda e mergulho dura em torno de 6,1 s. Sendo assim, o intervalo de tempo em que ocorre a crise de arrasto representa apenas 3,3% do tempo decorrido desde a liberação da esfera até que ela atinja a profundidade máxima. No entanto, a distância percorrida durante esta fração de segundo representa a maior parte do percurso sob a água.

À medida que liberamos a esfera de altitudes menores, a velocidade com que atinge a água torna-se também menor. Com isso, a diminuição no valor de CA passa a ser menos pronunciada, como podemos notar na Fig. 4 (c). Isso explica a similaridade dos resultados analíticos e numéricos para valores pequenos de H, como mostrado na Fig. 3 (c).

Foram feitas algumas simulações em que a integração numérica se deu utilizando diferentes valores para a aceleração da gravidade. Os resultados são mostrados na Fig. 5 e revelam que a profundidade atingida será maior quanto maior for o valor de g. Isto contraria novamente o resultado analítico obtido ao assumirmos o coeficiente de arrasto constante. Ao considerarmos um valor maior para g, a esfera aumentará mais rapidamente sua velocidade e consequentemente o valor de Re. Com isso, quanto maior o valor de g, o coeficiente de arrasto assumirá valores menores durante uma maior fração do movimento. Eventualmente, para valores de g demasiadamente altos, a esfera poderá passar pela "crise do arrasto" antes mesmo de atingir a água. Este efeito não pode ser levado em conta quando assumimos o coeficiente de arrasto independente da velocidade.


5. Considerações finais

Neste trabalho investigamos a importância do fenômeno da "crise do arrasto" na profundidade máxima atingida em um mergulho de altura. Para isso obtivemos uma expressão analítica considerando o arrasto quadrático tanto na água quanto no ar, ou seja, assumimos o coeficiente de arrasto constante. Obtivemos uma expressão em que a profundidade atingida é encontrada em função da altura da queda. Estes resultados foram confrontados com a relação obtida através de integração numérica das equações de movimento para diferentes alturas de lançamento. A comparação revelou que as profundidades previstas analiticamente são muito abaixo das alcançadas ao considerarmos o coeficiente de arrasto dependente da velocidade. O motivo da disparidade entre resultados reside no fato de termos negligenciado no cálculo analítico a "crise do arrasto" que ocorre em uma fração de segundo, logo após a entrada da esfera na água.

Outro fato interessante notado no desenvolvimento deste trabalho foi a não dependência entre a profundidade alcançada com a aceleração da gravidade ao desconsiderarmos a dependência entre CA e v. Isto está em desacordo com os resultados numéricos obtidos. Ao levarmos em conta a diminuição do valor de CA com a velocidade, a gravidade faz com que esta diminuição ocorra mais rapidamente. Eventualmente a esfera atinge velocidades elevadas o suficiente para que ocorra a "crise do arrasto" ainda antes de penetrar na água. Como consequência a profundidade atingida será maior quanto maior for o valor de g

Este trabalho evidencia o cuidado que deve ser tomado ao desprezarmos a influência de alguns fatores na obtenção de modelos físicos. Algumas vezes, a conveniência e o bom senso não são suficientes na escolha de quais fenômenos devem ou não ser levados em conta na modelagem de um sistema ou fenômeno. Muitas vezes uma análise numérica ou experimental pode guiar este desenvolvimento. No entanto, ainda que o desenvolvimento analítico aproximado não tenha fornecido um resultado satisfatório, a metodologia de integração das energias cinéticas e potencial pode ser empregada com sucesso quando não houver mudança nos parâmetros do fluído. A Eq. (12) é válida, por exemplo, em situações em que desejamos encontrar a altura máxima atingida quando lançamos uma esfera para cima considerando o efeito do arrasto quadrático e empuxo.

Deve-se salientar que o procedimento de integração numérica não considerou a diminuição de CA da esfera devido à cavidade de ar que se forma atrás desta nos primeiros instantes após a sua entrada na água. A obtenção do coeficiente de arrasto nesta circunstância não é um problema trivial e já foi tratado através de ajustes de curvas experimentais na Ref. [11] e através da combinação de procedimentos teóricos e experimentais na Ref. [12]. Espera-se que as profundidades alcançadas ao levarmos em conta o efeito da cavidade do ar sejam ainda maiores, distanciando ainda mais dos valores obtidos através da Eq. (16).

Recebido em 8/11/2012

Aceito em 2/3/2013

Publicado em 9/9/2013

Copyright by the Sociedade Brasileira de Física. Printed in Brazil.

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  • 1
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      08 Nov 2012
    • Aceito
      02 Mar 2013
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