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Integrando aspectos conceituais, epistêmicos e procedimentais em uma atividade didática acerca da Equação de Calor de Fourier voltada a formaçãode professores

Integrating conceptual, epistemic, and procedural aspects in a didactic activity on Fourier’s Heat Equation in the context of Physics teachers’ training

Resumos

De uma forma geral, pode-se entender que os objetivos de unidades didáticas estão associados ou à promoção da aprendizagem conceitual e procedimental (o que é tipicamente trabalhado no Ensino de Física) ou ao desenvolvimento de aspectos epistêmicos (como entender a Natureza da Ciência) e socioemocionais. Embora todas essas dimensões sejam importantes, dificilmente encontramos trabalhamos que integrem os diferentes campos. No presente trabalho, propomos uma unidade didática com o objetivo de promover aprendizagem conceitual, epistêmica e procedimental em relação à Equação do Calor de Fourier. Na atividade proposta, três momentos são construídos: um primeiro momento em que os alunos trabalham com uma fonte histórica primária e a analisam utilizando o conceito de hipótese científica; um segundo, em que se constrói um modelo computacional para uma barra aquecida; e um terceiro, em que os dados de um experimento de aquecimento de uma barra são contrastados com predições do modelo teórico construídas na modelagem computacional. Fornecemos no apêndice e em links disponibilizados ao longo do texto todos os materiais necessários para implementação da unidade. Esperamos, com isso, contribuir para um Ensino de Física mais orgânico, em que diferentes dimensões da aprendizagem sejam integradas em uma mesma proposta pedagógica.

Palavras-chave:
Modelagem científica; história da ciência; ensino de termodinâmica


In a general sense, it can be understood that the objectives of didactic units are associated either with the promotion of conceptual and procedural learning (typical of Physics Education) or with the development of epistemic aspects (such as understanding the Nature of Science) and socioemotional skills. Although all these dimensions are important, it is rare to find works that integrate the different fields. In the present study, we propose a didactic unit with the aim of promoting conceptual, epistemic, and procedural learning regarding Fourier’s Heat Equation. In the proposed activity, three moments are constructed: a first moment in which students work with a primary historical source and analyze it using the concept of scientific hypothesis; a second moment in which a computational model for a heated rod is constructed; and a third moment in which the data from an experiment heating a rod are contrasted with predictions of the theoretical model constructed in the computational modeling. We provide in the appendix and in links available throughout the text all the necessary materials for the implementation of the unit. We hope, with this, to contribute to a more organic Physics Education, in which different dimensions of learning are integrated into the same pedagogical proposal.

Keywords:
Scientific modelling; History of Science; Teaching of Thermodynamics


1. Introdução

A área de Pesquisa em Ensino de Física tem, cada vez mais, ampliado os objetivos associados às propostas didáticas e ao currículo de Física, sobretudo no contexto da Educação Básica e na formação de professores. Seroglou e Koumaras [1[1] F. Seroglou e P. Koumaras, em: Science Education and Culture, editado por F. Bevilacqua, E. Giannetto e M.R. Matthews (Springer Dordrecht, Berlim, 2001).], por exemplo, identificam quatro grandes domínios em que as atividades propostas podem afetar: conceitual, metacognitivo (que aqui chamaremos de epistêmico), emocional e procedimental.

A dimensão conceitual envolve o que, talvez, seja o foco mais tradicional do ensino de física, o ensino de conceitos e do formalismo matemático. A dimensão epistêmica, por sua vez, ou o que os autores chamam de metacognitiva, envolve uma reflexão sobre como a ciência funciona, como ela se relaciona com a sociedade, e como se desenvolve ao longo do tempo. A dimensão emocional envolve a análise de fatores socioemocionais, como crença de autoeficácia, resiliência, entre outros. E, por fim, a dimensão procedimental está conectada com o desenvolvimento de capacidades tipicamente operacionais, como aquelas necessárias em práticas experimentais ou na resolução de problemas.

Pode-se perceber, ainda, que essas quatro dimensões podem ser agrupadas em duas grandes áreas. Aspectos emocionais e epistêmicos envolvem fatores tipicamente sociais e que são tratados em disciplinas das humanidades, enquanto os fatores conceituais e procedimentais são mais tradicionalmente trabalhados na própria área de ciências exatas. No âmbito das pesquisas em ensino de Física, encontramos trabalhos tanto voltados ao uso de história da ciência enquanto meio para a aprendizagem de conceitos de Física [2[2] R. Karam e N.W. Lima, em: Connecting Research in Physics Education with Teacher Education 3, editado por J. Guisasola e E. McLoughlin (The International Commission on Physics Education, Dublin, 2022).] quanto para a promoção do entendimento de questões relacionadas à natureza da ciência [3[3] A. Guerra, Revista Brasileira de Ensino de Ciências e Matemática 4, 1083 (2021).]. Olhando em específico para a Revista Brasileira de Ensino de Física, encontramos apenas um trabalho voltado ao entendimento tanto de questões conceituais quanto epistêmicas acerca do episódio envolvendo a equação do calor de Fourier [4[4] A. Pifer e K.M. Aurani, Revista Brasileira de Ensino de Física 37, 1603 (2015).].

Nesse contexto, o problema sobre o qual nos debruçamos é o seguinte: qual estrutura e quais características pode ter uma unidade didática de Termodinâmica, usada na formação de professores, que integre as duas áreas mencionadas (envolvendo elementos tipicamente trabalhados nas áreas de humanidades e exatas)? Diante disso, nosso objetivo, no presente trabalho, é apresentar uma proposta didática sobre a Equação do Calor de Fourier, que integra aspectos epistêmicos, conceituais e procedimentais, para ser utilizada no contexto de cursos de licenciatura em Física. Para tanto, por um lado, o trabalho dialoga com a área de pesquisa de História, Filosofia e Ensino de Ciências; por outro, com a área de pesquisa sobre integração entre modelagem científica e experimentação no ensino de física.

Mais especificamente no contexto de história, filosofia e ensino de ciências e, portanto, da abordagem de aspectos epistêmicos, partimos do pressuposto de que um objetivo fundamental da Educação Básica (e, portanto, da formação de professores) é promover a reflexão sobre a Natureza da Ciência [5[5] F. Abd-El-Khalick e N.G. Lederman, Int J Sci Educ 22, 665 (2000).]. Há, na literatura especializada, diferentes formas de se fazer isso: seja pela discussão de uma lista consensual de característica da ciência, uso de teoria de semelhança familiar, ou a proposta de “ciência integral” [6[6] C.B. Moura, A. Guerra e T. Camel, Pesquisa em Educação em Ciências 22, e15631 (2020).]. No presente trabalho, partimos da proposta de Lima e Heidemann [7[7] N.W. Lima e L.A. Heidemann, Revista Brasileira de Ensino de Física 45, e20220330 (2023).], que propõe discutir as hipóteses subjacentes a um trabalho histórico para avaliar o funcionamento da ciência e sua relação com a sociedade. Essa proposta será discutida brevemente na descrição da atividade.

Por outro lado, no contexto do desenvolvimento de fatores conceituais e epistêmicos, o presente trabalho parte de propostas sobre modelagem científica e sua integração com a experimentação. Existe uma vasta literatura na área que preconiza o uso de modelagem como método para o aprendizado de Física [8[8] J. Rosária, Enseñanza de las Ciencias 24, 173 (2006)., 98[9] R.S. Justi e J.K. Gilbert, Int J Sci Educ 24, 369 (2002)., 10[10] D. Hodson, Int J Sci Educ 36, 2534 (2014).] bem como a integração da modelagem com aspectos experimentais [11[11] M.S. Silva, L.A. Heidemann e R.R. Campomanes, Revista Brasileira de Ensino de Física 45, e20230082 (2023)., 12[12] L.A. Heidemann, I.S. Araujo e E.A. Veit, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 33, 3 (2016)., 13[13] P.F.T. Dorneles, Araujo I.S. e Veit E.A., Ciência & Educação 18, 99(2012)., 14[14] T. Jong, M.C. Linn e Z.C. Zacharia, Science 340, 305 (2013)., 15[15] G. Olympiou e Z.C. Zacharia, em: Research on E-Learning and ICT in Education (Springer Cham, Berlim, 2018).].

Dessa forma, apresentamos uma proposta em que alunos partem de um texto histórico sobre a equação de calor de Fourier, para analisar as hipóteses subjacentes ao trabalho do autor, e – na sequência – desenvolvem um modelo computacional de uma barra aquecida. Por fim, é feito um experimento de forma que os alunos podem contrastar a previsão teórica com os resultados experimentais. A apresentação da proposta didática como um todo é introduzida na Seção 2 2. Considerações Sobre a Atividade Proposta A atividade, como um todo, foi organizada em três grandes momentos, tendo como objetivo integrar o desenvolvimento de fatores epistêmicos, conceituais e procedimentais. Embora os fatores emocionais não sejam diretamente abordados ou investigados no presente trabalho, a escolha por uma abordagem histórica parte dos resultados de pesquisas na área de Ensino de Física, que indicam um impacto positivo na atitude dos alunos em relação a ciência por meio de tal abordagem [16]. Assim, o trabalho foi construído também levando em conta o seu impacto positivo em fatores socioemocionais. No primeiro momento, os estudantes trabalham com um texto histórico original escrito por Fourier e traduzido para o Português pelos pesquisadores. No segundo momento, os alunos desenvolvem um modelo para uma barra aquecida e resolvem a equação numericamente usando recursos computacionais. No terceiro momento, os alunos coletam dados em um experimento com uma barra aquecida, a fim de fazer o confronto entre evidência experimental e predição (ou somente analisam os dados coletados e disponibilizados pelos pesquisadores, caso não haja disponibilidade de realizar o experimento no contexto didático). Uma síntese desses três momentos está na Tabela 1. Tabela 1 Estrutura geral dos momentos da atividade, sua descrição e objetivos. Momento Descrição Objetivo Principal fator trabalhado 1° momento Estudo histórico a partir de uma fonte primária Identificar as hipóteses articuladas pelo autor e a ideia geral defendida acerca do conceito de calor Epistêmico 2° momento Modelagem computacional Articular as hipóteses acerca do calor na elaboração de um modelo para a equação do calor fazendo uso de uma planilha eletrônica Conceitual/ Procedimental 3° momento Atividade Experimental Realizar uma atividade experimental e verificar o modelo elaborado e as hipóteses articuladas Procedimental/ Conceitual Chamamos atenção para o fato de que cada momento trabalha predominantemente um fator (epistêmico, conceitual e procedimental, respectivamente), mas isso não significa que os outros fatores também não sejam explorados naquele momento. Por exemplo, ao fazer a análise do estudo histórico, os alunos irão discutir como a ciência funciona, mas também estão aprendendo sobre o significado da equação do calor (dimensão conceitual). Ao realizar o experimento, os alunos estão desenvolvendo fatores procedimentais, mas também estão refletindo sobre o significado da equação do calor (conceitual) e sobre como a ciência funciona (epistêmico). Assim, cada momento tem um fator ou dimensão privilegiada, ainda que outros fatores possam estar presentes. Na sequência, descrevemos cada um dos momentos. . Na Seção 3 3. Referencial Teórico O referencial teórico será apresentado em três seções: estudo histórico, modelagem científica e atividade experimental. 3.1. Estudo histórico Para o estudo histórico desenvolvido no primeiro momento, recorremos ao uso de uma fonte primária e, desta forma, agimos em consonância com as considerações metodológicas propostas por Karam [17]. Nesse sentido, antes da leitura da fonte, deve-se, em linhas gerais, apresentar aos estudantes os conceitos articulados na fonte e contextualizar o período histórico em que essa se situa. Junto disso, também é importante apresentar aos estudantes os objetivos gerais envolvidos na leitura da fonte, o que se almeja identificar e investigar. A fonte escolhida para a atividade consiste do prefácio da obra Teoria Analítica do Calor (1878) de J. Fourier [7], na qual o autor argumenta acerca dos fenômenos do calor e das hipóteses articuladas na construção desse conceito1. Antes da leitura da fonte, apresenta-se o conceito de calor e contextualiza-se o período histórico em que Fourier desenvolveu seus trabalhos. Por fim, solicita-se aos estudantes que busquem identificar no texto as hipóteses articuladas por Fourier. Após a leitura, é apresentado aos estudantes o modelo de classificação de hipóteses proposto por Lima e Heidemann [7], no qual as hipóteses são classificadas de acordo com sua natureza e seu papel na estrutura lógica da teoria. O modelo é apresentado na seção seguinte na qual exemplificamos o primeiro momento e apresentamos uma discussão sobre o texto de Fourier que pode subsidiar a discussão em sala de aula. Após essa apresentação, os estudantes são divididos em grupos e têm como tarefa discutir as hipóteses identificadas e classificá-las de acordo com o modelo apresentado. Ao final do primeiro momento, os grupos devem apresentar sua classificação para os demais e, junto ao professor, buscar estabelecer uma classificação consensual da turma para as hipóteses identificadas. 3.2. Modelagem científica Após o primeiro momento os estudantes partem para a construção de um modelo para a equação do calor. O processo de construção de modelos científicos, ou seja, de construção de representações de objetos e eventos, demanda uma série de transformações do que se representa. Essas transformações envolvem simplificações (um sistema tridimensional passa a ser descrito como unidimensional, por exemplo), a definição de idealizações (desprezam-se efeitos considerados pequenos) e escolhas sobre as características dos modelos (definição, por exemplo, dos parâmetros e variáveis que serão abarcadas). A compreensão do processo de modelagem engloba, portanto, o entendimento dessas transformações e representações, implicando não somente o aprendizado conceitual sobre o que se está estudando, mas também o desenvolvimento de procedimentos que permitam a representação da realidade e sua análise por uma teoria física. A inserção desses objetivos no ensino de ciência, para além do ensino conceitual tradicional, envolve uma série de desafios e potencialidades amplamente abordados na literatura [8, 9, 10]. No presente trabalho, os alunos devem modelar o processo de aquecimento de uma barra metálica. Além dos desafios inerentes a esse processo de modelagem, a resolução da equação de calor é feita de forma numérica (usando método de diferenças finitas) para o caso da barra, valendo-se de uma ferramenta computacional, o que traz especificidades para o processo de ensino e aprendizagem. Discussões detalhadas sobre aspectos pedagógicos e epistemológico do uso de simulações computacionais podem ser encontradas na literatura especializada [18, 19, 20, 21, 22]. Ainda, é possível encontrar trabalhos sobre o uso de modelagem computacional em cursos de termodinâmica [23]. No presente trabalho, por simplicidade, optamos por resolver a equação do calor numericamente, usando métodos finitos, valendo-se de planilhas eletrônicas. Embora esse método pudesse ser aplicado em linguagens mais robustas, como C ou Python, o uso de planilhas eletrônicas é especialmente interessante de ser introduzido na licenciatura, de forma que os futuros professores possam se valer dessa ferramenta em suas aulas na Educação Básica. O uso de planilhas eletrônicas no Ensino de Física vem também sendo discutido por vários autores [24, 25, 26, 27]. 3.3. Atividade experimental No terceiro momento, adentramos a dimensão experimental dos conhecimentos desenvolvidos ao longo da atividade. As atividades experimentais no ensino de Física desempenham um importante papel no processo de aprendizagem dos conceitos bem como no desenvolvimento de fatores procedimentais (coletar dados, avaliar erros, etc) [28]. Na literatura encontramos diferentes propostas envolvendo atividades experimentais no Ensino de Física, cada uma com seus respectivos objetivos e abordagens. Nesse contexto, encontramos propostas de atividades experimentais que recorrem ao uso da plataforma Arduino [29]; atividades realizadas a partir de materiais de baixo custo e pautadas na história da ciência [30]; trabalhos voltados a construção de equipamentos para demonstrações experimentais em diferentes cenários [31]. No presente trabalho, a atividade experimental proposta consiste em obter medidas de temperatura em uma barra metálica utilizando sensores eletrônicos acoplados a uma placa Arduino. Demais propostas de atividades experimentais voltadas ao ensino de calorimetria também podem ser encontradas [32, 33]. O objetivo dos estudantes na atividade proposta no presente trabalho consiste em produzir gráficos a partir das medidas coletadas para as variações de temperatura ao longo da barra e uma representação do perfil de calor durante o processo. Após isso, os estudantes devem comparar os gráficos obtidos a partir das medidas e os obtidos a partir do modelo elaborado no momento anterior para a elaboração do relatório final da atividade. , apresentamos a primeira parte da proposta, em que é apresentado o estudo histórico. Na Seção 4 4. Primeiro Momento: Estudo Histórico No primeiro momento temos a atividade voltada a leitura da fonte histórica e a classificação das hipóteses de Fourier esquematizada como mostra a Figura 1. Figura 1 Sequência das etapas relacionadas ao primeiro momento da atividade. Na próxima subseção, vamos expor o texto de Fourier e a classificação de suas hipóteses a fim de subsidiar a discussão em sala de aula. 4.1. A equação do calor e as hipótesesde J. Fourier A equação do calor foi desenvolvida por J. Fourier em 1822. Da forma como entendemos hoje, ela é uma equação diferencial parcial contendo uma derivada primeira em relação ao tempo e uma derivada segunda em relação às coordenadas espaciais, que nos permite analisar a propagação da energia na forma de calor em meios materiais. Pode ser escrita, de forma genética:(1)∂T∂t=D∇2T,onde D é um coeficiente de difusão considerado constante, T é a temperatura no ponto investigado e t, o tempo. O coeficiente D é dado pela razão entre a condutividade térmica e o produto da densidade de massa e o calor específico do material. Fourier apresenta a equação na obra Teoria Analítica do Calor junto de uma extensa discussão acerca da Natureza da Ciência, da realidade e da relação entre filosofia natural e a matemática. O autor salienta a não redutibilidade dos efeitos do calor às leis da mecânica, afirmando que estes compõem uma classe totalmente nova de fenômenos2. Mesmo de posse de inúmeros dados experimentais, medições de muitos dos fenômenos envolvendo os efeitos do calor. Fourier diz ainda não existir uma demonstração matemática para as leis que incluam todos os dados. Assim, afirma que o objetivo de seu trabalho é justamente o de apresentar as leis por ele deduzidas para os efeitos do calor, fazendo isso a partir da constatação de três ‘fatos gerais’ observados empiricamente: Para fundar a teoria, foi necessário, em primeiro lugar, distinguir e definir com precisão as propriedades elementares que determinam a ação do calor. Eu então percebo que todos os fenômenos que dependem desta ação se resolvem em um número muito pequeno de fatos gerais e simples; onde cada problema físico deste tipo é trazido de volta para uma investigação de análise matemática. A partir desses fatos gerais, tenho concluído que, para determinar numericamente os mais variados movimentos de calor, é suficiente submeter cada substância a três observações fundamentais. Corpos diferentes, de fato, não possuem no mesmo grau poder para conter o calor, para receber ou transmitir calor através de suas superfícies, nem conduzi-lo através do interior de suas massas. Estas são as três qualidades específicas que nossa teoria distingue e mostra claramente como medir (Fourier, 1878, p. 2, tradução nossa). A partir dessas observações, Fourier relaciona a natureza dos fenômenos com sua descrição matemática, argumentando que a matemática é a linguagem mais universal, limpa e livre de erros possível para a descrição dos fenômenos naturais. No entanto, salienta que tal linguagem não necessariamente afirma sobre a natureza destes fenômenos, mas sim sobre a descrição de seu comportamento. Para o autor, o estudo dos fenômenos naturais constitui uma rica fonte para descobertas matemáticas. Isto é, enquanto a matemática nos permite descrever os fenômenos naturais, estes permitem a matemática desenvolver-se cada vez mais profundamente. Profundo estudo da natureza é a fonte mais fértil de descobertas matemáticas. Esse estudo não tem a oferecer apenas determinado objeto de estudo, a vantagem de excluir perguntas vagas e cálculos sem problema; está além de um método seguro de formar a própria análise e de descobrir elementos que nos interessa saber, e que as ciências naturais devem sempre preservar: estes são os elementos fundamentais que são reproduzidos em todos os efeitos naturais (Fourier, 1878, p. 7, tradução nossa). Nos trechos acima, podemos observar algumas das questões que permeiam o desenvolvimento da equação de calor de Fourier. Para não nos estendermos mais, devido ao grande volume de questões a serem apresentadas aqui, vamos nos ater aos exemplos apresentados acima. Propõe-se que quatro questões norteadoras sejam respondidas ao final da leitura pelos estudantes, sendo elas as seguintes: Qual é a concepção de natureza da ciência de Fourier? Isto é, como o cientista deve proceder? Quais os valores da ciência? Para Fourier, qual a relação entre filosofia natural e matemática? Para Fourier, a Termodinâmica seria redutível à mecânica? Justifique. Quais são os parâmetros necessários, segundo Fourier, para descrever o “movimento” do calor em um corpo material? As questões têm por objetivo auxiliar os estudantes na identificação e classificação das hipóteses a serem desenvolvidas na sequência. É nesse contexto que Lima e Heidemann [7] propõem um modelo de classificação de hipóteses no qual essas são entendidas enquanto proposições que vão além das evidências, que excedem o conteúdo empírico dos eventos experienciados. O modelo proposto por Lima e Heidemann para classificação de hipóteses é baseado em dois principais eixos: sua natureza e seu papel na estrutura lógica de uma teoria. Segundo os autores, tal categorização pode favorecer o entendimento acerca do processo de criação da ciência e a comparação entre diferentes propostas teóricas a partir de suas hipóteses centrais. Quanto a sua natureza, assume-se que hipóteses se distinguem em proposições cosmovisivas e proposições voltadas ao fenômeno. Por hipóteses cosmovisivas, entende-se aquelas que não são voltadas ao fenômeno em específico, mas a afirmações ontológicas e epistemológicas mais amplas acerca da realidade e de nossa capacidade de apreensão desta. Nisso encontram-se questões como “a realidade é assumida independente da consciência pelo autor?” e “o autor assume ser possível conhecer a realidade?”. Isto é, questões que não versam sobre um fenômeno em específico, mas sim sobre o entendimento do autor sobre a realidade e as formas com que podemos acessá-la. Por outro lado, hipóteses voltadas ao fenômeno são divididas em duas subcategorias: hipóteses ontológicas e representacionais. Essas, por sua vez, são voltadas aos entes discutidos por uma teoria ou modelo. Hipóteses ontológicas são aquelas voltadas à realidade dos entes articulados pela teoria, ou seja, como tal elemento da realidade é ou deve se comportar. Já as hipóteses representacionais são entendidas como voltadas à representação do fenômeno à luz de uma teoria, nas quais este sofre uma transformação para que possa ser estudado. Quanto ao papel das hipóteses na estrutura lógica de uma teoria, os autores partem de duas principais distinções: hipóteses a priori, assumidas como verdadeiras logo de início, e hipóteses de demais ordens, assumidas ao longo do processo teórico de elaboração de uma teoria. Isso é, os autores focam no momento em que a hipótese é adotada no desenvolvimento de uma teoria e qual seu papel nela. Desta forma, temos hipóteses enquanto axiomas iniciais, axiomas assumidos posteriormente e derivações. Um processo teórico parte de hipótese iniciais, como leis gerais a priori; em meio ao seu desenvolvimento aparecem novas questões (relacionadas tanto a fatores internos quanto externos da teoria) que implicam na necessidade de novas hipóteses; e, por fim, se obtém novos conhecimentos a partir da derivação dos axiomas anteriores. Na Tabela 2, sintetizamos a caracterização de hipóteses e as questões norteadoras propostas pelos autores. Tabela 2 Categorias para a classificação de hipóteses segundo Lima e Heidemann (2023). Categoria Pergunta norteadora Hipóteses Natureza Cosmovisiva O que o autor afirma sobre a realidade e o conhecimento? Ontológica Sobre quais entes ele fala e como ele descreve esses entes? Representacional Quais simplificações e representações ele faz para poder resolver o problema a que se propõe? Papel Axiomas iniciais Quais hipóteses o autor assume a priori? Axiomas posteriores Quais hipóteses são assumidas ao longo do trabalho? Derivações Quais são as afirmações do autor obtidas a partir do desenvolvimento teórico-matemático das hipóteses anteriores? A partir dessa categorização, é possível discutir o papel das diferentes hipóteses envolvidas em uma teoria na apreensão da realidade. Junto disso, podemos relacionar as hipóteses com elementos contextuais de sua época, como relação com o contexto social e correntes de pensamento. É importante ressaltarmos, também, que a proposta dos autores não é dada como uma estrutura fixa, podendo ser adaptada de acordo com o contexto e propósito da atividade. Após a apresentação inicial, os estudantes devem se dividir em grupos e discutir acerca das hipóteses identificadas no texto de Fourier, tomando como referência a estrutura da tabela 2 e os conceitos expostos pelo professor. Por fim, os grupos devem apresentar sua classificação para os demais, argumentando e justificando suas escolhas. Após as apresentações, os grupos são desfeitos e o professor assume a discussão visando estipular uma classificação consensual para as hipóteses articuladas por Fourier, assim como suas relações com o contexto da época. Tomando como referência o exemplo apresentado por Lima e Heidemann ao elaborar sua proposta, o qual consiste do mesmo episódio escolhido para nossa atividade, podemos classificar as hipóteses de Fourier conforme a Figura 2. Figura 2 Classificação de Lima e Heidemann (2023) para as hipóteses articuladas por Fourier. As hipóteses classificadas pelos autores podem ser identificadas no texto de Fourier. Por exemplo, no trecho a seguir, podemos identificar o destaque dado pelo autor na incompatibilidade da descrição mecânica com os fenômenos envolvendo o calor: Mas qualquer que seja a gama de teorias mecânicas, elas não se aplicam aos efeitos do calor. Esses compõem uma ordem especial dos fenômenos, que não pode ser explicada pelos princípios de movimento e equilíbrio (Fourier, 1878, p. 2, tradução nossa). No próximo trecho, Fourier destaca o papel da matemática enquanto linguagem mais simples e universal possível: As equações analíticas, desconhecidas dos antigos geômetras, que Descartes foi o primeiro a introduzir no estudo das curvas e superfícies, não se restringem às propriedades das figuras, e aquelas propriedades que são o objeto da mecânica racional; elas se estendem a todos os fenômenos gerais. Não pode haver um idioma mais universal e mais simples, mais livre de erros e de obscuridades, ou seja, mais dignas de expressar relações invariáveis das coisas naturais (Fourier, 1878, p. 7, tradução nossa). Por fim, no trecho a seguir, Fourier afirma que as leis do calor não repousam sobre hipóteses acerca de sua natureza, sendo essas obtidas a partir de dados observados empiricamente: Os princípios da teoria são derivados, assim como os da mecânica racional, a partir de um número muito pequeno de fatos primários, cujas causas não são consideradas pelos geômetras, mas quais eles admitem como resultados de observações comuns confirmadas por todos os experimentos (Fourier, 1878, p. 6, tradução nossa). Em alguns casos, a hipótese não é explicitamente exposta, mas indicada nas entrelinhas. Cabe, nesses casos, a interpretação do professor do episódio em questão, sempre de acordo com o referencial adotado. Novamente, por questões de espaço não vamos nos ater a todos os trechos que indicam as hipóteses classificadas, os quais ficam a cargo do professor. Ao final do primeiro momento, os estudantes devem entregar as questões referentes ao texto e a classificação elaborada pelo grupo. , apresentamos o desenvolvimento do modelo computacional para uma barra aquecida. E, na Seção 5 5. Segundo Momento: Modelagem Computacional De forma geral, no presente momento, o objetivo da atividade consiste em elaborar um modelo a partir da equação do calor utilizando de uma planilha eletrônica. De início, apresenta-se aos estudantes o método de diferenças finitas para a resolução de equações diferenciais em planilhas eletrônicas, a qual possibilita a obtenção de soluções numéricas para a equação do calor. Após isso, é solicitado aos estudantes que configurem suas planilhas de acordo com o método e elaborem um modelo para a difusão do calor em uma barra metálica, aplicando a situações exemplares. Os estudantes devem, então, dimensionar a barra na planilha, configurar as fontes térmicas com as temperaturas e posições solicitadas para essa situação, impor as condições de contorno adequadas, e produzir uma predição para o processo de termalização da barra nos diferentes cenários propostos. 5.1. Modelando a difusão do calor em umaplanilha eletrônica No segundo momento começamos por retomar as discussões desenvolvidas no momento anterior, em especial as hipóteses identificadas utilizadas por Fourier na obtenção de sua equação. A equação obtida por Fourier gira em torno de três principais propriedades, isto é, a capacidade de um corpo conter, transmitir e difundir calor, como podemos observar no trecho a seguir Corpos diferentes, de fato, não possuem no mesmo grau poder para conter o calor, para receber ou transmitir calor através de suas superfícies, nem conduzi-lo através do interior de suas massas. Estas são as três qualidades específicas que nossa teoria distingue e mostra claramente como medir (Fourier, 1878, p. 2, tradução nossa). Podemos, de forma simplificada, obter a equação da seguinte forma: Energia é uma propriedade que, como a massa e a carga, deve sempre se conservar. Isso significa que a energia deve obedecer a equação da continuidade, isto é, definido o vetor corrente de energia J→, que indica a quantidade de energia por unidade de área por unidade tempo que atravessa uma região do espaço, tem-se que(2)∇⋅J→=−∂ρenergia∂t Em que ρenergia é a densidade de energia. Além disso, pode-se fazer a suposição adicional de que a corrente de energia é proporcional ao negativo do gradiente de temperatura:(3)J→=−k∇T Ou seja, a equação 3 indica que a energia na forma de calor é transportada da região de maior temperatura para a de menor temperatura. Chamamos a constante de proporcionalidade k de condutividade térmica. Aplicando o divergente dos dois lados da equação 3 e usando a expressão 2:(4)∂ρenergia∂t=k∇2T Por fim, se estamos lidando com um intervalo de temperatura em que o calor específico é constante, tem-se que δQ = mcdT e, a densidade de energia transportada, é δρenergia = ρcdT, em que ρ é a densidade de massa e c é o calor específico. A equação 4 pode, então, ser escrita como(5)∂T∂t=kρc∇2T A equação 5 é, dessa forma, a equação do calor. Comparando equação 5 com a equação 1, vemos que elas são estruturalmente idênticas. Com isso, determinamos a difusividade térmica em função dos demais parâmetros térmicos: (6) D = k ρ c Se resgatarmos o texto de Fourier, podemos adaptar sua discussão para os três fatores que encontramos na equação 6: “conter energia” (c), transmitir calor (k) e difundir internamente (D). Deve-se, claro, entender que, hoje, não faz sentido a expressão “conter calor”, visto que calor é uma variável de processo. Mesmo assim, podemos perceber que ideias embrionárias sobre como entendemos a equação de calor hoje já estavam presentes no texto de Fourier. A partir disso, para possamos modelar a equação e resolvê-la numericamente é necessário propor um modelo e adaptar a expressão de acordo com o método utilizado para sua solução. Vamos explorar aqui um modelo científico em que uma barra metálica é considerada unidimensional, homogênea e com laterais isoladas (pode receber ou ceder energia apenas pelas suas extremidades). Ainda, considerou-se o caso de coeficiente de difusão constante, o que é factível para pequenas variações na temperatura. Para a simulação desse modelo, na planilha eletrônica, começamos por identificar as funções a serem inseridas. Como a equação do calor possui uma derivada primeira em relação ao tempo e uma derivada segunda em relação às coordenadas espaciais, recorremos ao método de solução de diferenças finitas. Assim, para o nosso caso, temos que:(7)dT(t)dt=T(t+Δt)−T(t)Δt,e(8)d2T(x)dx2=T(x+Δx)−2T(x)+T(x−Δx)Δx2. Reescrevendo a equação do calor a partir do método, temos:(9)T(x,t+Δt)−T(x,t)Δt=D⋅T(x+Δx)−2T(x)+T(x−Δx)Δx2,e, assim:(10)T(x,t+Δt)= D⋅T(x+Δx)−2T(x)+T(x−Δx)Δx2⋅Δt+T(t). Definida a função para a temperatura a partir da equação do calor, passamos para a construção da planilha. Começamos por atribuir os valores de tempo na primeira coluna, com variação de 0.1s entre os valores. Na sequência, dimensionamos a barra nas células da planilha, tomando 10 unidades (células) como comprimento total e mais uma célula posicionada ao centro para a fonte térmica. Desta forma, nossa barra, centrada na fonte, vai de −5 a 5 unidades de comprimento. Apenas a título de exemplo, consideramos as temperaturas iniciais de 100 para o centro da barra e de 0 para os demais segmentos da barra, com coeficiente de difusão D = 0,2 (todas grandezas estão em unidades arbitrárias). Deve-se ter o cuidado de obedecer às condições de estabilidade para solução numérica da equação por métodos finitos, a dizer [34]:2DΔtΔx<1 Uma imagem dessa condição inicial está na Figura 3. Figura 3 Modelo de barra metálica aquecida por uma fonte térmica central no instante t=0. Para a temperatura da região central da barra, por exemplo, no instante t = 0.1, localizada na coluna H, temos = ((0, 2∗(G2 − 2∗H2 + I2))/1)∗$B3 + H2 como fórmula para a obtenção de seu valor numérico, em consonância com a equação 10. Neste caso, a expressão nos fornece o valor de temperatura para a célula escolhida, na qual 0,2 é o coeficiente de difusão, D, o termo G2−2 ∗ H2 + I2 corresponde a T(x + Δx) − 2T(x) + T(x − Δx) e o outro termo $B3 + H2 a Δt + T(t). Ainda, como modelamos a dimensão da barra a partir de unidades de valor 1, o termo Δx2 da equação 10 corresponde, aqui, a 1. Adaptando e replicando essa relação para os demais segmentos da barra, podemos obter valores numéricos para suas temperaturas em qualquer instante de tempo, até que o equilíbrio térmico seja atingido e todas as temperaturas se igualem. Nesse momento, é importante discutir com os alunos os possíveis tipos de condições de contorno, a dizer, uma barra com pontas com temperatura fixa, ou uma barra isolada. No caso da barra isolada, deve-se adaptar a equação 5 para que tenha fluxo somente na parte interna da barra, garantindo a conservação de energia. Para o presente caso, modelamos a barra com as pontas isoladas. Desta forma, podemos modelar o comportamento de uma barra metálica com a porção central aquecida (ver Figura 4). Figura 4 Modelo de barra metálica aquecida por uma fonte térmica central entre os instantes t = 0 e t = 1,6s. Após a construção da planilha contendo os valores numéricos para a situação proposta, os estudantes devem selecionar três instantes de tempo e construir um gráfico das temperaturas da barra para cada um, visando representar o processo de termalização da barra em três momentos distintos, como representados na Figura 5. Figura 5 Gráficos para a distribuição de temperatura ao longo da barra em três instantes diferentes obtido a partir do modelo elaborado. A primeira situação é a mais simples, pois tem como objetivo desenvolver a técnica de construção da planilha. Por essa razão, escolhemos 100 unidades de temperatura para a região central e 0 para os demais segmentos da barra. Ao todo, podem ser solicitadas três situações distintas para os estudantes. A primeira, exemplificada acima, consiste em posicionar uma porção mais quente o meio barra. A segunda, os estudantes devem repetir o processo, porém deixando uma ponta com temperatura constante (aquecida) e outra ponta isolada. Por fim, na terceira situação, os estudantes devem modelar uma situação mais próxima da realidade, considerando duas fontes térmicas com valores distintos, 90◦C e 60◦C, uma em cada extremidade da barra, temperatura inicial da barra em 21◦C e difusividade térmica de 98,8 mm2/s. Junto da planilha e dos gráficos, os estudantes devem supor a seguinte situação e responder a algumas perguntas: Suponha que você pretenda realizar um experimento para medir a condução de energia na forma de calor ao longo de uma barra metálica configurada de acordo com a situação três. A partir disso, disserte sobre: a) Como se dá o fluxo de energia na forma de calor nessa barra? Em quais sentidos? b) Como podemos medir esse fluxo? Que instrumentos de medida podem ser utilizados? c) Como podemos coletar e analisar os dados? Que fatores podem interferir nos dados? d) Desenhe um gráfico para a temperatura ao longo do tempo para três pontos da barra e depois um para o perfil de temperatura da barra em três momentos diferentes. As questões têm por objetivo sintetizar os conhecimentos articulados na atividade e contextualizá-los de acordo com a situação a ser replicada no experimento do terceiro momento. Além disso, os estudantes obtêm um modelo teórico para o experimento a ser realizado, o que permite elaborar hipóteses prévias ao experimento e comparar com os dados empíricos obtidos após ele. , apresentamos o experimento realizado. Na Seção 6 6. Terceiro Momento: Experimentação No início do terceiro momento é feito uma retomada dos dois momentos anteriores, no qual são relembradas as hipóteses iniciais de Fourier e discute-se o modelo desenvolvido no momento anterior junto das respostas as questões apresentadas. Após esse momento inicial, os estudantes são apresentados a atividade experimental a ser desenvolvida. No presente trabalho, o experimento a ser realizado consiste em obter medidas de temperatura ao longo de uma barra metálica enquanto a mesma é aquecida por duas fontes térmicas posicionadas uma em cada extremidade. O objetivo final é a produção de um gráfico para as variações de temperatura ao longo da barra e de um esquema que representa o perfil de calor no processo. 6.1. Medindo variações de temperatura em uma barra metálica A barra escolhida para o experimento (Figura 6) é composta por alumínio de pureza não identificada (idealizada como perfeitamente homogênea) e dimensões 480 × 35 × 2 mm (comprimento muito maior do que a largura, sendo assumida como unidimensional). Como procedimento de controle de variáveis pautado pelas idealizações assumidas na modelagem computacional, para reduzir a perda de energia para o ambiente, as laterais da barra foram parcialmente isoladas utilizando papelão e papel alumínio. Assim, o fato de uma dimensão da barra ser muito maior do que as demais (aproximadamente 13 vezes maior que uma dimensão, e 240 vezes maior do que a outra) indica a possibilidade de usarmos a representação unidimensional, considerando uma barra sólida com pequenas variações de temperatura, ainda podemos considerar o coeficiente de difusão constante ao longo da barra e ao longo do tempo. O uso do papelão e papel alumínio buscam garantir a validade da hipótese de isolamento térmico das laterais. Figura 6 Barra utilizada para o experimento com marcações de posição para os sensores de temperatura. Para realizar a medida dos valores de temperatura ao longo da barra, foram distribuídos cinco sensores de temperatura DS18B20 (cuja precisão é de 0,5◦C), em intervalos de 85 mm (Figuras 6 e 7), ligados a uma placa Arduino. Ainda, deixamos um segmento de 75 mm em cada extremidade da barra, antes do primeiro sensor, para acoplar a barra nas fontes térmicas. O programa desenvolvido para o Arduino encontra-se no Apêndice B. Figura 7 Barra utilizada para o experimento com os sensores de temperatura já dispostos e isolados por papel alumínio. As fontes utilizadas, posicionadas nas extremidades da barra, consistem de duas chapas de alumínio (mesmo da barra) de dimensões 75 0× 35 × 2 mm, aquecidas por lâmpadas incandescentes de potências 60 e 48 Watts. As lâmpadas são posicionadas no interior de um cilindro metálico e as chapas (as quais consideramos as fontes térmicas) na abertura superior do cilindro. Assim, ao serem acionadas as lâmpadas, temos o aquecimento das chapas (fontes), como mostra a Figura 8. Figura 8 Fonte térmica utilizada para o experimento e sua representação. A temperatura da fonte é controlada por outros dois sensores de temperatura DS18B20 posicionados nelas e dois relés acoplados às lâmpadas, automatizando seu acionamento e permitindo a configuração de diferentes valores de temperatura para as fontes. Pode-se configurar uma determinada temperatura fixa para os sensores que, quando não detectada, aciona o relé e ativa/desativa a lâmpada, mantendo, em certa medida, a temperatura da fonte constante. Após as fontes atingirem uma temperatura constante, as lâmpadas são desligadas e a barra é acoplada nelas, dando início ao processo de termalização com os sensores obtendo medições em intervalos de cinco segundos e registrando os valores no serial monitor do Arduino. O processo segue até que as temperaturas medidas se estabilizem e a barra fique em equilíbrio. Nas Figuras 9 e 10, temos um esquema representando a disposição do equipamento (Figura 9) e uma foto do experimento (Figura 10). Figura 9 Representação da disposição do equipamento indicando a posição das fontes e dos sensores. Figura 10 Foto do experimento pronto para a execução. 6.2. Análise dos dados Ao final, os dados registrados no serial monitor do Arduino são exportados para uma planilha eletrônica. Ainda, um sensor de temperatura e umidade foi adicionado ao sistema para controlar as condições ambientes. Na Figura 11, consta um exemplo da planilha contendo os valores obtidos3. Figura 11 Tabela com os valores obtidos na medição. À direita, o registro de tempo. Ao centro, o registro das temperaturas em cada sensor. À esquerda, registro de umidade do ar e temperatura para controle. Para contrastar o modelo teórico com os dados experimentos, modelamos uma barra unidimensional de 34 cm de comprimento (distância entre os sensores 2 e 6 na Figura 9) 10−5. Usamos o passo da simulação como Δx = 0, 0425m e Δt = 5s (o que garante a estabilidade da solução). Considerando que a barra é composta por uma liga de alumínio desconhecida, a análise da literatura especializada nos possibilitou estimar a condutibilidade térmica em 150 W/m.◦C (alinhado com a série 300 de ligas de alumínio, conforme [27]). A densidade de massa de 2,68.106 g/m3 e o calor específico de 0,963 J/g.◦C adotados são valores típicos para o alumínio encontrados na literatura, o que nos possibilita estimar a difusividade térmica do material em 5,81.10−5 m2/s. Os resultados para quatro instantes de tempo distintos podem ser observados na Figura 124 Figura 12 Perfil de temperatura para barra aquecida: modelo teórico representado pela linha contínua vermelha, dados experimentais em azul. Foram apresentados os resultados para t = 0s, t = 100s, t = 200s e t = 300s. Percebe-se que há uma concordância entre os dados experimentais e a predição pelo menos até o tempo de 200 s. A partir desse momento, o centro da barra, segundo o modelo teórico, aquece mais rapidamente do que o que se constata nos dados experimentais. Essa diferença possivelmente se deve ao fato de que o isolamento da barra não é perfeito, impedindo que os pontos centrais aqueçam tão rapidamente quanto o previsto pelo modelo teórico, em que se considera a barra isolada nas laterais. Dessa forma, podemos afirmar que – para os materiais utilizados – o modelo proposto é adequado para representar aproximadamente o aquecimento da barra em seu período inicial5. , apresentamos nossas considerações finais. Nos apêndices, o leitor pode encontrar os materiais necessários para reproduzir ou adaptar essa atividade em seu próprio contexto didático.

2. Considerações Sobre a Atividade Proposta

A atividade, como um todo, foi organizada em três grandes momentos, tendo como objetivo integrar o desenvolvimento de fatores epistêmicos, conceituais e procedimentais. Embora os fatores emocionais não sejam diretamente abordados ou investigados no presente trabalho, a escolha por uma abordagem histórica parte dos resultados de pesquisas na área de Ensino de Física, que indicam um impacto positivo na atitude dos alunos em relação a ciência por meio de tal abordagem [16[16] C. Winrich e P. Garik, Sci Educ 30, 1099 (2021).]. Assim, o trabalho foi construído também levando em conta o seu impacto positivo em fatores socioemocionais.

No primeiro momento, os estudantes trabalham com um texto histórico original escrito por Fourier e traduzido para o Português pelos pesquisadores. No segundo momento, os alunos desenvolvem um modelo para uma barra aquecida e resolvem a equação numericamente usando recursos computacionais. No terceiro momento, os alunos coletam dados em um experimento com uma barra aquecida, a fim de fazer o confronto entre evidência experimental e predição (ou somente analisam os dados coletados e disponibilizados pelos pesquisadores, caso não haja disponibilidade de realizar o experimento no contexto didático). Uma síntese desses três momentos está na Tabela 1.

Tabela 1
Estrutura geral dos momentos da atividade, sua descrição e objetivos.

Chamamos atenção para o fato de que cada momento trabalha predominantemente um fator (epistêmico, conceitual e procedimental, respectivamente), mas isso não significa que os outros fatores também não sejam explorados naquele momento. Por exemplo, ao fazer a análise do estudo histórico, os alunos irão discutir como a ciência funciona, mas também estão aprendendo sobre o significado da equação do calor (dimensão conceitual). Ao realizar o experimento, os alunos estão desenvolvendo fatores procedimentais, mas também estão refletindo sobre o significado da equação do calor (conceitual) e sobre como a ciência funciona (epistêmico). Assim, cada momento tem um fator ou dimensão privilegiada, ainda que outros fatores possam estar presentes. Na sequência, descrevemos cada um dos momentos.

3. Referencial Teórico

O referencial teórico será apresentado em três seções: estudo histórico, modelagem científica e atividade experimental.

3.1. Estudo histórico

Para o estudo histórico desenvolvido no primeiro momento, recorremos ao uso de uma fonte primária e, desta forma, agimos em consonância com as considerações metodológicas propostas por Karam [17[17] R. Karam, Revista Brasileira de Ensino de Ciências e Matemática 4, 1067 (2021).]. Nesse sentido, antes da leitura da fonte, deve-se, em linhas gerais, apresentar aos estudantes os conceitos articulados na fonte e contextualizar o período histórico em que essa se situa. Junto disso, também é importante apresentar aos estudantes os objetivos gerais envolvidos na leitura da fonte, o que se almeja identificar e investigar. A fonte escolhida para a atividade consiste do prefácio da obra Teoria Analítica do Calor (1878) de J. Fourier [7[7] N.W. Lima e L.A. Heidemann, Revista Brasileira de Ensino de Física 45, e20220330 (2023).], na qual o autor argumenta acerca dos fenômenos do calor e das hipóteses articuladas na construção desse conceito1 1 O texto completo do prefácio traduzido para o portugês pode ser consultado em: http://www.if.ufrgs.br/gpef/modelagem/equacao_calor/. . Antes da leitura da fonte, apresenta-se o conceito de calor e contextualiza-se o período histórico em que Fourier desenvolveu seus trabalhos. Por fim, solicita-se aos estudantes que busquem identificar no texto as hipóteses articuladas por Fourier.

Após a leitura, é apresentado aos estudantes o modelo de classificação de hipóteses proposto por Lima e Heidemann [7[7] N.W. Lima e L.A. Heidemann, Revista Brasileira de Ensino de Física 45, e20220330 (2023).], no qual as hipóteses são classificadas de acordo com sua natureza e seu papel na estrutura lógica da teoria. O modelo é apresentado na seção seguinte na qual exemplificamos o primeiro momento e apresentamos uma discussão sobre o texto de Fourier que pode subsidiar a discussão em sala de aula. Após essa apresentação, os estudantes são divididos em grupos e têm como tarefa discutir as hipóteses identificadas e classificá-las de acordo com o modelo apresentado. Ao final do primeiro momento, os grupos devem apresentar sua classificação para os demais e, junto ao professor, buscar estabelecer uma classificação consensual da turma para as hipóteses identificadas.

3.2. Modelagem científica

Após o primeiro momento os estudantes partem para a construção de um modelo para a equação do calor. O processo de construção de modelos científicos, ou seja, de construção de representações de objetos e eventos, demanda uma série de transformações do que se representa. Essas transformações envolvem simplificações (um sistema tridimensional passa a ser descrito como unidimensional, por exemplo), a definição de idealizações (desprezam-se efeitos considerados pequenos) e escolhas sobre as características dos modelos (definição, por exemplo, dos parâmetros e variáveis que serão abarcadas). A compreensão do processo de modelagem engloba, portanto, o entendimento dessas transformações e representações, implicando não somente o aprendizado conceitual sobre o que se está estudando, mas também o desenvolvimento de procedimentos que permitam a representação da realidade e sua análise por uma teoria física. A inserção desses objetivos no ensino de ciência, para além do ensino conceitual tradicional, envolve uma série de desafios e potencialidades amplamente abordados na literatura [8[8] J. Rosária, Enseñanza de las Ciencias 24, 173 (2006)., 9[9] R.S. Justi e J.K. Gilbert, Int J Sci Educ 24, 369 (2002)., 10[10] D. Hodson, Int J Sci Educ 36, 2534 (2014).].

No presente trabalho, os alunos devem modelar o processo de aquecimento de uma barra metálica. Além dos desafios inerentes a esse processo de modelagem, a resolução da equação de calor é feita de forma numérica (usando método de diferenças finitas) para o caso da barra, valendo-se de uma ferramenta computacional, o que traz especificidades para o processo de ensino e aprendizagem. Discussões detalhadas sobre aspectos pedagógicos e epistemológico do uso de simulações computacionais podem ser encontradas na literatura especializada [18[18] M. Develaki, J Sci Educ Technol 28, 353 (2019)., 19[19] S. López, E.A. Veit e I.S. Araujo, Revista Brasileira de Ensino de Física 38, e2401 (2016)., 20[20] J. Weber e T. Wilhelm, Eur J Phys 41, 034003 (2020)., 21[21] I.M. Greca, E. Seoane e I. Arriassecq, Sci Educ 23, 897 (2014)., 22[22] L.K. Smetana e R.L. Bell, Int J Sci Educ 34, 1337 (2011).]. Ainda, é possível encontrar trabalhos sobre o uso de modelagem computacional em cursos de termodinâmica [23[23] C. Vieira, A.J. Magana, R.E. García, A. Jana e M. Krafcik, J Sci Educ Technol 27, 322 (2018).].

No presente trabalho, por simplicidade, optamos por resolver a equação do calor numericamente, usando métodos finitos, valendo-se de planilhas eletrônicas. Embora esse método pudesse ser aplicado em linguagens mais robustas, como C ou Python, o uso de planilhas eletrônicas é especialmente interessante de ser introduzido na licenciatura, de forma que os futuros professores possam se valer dessa ferramenta em suas aulas na Educação Básica. O uso de planilhas eletrônicas no Ensino de Física vem também sendo discutido por vários autores [24[24] J. Severn, Physics Education 34, 360 (1999)., 25[25] L. Webb, Educ P. 28, 77 (1993)., 26[26] M. Iqbal, F. Ahmed, A. Iqbal e Z. Uddin, Phys Educ 55, 063006 (2020)., 27[27] M. Lingard, Physics Education 38, 418 (2003).].

3.3. Atividade experimental

No terceiro momento, adentramos a dimensão experimental dos conhecimentos desenvolvidos ao longo da atividade. As atividades experimentais no ensino de Física desempenham um importante papel no processo de aprendizagem dos conceitos bem como no desenvolvimento de fatores procedimentais (coletar dados, avaliar erros, etc) [28[28] M.V. Pereira e M.C.A. Moreira, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 34, 265 (2017).]. Na literatura encontramos diferentes propostas envolvendo atividades experimentais no Ensino de Física, cada uma com seus respectivos objetivos e abordagens. Nesse contexto, encontramos propostas de atividades experimentais que recorrem ao uso da plataforma Arduino [29[29] I.N. Oliveira, J.A.P. Ramos, W.L. Silva, V.D. Chaves e C.A.O. Melo, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 37, 828 (2020).]; atividades realizadas a partir de materiais de baixo custo e pautadas na história da ciência [30[30] M.A.A. Monteiro, S.J. Carvalho, I.C.D.C. Monteiro e J.L. Cindra, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 35, 1004 (2018).]; trabalhos voltados a construção de equipamentos para demonstrações experimentais em diferentes cenários [31[31] O.H.M. Silva e C.E. Laburú, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 36, 514 (2019).].

No presente trabalho, a atividade experimental proposta consiste em obter medidas de temperatura em uma barra metálica utilizando sensores eletrônicos acoplados a uma placa Arduino. Demais propostas de atividades experimentais voltadas ao ensino de calorimetria também podem ser encontradas [32[32] F.S. Rocha, P.H. Guadagnini e M.M. Lucchese, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 34, 278 (2017)., 33[33] C.T.W. Rosa, Á.B. Rosa, M.A. Trentin e A.C. Giacomelli, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 33, 292 (2016).]. O objetivo dos estudantes na atividade proposta no presente trabalho consiste em produzir gráficos a partir das medidas coletadas para as variações de temperatura ao longo da barra e uma representação do perfil de calor durante o processo. Após isso, os estudantes devem comparar os gráficos obtidos a partir das medidas e os obtidos a partir do modelo elaborado no momento anterior para a elaboração do relatório final da atividade.

4. Primeiro Momento: Estudo Histórico

No primeiro momento temos a atividade voltada a leitura da fonte histórica e a classificação das hipóteses de Fourier esquematizada como mostra a Figura 1.

Figura 1
Sequência das etapas relacionadas ao primeiro momento da atividade.

Na próxima subseção, vamos expor o texto de Fourier e a classificação de suas hipóteses a fim de subsidiar a discussão em sala de aula.

4.1. A equação do calor e as hipótesesde J. Fourier

A equação do calor foi desenvolvida por J. Fourier em 1822. Da forma como entendemos hoje, ela é uma equação diferencial parcial contendo uma derivada primeira em relação ao tempo e uma derivada segunda em relação às coordenadas espaciais, que nos permite analisar a propagação da energia na forma de calor em meios materiais. Pode ser escrita, de forma genética:

(1)Tt=D2T,
onde D é um coeficiente de difusão considerado constante, T é a temperatura no ponto investigado e t, o tempo. O coeficiente D é dado pela razão entre a condutividade térmica e o produto da densidade de massa e o calor específico do material.

Fourier apresenta a equação na obra Teoria Analítica do Calor junto de uma extensa discussão acerca da Natureza da Ciência, da realidade e da relação entre filosofia natural e a matemática. O autor salienta a não redutibilidade dos efeitos do calor às leis da mecânica, afirmando que estes compõem uma classe totalmente nova de fenômenos2 2 A afirmação refere-se a disputa entre as duas teorias para o calor presentes na época, a teoria mecânica do calor, a qual, como afirma Fourier, buscava reduzir os efeitos do calor e leis mecânicas; e a teoria do calórico, na qual o calor constituía uma substância, o calórico, a qual todo corpo era dotado. . Mesmo de posse de inúmeros dados experimentais, medições de muitos dos fenômenos envolvendo os efeitos do calor. Fourier diz ainda não existir uma demonstração matemática para as leis que incluam todos os dados. Assim, afirma que o objetivo de seu trabalho é justamente o de apresentar as leis por ele deduzidas para os efeitos do calor, fazendo isso a partir da constatação de três ‘fatos gerais’ observados empiricamente:

Para fundar a teoria, foi necessário, em primeiro lugar, distinguir e definir com precisão as propriedades elementares que determinam a ação do calor. Eu então percebo que todos os fenômenos que dependem desta ação se resolvem em um número muito pequeno de fatos gerais e simples; onde cada problema físico deste tipo é trazido de volta para uma investigação de análise matemática. A partir desses fatos gerais, tenho concluído que, para determinar numericamente os mais variados movimentos de calor, é suficiente submeter cada substância a três observações fundamentais. Corpos diferentes, de fato, não possuem no mesmo grau poder para conter o calor, para receber ou transmitir calor através de suas superfícies, nem conduzi-lo através do interior de suas massas. Estas são as três qualidades específicas que nossa teoria distingue e mostra claramente como medir (Fourier, 1878, p. 2, tradução nossa).

A partir dessas observações, Fourier relaciona a natureza dos fenômenos com sua descrição matemática, argumentando que a matemática é a linguagem mais universal, limpa e livre de erros possível para a descrição dos fenômenos naturais. No entanto, salienta que tal linguagem não necessariamente afirma sobre a natureza destes fenômenos, mas sim sobre a descrição de seu comportamento. Para o autor, o estudo dos fenômenos naturais constitui uma rica fonte para descobertas matemáticas. Isto é, enquanto a matemática nos permite descrever os fenômenos naturais, estes permitem a matemática desenvolver-se cada vez mais profundamente.

Profundo estudo da natureza é a fonte mais fértil de descobertas matemáticas. Esse estudo não tem a oferecer apenas determinado objeto de estudo, a vantagem de excluir perguntas vagas e cálculos sem problema; está além de um método seguro de formar a própria análise e de descobrir elementos que nos interessa saber, e que as ciências naturais devem sempre preservar: estes são os elementos fundamentais que são reproduzidos em todos os efeitos naturais (Fourier, 1878, p. 7, tradução nossa).

Nos trechos acima, podemos observar algumas das questões que permeiam o desenvolvimento da equação de calor de Fourier. Para não nos estendermos mais, devido ao grande volume de questões a serem apresentadas aqui, vamos nos ater aos exemplos apresentados acima. Propõe-se que quatro questões norteadoras sejam respondidas ao final da leitura pelos estudantes, sendo elas as seguintes:

  1. Qual é a concepção de natureza da ciência de Fourier? Isto é, como o cientista deve proceder? Quais os valores da ciência?

  2. Para Fourier, qual a relação entre filosofia natural e matemática?

  3. Para Fourier, a Termodinâmica seria redutível à mecânica? Justifique.

  4. Quais são os parâmetros necessários, segundo Fourier, para descrever o “movimento” do calor em um corpo material?

As questões têm por objetivo auxiliar os estudantes na identificação e classificação das hipóteses a serem desenvolvidas na sequência. É nesse contexto que Lima e Heidemann [7[7] N.W. Lima e L.A. Heidemann, Revista Brasileira de Ensino de Física 45, e20220330 (2023).] propõem um modelo de classificação de hipóteses no qual essas são entendidas enquanto proposições que vão além das evidências, que excedem o conteúdo empírico dos eventos experienciados. O modelo proposto por Lima e Heidemann para classificação de hipóteses é baseado em dois principais eixos: sua natureza e seu papel na estrutura lógica de uma teoria. Segundo os autores, tal categorização pode favorecer o entendimento acerca do processo de criação da ciência e a comparação entre diferentes propostas teóricas a partir de suas hipóteses centrais.

Quanto a sua natureza, assume-se que hipóteses se distinguem em proposições cosmovisivas e proposições voltadas ao fenômeno. Por hipóteses cosmovisivas, entende-se aquelas que não são voltadas ao fenômeno em específico, mas a afirmações ontológicas e epistemológicas mais amplas acerca da realidade e de nossa capacidade de apreensão desta. Nisso encontram-se questões como “a realidade é assumida independente da consciência pelo autor?” e “o autor assume ser possível conhecer a realidade?”. Isto é, questões que não versam sobre um fenômeno em específico, mas sim sobre o entendimento do autor sobre a realidade e as formas com que podemos acessá-la. Por outro lado, hipóteses voltadas ao fenômeno são divididas em duas subcategorias: hipóteses ontológicas e representacionais. Essas, por sua vez, são voltadas aos entes discutidos por uma teoria ou modelo.

Hipóteses ontológicas são aquelas voltadas à realidade dos entes articulados pela teoria, ou seja, como tal elemento da realidade é ou deve se comportar. Já as hipóteses representacionais são entendidas como voltadas à representação do fenômeno à luz de uma teoria, nas quais este sofre uma transformação para que possa ser estudado. Quanto ao papel das hipóteses na estrutura lógica de uma teoria, os autores partem de duas principais distinções: hipóteses a priori, assumidas como verdadeiras logo de início, e hipóteses de demais ordens, assumidas ao longo do processo teórico de elaboração de uma teoria. Isso é, os autores focam no momento em que a hipótese é adotada no desenvolvimento de uma teoria e qual seu papel nela. Desta forma, temos hipóteses enquanto axiomas iniciais, axiomas assumidos posteriormente e derivações. Um processo teórico parte de hipótese iniciais, como leis gerais a priori; em meio ao seu desenvolvimento aparecem novas questões (relacionadas tanto a fatores internos quanto externos da teoria) que implicam na necessidade de novas hipóteses; e, por fim, se obtém novos conhecimentos a partir da derivação dos axiomas anteriores. Na Tabela 2, sintetizamos a caracterização de hipóteses e as questões norteadoras propostas pelos autores.

Tabela 2
Categorias para a classificação de hipóteses segundo Lima e Heidemann (2023).

A partir dessa categorização, é possível discutir o papel das diferentes hipóteses envolvidas em uma teoria na apreensão da realidade. Junto disso, podemos relacionar as hipóteses com elementos contextuais de sua época, como relação com o contexto social e correntes de pensamento. É importante ressaltarmos, também, que a proposta dos autores não é dada como uma estrutura fixa, podendo ser adaptada de acordo com o contexto e propósito da atividade. Após a apresentação inicial, os estudantes devem se dividir em grupos e discutir acerca das hipóteses identificadas no texto de Fourier, tomando como referência a estrutura da tabela 2 e os conceitos expostos pelo professor.

Por fim, os grupos devem apresentar sua classificação para os demais, argumentando e justificando suas escolhas. Após as apresentações, os grupos são desfeitos e o professor assume a discussão visando estipular uma classificação consensual para as hipóteses articuladas por Fourier, assim como suas relações com o contexto da época. Tomando como referência o exemplo apresentado por Lima e Heidemann ao elaborar sua proposta, o qual consiste do mesmo episódio escolhido para nossa atividade, podemos classificar as hipóteses de Fourier conforme a Figura 2.

Figura 2
Classificação de Lima e Heidemann (2023) para as hipóteses articuladas por Fourier.

As hipóteses classificadas pelos autores podem ser identificadas no texto de Fourier. Por exemplo, no trecho a seguir, podemos identificar o destaque dado pelo autor na incompatibilidade da descrição mecânica com os fenômenos envolvendo o calor:

Mas qualquer que seja a gama de teorias mecânicas, elas não se aplicam aos efeitos do calor. Esses compõem uma ordem especial dos fenômenos, que não pode ser explicada pelos princípios de movimento e equilíbrio (Fourier, 1878, p. 2, tradução nossa).

No próximo trecho, Fourier destaca o papel da matemática enquanto linguagem mais simples e universal possível:

As equações analíticas, desconhecidas dos antigos geômetras, que Descartes foi o primeiro a introduzir no estudo das curvas e superfícies, não se restringem às propriedades das figuras, e aquelas propriedades que são o objeto da mecânica racional; elas se estendem a todos os fenômenos gerais. Não pode haver um idioma mais universal e mais simples, mais livre de erros e de obscuridades, ou seja, mais dignas de expressar relações invariáveis das coisas naturais (Fourier, 1878, p. 7, tradução nossa).

Por fim, no trecho a seguir, Fourier afirma que as leis do calor não repousam sobre hipóteses acerca de sua natureza, sendo essas obtidas a partir de dados observados empiricamente:

Os princípios da teoria são derivados, assim como os da mecânica racional, a partir de um número muito pequeno de fatos primários, cujas causas não são consideradas pelos geômetras, mas quais eles admitem como resultados de observações comuns confirmadas por todos os experimentos (Fourier, 1878, p. 6, tradução nossa).

Em alguns casos, a hipótese não é explicitamente exposta, mas indicada nas entrelinhas. Cabe, nesses casos, a interpretação do professor do episódio em questão, sempre de acordo com o referencial adotado. Novamente, por questões de espaço não vamos nos ater a todos os trechos que indicam as hipóteses classificadas, os quais ficam a cargo do professor. Ao final do primeiro momento, os estudantes devem entregar as questões referentes ao texto e a classificação elaborada pelo grupo.

5. Segundo Momento: Modelagem Computacional

De forma geral, no presente momento, o objetivo da atividade consiste em elaborar um modelo a partir da equação do calor utilizando de uma planilha eletrônica. De início, apresenta-se aos estudantes o método de diferenças finitas para a resolução de equações diferenciais em planilhas eletrônicas, a qual possibilita a obtenção de soluções numéricas para a equação do calor. Após isso, é solicitado aos estudantes que configurem suas planilhas de acordo com o método e elaborem um modelo para a difusão do calor em uma barra metálica, aplicando a situações exemplares. Os estudantes devem, então, dimensionar a barra na planilha, configurar as fontes térmicas com as temperaturas e posições solicitadas para essa situação, impor as condições de contorno adequadas, e produzir uma predição para o processo de termalização da barra nos diferentes cenários propostos.

5.1. Modelando a difusão do calor em umaplanilha eletrônica

No segundo momento começamos por retomar as discussões desenvolvidas no momento anterior, em especial as hipóteses identificadas utilizadas por Fourier na obtenção de sua equação. A equação obtida por Fourier gira em torno de três principais propriedades, isto é, a capacidade de um corpo conter, transmitir e difundir calor, como podemos observar no trecho a seguir

Corpos diferentes, de fato, não possuem no mesmo grau poder para conter o calor, para receber ou transmitir calor através de suas superfícies, nem conduzi-lo através do interior de suas massas. Estas são as três qualidades específicas que nossa teoria distingue e mostra claramente como medir (Fourier, 1878, p. 2, tradução nossa).

Podemos, de forma simplificada, obter a equação da seguinte forma: Energia é uma propriedade que, como a massa e a carga, deve sempre se conservar. Isso significa que a energia deve obedecer a equação da continuidade, isto é, definido o vetor corrente de energia J, que indica a quantidade de energia por unidade de área por unidade tempo que atravessa uma região do espaço, tem-se que

(2)J=ρenergiat

Em que ρenergia é a densidade de energia. Além disso, pode-se fazer a suposição adicional de que a corrente de energia é proporcional ao negativo do gradiente de temperatura:

(3)J=kT

Ou seja, a equação 3 indica que a energia na forma de calor é transportada da região de maior temperatura para a de menor temperatura. Chamamos a constante de proporcionalidade k de condutividade térmica. Aplicando o divergente dos dois lados da equação 3 e usando a expressão 2:

(4)ρenergiat=k2T

Por fim, se estamos lidando com um intervalo de temperatura em que o calor específico é constante, tem-se que δQ = mcdT e, a densidade de energia transportada, é δρenergia = ρcdT, em que ρ é a densidade de massa e c é o calor específico. A equação 4 pode, então, ser escrita como

(5)Tt=kρc2T

A equação 5 é, dessa forma, a equação do calor. Comparando equação 5 com a equação 1, vemos que elas são estruturalmente idênticas. Com isso, determinamos a difusividade térmica em função dos demais parâmetros térmicos:

(6) D = k ρ c

Se resgatarmos o texto de Fourier, podemos adaptar sua discussão para os três fatores que encontramos na equação 6: “conter energia” (c), transmitir calor (k) e difundir internamente (D). Deve-se, claro, entender que, hoje, não faz sentido a expressão “conter calor”, visto que calor é uma variável de processo. Mesmo assim, podemos perceber que ideias embrionárias sobre como entendemos a equação de calor hoje já estavam presentes no texto de Fourier.

A partir disso, para possamos modelar a equação e resolvê-la numericamente é necessário propor um modelo e adaptar a expressão de acordo com o método utilizado para sua solução. Vamos explorar aqui um modelo científico em que uma barra metálica é considerada unidimensional, homogênea e com laterais isoladas (pode receber ou ceder energia apenas pelas suas extremidades). Ainda, considerou-se o caso de coeficiente de difusão constante, o que é factível para pequenas variações na temperatura. Para a simulação desse modelo, na planilha eletrônica, começamos por identificar as funções a serem inseridas. Como a equação do calor possui uma derivada primeira em relação ao tempo e uma derivada segunda em relação às coordenadas espaciais, recorremos ao método de solução de diferenças finitas. Assim, para o nosso caso, temos que:

(7)dT(t)dt=T(t+Δt)T(t)Δt,
e
(8)d2T(x)dx2=T(x+Δx)2T(x)+T(xΔx)Δx2.

Reescrevendo a equação do calor a partir do método, temos:

(9)T(x,t+Δt)T(x,t)Δt=DT(x+Δx)2T(x)+T(xΔx)Δx2,
e, assim:
(10)T(x,t+Δt)= DT(x+Δx)2T(x)+T(xΔx)Δx2Δt+T(t).

Definida a função para a temperatura a partir da equação do calor, passamos para a construção da planilha. Começamos por atribuir os valores de tempo na primeira coluna, com variação de 0.1s entre os valores. Na sequência, dimensionamos a barra nas células da planilha, tomando 10 unidades (células) como comprimento total e mais uma célula posicionada ao centro para a fonte térmica. Desta forma, nossa barra, centrada na fonte, vai de −5 a 5 unidades de comprimento. Apenas a título de exemplo, consideramos as temperaturas iniciais de 100 para o centro da barra e de 0 para os demais segmentos da barra, com coeficiente de difusão D = 0,2 (todas grandezas estão em unidades arbitrárias). Deve-se ter o cuidado de obedecer às condições de estabilidade para solução numérica da equação por métodos finitos, a dizer [34[34] W. Press, S.A. Teukolsky, W.T. Vetterling e B.P. Flannery, Numerical Recipes in C The Art of Scientific Computing (Cambridge University Press, Cambridge, 2002).]:

2DΔtΔx<1

Uma imagem dessa condição inicial está na Figura 3.

Figura 3
Modelo de barra metálica aquecida por uma fonte térmica central no instante t=0.

Para a temperatura da região central da barra, por exemplo, no instante t = 0.1, localizada na coluna H, temos = ((0, 2∗(G2 − 2∗H2 + I2))/1)∗$B3 + H2 como fórmula para a obtenção de seu valor numérico, em consonância com a equação 10. Neste caso, a expressão nos fornece o valor de temperatura para a célula escolhida, na qual 0,2 é o coeficiente de difusão, D, o termo G2−2 ∗ H2 + I2 corresponde a T(x + Δx) − 2T(x) + T(x − Δx) e o outro termo $B3 + H2 a Δt + T(t). Ainda, como modelamos a dimensão da barra a partir de unidades de valor 1, o termo Δx2 da equação 10 corresponde, aqui, a 1.

Adaptando e replicando essa relação para os demais segmentos da barra, podemos obter valores numéricos para suas temperaturas em qualquer instante de tempo, até que o equilíbrio térmico seja atingido e todas as temperaturas se igualem. Nesse momento, é importante discutir com os alunos os possíveis tipos de condições de contorno, a dizer, uma barra com pontas com temperatura fixa, ou uma barra isolada. No caso da barra isolada, deve-se adaptar a equação 5 para que tenha fluxo somente na parte interna da barra, garantindo a conservação de energia. Para o presente caso, modelamos a barra com as pontas isoladas. Desta forma, podemos modelar o comportamento de uma barra metálica com a porção central aquecida (ver Figura 4).

Figura 4
Modelo de barra metálica aquecida por uma fonte térmica central entre os instantes t = 0 e t = 1,6s.

Após a construção da planilha contendo os valores numéricos para a situação proposta, os estudantes devem selecionar três instantes de tempo e construir um gráfico das temperaturas da barra para cada um, visando representar o processo de termalização da barra em três momentos distintos, como representados na Figura 5.

Figura 5
Gráficos para a distribuição de temperatura ao longo da barra em três instantes diferentes obtido a partir do modelo elaborado.

A primeira situação é a mais simples, pois tem como objetivo desenvolver a técnica de construção da planilha. Por essa razão, escolhemos 100 unidades de temperatura para a região central e 0 para os demais segmentos da barra. Ao todo, podem ser solicitadas três situações distintas para os estudantes. A primeira, exemplificada acima, consiste em posicionar uma porção mais quente o meio barra. A segunda, os estudantes devem repetir o processo, porém deixando uma ponta com temperatura constante (aquecida) e outra ponta isolada. Por fim, na terceira situação, os estudantes devem modelar uma situação mais próxima da realidade, considerando duas fontes térmicas com valores distintos, 90◦C e 60◦C, uma em cada extremidade da barra, temperatura inicial da barra em 21◦C e difusividade térmica de 98,8 mm2/s.

Junto da planilha e dos gráficos, os estudantes devem supor a seguinte situação e responder a algumas perguntas:

Suponha que você pretenda realizar um experimento para medir a condução de energia na forma de calor ao longo de uma barra metálica configurada de acordo com a situação três. A partir disso, disserte sobre:

  • a)

    Como se dá o fluxo de energia na forma de calor nessa barra? Em quais sentidos?

  • b)

    Como podemos medir esse fluxo? Que instrumentos de medida podem ser utilizados?

  • c)

    Como podemos coletar e analisar os dados? Que fatores podem interferir nos dados?

  • d)

    Desenhe um gráfico para a temperatura ao longo do tempo para três pontos da barra e depois um para o perfil de temperatura da barra em três momentos diferentes.

As questões têm por objetivo sintetizar os conhecimentos articulados na atividade e contextualizá-los de acordo com a situação a ser replicada no experimento do terceiro momento. Além disso, os estudantes obtêm um modelo teórico para o experimento a ser realizado, o que permite elaborar hipóteses prévias ao experimento e comparar com os dados empíricos obtidos após ele.

6. Terceiro Momento: Experimentação

No início do terceiro momento é feito uma retomada dos dois momentos anteriores, no qual são relembradas as hipóteses iniciais de Fourier e discute-se o modelo desenvolvido no momento anterior junto das respostas as questões apresentadas. Após esse momento inicial, os estudantes são apresentados a atividade experimental a ser desenvolvida. No presente trabalho, o experimento a ser realizado consiste em obter medidas de temperatura ao longo de uma barra metálica enquanto a mesma é aquecida por duas fontes térmicas posicionadas uma em cada extremidade. O objetivo final é a produção de um gráfico para as variações de temperatura ao longo da barra e de um esquema que representa o perfil de calor no processo.

6.1. Medindo variações de temperatura em uma barra metálica

A barra escolhida para o experimento (Figura 6) é composta por alumínio de pureza não identificada (idealizada como perfeitamente homogênea) e dimensões 480 × 35 × 2 mm (comprimento muito maior do que a largura, sendo assumida como unidimensional). Como procedimento de controle de variáveis pautado pelas idealizações assumidas na modelagem computacional, para reduzir a perda de energia para o ambiente, as laterais da barra foram parcialmente isoladas utilizando papelão e papel alumínio. Assim, o fato de uma dimensão da barra ser muito maior do que as demais (aproximadamente 13 vezes maior que uma dimensão, e 240 vezes maior do que a outra) indica a possibilidade de usarmos a representação unidimensional, considerando uma barra sólida com pequenas variações de temperatura, ainda podemos considerar o coeficiente de difusão constante ao longo da barra e ao longo do tempo. O uso do papelão e papel alumínio buscam garantir a validade da hipótese de isolamento térmico das laterais.

Figura 6
Barra utilizada para o experimento com marcações de posição para os sensores de temperatura.

Para realizar a medida dos valores de temperatura ao longo da barra, foram distribuídos cinco sensores de temperatura DS18B20 (cuja precisão é de 0,5◦C), em intervalos de 85 mm (Figuras 6 e 7), ligados a uma placa Arduino. Ainda, deixamos um segmento de 75 mm em cada extremidade da barra, antes do primeiro sensor, para acoplar a barra nas fontes térmicas. O programa desenvolvido para o Arduino encontra-se no Apêndice B.

Figura 7
Barra utilizada para o experimento com os sensores de temperatura já dispostos e isolados por papel alumínio.

As fontes utilizadas, posicionadas nas extremidades da barra, consistem de duas chapas de alumínio (mesmo da barra) de dimensões 75 0× 35 × 2 mm, aquecidas por lâmpadas incandescentes de potências 60 e 48 Watts. As lâmpadas são posicionadas no interior de um cilindro metálico e as chapas (as quais consideramos as fontes térmicas) na abertura superior do cilindro. Assim, ao serem acionadas as lâmpadas, temos o aquecimento das chapas (fontes), como mostra a Figura 8.

Figura 8
Fonte térmica utilizada para o experimento e sua representação.

A temperatura da fonte é controlada por outros dois sensores de temperatura DS18B20 posicionados nelas e dois relés acoplados às lâmpadas, automatizando seu acionamento e permitindo a configuração de diferentes valores de temperatura para as fontes. Pode-se configurar uma determinada temperatura fixa para os sensores que, quando não detectada, aciona o relé e ativa/desativa a lâmpada, mantendo, em certa medida, a temperatura da fonte constante.

Após as fontes atingirem uma temperatura constante, as lâmpadas são desligadas e a barra é acoplada nelas, dando início ao processo de termalização com os sensores obtendo medições em intervalos de cinco segundos e registrando os valores no serial monitor do Arduino. O processo segue até que as temperaturas medidas se estabilizem e a barra fique em equilíbrio. Nas Figuras 9 e 10, temos um esquema representando a disposição do equipamento (Figura 9) e uma foto do experimento (Figura 10).

Figura 9
Representação da disposição do equipamento indicando a posição das fontes e dos sensores.
Figura 10
Foto do experimento pronto para a execução.

6.2. Análise dos dados

Ao final, os dados registrados no serial monitor do Arduino são exportados para uma planilha eletrônica. Ainda, um sensor de temperatura e umidade foi adicionado ao sistema para controlar as condições ambientes. Na Figura 11, consta um exemplo da planilha contendo os valores obtidos3 3 Os dados coletados estão disponíveis, sob licenças permissivas, em: http://www.if.ufrgs.br/gpef/modelagem/equacao_calor/. .

Figura 11
Tabela com os valores obtidos na medição. À direita, o registro de tempo. Ao centro, o registro das temperaturas em cada sensor. À esquerda, registro de umidade do ar e temperatura para controle.

Para contrastar o modelo teórico com os dados experimentos, modelamos uma barra unidimensional de 34 cm de comprimento (distância entre os sensores 2 e 6 na Figura 9) 10−5. Usamos o passo da simulação como Δx = 0, 0425m e Δt = 5s (o que garante a estabilidade da solução). Considerando que a barra é composta por uma liga de alumínio desconhecida, a análise da literatura especializada nos possibilitou estimar a condutibilidade térmica em 150 W/m.◦C (alinhado com a série 300 de ligas de alumínio, conforme [27[27] M. Lingard, Physics Education 38, 418 (2003).]). A densidade de massa de 2,68.106 g/m3 e o calor específico de 0,963 J/g.◦C adotados são valores típicos para o alumínio encontrados na literatura, o que nos possibilita estimar a difusividade térmica do material em 5,81.10−5 m2/s. Os resultados para quatro instantes de tempo distintos podem ser observados na Figura 124 4 Como o objetivo deste trabalho é apresentar uma proposta didática complexa, integrando três atividades distintas, não procedemos com a análise de erros no experimento, pois – para o fim didático proposto – entendemos não ser tão relevante quanto as outras discussões apresentadas.

Figura 12
Perfil de temperatura para barra aquecida: modelo teórico representado pela linha contínua vermelha, dados experimentais em azul. Foram apresentados os resultados para t = 0s, t = 100s, t = 200s e t = 300s.

Percebe-se que há uma concordância entre os dados experimentais e a predição pelo menos até o tempo de 200 s. A partir desse momento, o centro da barra, segundo o modelo teórico, aquece mais rapidamente do que o que se constata nos dados experimentais. Essa diferença possivelmente se deve ao fato de que o isolamento da barra não é perfeito, impedindo que os pontos centrais aqueçam tão rapidamente quanto o previsto pelo modelo teórico, em que se considera a barra isolada nas laterais. Dessa forma, podemos afirmar que – para os materiais utilizados – o modelo proposto é adequado para representar aproximadamente o aquecimento da barra em seu período inicial5 5 A planilha com os dados coletados e a solução proposta pode ser consultada em: http://www.if.ufrgs.br/gpef/modelagem/equacao_calor/. .

7. Sugestões Sobre a Avalição do Processo

A avaliação dos estudantes é um processo fundamental no ensino, ele guia as ações desenvolvidas em sala de aula e norteia o planejamento elaborado pelo professor [35[35] C.R.S. Dantas, Avaliação no ensino de ciências no nível fundamental: investigando orientações oficiais e práticas docentes, fazendo “escuta” e intervenções em escolas. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (2017).]. Em uma proposta de ensino como a aqui presente, o processo avaliativo indica suas potencialidades e fragilidades na aquisição de saberes por parte dos estudantes. Desta forma, aqui propomos uma alternativa para que esse processo avaliativo possa ser realizado durante e atividade e como ele pode ser estruturado.

Após a elaboração do modelo teórico e comparação com dados empíricos, os alunos devem entregar um relatório da atividade. Uma sugestão de estrutura para o relatório e com os temas necessários pode ser encontrado na Tabela 3.

Tabela 3
Estrutura geral para a elaboração do relatório final da atividade.

A avaliação dos estudantes é feita levando em consideração sua participação nas etapas, as atividades entregues em cada uma delas, e o relatório final. Nisso, seguimos por um processo de avaliação contínua qualitativa, avaliando diferentes aspectos como conceituais, procedimentais e socias. Para tanto, no processo avaliativo nos atemos a interação entre os estudantes, os argumentos formulados e articulados durante as etapas, a apropriação de conceitos apresentada e os processos desenvolvidos. O processo avaliativo inicia-se, assim, junto com a atividade e termina na avaliação dos relatórios finais entregues pelos estudantes. Neste período, o professor deve estar atento a todas as manifestações dos estudantes ao desenvolverem as atividades envolvidas na proposta. Isso, por sua vez, deve estar aliado a avaliação das atividades entregues pelos estudantes, nas quais busca-se por identificar a coerência dos argumentos e os conceitos empregados.

8. Considerações Finais

Apresentamos, neste trabalho, uma proposta de integração de fatores epistêmicos, conceituais e procedimentais em uma atividade sobre equação do Calor de Fourier, utilizando fontes históricas, modelagem computacional e experimentação. Para tanto, partimos da literatura especializada na área de pesquisa em Ensino de Física, tanto no campo da História da ciência quanto no campo de modelagem científica e experimentação (incluindo modelagem computacional).

Na atividade proposta, três momentos foram construídos: um primeiro momento em que os alunos trabalham com uma fonte histórica primária e a analisam utilizando o conceito de hipóteses científicas, um segundo momento em que se constrói um modelo computacional para barra aquecida e um terceiro momento em que é feito um experimento de aquecimento de uma barra e um confronto com previsões do modelo teórico. Para que outros professores possam utilizar essa atividade em suas aulas, disponibilizamos o texto histórica (Apêndice A), os dados coletados e o modelo computacional construído para o caso experimental também são fornecidos em links ao longo do texto para serem utilizados por qualquer professor ou aluno.

Esperamos que esse trabalho contribua efetivamente para o Ensino de Física e, mais especificamente, para o ensino de termodinâmica, viabilizando a construção de uma unidade didática em que diversos objetivos pedagógicos possam ser integrados e desenvolvidos, caminhando na direção de um ensino mais orgânico e menos fragmentado. Obviamente, as especificidades de cada contexto pedagógico exigem que adaptações sejam feitas, mas oferecemos – no presente trabalho – os subsídios didáticos e teóricos bem como os materiais necessários para o desenvolvimento dessa unidade didática.

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  • 1
    O texto completo do prefácio traduzido para o portugês pode ser consultado em: http://www.if.ufrgs.br/gpef/modelagem/equacao_calor/.
  • 2
    A afirmação refere-se a disputa entre as duas teorias para o calor presentes na época, a teoria mecânica do calor, a qual, como afirma Fourier, buscava reduzir os efeitos do calor e leis mecânicas; e a teoria do calórico, na qual o calor constituía uma substância, o calórico, a qual todo corpo era dotado.
  • 3
    Os dados coletados estão disponíveis, sob licenças permissivas, em: http://www.if.ufrgs.br/gpef/modelagem/equacao_calor/.
  • 4
    Como o objetivo deste trabalho é apresentar uma proposta didática complexa, integrando três atividades distintas, não procedemos com a análise de erros no experimento, pois – para o fim didático proposto – entendemos não ser tão relevante quanto as outras discussões apresentadas.
  • 5
    A planilha com os dados coletados e a solução proposta pode ser consultada em: http://www.if.ufrgs.br/gpef/modelagem/equacao_calor/.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2024
  • Revisado
    30 Maio 2024
  • Aceito
    04 Jun 2024
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