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Concepção e desenvolvimento de novos materiais cerâmicos com propriedades multiferróicas

Design and development of novel ceramic materials with multiferroic Properties

Resumos

Os materiais multiferróicos constituem um grupo de sistemas multifuncionais com propriedades de enorme aplicabilidade na tecnologia spintrônica. No presente manuscrito, são apresentadas as características fundamentais desse grupo de materiais interessantes, exemplificando-as por meio de um composto de hexaferrita do tipo M (BaTi2Mn2Fe8O19), cuja síntese foi realizada pela técnica de reação em estado sólido. Os resultados mostram uma estrutura hexagonal que consiste em várias subcélulas caracterizadas pela presença de poliedros, cujos centros são ocupados por cátions de Fe, Mn e Ti coordenados com ânions de oxigênio para formar estruturas octaédricas, tetraédricas e bipiramidais. O caráter multiferróico foi conferido por medições de magnetização e polarização elétrica em função de campos magnéticos e elétricos, respectivamente. Esse material exemplifica a metodologia a ser seguida no projeto de novos materiais multiferróicos.

Palavras-chave:
Magnetoeletricidade; hexaferrites; ferromagnetismo; ferroeletricidade


Multiferroic materials constitute a group of multifunctional systems with properties of enormous applicability in spintronic technology. In this manuscript, the fundamental characteristics of this group of interesting materials are presented, exemplified by an M-type hexaferrite compound (BaTi2Mn2Fe8O19), the synthesis of which was carried out using the solid-state reaction technique. The results show a hexagonal structure consisting of several sub-cells characterized by the presence of polyhedra, the centers of which are occupied by Fe, Mn and Ti cations coordinated with oxygen anions to form octahedral, tetrahedral and bipyramidal structures. The multiferroic character was verified by magnetization and electric polarization measurements as a function of magnetic and electric fields, respectively. This material exemplifies the methodology to be followed in the design of novel multiferroic materials.

Keywords:
Magnetoelectricity; hexaferrites; ferromagnetism; ferroelectricity


1. Introdução

Os materiais cristalinos são caracterizados pelo fato de que a distribuição de seus componentes (átomos ou moléculas), em distâncias da ordem de angstroms, tem simetrias específicas que podem sofrer alterações espontâneas quando as condições ambientais, como temperatura ou pressão, são modificadas. A mudança de simetria determina as chamadas transições de fase. Os materiais ferróicos são aqueles em que pelo menos uma transição de fase ocorre com uma mudança na simetria direcional da célula cristalina. O termo “ferróico” foi introduzido por Aizu [1[1] K. Aizu, Phys. Rev. B 2, 754 (1970).], referindo-se a materiais ferromagnéticos, ferroelétricos e ferroelásticos, embora atualmente os materiais ferrotoroidais também sejam incluídos. Para entender, pelo menos de forma resumida, cada um desses comportamentos ferróicos, eles são apresentados brevemente a seguir.

Ferromagnéticos: Em temperaturas suficientemente altas, acima da temperatura de Curie, espera-se que um material ferromagnético esteja na fase paramagnética. Na presença de um campo magnético externo, é induzido um momento magnético cuja magnitude é proporcional à intensidade do campo aplicado, de modo que há um único valor para a magnetização induzida correspondente a cada valor do campo aplicado. Se o material for resfriado, ocorrerá uma transição para a fase ferromagnética ao passar pela temperatura de Curie, na qual, espontaneamente, o cristal atinge um momento magnético diferente de zero, mesmo na ausência de um campo externo. A ocorrência dessa magnetização espontânea implica que a simetria direcional do cristal no estado ferromagnético é menor em comparação com aquela do estado paramagnético, sendo classificada como uma quebra espontânea de simetria. Por esse motivo, sua direção não é a mesma em todo o cristal, pois pode haver pelo menos duas direções equivalentes. Em outras palavras, algumas regiões do cristal orientam seu momento magnético espontâneo em uma determinada direção, enquanto outras orientam seu momento magnético espontâneo na direção oposta. As diferentes orientações de um cristal constituem os chamados estados de domínio, de modo que o cristal se divide em domínios após a transição e a quebra de simetria. Todos os momentos de um domínio têm a mesma direção de magnetização espontânea, mas domínios diferentes têm direções de magnetização diferentes. O número mínimo dessas direções diferentes é dois, mas quanto maior for a redução da simetria em uma transição de fase, maior será o número de estados de domínio permitidos na fase de simetria inferior. No estado ferromagnético, os momentos magnéticos dos domínios apontam em diferentes direções. Quando um campo é aplicado em uma direção arbitrária, os momentos magnéticos espontâneos dos domínios tendem a se orientar paralelamente à direção do campo externo, até que, para um campo suficientemente forte, praticamente a maioria dos momentos magnéticos apontará em direções próximas à do campo aplicado. Então, à medida que o campo aplicado diminui, o momento magnético da amostra tenderá a diminuir, mas apresentará uma magnetização remanescente (diferente de zero) quando todo o campo externo for removido, pois a estrutura cristalina tem magnetização espontânea. Somente um campo de magnitude suficiente na direção oposta (campo coercitivo) permitirá que toda a magnetização seja removida da amostra. A conclusão desse ciclo resulta na chamada curva de histerese que caracteriza os materiais ferromagnéticos.

Ferroelétricos: O análogo elétrico do estado ferromagnético remonta-se a 1920, quando a polarização elétrica espontânea foi observada em cristais de sal de Rochelle. O comportamento da polarização era tal que uma curva de histerese podia ser elaborada em função do campo elétrico aplicado, e o fenômeno foi, portanto, chamado de ferroeletricidade [2[2] J. Valasek, Nat. Mater. 19, 129 (2020).]. O exemplo clássico do cristal ferroelétrico é o BaTiO3 (titanato de bário) que, a T > 130◦C, tem simetria cúbica e exibe polarização macroscópica do tipo paraelétrico sob a aplicação de um campo externo. A T = 130◦C, este material apresenta uma transição de fase para uma estrutura cristalina não-centrossimétrica (na qual os centros das cargas positivas e negativas não coincidem), de modo que, mesmo na ausência de um campo aplicado, um momento de dipolo finito é formado. Essa polarização espontânea pode ser orientada em qualquer uma das seis direções equivalentes (paralela ou antiparalela a qualquer borda do cubo que forma a estrutura cristalina da fase paraelétrica), permitindo a ocorrência de seis tipos de domínios ferroelétricos igualmente estáveis. Dessa forma, a histerese de polarização macroscópica total do cristal é obtida quando o campo elétrico é aumentado e diminuído.

Ferroelásticos: O análogo mecânico ou elástico do ferromagnetismo e da ferroeletricidade é a propriedade chamada ferroelasticidade. O material ferroelástico exibe deformação espontânea com a respectiva estrutura de domínio, dando origem a uma curva de histerese de deformação em função da tensão direcional aplicada. Quando um cubo se deforma espontaneamente para formar um paralelepípedo tetragonal, como ocorre durante a transição para-ferroelétrica no BaTiO3, as dimensões do paralelepípedo tetragonal diferem apenas ligeiramente daquelas do cubo do qual se originou: uma borda é mais longa do que a borda do cubo, e as outras duas são mais curtas do que a borda do cubo. Assim, são possíveis três estados diferentes de orientação ferroelástica, em oposição aos seis estados ferroelétricos possíveis na mesma fase. A curva de histerese ocorre quando as tensões aplicadas trocam os comprimentos das bordas do paralelepípedo tetragonal.

Devido às características comuns entre os materiais que apresentam as propriedades de ferromagnetismo, ferroeletricidade e ferroelasticidade, destacando-se o surgimento de uma estrutura de domínio causada pela quebra espontânea de simetria, bem como o comportamento histerético, eles são chamados de ferróicos, esclarecendo que, apesar do nome, não são necessariamente feitos de ferro. Além de sua estrutura de domínio, os materiais ferróicos são caracterizados por um alto valor para determinadas funções e uma alta dependência de temperatura de algumas propriedades macroscópicas próximas à temperatura de Curie. Enquanto isso, os materiais que combinam dois ou mais estados ferróicos primários na mesma fase são chamados de multiferróicos [3[3] H. Schmid, Ferroelectrics 162, 317 (1994).], que incluem os chamados ferrotoroides, nos quais as linhas de força estão localizadas em uma superfície esférica condutora de eletricidade [4[4] N.A. Spaldin, S.W. Cheong e R. Ramesh, Phys. Today 63, 38 (2010).].

Em termos estritos, a palavra “multiferróico” foi mencionada pela primeira vez por Hans Schmid em 1993, relacionando-a a um material que reúne dois ou mais estados ferróicos primários [3[3] H. Schmid, Ferroelectrics 162, 317 (1994).]. Alguns dos materiais multiferróicos também são magnetoelétricos, mostrando acoplamento entre seus parâmetros de ordem elétricos e magnéticos, ou seja, entre polarização e magnetização [5[5] W. Eerenstein, N.D. Mathur e J.F. Scott, Nature 442, 759 (2006).]. Esse acoplamento é o principal motivo do interesse tecnológico em materiais multiferróicos, pois é possível controlar a magnetização aplicando campos elétricos e a polarização manipulando campos magnéticos. A ocorrência simultânea de ferroeletricidade e ferromagnetismo na mesma fase cristalográfica de materiais multiferróicos não só desperta o interesse da pesquisa devido à riqueza da física básica envolvida, mas principalmente pelo número de possíveis aplicações multifuncionais em dispositivos de memória não volátil, sensores e atuadores de campo magnético, nanoeletrônica, coletores de energia, energia fotovoltaica ferroelétrica, elementos de processamento meso-lógico e geradores magneto-eletro-mecânicos, entre muitos outros [6[6] N. Ortega, A. Kumar, J.F. Scott e R.S. Katiyar, J. Phys.: Condens. Matter 27, 504002 (2015).].

Embora o conceito inicial de ordens coexistentes tenha sido ampliado para incluir antiferromagnetismo e o efeito ferrotoroidal, entre outros, neste trabalho serão apresentadas evidências biferróicas relativas ao ferromagnetismo e à ferroeletricidade em materiais de tipo hexaferrita. Estes, pertencentes à família das ferritas hexagonais, são um dos grupos mais conhecidos de materiais magnéticos, que têm sido aplicados tecnologicamente como ímãs permanentes e dispositivos usados direta ou indiretamente para armazenar informações em mídia magnética [7[7] R.C. Pullar, Prog. Mater. Sci. 57, 1191 (2012).]. Entre os seis tipos de hexaferritas, os chamados tipo M ou hexaferrita de bário [8[8] H. Liu e X. Yang, Ferroelectrics 507, 69 (2017).] é um dos mais amplamente aplicados em ímãs permanentes porque sua magnetização por célula unitária é de cerca de 20 μB, assim como a hexaferrita tipo Z baseada em Sr, que também apresenta magnetização uniaxial à temperatura ambiente [9[9] W. Salazar, J.W.S. Busto, L.C.M. Aldana, A.R. Rivera, D.A.L. Téllez e J. Roa-Rojas, J. Low Temp. Phys. 197, 485 (2019).].

Os materiais do tipo ferrita hexagonal, ou hexaferritas, formam um dos grupos mais conhecidos de materiais magnéticos, que têm sido aplicados tecnologicamente como ímãs permanentes e dispositivos que são usados direta ou indiretamente para armazenar informações em mídia magnética [7[7] R.C. Pullar, Prog. Mater. Sci. 57, 1191 (2012).]. Entre os seis tipos de hexaferrita, o chamado tipo M ou hexaferrita de bário, devido à sua fórmula química original BaFe12O19, é um dos mais amplamente aplicados em ímãs permanentes porque sua magnetização por célula unitária é de cerca de 20 μB [8[8] H. Liu e X. Yang, Ferroelectrics 507, 69 (2017).] e exibe magnetização uniaxial à temperatura ambiente. O composto BaFe12O19 é conhecido desde 1936, quando seu ponto de fusão de 1390◦C foi relatado [10[10] A.E.V. Arkel, E.J.W. Verwey e M.G.V. Bruggen, Rev. Trv. Chim. 55, 331 (1936).]. Na década de 1950, descobriu-se que sua estrutura era isomórfica com a magnetoplumbita hexagonal [11[11] J.J. Went, G.W. Rathenau, E.W. Gorter e G.W.V. Oosterhout, Philos. Technol. Rev. 13, 194 (1952).]. Apesar da ausência de cobalto ou níquel e de sua magnetização de saturação mais baixa do que a evidenciada pelos ímãs de liga existentes, ele foi usado por ser magneticamente duro, pois sua coercividade atingiu 255 kA/m, seu baixo custo de produção, sua alta resistividade elétrica (108 Ω.cm) e sua alta anisotropia magnética axial ao longo do eixo cristalográfico c [12[12] J. Smit, H.P.J. Wijn, em: DC Arc Analysis, editado por N.W.H. Addink (Philips Technical Library, Eindhoven, 1959).]. Suas características estruturais específicas serão discutidas na seção de análise.

Este trabalho enfoca a síntese e a caracterização bifásica do novo material de tipo M-hexaferrita BaTi2Mn2Fe8O19, como parte de uma investigação abrangente sobre a coexistência de pelo menos duas ordens ferróicas. Com relação à hexaferrita original, o Mn e o Ti substituem quatro cátions de Fe. Em geral, os materiais ferroelétricos do tipo hexaferrita possuem íons d0, enquanto as propriedades magnéticas exigem que as camadas d ou f sejam parcialmente preenchidas. Esse fato sugere que uma estrutura eletrônica adicional deve ser obtida para fornecer a energia necessária para que as propriedades ferroelétricas e ferromagnéticas coexistam simultaneamente. Não é simples obter a fase pura das ferritas hexagonais, pois tanto a estrutura cristalina quanto as propriedades elétricas e magnéticas podem ser consideravelmente afetadas pelo processo de síntese em alta temperatura. Da mesma forma, a inclusão de íons magnéticos também influencia a estrutura cristalina, a estrutura eletrônica e as características magnetoelétricas dessa família de materiais. Levando em conta as propriedades magnéticas da estrutura geral do material BaTi2Mn2Fe8O19 e as características específicas dos íons considerados nesta pesquisa, a expectativa é obter uma resposta ferromagnética à temperatura ambiente, que possa ser corroborada por medições da magnetização M em função do campo magnético aplicado H. Da mesma forma, espera-se obter uma resposta ferroelétrica corroborada por meio de medições de polarização elétrica P em função do campo elétrico aplicado E, garantindo a coexistência dos estados ferroelétrico e ferromagnético à temperatura ambiente em uma única fase cristalográfica do tipo hexaferrita.

2. Detalhes Experimentais

A síntese do material cerâmico BaTi2Mn2Fe8O19 foi realizada por meio do método de reação em estado sólido. Os óxidos precursores Sigma-Aldrich de BaCO3, MnO, TiO2 e Fe2O3 em pó, com 99.99% de pureza e alta homogeneidade no tamanho das partículas, foram usados para produzir as amostras a fim de garantir uma topografia granular uniforme no composto. Os óxidos precursores em pó foram secos para evaporar a umidade em um processo térmico a 200◦C. Em seguida, os pós foram pesados nas proporções estequiométricas suficientes para elaborar amostras de 1.2 g de massa e a mistura estequiométrica obtida foi cuidadosamente moída por 3 horas em um almofariz de ágata na presença de 5 ml de acetona para homogeneizar o tamanho das partículas e facilitar os processos térmicos subsequentes. Em seguida, o material foi submetido a um processo escalonado de temperaturas de 300◦C, 500◦C e 700◦C, permanecendo 5 horas em cada uma delas. As amostras foram resfriadas e moídas novamente por 30 minutos para serem submetidas ao processo de sinterização térmica a 1000◦C por 7 horas sob atmosfera de oxigênio. A análise estrutural das amostras foi realizada usando um difratômetro de raios X PANalytical X’pert-Pro (λCuKα = 1.540598 Å), na configuração Bragg-Brentano, com um passo de 0,001◦ em 2θ e um tempo de 10 s. A análise estrutural foi feita pelo refinamento Rietveld para determinar as propriedades cristalográficas dos materiais usando o código GSAS [13[13] K.M. Ginell, C. Horn, R.B.V. Dreele e B.H. Toby, Powder Diffraction 34, 184 (2019).]. A caracterização morfológica dos materiais produzidos foi realizada utilizando a técnica de Microscopia Eletrônica de Varredura (SEM), por meio de um Microscópio FEI Quanta 200 ESEM. Para isso, foi necessário um revestimento com uma camada de Au-Co, a fim de obter uma imagem de boa resolução entre 10 kx e 5 kx. Durante o processo de medição, é usada uma tensão de 10 kV, no modo de alto vácuo (< 6–4 Pa) e uma distância do detector à amostra de 11 mm. A caracterização microestrutural magnética foi realizada por meio de uma microscopia eletrônica de transmissão (TEM), usando um microscópio JEOL JEM 2000FX. A tensão de aceleração foi ajustada em 200 kV, utilizando o feixe de elétrons termoelétrico LaB6. Assim, foi possível obter uma resolução entre pontos de 0.31 nm, usando amostras duplamente inclinadas com rotação, inclinação e alongamento de 45◦. A medição da resposta magnética das amostras foi realizada por meio de um Sistema de Medição de Propriedades Magnéticas (MPMS) da Quantum Design. As medições de magnetização em função do campo aplicado foram realizadas à temperatura ambiente no intervalo entre −7 kOe e +7 kOe com um passo de 25 Oe. A caracterização elétrica do material foi realizada por meio de medições da polarização elétrica em função do campo elétrico aplicado. Para isso, foi utilizado um sistema de teste ferroelétrico da Radiant Technologies INC, modelo N0 PHVA10-OP110, que é operado a partir do computador por meio do software Vision-3.1. As medições foram feitas no regime de tensão entre 50 V e 4 kV, com intervalos de 50 V. Cada uma das medições foi realizada usando uma onda triangular bipolar com um período de 15 ms. As dimensões das amostras correspondentes aos materiais foram fixadas em 1 mm de espessura e 4.8 mm2 de área supercrítica, na forma de blocos cilíndricos em uma célula em configuração de capacitor de placa composta por dois eletrodos planos de cobre.

3. Resultados e Análise

A Figura 1 mostra o resultado de processos cuidadosos e exaustivos de refinamento Rietveld do padrão de difração de raios X (DRX) para o material BaTi2Mn2Fe8O19.

Figura 1
Padrão de XRD refinado para o material BaTi2Mn2Fe8O19.

Na figura, os símbolos representam os dados experimentais obtidos no difratômetro, a linha sólida corresponde ao difratograma simulado usando o código GSAS e a linha na parte inferior da figura é a diferença entre os padrões experimentais e calculados. Os planos de difração correspondentes são indexados para cada um dos picos no difratograma. A partir da análise de Rietveld da Figura 1, foi obtido que o material cristaliza em uma estrutura hexagonal primitiva do tipo magnetoplumbita hexagonal M-hexaferrita, pertencente ao grupo espacial P63/mmc (#194, Z = 2). O padrão de difração da Figura 1 mostra claramente a ocorrência das reflexões de Bragg (110), (107), (114), (203) e (2013), que caracterizam exclusivamente a estrutura da magnetoplumbita. A presença das reflexões (107) e (114) está relacionada à orientação preferencial do eixo cristalográfico c na estrutura cristalina. Os parâmetros de rede obtidos na análise são a = b = 5.91235(7) Å e c = 23.42365(2) Å, enquanto as distâncias interatômicas, os ângulos de ligação e as simetrias correspondentes são apresentados na Tabela 1.

Tabela 1
Distancias e ângulos interatómicos para a hexaferrita BaTi2Mn2Fe8O19.

Com base nos dados estruturais apresentados na t Tabela 1, foi possível elaborar um esquema da estrutura, conforme mostrado na Figura 2. A estrutura da magnetoplumbita exemplificada na figura, pode ser imaginada como a união de dois blocos moleculares, cuja única diferença é a rotação das posições atômicas para suas posições equivalentes dentro da célula unitária.

Figura 2
Estrutura magnetoplumbita característico do material BaTi2Mn2Fe8O19.

A Figura 2a mostra a coordenação poliédrica dos cátions Ba2+ localizados nos sítios Wyckoff 2d com 12 oxigênios. Muito semelhante ao caso dos materiais do tipo perovskita [14[14] J.A.S. Vanegas, J.A.C. Farfán, C.E.D. Toro, D.A.L. Téllez e J. Roa-Rojas, J. Alloys Compnd. 966, 171598 (2023).], os cátions Fe3+ e Ti4+ localizados nos sítios 2a e 12k estabelecem coordenações octaédricas com os oxigênios, assim como os cátions Mn3+ localizados nos sítios 4f2, conforme se observa nas Figuras 2b, 2c e 2e. Os cátions de Fe3+ nas posições 4f1 estabelecem coordenações tetraédricas (Figura 2d), enquanto as coordenações de Fe3+ nos locais 2b são bipiramidais (Figura 2f).

A estrutura complexa da hexaferrita consiste em 10 camadas de ânions O2-. A primeira delas é composta por quatro camadas, cada uma contendo 4 ânions O2-, em empacotamento cúbico, de modo que a primeira unidade básica consiste em um bloco de espinélio de duas camadas S do tipo [(Fe43+-Ti4+)O8]2+, que é repetido verticalmente a cada três camadas, formando uma rede ABCABC. Assim, as células de empacotamento cúbico são ocupadas com três posições octaédricas de Wyckoff e duas posições tetraédricas para cada quatro íons O2-. Há um espinélio S separado por uma quinta camada contendo 3 íons O2-, que forma um segundo bloco hexagonal de três camadas R do tipo (Ba2+-Mn2+-Fe43+)O11)2−, de modo que a estrutura cristalina é formada de acordo com a sequência SRS*R*S, em que o símbolo “*” é usado para definir uma rotação de 180 de cada bloco em torno do eixo hexagonal c da estrutura cristalina.

Nas micrografias da Figura 3, pode-se observar que os grãos de até 8 μm de tamanho adotam a forma de célula hexagonal que caracteriza a estrutura cristalina definida pelo grupo espacial hexagonal M-hexaferrita P63/mmc. A forma hexagonal dos grãos resulta de um crescimento direcional dos cristalitos favorecido pela presença do cátion Ba2+, o que facilita a ocorrência de processos de difusão cinética entre os limites dos grãos e o aumento das taxas de nucleação das partículas [15[15] D. Lisjak e M. Drofenik, Journal of Magnetism and Magnetic Materials 272, e1817 (2004).]. As tendências de crescimento orientado dos cristalitos dão origem às linhas direcionalmente ordenadas vistas no interior dos grãos na imagem TEM da Figura 3a. Assim, o crescimento hexagonal dos grãos até as dimensões micrométricas mostrado na imagem SEM da Figura 3b favorecerá os efeitos ferroelétricos que serão discutidos posteriormente. Este crescimento orientado é corroborado a través do padrão de difração de elétrons (SAED) mostrado na inserção da Figura 3a.

Figura 3
Micrografias TEM obtidas para uma amostra de BaTi2Mn2Fe8O19.

As propriedades e a configuração magnética do composto BaTi2Mn2Fe8O19 estão intimamente relacionadas à distribuição dos íons Fe3+, Mn2+ e Ti4+ nas cinco coordenadas cristalográficas de Wyckoff. Assim, os sítios de Wyckoff 2a dos íons Fe3+(↑), 2b dos íons Fe3+(↑) e 12k dos íons Fe3+(↑)-Ti4+ correspondem à configuração spin up, enquanto os sítios de Wyckoff 4f1 dos íons Fe3+(↓) e 4f2 dos íons Mn2+(↓) correspondem à orientação spin down. Essa configuração, por sua vez, gera um ordenamento magnético fortemente influenciado pela força do acoplamento criado na interação de supertroca (Mn2+-Ti4+Fe3+)-O2–(Mn2+-Ti4+-Fe3+). A curva de magnetização obtida é mostrada na Figura 4.

Figura 4
Histerese ferromagnética em amostras de BaTi2Mn2Fe8O19.

A curva de magnetização na Figura 4 revela um comportamento característico de material ferromagnético em temperatura ambiente com valores de campo coercitivo Hc = 1.35 kOe e magnetização remanente MR = 20.56 emu/g. Devido à ocupação do sítio 2d de Wyckoff por íons Ba2+, a estrutura cristalográfica sofre perturbações como resultado das diferenças de tamanho em relação aos cátions Mn2+ nos sítios 2a, o que leva à anisotropia magnetocristalina nesses materiais. Essa anisotropia dá origem a interações dipolo-dipolo e acoplamento spin-órbita, em que a direção do spin dos íons é acoplada à rede por meio de seu momento orbital. Esse comportamento é difícil de quantificar devido aos orbitais mistos no estado fundamental, que são o resultado de perturbações de simetria nas redes trigonal e bipiramidal, que são os principais contribuintes para as constantes de anisotropia. No entanto, isso será relevante na interpretação da origem da resposta ferroelétrica na mesma fase cristalográfica desse material.

Os espectros de Mössbauer a T = 300 K, apresentados na Figura 5, corroboram que os perfis correspondentes ao material BaTi2Mn2Fe8O19 são caracterizados por sextupletos ligados às posições cristalográficas de Wyckoff 2a, 2b, 12k, 4f1 e 4f2, ocupadas por íons Fe3+, dentro da estrutura hexagonal primitiva M-hexaferrita com grupo espacial P63 = mmc (#194, Z = 2). A análise do espectro mostra que este material é magnético à temperatura ambiente.

Figura 5
Espectro Mössbauer a T = 300 K, assumindo transições 57Fe, E = 0.14413E + 07 keV e gfactor = 0.090604 (nuc. mag) para o material BaTi2Mn2Fe8O19.

Os parâmetros hiperfinos obtidos a partir do ajuste do espectro, realizado para as posições cristalográficas 2a, 2b, 12k, 4f1 e 4f2 e o valor do campo hiperfino, sugerem que a temperatura ferromagnética de Curie é maior do que 300 K.

As medições da polarização elétrica em função do campo elétrico aplicado à temperatura ambiente revelam o caráter histerético que identifica os materiais ferroelétricos. O resultado é exemplificado na Figura 6, onde a robustez da resposta ferroelétrica é observada por um valor de polarização remanescente de 3.9 μC/cm2 e um campo coercitivo de 20 kV/cm. À temperatura ambiente, o material está abaixo da temperatura de Curie ferroelétrica, o que causa a distorção espontânea das subcélulas octaédricas de FeO6, levando a estrutura a um estado de simetria inferior, acompanhado pelo deslocamento do cátion Fe dentro dos octaedros. Ele se afasta do centro ao longo do eixo b, enquanto os oxigênios subjacentes se movem de suas posições originais no octaedro ao longo das direções opostas do eixo a, levando à distorção da respectiva ligação O-Fe-O para longe da linha reta e dando origem a uma polarização elétrica no material [8[8] H. Liu e X. Yang, Ferroelectrics 507, 69 (2017).].

Figura 6
Histerese ferroelétrica a temperatura ambiente em amostras de BaTi2Mn2Fe8O19.

Em hexaferritas do tipo M com fórmula BaTi2Mn2Fe8O19, os momentos magnéticos octaédricos de Fe localizados nas posições 2a e 12k de Wyckoff, bem como os bipiramidais localizados em 2b, geralmente respondem ferromagneticamente. Enquanto isso, os momentos tetraédricos de Fe e octaédricos de Mn localizados nas posições 4f1 e 4f2 mostram uma resposta antiferromagnética [16[16] J. Hu, C. Liu, X. Kan, X. Liu, S. Feng, Q. Lv, Y. Yang, W. Wang, M. Shezad e K.M.U. Rehman, J. Alloys Compnd. 820, 153180 (2020).].

O comportamento ferromagnético macroscópico se deve ao caráter majoritário dos momentos que se alinham na direção da aplicação do campo externo, como resultado da superioridade numérica dos octaedros e bipirâmides ferromagnéticos na estrutura do material. Entretanto, o caráter ferroelétrico deve-se majoritariamente a deslocamentos dos cátions Fe3+ que subjazem nas posições de Wyckoff 2b (nas bipirâmides FeO5), os quais contribuem à formação de momentos dipolares cuja correlação atinge longo alcance por causa das hibridações dos orbitais Fe-3d vazios com os orbitais O-2p ocupados [17[17] N.A. Hill, J. Phys. Chem. B 104, 6694 (2000).]. Em geral, nos sólidos, o acoplamento magnetoelétrico é atribuído aos efeitos de interação spin-órbita. No entanto, isso deve ser acompanhado pela quebra das simetrias de inversão espacial e temporal, já que a quebra da primeira em isolantes dá origem à ferroeletricidade e a segunda causa a resposta de ordenação magnética. Portanto, a coexistência de ambas as ordens, ou seja, multiferróicas, levará a um efeito magnetoelétrico aprimorado [18[18] C. Vittoria, Phy. Rev. B 92, 064407 (2015).]. Para complementar a compreensão desses mecanismos, sugere-se revisar a teoria do acoplamento magnetoelétrico [19[19] G. Catalan e J.F. Scott, em: Multifunctional Oxide Heterostructures, editado por: E.Y. Tsymbal, E.R.A. Dagotto, C.B. Eom e R. Ramesh (Oxford Academic, Oxford, 2012).].

4. Comentários Finais

Neste manuscrito, o fenômeno da multiferroicidade foi apresentado, bem como um exemplo do tipo de materiais multiferróicos que podem ser concebidas. Análises de amostras do tipo hexaferrita (M) com composição nominal BaTi2Mn2Fe8O19 produzidas por reação sólida foram realizadas por meio de várias técnicas experimentais. O refinamento Rietveld dos dados de difração de raios X revela que o material se cristaliza em uma estrutura hexagonal pertencente ao grupo espacial P63/mmc (#194, Z = 2). As imagens de SEM e TEM confirmam o crescimento do tipo hexagonal, atingindo grãos de tamanho micrométrico. As medições da magnetização em função do campo magnético e da polarização em função do campo elétrico aplicado mostram comportamentos histeréticos característicos de materiais ferromagnéticos e ferroelétricos, respectivamente, confirmando a obtenção de um composto multiferróico. Espectros Mössbauer mostraram que o material BaTi2Mn2Fe8O19 é magneticamente ordenado à temperatura ambiente e os parâmetros hiperfinos corroboram que a temperatura do ordenamento magnético está bem acima de T = 300 K. O acoplamento magnetoelétrico característico dessa família de hexaferrites é atribuído aos efeitos de interação spin-órbita.

Agradecimentos

Este trabalho foi parcialmente apoiado pela División de Investigación y Extensión (DIEB, código Hermes 57456) da Universidad Nacional de Colombia Sede Bogotá.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2024
  • Aceito
    20 Abr 2024
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