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Majorana, Heisenberg, a interação de troca e o méson de Yukawa: o berço da interação forte

Majorana, Heisenberg, the exchange interaction and the Yukawa meson: the birthplace of the strong interaction

Resumos

Apresenta-se neste trabalho uma abordagem dos trabalhos de Heisenberg, Majorana e Yukawa desenvolvidos entre 1933 e 1938. Esses trabalhos delimitam a passagem da física moderna, baseada na teoria quântica dos anos 1920, para um dos componentes da física contemporânea, a saber, a física de partículas elementares. A narrativa tem como foco central o contexto histórico do desenvolvimento dos conceitos de interação de troca e interação forte e o surgimento do conceito de campo nuclear e do quantum a ele associado, o méson. A abordagem conceitual é consistente com um cenário de transposição didática para disciplinas de física moderna e teoria quântica ofertadas na graduação em física, bem como para a disciplina sobre física contemporânea ofertada no Mestrado Nacional Profissional em Ensino de Física (MNPEF).

Palavras-chave:
Majorana; Heisenberg; Interação forte; Física de partículas; Física contemporânea


This work presents an approach to the works of Heisenberg, Majorana and Yukawa, developed between 1933 and 1938. These works delimit the transition from modern physics, based on the quantum theory of the 1920s, to one of the components of contemporary physics, namely elementary particle physics. The narrative’s central focus is the historical context of the development of the concepts of exchange interaction and strong interaction and the emergence of the concept of nuclear field and the quantum associated with it, the meson. The conceptual approach is consistent with a didactic transposition scenario for modern physics and quantum theory subjects offered in undergraduate physics, as well as for the subject of contemporary physics offered in the National Professional Master’s Degree in Physics Teaching (MNPEF).

Keywords:
Majorana; Heisenberg; Strong interaction; Contemporary physics; Particle physics


1. Introdução

Nas disciplinas básicas dos cursos de graduação em física há vários momentos nos quais são abordadas duas das quatro interações da natureza, a saber, a interação gravitacional e a interação eletromagnética. As outras duas, a interação fraca e a interação forte, são tratadas muito superficialmente. O decaimento beta é abordado nas disciplinas de física moderna e física nuclear, mas não no contexto de uma teoria da interação fraca, e a interação forte só é abordada como um elemento muito superficial no contexto histórico da física de partículas elementares. Por exemplo, no livro-texto de física quântica mais usado nos cursos de bacharelado e licenciatura em física [1[1] R. Eisberg e R. Resnick, Física Quântica: Átomos, Moléculas, Sólidos, Núcleos e Partículas (Campus, Rio de Janeiro, 1986).] sequer é mencionado o fato de que a ideia da interação forte surgiu dos estudos de Werner Heisenberg no início dos anos 1930.

Tendo este cenário em mente, apresento aqui uma narrativa com dois objetivos: um histórico e outro didático. O objetivo histórico tem como foco destacar a participação de Ettore Majorana no início dos eventos que desembocaram na teoria do méson de Yukawa. O trabalho de Majorana foi relevante para o desenvolvimento que se seguiu depois dos anos 1940, mas essa parte da história está completamente ausente nos livros-textos atuais. Para o leitor não especializado em física nuclear (FN) e física das partículas elementares (FPE), os personagens relevantes da transição da teoria quântica para e física nuclear e a física das partículas são Fermi, com a sua teoria do decaimento beta, que deu origem à interação fraca, e Yukawa, com a sua teoria do méson, que está por trás do surgimento da interação forte. Um leitor um pouco mais informado tem conhecimento que entre Fermi e Yukawa deve-se incluir Heisenberg, com a sua teoria da força de troca. Apenas os leitores especializados em FN e FPE sabem que ao lado do trabalho de Heisenberg deve-se colocar a contribuição de Majorana.

O objetivo didático do artigo é apresentar uma transposição didática dessa fase de transição da mecânica quântica para a física de partículas elementares, em uma linguagem consistente com a grade curricular adotada na maioria dos cursos de Licenciatura em física, e que seja útil para a abordagem do tema na disciplina de Física Contemporânea do Mestrado Nacional Profissional em Ensino de Física (MNPEF). Apesar desse foco restrito à licenciatura e ao MNPEF, o conteúdo aqui apresentado também poderá ser útil nos cursos de bacharelado.

O modelo atômico inicialmente proposto por Rutherford em 1911 e formalizado por Bohr entre 1912 e 1913 funcionou perfeitamente bem para o átomo de hidrogênio, mas apresentou inúmeras falhas no tratamento de outros átomos [2[2] A.A. Grometstein, The Roots of Things: Topics in Quantum Mechanics (Springer, Boston, 1999).]. Entre 1913 e 1925, diversos físicos tentaram consertar o modelo, até que, quase simultaneamente, Heisenberg [3[3] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 33, 879 (1925).], Dirac [4[4] P.A.M. Dirac, Proc. R. Soc. Lond. A 109, 642 (1925).] e Schrödinger [5[5] E. Schrödinger, Phys. Rev. 28, 1049 (1926).] apresentaram suas abordagens em substituição ao modelo de Bohr. A partir de então, essas abordagens passaram a ser conhecidas como a nova mecânica quântica [6[6] C. Carson, Stud. Hist. Philos. Sci. Part B Stud. Hist. Philos. Mod. Phys. 27, 23 (1996).].

Neste cenário de aplicações da nova teoria quântica a problemas de física atômica surgiu a ideia de força de troca. Durante quase uma década, o conceito foi usado em diferentes problemas, mas a sua compreensão era nebulosa, até que em 1935, Yukawa fez uma abordagem mais esclarecedora ao tratar a interação entre partículas elementares, propondo a existência do méson, uma partícula responsável pela mediação da interação forte [7[7] H. Yukawa, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 17, 48 (1935).]. Como qualquer tema importante da história da ciência, a evolução do conceito de força de troca até chegar a uma teoria da interação forte contou com a colaboração de muitos estudiosos, entre os quais destacarei os cinco expostos na Figura 1.

Figura 1
Representação simplificada da linha do tempo referente a evolução do conceito de força, da física atômica e molecular até o surgimento do conceito de interação forte mediada pelo méson.

Cathryn Carson [6[6] C. Carson, Stud. Hist. Philos. Sci. Part B Stud. Hist. Philos. Mod. Phys. 27, 23 (1996)., 8[8] C. Carson, Stud. Hist. Philos. Sci. Part B Stud. Hist. Philos. Mod. Phys. 27, 99 (1996).] apresenta um possível detalhamento da Figura 1, com vários exemplos do uso do conceito de força de troca no período 1926–1950, entre os quais destacarei aquele considerado como um dos primeiros, que é bastante usado em livros de mecânica quântica. Trata-se do trabalho de Walter Heitler e Fritz London, publicado em 1927 [9[9] W. Heitler e F. London, Zeitschrift Für Phys. 44, 455 (1927).]. Farei uma abordagem qualitativa, compreensível para quem já tomou conhecimento da equação de Schrödinger.

Heitler e London pretendiam explicar a ligação entre dois átomos idênticos, como dois átomos de hidrogênio na formação da molécula H2, a qual tem dois elétrons se movendo entre os dois núcleos. Heitler e London consideraram que esse sistema tem dois estados. Em um deles, o elétron 1 fica próximo do núcleo a, e o elétron 2 fica próximo do núcleo b. No outro estado, o elétron 2 fica próximo do núcleo a, e o elétron 1 fica próximo do núcleo b. Usando a notação de função de onda (ver equação de Schrödinger), podemos escrever esses dois estados da seguinte maneira:

(1a)Estado 1:ψa(1)ψb(2),
(1b)Estado 2:ψa(2)ψb(1).

As notações (1a) e (1b) são intuitivas e compreensíveis para quem já estudou a equação de Schrödinger, mesmo que superficialmente. No entanto, o que segue da sua manipulação para calcular estados degenerados é bastante complicado para quem tem apenas o conhecimento básico, razão pela qual apresentarei o cenário formal em uma linguagem acessível a alunos de graduação.

Fazendo uso de um método que é conhecido como teoria da perturbação, Heitler e London calcularam as energias dos dois estados desse sistema e a frequência com a qual os elétrons “trocam” de posição. Ou seja, em linguagem mais corriqueira, o elétron 1 vai para a proximidade do núcleo b, e o elétron 2 vai ficar próximo do núcleo a. Eles calcularam essas energias em função das distâncias entre os núcleos de hidrogênio e justificaram a ligação química mostrando que a energia de ligação é menor do que a energia quando os núcleos estão infinitamente separados. Essa energia é uma espécie de potencial que dá origem a uma “força de troca” entre os dois núcleos. Ainda no final dos anos 1920, essa ideia foi usada por Heisenberg para explicar o fenômeno do ferromagnetismo. Quem chegou a estudar magnetismo em nível de pós-graduação lembra do uso frequente da expressão “energia de troca”. Está aí nesse trabalho de Heitler e London a origem do conceito. Vejamos agora como Heisenberg e Majorana levaram esse cenário para o interior do núcleo atômico, e como Yukawa considerou essas abordagens para consolidar a fase inicial do que hoje conhecemos como física de partículas elementares.

A literatura básica que engloba essa discussão consiste em três artigos de Heisenberg [10[10] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 77, 1 (1932)., 11[11] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 78, 156 (1932)., 12[12] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 80, 587 (1933).], um de Majorana [13[13] E. Majorana, Zeitschrift Für Phys. 82, 137 (1933).] e três de Yukawa e colaboradores [7[7] H. Yukawa, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 17, 48 (1935)., 14[14] H. Yukawa e S. Sakata, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 19, 1084 (1937)., 15[15] H. Yukawa, S. Sakata e M. Taketani, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 20, 319 (1938).]. A transposição didática aqui apresentada tem como fonte central esses sete artigos. São duas as principais razões para essa escolha. Em primeiro lugar, pela definição do contexto histórico. Em segundo lugar, mas não menos importante, pelo caráter sempre instrutivo que permeia os primeiros artigos publicados sobre determinado tema científico. É nas primeiras publicações que os autores precisam colocar clara e pedagogicamente o problema a ser abordado e as primeiras tentativas para solucioná-lo. Nas publicações seguintes, e mesmo na maioria das publicações de revisão, esses detalhes, muitas vezes sutis, não são explicitados.

2. A Interação de Troca de Heisenberg

Em seu famoso artigo de 1932 [10[10] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 77, 1 (1932).], Heisenberg começa mencionando os trabalhos de Irène e Frédéric Joliot-Curie e a sua interpretação por James Chadwick, publicados alguns meses antes, naquele mesmo ano. Os experimentos do casal Joliot-Curie e a interpretação de Chadwick resultaram na descoberta do nêutron. Tão importante quanto a descoberta foi a demonstração de que não havia elétrons no interior do núcleo, algo que praticamente toda a comunidade científica imaginava existir. No entanto, durante o fenômeno conhecido como decaimento beta, um nêutron se transforma (decai) em um próton e um elétron1 1 É importante notar que em seu trabalho [10], Heisenberg não considerou uma terceira partícula no estado final, o neutrino, cuja existência havia sido sugerida por Wolfgang Pauli em 1930 [37]. , que é ejetado do núcleo sob a forma de uma partícula beta2 2 A partícula beta foi descoberta nas radiações de urânio por Rutherford [38], e identificada como sendo o elétron por Becquerel [39]. Desde então, convencionou-se denominar partícula beta, ou radiação beta, o elétron resultante de reações nucleares. A denominação elétron restringe-se aos fenômenos atômicos. [16[16] dos Santos C.A., Rev. Bras. Ensino Física 46, e20240020 (2024).]. Investigar essa questão foi o principal objetivo de Heisenberg naquele trabalho de 1932.

Entre as várias suposições feitas por Heisenberg, vamos destacar aquelas que têm a ver com a ideia de força de troca. Ele começa supondo que, se prótons e nêutrons estão a uma distância comparável às dimensões nucleares, então, de modo similar ao caso da molécula H2, deverá haver uma força de troca entre eles. Inicialmente ele teve essa ideia supondo a existência de um “elétron” no núcleo, que ficaria mudando de posição entre o próton e o nêutron. Mas, já no parágrafo seguinte ele diz que é melhor admitir que essa força de troca é uma propriedade fundamental do par próton-nêutron, sem a necessidade de recorrer a um movimento de elétron no interior do núcleo. Assim como na mecânica clássica obtemos energia a partir de um certo tipo de integral envolvendo a força, no modelo de Heisenberg a integral da força de troca resulta na energia de troca, J(r), que depende da distância, r, entre o próton e o nêutron. De modo análogo, a interação entre nêutrons é representada pela energia K(r). Já entre prótons, o termo incluído na Hamiltoniana é a própria repulsão coulombiana entre eles.

Para encaminhar a formalização do problema, Heisenberg supôs que J(r) e K(r) tendem rapidamente para zero quando r passa de 10−12 cm, ou seja, quando eles estão separados por uma distância dez vezes maior do que raio do núcleo. Além disso, para valores de r abaixo desse valor, J(r) < K(r). Ou seja, a atração entre prótons e nêutrons é maior do que entre nêutrons. Cada partícula é caracterizada pelas suas posições, x, y e z, pela quantidade de movimento, pk, pelo spin na direção z, σz, e por um número, ϱζ. Quando esse número é igual +1(−1), a partícula é um nêutron(próton). Para definir a função hamiltoniana do núcleo, levando em conta a transição de um próton(nêutron) em um nêutron(próton), Heisenberg usou um complexo artifício matemático baseado em matrizes 2 × 2, ϱkξ, ϱkη, ϱkζ, ϱlξ, ϱlη, ϱlζ. Quando há transformação de prótons em nêutrons, ou vice-versa, a diferença de massas aparece na forma de energia, representada por Heisenberg pela letra D.

Embora a discussão detalhada da função obtida por Heisenberg esteja fora do escopo do presente artigo, por uma questão de completeza e para facilitar a narrativa que segue, convém fazermos uma apreciação qualitativa da hamiltoniana de Heisenberg:

(2)H= 12Mkpk212k>lJ(rkl)(ϱkξϱlξ+ϱkηϱlη)14k>lK(rkl)(1+ϱkζ)(1+ϱlζ)++14k>le2rkl(1ϱkζ)(1ϱlζ)12Dk(1+ϱkζ).

O primeiro termo na eq. (2) é bastante conhecido. Trata-se da energia cinética das partículas. O segundo termo representa a energia potencial de troca na interação próton-nêutron. O terceiro termo representa a energia de atração entre dois nêutrons. O quarto termo corresponde à repulsão coulombiana entre dois prótons, e o quinto termo representa a diferença de massa do nêutron em relação ao próton, em unidades de energia. Quando um nêutron desaparece, surge um próton. A diferença de massa entre eles aparece sob a forma de energia. É exatamente algo assim que acontece no decaimento beta [16[16] dos Santos C.A., Rev. Bras. Ensino Física 46, e20240020 (2024).].

Heisenberg inicia sua análise da eq. (2) desprezando os três últimos termos. Ou seja, ele começa considerando apenas a energia cinética das partículas e a energia de troca na interação entre prótons e nêutrons, para o caso de um núcleo com n partículas, sendo n1 nêutrons e n2 prótons. Sua sofisticada argumentação, que supera o nível de conhecimento que estamos considerando, o conduziu à seguinte conclusão: a situação mais estável desse sistema, aquela que resulta na menor energia, ocorre quando há aproximadamente a mesma quantidade de nêutrons e prótons. Heisenberg ainda comenta que quando se leva em conta também os dois últimos termos da hamiltoniana que haviam sido desprezados, a situação de maior estabilidade favorece um maior número de nêutrons.

Depois de chegar a essa conclusão, Heisenberg passa a analisar o caso improvável de um núcleo constituído unicamente de nêutrons3 3 Um sistema assim foi proposto sete anos depois, em 1939, e é atualmente uma realidade no cenário da astronomia com a denominação de estrela de nêutrons [40]. . Ele apresenta uma instrutiva discussão, cujos fundamentos básicos podem ser apreciados por quem passou pela disciplina de física moderna da graduação em física. Por causa do terceiro termo na eq. (2), que representa a atração entre os nêutrons, pode-se dizer que esse núcleo é altamente estável, uma vez que teríamos que gastar energia para retirar um nêutron do seu interior. No entanto, ganharíamos energia se colocássemos um próton no lugar do nêutron. É esse tipo de reação que ocorre no decaimento beta. Um nêutron dá lugar a um próton, e uma partícula beta é emitida pelo núcleo. Heisenberg sugere que o fenômeno resulta da ação de um campo de força sobre o nêutron. Talvez seja esta a primeira vez em que alguém sugere a existência de um campo nuclear similar ao campo eletromagnético. A ideia avançaria com os trabalhos de Yukawa [7[7] H. Yukawa, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 17, 48 (1935)., 14[14] H. Yukawa e S. Sakata, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 19, 1084 (1937)., 15[15] H. Yukawa, S. Sakata e M. Taketani, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 20, 319 (1938).].

Heisenberg investigou o balanço de energia nesse tipo de transformação de um nêutron em um próton, em função da relação entre o número de nêutrons e o de prótons no interior de um núcleo, n1/n2, e mostrou que, se esta razão cai abaixo de determinado valor crítico, a repulsão coulombiana entre os prótons atinge um valor tão alto, que o núcleo passa a emitir espontaneamente partículas alfa. Então, em vez de um decaimento beta, teremos um decaimento alfa. Heisenberg determina, empiricamente, a curva n1/n2 que representa núcleos estáveis, lembrando que devido a outros detalhes da estrutura nuclear, essa curva tem valor apenas qualitativo na definição dos limites para a ocorrência dos decaimentos alfa e beta.

A discussão que Heisenberg apresenta a partir da curva n1/n2 está acima do escopo deste artigo, mas é de grande relevância para nossa compreensão a respeito desses dois importantes fenômenos nucleares, decaimentos alfa e beta, observados nas diversas séries radioativas [17[17] A.G. Maddock, Q. Rev. Chem. Soc. 5, 270 (1951).]. Dependendo do valor de n1/n2, ocorre um ou outro decaimento. Heisenberg mostra que há um ponto na curva para o qual o valor de n1/n2 define a estabilidade nuclear. Há casos também nos quais o núcleo decai emitindo partículas alfa e beta simultaneamente.

No segundo artigo de 1932 [11[11] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 78, 156 (1932).] e no de 1933 [12[12] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 80, 587 (1933).], Heisenberg aprofunda as questões discutidas acima. Esses aprofundamentos não serão aqui discutidos porque estão fora do escopo da transposição didática pretendida neste trabalho.

3. A Interação de Troca de Majorana

Antes de apresentar o trabalho de Majorana sobre esse assunto [13[13] E. Majorana, Zeitschrift Für Phys. 82, 137 (1933).], apresentarei o contexto histórico no qual o trabalho foi realizado. Esse relato mostra bem a complexa e singular personalidade de Ettore Majorana, descrita em extensa literatura [16[16] dos Santos C.A., Rev. Bras. Ensino Física 46, e20240020 (2024)., 18[18] L. Sciascia, Majorana Desapareceu (Rocco, Rio de Janeiro, 1991)., 19[19] J. Magueijo, A Brilliant Darkness (Basic Books, New York, 2009)., 20[20] E. Klein, En Cherchant Majorana: Le Physicien Absolu (Flammarion, Paris, 2013).]. Logo que tomou conhecimento do artigo publicado por Irène e Frédéric Joliot-Curie, em janeiro de 1932 [21[21] V. Nesvizhevsky e J. Villain, Comptes Rendus Phys. 18, 592 (2017).], Majorana percebeu que o casal francês tinha se equivocado na interpretação do experimento, que consistia, inicialmente, em bombardear berílio com partículas alfa. O resultado foi descrito a partir da reação

(3)24He+49Be613C+γ.

Ou seja, segundo os autores o bombardeio resultava na produção de carbono e de “raios gama” altamente energéticos. O casal Joliot-Curie imaginou que esses “raios gama” poderiam produzir transmutação. Para testar a hipótese, eles colocaram diferentes materiais na frente dos raios γ e terminaram obtendo a ejeção de prótons de materiais ricos em hidrogênio, como a parafina. Seus cálculos mostravam que prótons de 5 MeV eram espalhados, via efeito Compton, por raios γ de 50 MeV, um valor jamais medido para esse tipo de radiação. Majorana deduziu que o “raio gama” era, na verdade, o “próton neutro”, uma partícula que Rutherford havia previsto em 1919 [22[22] E. Rutherford, Proc. Roy. Soc. A 97, 374 (1920).]. Fermi insistiu para que Majorana publicasse sua conclusão, mas ele rejeitou a ideia. Alguns dias depois Chadwick publicou o artigo que é considerado como a descoberta do nêutron [23[23] J. Chadwick, Nature 129, 312 (1932).].

Majorana continuou analisando a estrutura do núcleo, composto apenas por prótons e nêutrons [19[19] J. Magueijo, A Brilliant Darkness (Basic Books, New York, 2009)., 20[20] E. Klein, En Cherchant Majorana: Le Physicien Absolu (Flammarion, Paris, 2013)., 24[24] E. Recami, Electron. J. Theor. Phys. 3, 1 (2006)., 25[25] R. Pucci e G.G.N. Angilella, Found. Phys. 36, 1554 (2006).], e, em poucos dias elaborou uma teoria para mostrar como prótons e nêutrons interagiam para formar o núcleo. Ele fez isso antes das publicações de Heisenberg. Fermi percebeu a importância daquela teoria e tentou convencê-lo a publicar. Obediente à sua personalidade refratária, Majorana disse que sua teoria nem era tão boa assim, nem estava “madura” para publicação. Desesperado, Fermi perguntou-lhe se podia apresentar seus resultados em uma conferência que estava prevista para o mês de julho, em Paris, cuja temática era o estado atual da física do núcleo atômico. Majorana o proibiu de fazer isso. No início de junho daquele ano, 1932, Heisenberg submeteu seu primeiro artigo à Zeitschrift für Physik [10[10] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 77, 1 (1932).]. No início de julho, na conferência de Paris, Fermi ignorou a proibição de Majorana e deu aos presentes o conhecimento dos seus resultados. Deve ter sido ali que ele acertou com Heisenberg e Bohr uma futura visita de Majorana.

No dia 19 de julho de 1932, o artigo de Heisenberg é publicado. Quando Fermi mostra a Majorana a oportunidade que ele perdeu de ter saído na frente, ele ouve do grande inquisidor4 4 Entre o pessoal do Instituto de Física da Universidade de Roma, “papa” era o apelido de Fermi. Majorana era o “grande inquisidor”. : melhor assim, Heisenberg já fez o serviço, não preciso mais publicar.

A alternativa de Fermi foi convencê-lo a visitar Heisenberg, em Leipzig, e Bohr, em Copenhague. Conseguiu uma bolsa do Consiglio Nazionale delle Ricerche para financiar a estadia de Majorana no exterior durante seis meses, começando por Leipzig, aonde ele chegou no dia 20 de janeiro. A autoridade de Heisenberg se impôs, e já em março de 1933, Majorana envia para a Zeitschrift für Physik seu trabalho intitulado “Sobre a teoria do núcleo atômico” [13[13] E. Majorana, Zeitschrift Für Phys. 82, 137 (1933).]. Para se ter ideia da importância desse artigo, basta saber que, em 1935, Heisenberg publica o artigo “A estrutura dos núcleos atômicos leves” [26[26] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 96, 473 (1935).], no qual faz uma extensa análise do trabalho de Majorana, comparando seus resultados com os de outros pesquisadores da época. Pelo seu nível de detalhamento, esse artigo de Heisenberg não será analisado na presente transposição didática.

O texto de Majorana tem a marca do grande cientista e sábio narrador do seu ofício. A partir de um cenário fenomenológico simples e profundo, ele aborda questões complexas com estratégias inovadoras. Ele começa apresentando o cenário definido por Heisenberg, a partir da discussão dos elementos presentes na Eq. (2). Ele mostra que o valor da interação entre prótons e nêutrons é muito maior do que a atração entre nêutrons e do que a energia resultante da diferença de massa entre prótons e nêutrons. Portanto, essencialmente, o que se deve buscar é a interação entre prótons e nêutrons, que Heisenberg denominou interação de troca, acrescida da energia cinética das partículas e da repulsão eletrostática entre prótons. Na sua abordagem, Majorana mostra que não há necessidade de se levar em conta o spin das partículas, como fez Heisenberg. Tudo o que é necessário são as coordenadas das partículas.

A partir desse ponto, a abordagem de Majorana é bem diferente daquela apresentada por Heisenberg. Enquanto este usa seus cálculos baseados em matrizes, Majorana usa funções de onda, uma abordagem similar à de Schrödinger [5[5] E. Schrödinger, Phys. Rev. 28, 1049 (1926).]. Ele define a função de onda do núcleo como sendo o produto das funções de onda dos prótons e dos nêutrons, ambas dependentes exclusivamente das posições das partículas, Q e q, ou seja,

(4)ψ=ψN(Q)ψP(q).

Majorana mostra que, a partir da Eq. (4) obtém-se para a interação entre prótons e nêutrons uma expressão similar àquela obtida por Heisenberg, mas com duas diferenças fundamentais:

  1. no modelo de Heisenberg, Q e q incluem as posições e os spins das partículas;

  2. no modelo de Majorana, há uma saturação na força de troca, de modo que, em distâncias próximas aos raios das partículas a força passa a ser repulsiva para resguardar a impenetrabilidade das partículas.

A partir desses princípios, Majorana calcula a energia total do sistema,

(5)W=T+E+A,
e investiga as condições nas quais ela é mínima. Na eq. (5), T é a energia cinética das partículas, E é a energia de repulsão eletrostática entre dois prótons, e A é a energia de troca próton-nêutron. Para simplificar os cálculos, Majorana considera apenas o caso no qual são pares os números de prótons e nêutrons. Os cálculos de T, E e A envolvem conceitos acima do nível exigido nas disciplinas de graduação em física, de modo que será apresentada apenas uma discussão qualitativa, apropriada para a transposição didática que aqui se propõe. É suficiente aqui destacar os dois resultados fundamentais obtidos por Majorana:

  1. a densidade de nucleons (prótons ou nêutrons) é aproximadamente a mesma para todos os núcleos;

  2. a energia de ligação por nucleon é aproximadamente a mesma para todos os núcleos.

Esses resultados têm a ver com um processo de saturação da densidade e da energia de ligação, que Heisenberg não percebeu na sua abordagem.

Para além das diferenças formais nas abordagens de Heisenberg e Majorana, há um detalhe que aparentemente passou despercebido por parte dos autores que analisaram os trabalhos de Majorana, excetuando Renato Pucci e colaboradores [25[25] R. Pucci e G.G.N. Angilella, Found. Phys. 36, 1554 (2006).] e Salvatore Esposito [27[27] S. Esposito, Eur. Phys. J. 27, 1147 (2006).]. O detalhe refere-se à denominação “força de ressonância”, que Majorana usava, em alguns trechos do seu trabalho, em vez de força de troca. Essa é uma visão do problema que o distingue de Heisenberg e de todos aqueles que abordaram o assunto. Uma busca no Google Acadêmico mostra que a expressão “resonance force” jamais foi usada em estudos referente ao núcleo atômico entre 1930 e 1960.

Heisenberg e Majorana começam estudando o núcleo tendo como modelo o trabalho publicado por Heitler e London sobre a molécula H2+ [9[9] W. Heitler e F. London, Zeitschrift Für Phys. 44, 455 (1927).], conforme detalhamento apresentado na introdução. Majorana viu, na forma da abordagem de Heitler e London, uma semelhança com o processo de ressonância atômica, razão pela qual ele eventualmente usava a expressão “força de ressonância”, em vez de “força de troca” [27[27] S. Esposito, Eur. Phys. J. 27, 1147 (2006).]. Inspirado em uma figura publicada por Pucci e Angilella [25[25] R. Pucci e G.G.N. Angilella, Found. Phys. 36, 1554 (2006).], montei as ilustrações da Figura 2 para sugerir as analogias entre física atômica, física molecular e física nuclear referentes ao processo de ressonância.

Figura 2
Representação esquemática do fenômeno de ressonância: (a) na física atômica; (b) na física molecular; (c) na física nuclear.

Na Figura 2a, uma radiação com determinada energia induz a passagem de um elétron no estado inicial, i, para o estado final, f, sendo a diferença de energia entre os dois estados igual à energia da radiação. Aproximadamente 10−8 segundos depois, o elétron retorna ao estado inicial, e o átomo emite uma radiação com a mesma energia da radiação incidente. Esse é o fenômeno conhecido como ressonância atômica. Na Figura 2b, tem-se uma representação para o caso da física molecular. Especificamente para o caso da molécula H2+, com dois prótons e um elétron. Em determinado momento, o elétron orbita em torno do próton 1; no momento seguinte, ele passa a orbitar em torno do próton 2. Ao longo do tempo, o elétron fica nesse vaivém entre os dois prótons. O fenômeno é análogo ao caso atômico. No caso nuclear (Figura 2c), um próton transforma-se em um nêutron, e na sequência esse nêutron pode se transformar em um próton. Não há registro de explicação fornecida por Majorana, mas acredita-se que ele viu nesse processo uma analogia com a ressonância no caso da física molecular, razão pela qual ele interpretou a força de troca como sendo uma força de ressonância.

Em 1934, o cenário era basicamente esse apresentado acima, um cenário que Miller [28[28] A.I. Miller, Phys. Today 38, 60 (1985).] classificou como o início da física nuclear. Em novembro daquele ano, Yukawa envia para publicação o primeiro artigo da sua trilogia “Sobre a interação de partículas elementares”, que podemos considerar como o início da física de partículas elementares.

4. O Méson de Yukawa

Será apresentada aqui uma transposição didática a partir de três trabalhos publicados por Hideki Yukawa [7[7] H. Yukawa, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 17, 48 (1935).], Yukawa e Shoichi Sakata [14[14] H. Yukawa e S. Sakata, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 19, 1084 (1937).], e Yukawa, Sakata e Mitsuo Taketani [15[15] H. Yukawa, S. Sakata e M. Taketani, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 20, 319 (1938).]. É curioso que Yukawa só vai mencionar Majorana a partir do segundo artigo, e, mesmo assim, ele não dá a referência do artigo de Majorana. É provável que Yukawa não tenha tomado conhecimento do artigo de Majorana quando ele submeteu o seu trabalho, em novembro de 1934.

Antes da apresentação dos trabalhos de Yukawa e colaboradores, é importante mencionar três breves trabalhos, dois de Tamm [29[29] I. Tamm, Nature 133, 981 (1934)., 30[30] I. Tamm, Nature 134 (1934).] e um de Iwanenko [31[31] D. Iwanenko, Nature 133, 981 (1934).], todos publicados em 1934. Além de Fermi e Heisenberg, Yukawa cita Tamm e Iwanenko no artigo de 1935, no qual ele apresenta os fundamentos da trilogia “Sobre a interação de partículas elementares”. Embora essencialmente qualitativos, esses trabalhos impressionam pela precisão conceitual a respeito da força de troca. Não é possível afirmar que se Yukawa não tivesse publicado seu trabalho de 1935, Tamm e Iwanenko chegariam à teoria do méson. Mas, esses trabalhos mostram que eles estavam no caminho. De acordo com Tamm [29[29] I. Tamm, Nature 133, 981 (1934).]:

(…) o papel das partículas leves (Campo ψ) proporcionando uma interação entre partículas pesadas corresponde exatamente ao papel dos fótons (campo eletromagnético), proporcionando uma interação entre elétrons (…) [Tradução minha].

Já Iwanenko afirma [31[31] D. Iwanenko, Nature 133, 981 (1934).]:

Como elétrons e pósitrons são expelidos dos núcleos em algumas reações, podemos tentar tratar essas partículas leves como os fótons emitidos pelos átomos. Então, a interação de partículas pesadas (prótons, nêutrons) pode ser considerada como ocorrendo através de partículas leves descritas pelas equações de um campo ψ da mesma maneira como a interação coulombiana ocorre através de um campo eletromagnético, ou fótons [Tradução minha].

Esse campo ψ não é outra coisa senão o campo de força, assim definido por Yukawa [7[7] H. Yukawa, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 17, 48 (1935).]:

Agora, tal interação entre as partículas elementares pode ser descrita por meio de um campo de força, assim como a interação entre partículas carregadas é descrita pelo campo eletromagnético [Tradução minha].

Nos dois trabalhos seguintes [14[14] H. Yukawa e S. Sakata, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 19, 1084 (1937)., 15[15] H. Yukawa, S. Sakata e M. Taketani, Proc. Physico-Mathematical Soc. Japan. 3rd Ser. 20, 319 (1938).], Yukawa e colaboradores dedicam-se ao aperfeiçoamento do método e suas aplicações em vários problemas que, na época, eram objeto de estudo de vários pesquisadores. Pela especificidade e complexidade das abordagens dos dois últimos artigos, tratarei aqui apenas do artigo I.

No artigo I, Yukawa menciona Heisenberg [10[10] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 77, 1 (1932).] e Fermi [32[32] E. Fermi, Zeitschrift Für Phys. 88, 161 (1934).] para dizer que pouco se sabe sobre a natureza da interação de partículas elementares, e que as energias de ligação calculadas pelos dois autores são muito menores do que os valores experimentais. Em função dessa constatação, ele propõe modificar as teorias de Heisenberg e Fermi. Em primeiro lugar, ele não considera o nêutron como simplesmente “um nêutron”; para ele, o nêutron é uma partícula no estado de nêutron, assim como o próton é uma partícula no estado de próton. Para Yukawa, a transição de uma partícula pesada de um estado para outro, por exemplo, de nêutron para próton, e vice-versa, nem sempre é acompanhada pela emissão de partículas leves, como um neutrino e um elétron, como previsto na teoria do decaimento beta de Fermi. Eventualmente, a energia envolvida na transição aparece sob a forma de outra partícula pesada. Para chegar a essa conclusão, Yukawa elabora sua teoria do campo nuclear. Na verdade, ele não menciona a expressão “campo nuclear” em nenhum dos três artigos. Ele diz que “a interação entre as partículas elementares pode ser descrita por meio de um campo de força, assim como a interação entre partículas carregadas é descrita pelo campo eletromagnético.” A expressão “campo nuclear”, em vez de campo de força, só foi usada em 1938, por Nicholas Kemmer [33[33] N. Kemmer, Nature 141, 116 (1938).]. Na sequência, adotarei a expressão campo nuclear.

Na formalização da sua teoria, Yukawa orientou-se pelo que ele sabia a respeito do campo eletromagnético. Ou seja, o campo nuclear, U, deveria obedecer a uma equação de onda igual àquela obedecida pelo campo eletromagnético:

(6)2x2+2y2+2z21c22t2U=0

Por trás da ideia simples, há uma montanha de complexas equações, que Yukawa resolveu para chegar à previsão do méson e ganhar o Nobel de Física de 1949.

Diferentemente do campo eletromagnético, cuja força cai com 1/r2, no campo nuclear a força deve ter um componente de curto alcance, que cai mais rapidamente, i.e., com 1/r. Yukawa modificou a eq. (6) para incluir esse fator de curto alcance, escrevendo

(7)2x2+2y2+2z21c22t2λ2U=0.

A partir da eq. (7), Yukawa fez uma série de complexas considerações quânticas e chegou a um hamiltoniano equivalente àquele obtido por Heisenberg, eq. (2). Na sequência, ele mostra que, como prótons e nêutrons obedecem à estatística de Fermi (spin semi-inteiros), o quantum associado ao campo U deverá obedecer à estatística de Bose, com spin inteiro. O quantum associado ao campo eletromagnético é o fóton. Yukawa não deu um nome ao quantum associado ao campo nuclear. Isso foi feito por Bhabha, em 1939 [34[34] H.J. Bhabha, Proc. R. Soc. London. Ser. A. Math. Phys. Sci. 172, 384 (1939).], que o chamou de méson, porque sua massa, 1/10 da massa do próton, conforme Yukawa mostrara, era intermediária, entre a do elétron e a do próton. Yukawa também mostrou que o méson pode ter carga +e ou −e.

Ao discutir a não-observação do méson, Yukawa realiza alguns cálculos e sugere que talvez ele não pudesse ser observado fora do núcleo. No entanto, já em 1937, Oppenheimer e Serber propuseram a existência de mésons em raios cósmicos. Dez anos depois, eles foram detectados por Lattes e colaboradores em raios cósmicos [35[35] C.M. Lattes, H. Muirhead, G.P. Occhialini e C.F. Powell, Nature 159, 694 (1947).], e, em 1948, Gardner e Lattes produziram o méson-pi em laboratório [36[36] E. Gardner e C.M.G. Lattes, Science 107, 270 (1948).]. Em 1950, Cecil Frank Powell, líder do grupo que participou da primeira observação em 1947, ganhou o Prêmio Nobel de Física “pelo desenvolvimento do método fotográfico de estudo dos processos nucleares e pelas suas descobertas sobre mésons feitas com este método”.

5. Comentários Finais

Tendo como foco central o contexto histórico do desenvolvimento do conceito de interação de troca, desde seu uso na física molecular, passando pela sua aplicação na física nuclear, em estudos referentes à estabilidade do núcleo via interação próton-nêutron, e culminando com o advento da descoberta do méson e o início da física de partículas elementares, apresenta-se aqui uma transposição didática dos artigos seminais pertinentes ao tema. O nível da transposição é consistente com disciplinas de física moderna e teoria quântica ofertadas na graduação em física, bem como da disciplina sobre física contemporânea ofertada no Mestrado Nacional Profissional em Ensino de Física (MNPEF).

O texto enfatiza as contribuições de Heisenberg, Majorana e Yukawa para o desenvolvimento da área e estabelece o cenário em que se passa da física nuclear para a física de partículas elementares, surgidas quase ao mesmo tempo.

Do ponto de vista pedagógico, tanto na graduação quanto no MNPEF, o texto oportuniza uma discussão sobre a passagem do que conhecemos como física moderna, a fase que vai até meados dos anos 1920, para a física contemporânea, com as aplicações da física nuclear e as recentes pesquisas na área da física das partículas elementares.

Agradecimentos

Agradecimento ao Prof. Luiz Fernando Ziebell pela cuidadosa revisão do texto original.

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  • 1
    É importante notar que em seu trabalho [10[10] W. Heisenberg, Zeitschrift Für Phys. 77, 1 (1932).], Heisenberg não considerou uma terceira partícula no estado final, o neutrino, cuja existência havia sido sugerida por Wolfgang Pauli em 1930 [37[37] A. Franklin, emml: Proc. Int. Conf. Hist. Neutrino 1930-2018, editado por Cribier M., Dumarchez J. e D. Vignaud (Paris, 2018), pp. 1–12.].
  • 2
    A partícula beta foi descoberta nas radiações de urânio por Rutherford [38[38] E. Rutherford, London, Edinburgh, Dublin Philos. Mag. J. Sci. 47, 109 (1899).], e identificada como sendo o elétron por Becquerel [39[39] H. Becquerel, J. Phys. Theor. Appl. 9, 190 (1900).]. Desde então, convencionou-se denominar partícula beta, ou radiação beta, o elétron resultante de reações nucleares. A denominação elétron restringe-se aos fenômenos atômicos.
  • 3
    Um sistema assim foi proposto sete anos depois, em 1939, e é atualmente uma realidade no cenário da astronomia com a denominação de estrela de nêutrons [40[40] F. Zwicky, Phys. Rev. 55, 726 (1939).].
  • 4
    Entre o pessoal do Instituto de Física da Universidade de Roma, “papa” era o apelido de Fermi. Majorana era o “grande inquisidor”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2024
  • Revisado
    24 Abr 2024
  • Aceito
    05 Jun 2024
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