Open-access Professor, por que não podemos considerar que a Terra é plana?

Teacher, why can’t we consider that the Earth is flat?

Resumos

Neste trabalho, apresentamos os principais argumentos que têm sido utilizados pelos modernos defensores do terraplanismo, bem como o contexto histórico relativo ao desenvolvimento de algumas obras essenciais para esse movimento. Em seguida, apresentamos um breve resgate historiográfico acerca dos modelos propostos para o formato da Terra, identificando como diferentes civilizações chegaram à conclusão que o modelo esférico é mais apropriado. Por fim, apresentamos uma série de evidências observacionais, algumas selecionados por sua simplicidade, outras por sua relevância histórica, fundamentais para qualquer discussão em sala de aula sobre o formato do nosso planeta.

Palavras-chave: Terraplanismo; Educação em Ciências; Epistemologia


In this work, we present the main arguments which have been used by the main defenders of flat earthism, as well as the historical context related to the development of some essential works for this action. Then, we present a brief historiographic review about the proposed models for the shape of the Earth, identifying how different civilizations came to the conclusion that the spherical model is more appropriate. Finally, we present a series of experimental evidences, some selected for their simplicity, others for their historical relevance, fundamental for any classroom discussion about the shape of our planet.

Keywords: Flat Earth Belief; Science Education; Epistemology


“Todos os homens são passíveis de errar; e a maior parte deles, em muitos aspectos, é tentada a fazê-lo por paixão ou interesse”

J. Locke, Ensaio Acerca do Entendimento Humano (1690)

1. Introdução

Ao mirarmos o horizonte, à altura do nível do mar, vemos uma porção finita da superfície do planeta preencher todo o nosso campo visual; se caminharmos até o centro de um campo de futebol aberto e nos deitarmos no gramado, teremos a clara impressão, ao olharmos para cima, que um “domo” se estende acima de nós, até o limite de nossa visão periférica, como uma cúpula sobre uma bandeja circular. Na verdade, tomando como referencial estruturas e objetos do dia a dia, não é tão fácil aceitar que a Terra seja uma esfera móvel, possuindo uma velocidade de rotação superior a 1600 km/h na linha do equador (maior que a velocidade do som!), ou mesmo a mais de 100.000 km/h no seu movimento de translação ao redor do Sol. Afinal de contas, como podemos saber se essas noções, aprendidas por nós nas séries iniciais, estão corretas?

Em janeiro de 1870, o inglês John Hampden (1819–1891), fortemente alicerçado na literatura de Samuel “Paralax” Rowbotham (1816–1884), ofereceu uma recompensa de 500 libras a qualquer um que comprovasse a forma convexa da superfície de um canal, lago, rio ou ferrovia a um árbitro competente [1]. O naturalista britânico Alfred Russel Wallace (1823–1913)1 aceitou a proposta e, em março do mesmo ano – após reproduzir uma sequência de experimentos ao longo do rio Old Bedford, em um trecho próximo a Downham Market, no Reino Unido –, conseguiu verificar, precisa e claramente, a curvatura presente no trecho sugerido pelo próprio Hampden. No cap. XXXIX do vol. 2 de sua autobiografia [1], Wallace esmiúça em detalhes o experimento executado e seus procedimentos, bem como as controvérsias que surgiram em torno dele.2 Para além das disputas legais que envolveram Hampden e Wallace nos anos seguintes [3], Hampden chegou a distribuir, ainda em 1870, um panfleto acusando Wallace de fraude e exigindo retratação pública, além de uma nova condução experimental [4]. Esse acontecimento é bastante instrutivo, não somente para localizarmos as origens literárias do terraplanismo moderno, mas também para lidarmos com os recorrentes argumentos ad hoc utilizados pelos seus defensores, que podem chegar a confundir os leigos, bem como alunos e professores.

Neste trabalho, após discorrer sobre a origem do terraplanismo moderno, comentaremos sobre as concepções das grandes civilizações da Antiguidade sobre o formato da Terra e finalizaremos com a indicação de algumas evidências observacionais que consideramos muito importantes para qualquer discussão séria sobre este tema em sala de aula.

2. O Ressurgimento do Terraplanismo na Literatura do Século XIX

Após o impacto de Sir Francis Bacon (1561–1626) na compreensão do fazer científico,3 é possível identificar uma certa “formalização” da tradição empirista no meio científico [6, 7], sobretudo a partir de trabalhos de John Locke (1632–1704) e George Berkeley (1685–1753) [8, 9]. Nesse contexto, torna-se necessária uma estruturação consistente das bases empíricas e dedutivas que se encontram por trás das hipóteses de novas teorias. Assim, a retórica dos novos “terraplanistas” do século XIX possui uma perspectiva pragmática de que a experiência, bem como suas inferências diretas, atua como critério de verdade, sendo tomada como base para narrativas conspiracionistas ainda hoje [10]. No caso da literatura de Samuel Rowbotham, a ideia de um fazer científico completamente amparado em experimentos de fácil reprodução e induções diretas, é declarada reiteradas vezes. Observemos o excerto a seguir, do início do livro “Zetetic Astronomy: Earth Not a Globe!”, cujo subtítulo afirma que a Terra não só é plana, como também não possui nenhum movimento de translação nem de rotação, sendo o único mundo material no Universo [11, pág. 3]:

O termo “zetético” é derivado do verbo grego zeteo, que significa pesquisar ou examinar – proceder apenas por investigação. Ninguém pode duvidar que, ao fazer experiências especiais e ao coletar fatos manifestos e inegáveis, organizando-os numa ordem lógica e observando o que é natural e razoavelmente dedutível, o resultado será muito mais consistente e satisfatório do que formular uma teoria ou sistema e assumir a existência de causas para as quais não há evidência direta, e que só podem ser admitidas “para fins de argumentação”.4

A obra de Rowbotham apresenta características comuns a textos de autores terraplanistas posteriores, como Mark Breach e William Carpenter (1830–1896). Ao analisarmos os argumentos empregados em “The Dauntless Astronomy” (1884) [12], “One Hundred Proofs that the Earth is not a Globe” (1885) [13] ou “Astronomy and the Bible Reconciled” (1890) [14], por exemplo, podemos compreender melhor o modelo terraplanista que chegou aos nossos dias.5 De maneira geral, especialmente a partir da literatura de Rowbotham, a Terra constitui um firmamento plano circular de aproximadamente 40.000 km de diâmetro, com o Polo Norte localizado no centro. A Antártida, por sua vez, constitui uma intransponível muralha de rocha e gelo que circunda todo o disco terrestre, com altura um pouco superior a 50 m [13]. Um domo, de composição indefinida, alberga o Universo e cobre a Terra, não fazendo sentido questionar o que há além dele; Sol e Lua possuem, ambos, cerca de 50 km de diâmetro, e encontram-se a uma altitude inferior a 10.000 km [12], juntamente com os demais corpos celestes observáveis, e podem perfeitamente ser chamados de luminares, remetendo a noções aristotélicas de cosmologia.6 A Lua, inclusive, não seria um satélite natural, mas sim um astro dotado de luz própria. Todos os argumentos astronômicos empregados por Rowbotham e seus aliados são, em primeira instância, suficientemente sustentados por fundamentos religiosos. Rowbotham ainda se utiliza de uma abordagem matemática simplória para modelar os sistemas Terra-Sol e Terra-Lua, de modo a justificar a passagem do dia para a noite e as estações do ano, mas sem entrar em detalhes com relação às implicações diretas dos movimentos de precessão e nutação do nosso planeta, ou mesmo fenômenos meteorológicos característicos de um planeta esférico. Autores influenciados por ele, posteriormente, ainda se dedicaram a discutir a verdadeira natureza da gravidade, e possíveis causas para fenômenos sísmicos bem conhecidos, mas sem chegarem a um consenso, mesmo em sua literatura de nicho.7 Os autores terraplanistas ainda se apropriam, equivocadamente, de ferramentas epistemológicas como a navalha de Ockham para fundamentar seu ponto de vista, alegando que o seu modelo é mais simples.8

Nesse ensejo, muitas seriam as consequências diretas de uma Terra plana e estacionária em nosso dia a dia. Por exemplo, como explicaríamos a força de Coriolis e o deslocamento de grandes massas de ar entre os continentes, ou a perenidade das grandes correntes marítimas? Por que, durante o inverno no hemisfério norte, a noite tem duração superior ao dia, ao mesmo tempo em que o verão no hemisfério sul tem o dia mais longo do que a noite (e vice-versa seis meses depois)? Seríamos capazes de justificar o fenômeno das marés? Ainda que, a olho nu, uma pessoa normal seja incapaz de visualizar uma grande metrópole a partir de outras cidades em zonas rurais distantes, o que a impediria de fazê-lo com um potente telescópio? Pior, como poderíamos explicar os eclipses lunares com o modelo terraplanista original, no qual o Sol e a Lua sempre ficam acima do disco terrestre?

Segundo a versão contemporânea do terraplanismo, as fotos da Terra (esférica) tiradas do espaço sideral não são aceitas como prova da esfericidade da Terra porque fariam parte de uma conspiração bem elaborada, sustentada pela NASA [10]. Argumentos científicos complicados também não funcionam, porque os terraplanistas geralmente têm um baixo nível de conhecimento em matemática e astronomia e, principalmente, não estão dispostos a aprender, já que a planicidade da Terra é uma “verdade” religiosa. Na próxima seção, apresentaremos um breve resgate histórico das concepções de mundo de diversas civilizações ao longo da história, onde ficará claro que a ideia de uma Terra plana já se mostrava frágil desde a Antiguidade.

3. Concepções a Respeito do Formato da Terra nas Civilizações Antigas

Os caldeus, povos semitas do sul da Mesopotâmia, descreviam o universo como uma “região fechada.” Para eles, a Terra era plana, imóvel, e flutuava no centro de um grande mar. Uma enorme muralha, muito distante, represaria as águas do mar [16]. Da mesma forma, na Grécia, filósofos como Tales de Mileto, Leucipo e Demócrito acreditavam que a Terra era plana, em consonância com os pensamentos das civilizações egípcia e mesopotâmica, bem como Anaxímenes de Mileto, que acreditava que a Terra seria plana e viajaria pelo ar, da mesma forma que o Sol, a Lua e os outros corpos celestes, “os quais são todos ardentes, e vagam pelo ar por causa da sua planicidade com a Terra” [17]. Anaximandro, por outro lado, acreditava que a Terra fosse um cilindro curto com um topo plano e circular, que permaneceria estável, pois estaria à mesma distância de todas as coisas, como ilustrado na Fig. 1.

Figura 1
Tales achava que a Terra era um disco que flutuava em um grande oceano e que as coisas caíam sobre a Terra, ao passo que Anaximandro pensava que a Terra seria um cilindro que flutuava no apeiron, com os objetos podendo cair em qualquer direção, o que foi considerado um grande avanço conceitual. Ilustração retirada da Ref. [18], com tradução nossa.

As primeiras concepções de uma Terra esférica na cultura ocidental vieram com Pitágoras, no século VI a.C., e Parmênides, no século V a.C., e esta visão se espalhou rapidamente pelo mundo grego, culminando com o modelo de universo de Aristóteles, que durou quase dois mil anos. No livro “Do Céu,” Aristóteles apresenta o universo como uma esfera gigantesca, porém finita, à qual se prendiam as estrelas, e dentro da qual se verificava uma rigorosa subordinação de outras esferas menores, uma para cada um dos planetas visíveis a olho nu – Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno –, e que girariam em torno da Terra, que se manteria imóvel no centro do universo (sistema geocêntrico) [19], e, por isso mesmo, não era considerada um planeta (palavra que, em grego, significa “estrela errante”). Apesar disso, Aristóteles deduziu que a Terra teria que ser esférica, pois observou que a sombra que ela lança sobre a Lua durante os eclipses lunares é circular. Ele também notou que algumas estrelas observadas no Egito não podiam ser vistas na Grécia (mais ao norte) e vice-versa, além de argumentar que todos os corpos graves do universo tendiam para um centro fixo (o centro do universo), portanto eles formaram, ao longo do tempo, uma única esfera maciça (a Terra).

4. Evidências Observacionais

Vejamos, então, algumas evidências observacionais e experiências simples que são fundamentais para qualquer discussão séria, em sala de aula, sobre o real formato da Terra. Um fato que aponta contra a ideia de uma Terra plana é a primeira medida da circunferência do nosso planeta, realizada com acurácia por Eratóstenes em torno de 240 a.C. Em sua época, as datas dos solstícios e equinócios eram diferentes das de hoje, devido à precessão dos equinócios, mas ele conhecia as datas em que esses eventos ocorriam [19]. Enquanto diretor da Biblioteca de Alexandria, ele tomou conhecimento que, no solstício de verão, na cidade de Siena, ao meio-dia, o Sol ficava quase exatamente no zênite (vertical acima do observador), de modo que era possível observar o seu reflexo no fundo de um poço. Porém, em Alexandria, na mesma data e hora, isso não era possível, pois o Sol não ficava suficientemente perto do zênite, formando um pequeno ângulo com a vertical. Então, Eratóstenes percebeu que, se pudesse determinar esse ângulo, conhecendo a distância entre aquelas cidades, poderia determinar o comprimento da circunferência da Terra, já que, de acordo com as regras da geometria euclideana, a razão entre a distância S entre as duas cidades, Siena e Alexandria, e o comprimento C da circunferência da Terra tem que ser igual à razão entre o ângulo central θ (em graus) correspondente ao arco que liga as duas cidades e 360°:

(1) S C = θ 360 ° .

Naquela época, a distância entre cidades era medida em “estádios,”9 e, para aquelas cidades, equivalia a 5.000 estádios. Usando uma estaca vertical e medindo a pequena sombra formada ao meio-dia (em Alexandria), ele obteve θ/360°1/50 [20]. Assim, ele estimou que a circunferência da Terra media cerca de 250.000 estádios, o que corresponde a aproximadamente 40.000 km, o que nos permite inferir que o raio da Terra deve ser 40.000 km/(2π)6.366 km.10 Esses dois valores ficam bem próximos dos valores medidos com técnicas modernas: 40.070 km para a circunferência e 6.371 km para o raio médio da Terra [20]. Outra contribuição de Eratóstenes, menos conhecida, é que ele foi o primeiro a medir a inclinação do eixo de rotação da Terra (i.e., o eixo norte-sul) em relação ao plano da eclítica (plano da órbita aparente do Sol em torno da Terra), obtendo 23° 51′, em ótimo acordo com as melhores medidas modernas, que fornecem aproximadamente 23° 27′ [22].

Em 1230, Johannes de Sacrobosco (1195–1256), matemático, astrônomo e professor da Universidade de Paris, publicou sua grande obra, “Tratado da Esfera.”11 Graças à sua precisão e simplicidade, o livro foi adotado pelas universidades européias ao final da Idade Média, e passou a ser o texto básico para a formação dos navegantes que seriam responsáveis pelos grandes descobrimentos marítimos. Na seção “Da Redondeza da Terra,” ele argumenta o seguinte [23, págs. 14-15]:

Que a Terra seja redonda se prova porque os astros e as estrelas não nascem nem se põem igualmente a todos os homens em todas as partes [do mundo], mas primeiro nascem e se põem aos que vivem no oriente que aos que vivem no ocidente. […] Nem há outra causa disto salvo a redondeza da Terra.

Além disso, na seção “Da Redondeza da Água”, contrariando o argumento tipicamente utilizado por terraplanistas em diversas mídias, lemos que [23, págs. 15-16]

Ponha-se um sinal na ribeira do mar e saia uma nau do porto, e aparte-se tanto que quem estiver ao pé do mastro não possa ver o sinal, e estando assim a nau, ver-se-á o mesmo sinal da gávea, pois o olho que estivesse ao pé do mastro, melhor devia ver o sinal que o que em cima estivesse, como parece pelas linhas [retas] que vão até o sinal.

Esse tipo de observação simples foi enaltecido em alguns trabalhos recentes [24, 25]. De fato, se a Terra fosse plana seria possível observar, a partir de qualquer ponto do litoral leste do Brasil, uma plataforma petrolífera fixada em alto mar, no oceano Atlântico (na região do pré-sal), usando um bom telescópio. Entretanto, usando um telescópio refletor de 152 mm em Macaé/RJ, verificamos pessoalmente que isto não é possível, mesmo estando no quarto andar de um prédio em frente ao mar.

Algumas observações astronômicas mais precisas também contrariam a ideia de uma Terra fixa no centro do sistema solar [26]. Friedrich Wilhelm Bessel (1784–1846) foi um astrônomo e matemático alemão e um dos primeiros responsáveis pelo uso das paralaxes estelares para medir distâncias astronômicas. Em 1838, ele conseguiu medir o ângulo de paralaxe da estrela 61 Cygni, uma estrela relativamente próxima da Terra, usando observações de posições opostas da órbita da Terra ao redor do Sol, e, a partir disso, determinar sua distância [27]. Note que esse importante marco científico jamais seria possível se a Terra não possuísse um movimento de translação ao redor do Sol. Outra evidência irrefutável do movimento terrestre é a precessão do plano de oscilação do Pêndulo de Foucault (1851), a qual indica que a Terra possui rotação em torno do seu eixo norte-sul, sendo a precessão no sentido horário quando o experimento é realizado no hemisfério norte, e anti-horário no hemisfério sul, diferença esta que parece impossível de ser explicada no modelo de Terra plana. O mesmo podemos dizer do fato do período da precessão do pêndulo aumentar com a latitude, tanto quando vamos da linha do equador para o norte quanto para o sul.

A disposição geográfica dos continentes no modelo da Terra plana, como divulgado no mapa-múndi dos próprios terraplanistas (sempre um desenho, nunca uma foto), proposto em 1865 e reproduzido na nossa Fig. 2, é tal que o Polo Norte fica no centro e os países do hemisfério sul ficam próximo das bordas (note que o Polo Sul deixa de ser um ponto, passando a compor toda a borda do disco terrestre). Neste arranjo geográfico, defendido até hoje pelos terraplanistas, a África e a América do Sul parecem muito distantes. Então, como é que um vôo comercial direto de São Paulo (no Brasil) para Joanesburgo (na África do Sul) dura apenas 9 horas? Obviamente, qualquer que seja o mapa plano que se proponha, sempre haverá duas cidades desproporcionalmente distantes, bastando tomar como contraexemplo um vôo bem conhecido, e compará-lo com outros vôos que levam o mesmo tempo, entre duas cidades que parecem estar muito mais próximas no mapa terraplanista. A ideia da Terra plana não resiste ao simples argumento das distâncias entre cidades, ilustrado de forma irrefutável pela duração dos vôos. Assim, no mapa terraplanista ilustrado na Fig. 2, tomemos, por exemplo, a distância mais longa, em linha reta, entre grandes cidades, que parece ser entre Santiago (Chile) e Perth (Austrália), um vôo direto que dura 16 horas e 20 min. Como poderia, então, um vôo de Perth para Londres, que, no mapa da Terra plana, fica a meio-caminho de Santiago, durar 17 horas e 45 min.?

Figura 2
Reprodução fiel do mapa-múndi da Terra plana, como proposto em 1865 por Rowbotham [11].

Outra evidência observacional simples são os satélites geoestacionários, que são satélites em órbita em torno da Terra, no plano equatorial, com período orbital igual ao período de rotação da Terra, de modo que ficam em repouso em relação a um observador fixo na Terra (geralmente em uma localidade próxima da linha do equador). Tais satélites podem ser observados facilmente com binóculos (ou com uma luneta comum), mas não podem ser explicados pelo modelo de Terra plana original, no qual a Terra não possui rotação (o que impediria um satélite em repouso de cair?). No Brasil, por exemplo, um satélite geoestacionário francês pode ser visto com um binóculo durante o fim de tarde na cidade de Oiapoque/AP (fronteira com a Guiana Francesa), a cerca de 5° sudoeste do zênite, como feito por um dos autores (FMSL) em 1980.

Outras evidências que descredibilizam o modelo da Terra plana são, por exemplo, o fato de as constelações do céu noturno vistas por um observador no hemisfério sul e outro no hemisfério norte, no mesmo horário, não serem as mesmas; durante o inverno no hemisfério norte, a noite demora horas a mais do que o dia, observação inexplicável no modelo de Terra plana, no qual o Sol e a Lua estão acima de nós, à mesma distância, e descrevem um movimento circular no firmamento. Assim, se a Terra fosse plana, o Sol, ao se afastar, ainda seria visível com um telescópio, o que não ocorre. Além disso, o modelo da Terra plana original simplesmente não explica a formação e a dinâmica dos eclipses lunares, como já dissemos anteriormente.

Por fim, o maior problema do terraplanismo, enquanto teoria física, é que, embora a sua versão original seja mais simples, ele requer uma hipótese adicional para explicar cada novo fenômeno observado que não se encaixa no modelo, ao passo que o modelo do globo terrestre explica todos esses fenômenos sem a necessidade de novas hipóteses. Por exemplo, a dinâmica de rotação dos grandes furacões, bem como a precessão do plano de oscilação do pêndulo de Foucault e a forma curva das grandes correntes marítimas são todos provocados pela força de Coriolis, uma força de inércia que, nesse caso, surge em consequência da rotação diária do globo terrestre em torno do seu eixo norte-sul. Quanto ao fato da noite ter duração superior ao dia durante o inverno no hemisfério norte (e vice-versa no hemisfério sul), isto é consequência da inclinação do eixo de rotação da Terra em relação ao plano da nossa órbita ao redor do Sol. Quanto às marés, trata-se de um efeito gravitacional que causa elevação máxima das águas nas regiões do globo terrestre mais próximas da Lua, assim como nas mais afastadas (por isso o período completo das marés é de cerca de 12 horas, e não 24 horas). Outro fato importante é que um navio muito distante do litoral não pode ser observado a partir da terra firme, mesmo que se use um potente telescópio, o que é facilmente explicado no modelo esférico da Terra, pois a superfície curva nos impede de observar objetos além do horizonte (já que a luz se propaga em linha reta). Por fim, o eclipse lunar é fácil de se explicar se o formato da Terra for esférico, pois, estando a Lua em órbita ao redor da Terra, ela eventualmente fica em oposição ao Sol, momento este em que a sombra circular da Terra é lançada sobre ela. Portanto, do ponto de vista da navalha de Ockham, o modelo esférico deve ser preferido, em detrimento do modelo da Terra plana, pois, para tornar o terraplanismo competitivo diante dessas observações, seria necessário adicionar uma série de hipóteses que acabariam por torná-lo muito mais complexo do que o modelo esférico.

5. Conclusões

Tendo em vista as diversas refutações existentes, tanto diretas quanto por contradição, além do fato de todas elas poderem ser explicadas assumindo-se uma Terra praticamente esférica, concluímos que o movimento terraplanista NÃO é uma tentativa legítima de defender um modelo geográfico que alguém realmente acredite que seja válido, mas sim um empreendimento de divulgação ampla de uma ideia ultrapassada e cientificamente absurda, pois leva a diversas contradições, apenas para criar polêmica e obter um grande número de acessos na internet, principalmente em redes sociais e YouTube, angariando “likes” do público (na grande maioria, leigos em questões de ciência) a fim de obter ganhos financeiros.

Aos professores da educação básica, esperamos que nossa abordagem seja útil para, pelo menos, fazê-los perceber que a grande maioria das pessoas apenas aceita que a Terra possui um formato esferoidal, sem refletir sobre porque ela não pode ser plana. Nesse sentido, as Refs. [28,29,30,31,32,33] podem servir como um “reforço” para futuras discussões em sala de aula, bem como a sequência de ensino investigativo apresentada na Ref. [34]. É necessário reiterar que, para melhor compreender as tramas conspiracionistas de amanhã, é preciso compreender a estrutura dos mitos de ontem. Deve-se reconhecer o ceticismo como uma competência importante a ser trabalhada e incentivada em sala de aula. Harmonizá-lo na mente do estudante, já na educação básica, é chave fundamental para a construção de uma sociedade mais esclarecida, que reclama padrões severos de exigência, e aplica noções rigorosas, em igual proporção, tanto às ideias que lhes são convenientes, quanto àquelas que lhes causam desconforto.

Agradecimentos

Os autores agradecem aos pareceristas anônimos pelas diversas sugestões pertinentes, as quais foram úteis para tornar o texto mais completo e informativo.

Referências

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  • [27] Wikipedia, Friedrich Bessel, disponível em:https://en.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Bessel, acessado em 07/07/2023.
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  • [28] Desmistificando a Terra Plana, disponível em:https://terraplana.ws/
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  • [29] CREF, Mítica Terra Plana, disponível em:https://cref.if.ufrgs.br/?cat=31
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  • [31] Meta Bunk, Flat Earth, disponível em:https://www.metabunk.org/forums/Flat-Earth/
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  • [32] Walter Bislin’s Blog, Flat Earth, disponível em:https://walter.bislins.ch/bloge/index.asp?blog=list&tag=FlatEarth
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  • [33] Prof. Silvestre, disponível em:https://www.youtube.com/@ProfSilvestre/videos
    » https://www.youtube.com/@ProfSilvestre/videos
  • [34] H.M. Clementino, D.Q. Brito e I.S.R. Duarte, Physicae Organum 8, 309 (2022).
  • 1
    Wallace, à época membro da Royal Geographical Society, é mais conhecido por suas contribuições à biologia, sobretudo pelo desenvolvimento da Teoria da Evolução.
  • 2
    Em um artigo de jornal publicado em 18 de março de 1870, o senhor J.H. Walsh, à época editor da revista Field e um dos árbitros competentes selecionados, também explica, de forma sucinta, o experimento executado por Wallace [2].
  • 3
    Bacon propõe, de maneira geral, uma ciência adequadamente conduzida, isto é: operativa, experimental e indutiva [5].
  • 4
    No original (em inglês) lê-se: The term “zetetic” is derived from the Greek verb zeteo; which means to search or examine – to proceed only by inquiry. None can doubt that by making special experiments and collecting manifest and undeniable facts, arranging them in logical order, and observing what is naturally and fairly deducible, the result will be far more consistent and satisfactory than by framing a theory or system and assuming the existence of causes for which there is no direct evidence, and which can only be admitted “for the sake of argument”.
  • 5
    Todas as obras terraplanistas analisadas no presente artigo foram retiradas do portal The Flat Earth Society, disponível em https://theflatearthsociety.org/home/.
  • 6
    Cabe lembrar que Aristóteles (384–322 a.C.) já atribuía um formato esferoidal à Terra, tendo ele próprio observado a sombra circular da Terra em um eclipse lunar.
  • 7
    Todos os autores, inclusive Rowbotham, baseiam suas hipóteses, geralmente de natureza ad hoc, em excertos bíblicos, exercendo um juízo de valor moral às propostas científicas conflitantes, e, por vezes, descredibilizando de forma falaciosa o extenso legado científico deixado por Nicolau Copérnico (1473–1543), Galileu Galilei (1564–1642), Isaac Newton (1642–1727), etc.
  • 8
    Princípio filosófico que nos permite identificar racionalmente qual teoria, dentre várias concorrentes, é mais simples (no sentido de requerer menos abstrações) para explicar um conjunto de fenômenos observados. Assim, a eliminação de entidades supérfluas certamente contribuirá para uma ontologia mais empirista e menos inflacionária do nosso conhecimento a respeito de algo [15].
  • 9
    O valor exato de um estádio não é muito claro na literatura, mas sabe-se que ele fica entre 0,15 e 0,16 km.
  • 10
    Esse valor do raio terrestre requer conhecer o número irracional π com uma precisão maior do que a conhecida na época [21, p. 174].
  • 11
    Essa obra segue a tradição aristotélica, cuja cosmologia é baseada na ideia da Terra imóvel no centro do Universo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2024
  • Revisado
    26 Maio 2024
  • Aceito
    27 Maio 2024
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