Open-access Tycho Brahe e Kepler na escola: uma contribuição à inserção de dois artigos em sala de aula

Tycho Brahe and Kepler in the High School: a contribution to the use of two articles in class

Resumos

Sob o pressuposto de que a história e a filosofia da ciência podem ser úteis à educação científica, desenvolve-se uma reflexão epistemológica acerca do potencial educativo de dois artigos: "Entrevista com Tycho Brahe" e "Entrevista com Kepler - do seu nascimento à descoberta das duas primeiras leis". O trabalho tem como objetivo subsidiar, epistemológica e metodologicamente, o professor interessado em utilizar esses artigos em sala de aula, mas que, por diversos motivos, não tem familiaridade com a literatura crítica relativa às potencialidades e aos cuidados no uso da história da ciência no ensino de física. Nessa perspectiva, procura-se auxiliar o professor a identificar nos textos algumas questões e posicionamentos que compõem o campo de reflexões dos filósofos e historiadores da ciência contemporâneos. As discussões realizadas são seguidas pela sugestão de uma estratégia geral para o uso dos artigos em sala de aula, de forma a otimizar o aproveitamento do conteúdo científico e epistemológico de ambos.

história da ciência; filosofia da ciência; ensino de física


Under the assumption that history and philosophy of science may be useful to science education, this work develops an epistemological reflection about the educational potential of two articles: "Entrevista com Tycho Brahe" ("Interview with Tycho Brahe") and 'Entrevista com Kepler - do seu nascimento à descoberta das duas primeiras leis" ("Interview with Kepler - from his birth to give support, epistemological and methodologically, to the teacher interested in using these articles in classroom, but that for different reasons are not familiar with the critical care necessary to an appropriate use of the history of science in physics education. In this perspective, this article seeks to help the teacher to identify in the texts some important questions and issues in the fields of history and philosophy of science. The discussions are followed by the suggestion of a general strategy for the use of both articles in the classroom, in order to emphasize their scientific and epistemological contents.

history of science; philosophy of science; physics teaching


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

Tycho Brahe e Kepler na escola: uma contribuição à inserção de dois artigos em sala de aula

Tycho Brahe and Kepler in the High School: a contribution to the use of two articles in class

Gilmar PraxedesI; Luiz O.Q. PeduzziII,1

ICurso de Física, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Dourados, MS, Brasil

IIDepartamento de Física, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

RESUMO

Sob o pressuposto de que a história e a filosofia da ciência podem ser úteis à educação científica, desenvolve-se uma reflexão epistemológica acerca do potencial educativo de dois artigos: "Entrevista com Tycho Brahe" e "Entrevista com Kepler – do seu nascimento à descoberta das duas primeiras leis". O trabalho tem como objetivo subsidiar, epistemológica e metodologicamente, o professor interessado em utilizar esses artigos em sala de aula, mas que, por diversos motivos, não tem familiaridade com a literatura crítica relativa às potencialidades e aos cuidados no uso da história da ciência no ensino de física. Nessa perspectiva, procura-se auxiliar o professor a identificar nos textos algumas questões e posicionamentos que compõem o campo de reflexões dos filósofos e historiadores da ciência contemporâneos. As discussões realizadas são seguidas pela sugestão de uma estratégia geral para o uso dos artigos em sala de aula, de forma a otimizar o aproveitamento do conteúdo científico e epistemológico de ambos.

Palavras-chave: história da ciência, filosofia da ciência, ensino de física.

ABSTRACT

Under the assumption that history and philosophy of science may be useful to science education, this work develops an epistemological reflection about the educational potential of two articles: "Entrevista com Tycho Brahe" ("Interview with Tycho Brahe") and 'Entrevista com Kepler – do seu nascimento à descoberta das duas primeiras leis" ("Interview with Kepler - from his birth to give support, epistemological and methodologically, to the teacher interested in using these articles in classroom, but that for different reasons are not familiar with the critical care necessary to an appropriate use of the history of science in physics education. In this perspective, this article seeks to help the teacher to identify in the texts some important questions and issues in the fields of history and philosophy of science. The discussions are followed by the suggestion of a general strategy for the use of both articles in the classroom, in order to emphasize their scientific and epistemological contents.

Keywords: history of science, philosophy of science, physics teaching.

1. Introdução

Nas últimas décadas, evidenciou-se uma significativa aproximação entre as áreas de história, filosofia e sociologia da ciência e o ensino de ciências. Em um importante artigo de revisão, publicado originalmente em 1992, Michael R. Matthews já apontava e discutia essa tendência, enfatizando o crescimento do número de encontros voltados à articulação dessas áreas, nos Estados Unidos e na Europa, bem como às propostas de inserção de história, filosofia e sociologia da ciência no ensino presentes no Currículo Nacional Britânico de Ciências e no Projeto 2061 da Associação Americana para o Progresso da Ciência - AAAS [1].

No Brasil, essa tendência internacional teve importantes repercussões, podendo-se apontar: no âmbito das pesquisas acadêmicas, um significativo esforço de articulação entre história e filosofia da ciência e ensino, traduzido em um expressivo número de teses, dissertações e artigos em periódicos especializados, com importantes contribuições à reflexão do processo ensino-aprendizagem; no plano político institucional, a sinalização dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) [2-3] para o uso da história da ciência no Ensino Médio.

Existe, atualmente, na comunidade dos educadores em ciência, um bom número de pesquisadores que defende a inserção da história da ciência no ensino como um importante instrumento para a sua melhoria [1, 4-10]. Bastos [11] salienta que as pesquisas que defendem o uso da história da ciência como instrumento de melhoria do ensino o tem enfatizado, basicamente, sob duas perspectivas: (a) como conteúdo de ensino propriamente dito; (b) como fonte de inspiração para a definição de conteúdos e para a proposição de estratégias de ensino.

A história da ciência não pode, naturalmente, substituir o ensino de ciências, muito menos ser vista como uma "nova panacéia", mas pode, sim, contribuir para combater o marasmo nas aulas de ciências, tornando-as mais desafiadoras, criativas e reflexivas, complementando o ensino dos conteúdos específicos e potencializando a sua compreensão [1,12].

Entre os pesquisadores favoráveis à utilização da história da ciência no ensino, é relativamente consensual a compreensão de que o seu uso pode auxiliar na apreensão e operacionalização dos conceitos científicos; proporcionar uma visão mais adequada da ciência e do trabalho científico; contribuir para a formação de um cidadão crítico e atuante, ao revelar as relações entre ciência tecnologia e sociedade, e caracterizar a ciência como parte integrante da herança cultural das sociedades contemporâneas. Contudo, apesar do grande potencial educativo da história da ciência, os próprios defensores de seu uso reconhecem que há uma série de obstáculos que se interpõem à sua efetiva utilização no ensino, entre os quais se destacam: (1) a carência de um número suficiente de professores aptos a pesquisar e ensinar de forma adequada a história das ciências; (2) a escassez de materiais didáticos de qualidade (textos sobre história da ciência) que possam ser utilizados no ensino; e (3) os equívocos a respeito da própria natureza da história da ciência e seu uso na educação (Siegel, apud [12], p. XXII, XXIII).

Em relação ao enfrentamento do primeiro problema – número insuficiente de professores devidamente capacitados para o uso didático da história da ciência – um exame da literatura especializada permite afirmar que é crescente o número de pesquisadores que compreendem a história da ciência como um componente indispensável à formação do futuro professor, ou pesquisador, em ensino de ciências; o que corrobora a idéia de que uma boa inserção da historia da ciência na graduação não é condição suficiente, mas é necessária à sua valorização e utilização no Ensino Médio [9, 13-15].

No que se refere aos obstáculos (2) e (3) – a escassez de materiais didáticos de qualidade e os equívocos a respeito da própria natureza da história da ciência, respectivamente – é importante registrar o esforço que vem sendo empreendido pela comunidade acadêmica no sentido de fomentar uma articulação entre as pesquisas e reflexões em ensino de ciências e o espaço da sala de aula. Como fruto desse esforço, pode-se apontar os materiais, em linguagem acessível aos professores, que têm sido divulgados em periódicos como Física na Escola, Revista Brasileira de Ensino de Física e Caderno Brasileiro de Ensino de Física; e ainda em publicações específicas, como o livro Estudos de História e Filosofia das Ciências: Subsídios para a Aplicação no Ensino [8] e a série Breve História da Ciência Moderna [16], entre outros.

Entretanto, malgrado o mérito dessas iniciativas, percebe-se que ainda há, para o professor do Ensino Médio e mesmo do ensino superior, uma grande carência de bons materiais didáticos que contemplem a história da ciência, e que proponham estratégias que favoreçam o seu uso, à luz das reflexões dos filósofos da ciência contemporâneos e das pesquisas dos educadores em ciência. A combinação desses elementos deve ser capaz de gerar textos acessíveis ao professor (e também ao aluno) que sejam ao mesmo tempo rigorosos, "sem pedantismos acadêmicos, mas sem tentar simplificar e transformar em 'água com açúcar' a complexidade histórica real" [12, p. XXIV].

Nessa perspectiva, sob o pressuposto de que a história e a filosofia da ciência podem ser úteis à educação científica, desenvolve-se neste trabalho uma reflexão epistemológica acerca do potencial educativo de dois artigos: "Entrevista com Tycho Brahe" [17] e "Entrevista com Kepler – do seu nascimento à descoberta das duas primeiras leis" [18]. A partir disso, propõe-se uma estratégia geral para o seu uso em sala de aula, tanto em cursos de capacitação continuada de professores como no ensino de graduação [19].

2. Tycho Brahe e Kepler na escola: uma visão geral dos dois artigos

No artigo "Entrevista com Tycho Brahe" (Fig. 1) o autor, sob a forma de uma entrevista fictícia entre o astrônomo Tycho Brahe e um grupo de professores do Ensino Médio, faz um interessante relato sobre a vida e obra desse astrônomo, cujos estudos foram fundamentais à gênese da ciência moderna. O segundo artigo – "Entrevista com Kepler - do seu nascimento à descoberta das duas primeiras leis" – segue o mesmo formato do primeiro, explorando aspectos da vida de Kepler que auxiliam a compreensão de seu tortuoso processo de criação científica (Fig. 2). Da combinação entre a fértil imaginação teórica de Kepler e a meticulosidade do trabalho observacional de Tycho surgiu uma obra astronômica que abriu caminho para a aceitação do modelo de Copérnico.



Os títulos inusitados dos artigos, bem como o estilo ficcional e o tom coloquial da linguagem utilizada, tornam a leitura de ambos acessível e atraente para o leitor, podendo passar a ilusão de que o conteúdo abordado é simples. O autor percebe isso e logo no início do primeiro artigo adverte: "O título deste artigo é certamente uma brincadeira, mas o assunto não!" [17, p. 20]. Uma orientação semelhante aparece no segundo trabalho.

A preocupação com o rigor histórico leva o autor a fundamentar os seus relatos em obras de reconhecido valor acadêmico, mas de difícil acesso a estudantes e professores, fazendo assim uma importante mediação cultural entre o espaço escolar e o espaço da reflexão erudita. Além disso, é possível ao leitor conceitualmente preparado perceber a intenção do autor em não transmitir concepções equivocadas da ciência, como aquelas exemplificadas por Gil et al., [20], ao inserir nas "entrevistas" alguns questionamentos que são típicos das reflexões contemporâneas acerca da natureza da ciência e do trabalho científico.

A leitura e o estudo dos artigos são particularmente recomendáveis aos professores que consideram a história da ciência relevante para o ensino da física, mas que, em geral, não encontram materiais apropriados para o seu uso em sala de aula. Entretanto, a despeito das virtudes dos textos, há um elemento que nunca se pode perder de vista: a formação do professor.

Em relação à física, é grande o número de professores em serviço sem graduação nessa matéria [21]. Por outro lado, entre aqueles que têm a graduação, nem todos tiveram a oportunidade de estudar uma disciplina de introdução à filosofia da ciência, ou relacionada à história da física. Mesmo entre aqueles que o fizeram, muitas vezes esse estudo se deu sob uma abordagem factual e técnica, desarticulada das reflexões dos filósofos da ciência contemporâneos [22].

Assim, não parece exagero afirmar que poucos professores estão adequadamente instrumentalizados para fazer uma inserção de trabalhos dessa natureza em sala de aula de forma a problematizar questões importantes do ponto de vista educativo. Por exemplo: os obstáculos científicos à aceitação do modelo copernicano; o papel dos dogmas religiosos que dificultavam a adesão a esse modelo; as influências filosóficas e metafísicas no processo de criação dos modelos científicos; o diálogo crítico e criativo entre esses modelos e os dados observacionais; as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais que ocorriam na Europa.

Esse quadro de carência conceitual, contudo, não inviabiliza as ações que estão sendo feitas para diminuir a distância entre os frutos das reflexões acadêmicas e o trabalho dos professores; antes, revela àqueles que acreditam no potencial da história da ciência para um ensino de ciências mais atrativo e inclusivo que, para tanto, é preciso ampliar esforços. É necessário que a textos como esses, sobre Brahe e Kepler, juntem-se outros que os complementem, enfatizando aspectos que precisem ser clarificados, assim como textos que explorem novos episódios, com outras estratégias.

3. Reflexões sobre o potencial educativo dos dois artigos

O interesse de Tycho pelo estudo dos céus foi despertado na juventude, quando estava na Universidade de Copenhague. Nessa época, ele observou um eclipse parcial do Sol, e o fato desse evento ter sido previsto pelos astrônomos, ao que parece, foi um marco na sua vida. Nas palavras do personagem Tycho:

Durante esse tempo pude presenciar um fenômeno que me marcou muito e que o livro do Dreyer a meu respeito conta direitinho: um eclipse parcial do Sol. Ele havia sido previsto com exatidão pelos astrônomos. Eu achei aquilo incrível, que o homem pudesse saber o que aconteceria no reino dos céus. Pareceu-me algo divino que o homem pudesse conhecer o movimento dos astros e predizer suas posições futuras. Eu que sempre fui um cara místico passei a interessar-me pela astrologia [17, p. 22].

O interesse de Tycho pela astrologia leva-o à astronomia e, conseqüentemente, ao Almagesto de Ptolomeu. Ao estudar esta obra, ele percebe que as suas previsões estavam assentadas em dados observacionais falhos, o que comprometia em muito as previsões astrológicas. Assim, motivado pelo desejo de melhorar as bases observacionais da astrologia, Tycho vai, aos poucos, construindo a sua carreira de astrônomo, deixando a astrologia em segundo plano, mas, ao que parece, jamais a abandonando, tendo inclusive adquirido grande prestígio na corte por seus trabalhos como astrólogo.

Em relação a esse interesse de Tycho Brahe pela astrologia, é importante observar que o ideal de uma ciência essencialmente racional, isenta de influências místicas, astrológicas ou metafísicas, acaba fazendo com que muitos autores, em seus textos, considerem não apenas irrelevante, mas, talvez, mesmo prejudicial à formação do estudante mencionar o envolvimento de Brahe com a astrologia, e sua prática de elaborar horóscopos. No entanto, ao se omitir esse aspecto de sua biografia, perde-se de mostrar ao aluno como são diversas as "fontes" que desencadeiam interesses e motivam o cientista em seu trabalho. Um ensino restrito apenas ao contexto da justificativa é, certamente, um ensino limitado, incompleto, fábrica de fábulas mal contadas.

Embora ciência e misticismo sejam hoje atividades bem separadas e distintas, nem sempre foi assim. Alguns conceitos e idéias da ciência tiveram sua origem na astrologia, no pensamento metafísico, em concepções esotéricas. Durante o Renascimento houve a revitalização de uma concepção mística da natureza, proveniente, em parte, de uma intensa releitura dos textos platônicos, néo-platônicos e herméticos. Esse interesse está presente na obra de muitos pensadores renascentistas, sendo apontado por Debus [23] como um dos elementos que atuaram na gênese da nova ciência que então se desenvolvia.

Em 17 de agosto de 1563, quando estudava na Universidade de Leipzig, Tycho observa atentamente a aproximação entre Júpiter e Saturno, percebendo a insuficiência das tabelas da época na previsão desse evento:

Lendo as melhores tabelas astronômicas disponíveis naquela época, entretanto, constatei uma enorme disparidade entre o instante do acontecimento e o instante previsto. As tabelas Afonsinas, devidas aos astrônomos árabes, haviam errado a data do fenômeno observado por algo em torno de um mês, e mesmo as tabelas elaboradas pelo Copérnico também erravam sua previsão por vários dias. Aquilo tudo me pareceu inaceitável [17, p. 23].

A partir dessa constatação, Tycho se dispõe a construir novas tabelas das posições dos astros.

Em 1572, Tycho observou o aparecimento de uma supernova na constelação de Cassiopéia; outros astrônomos europeus também observaram o evento e tentaram, sem sucesso, medir a paralaxe, entre eles: Maestlin e Thomas Diggs. Tycho usou seus novos instrumentos para medir a paralaxe, mas também fracassou. Entretanto, dada a precisão das suas medidas, tal insucesso lhe forneceu indícios que puseram em xeque o dogma da imutabilidade do cosmos aristotélico:

Também não encontrei qualquer paralaxe. A questão é que dentro da precisão em que minhas medidas haviam sido feitas a tal estrela Nova deveria, no mínimo estar para além da oitava esfera das estrelas. Isso foi um golpe tremendo no dogma da imutabilidade do Cosmos aristotélico que havia se tornado a visão da Igreja Católica [17, p. 24].

É importante salientar que a crença na imutabilidade do Cosmos, associada ao modelo de Ptolomeu, contribuiu para que, durante séculos, os astrônomos ocidentais não dessem importância aos fenômenos que sugerissem transformações celestes. Kuhn [24] chama a atenção para o fato de que, só após o surgimento do modelo de Copérnico, os astrônomos passaram a observar mudanças nos céus, que anteriormente eram considerados imutáveis. Por outro lado, no Oriente, em outro contexto cultural: "Os chineses, cujas crenças cosmológicas não excluíam mudanças celestes, haviam registrado o aparecimento de muitas novas estrelas nos céus numa época muito anterior" [24, p. 151].

Realmente, o ato de observar é condicionado pelos pressupostos teóricos ou filosóficos do cientista que observa. Esse conceito da moderna filosofia da ciência se opõe radicalmente a uma concepção de ciência empírico-indutivista. As crenças associadas ao dogma da imutabilidade dos céus constituíam-se em obstáculo epistemológico à aceitação do modelo de Copérnico [25].

Em 1577 surgiu um cometa e Tycho lançou-se à tarefa de estudá-lo, procurando determinar se tal fenômeno era de natureza atmosférica, como pensavam muitos de seus contemporâneos, ou se ele estava além da esfera da Lua.

Pois bem, as minhas observações levaram-me a concluir que o tal cometa não era apenas um fenômeno supralunar, assim como antes havia constatado para aquela estrela Nova de 1572. Descobri também que ele cruzava várias esferas celestes. Isso abalou muito as crenças cosmológicas da época. A Igreja não respondeu às minhas observações, mas as tais esferas de cristal que sustentavam os planetas foram caindo em desuso. Agora só se falava em órbita dos planetas, não mais em esferas [17, p. 26].

Entretanto, Tycho não rompeu com a física aristotélica. "Eu acreditava que os corpos que caem, caem porque precisam realizar seu intento de buscarem o centro do Universo, o centro da Terra" [17, p. 26]. Muito embora ele tenha percebido, desde o início de sua formação, falhas no modelo de Ptolomeu, isso não o levou à aceitação do modelo de Copérnico.

Em geral, os manuais simplificam a controvérsia entre esses dois modelos, afirmando, inclusive de forma equivocada, que o modelo copernicano era mais simples e de maior capacidade explicativa do que o ptolomaico. Não obstante, havia argumentos de ordem física e astronômica que justificavam a não adesão ao modelo de Copérnico.

(...) se a Terra estivesse girando os corpos não cairiam aos pés dos locais em que haviam sido soltos, como sabemos que caem, mas para trás destes pontos (...), e para completar tinha o fato de que não havia achado qualquer paralaxe para as estrelas, o que ao menos para mim indicava que a Terra deveria estar parada no centro do Universo [17, p. 27].

O trecho acima permite que se faça uma melhor avaliação acerca dos impasses conceituais que dificultavam a adesão de Tycho ao modelo copernicano, além de exemplificar muito bem o argumento de que a história da ciência pode ser usada para a discussão e o aprofundamento de conceitos científicos [1,12].

Por volta de 1583, Tycho, inspirado em um antigo modelo de Heráclides de Ponto, elaborou um modelo planetário híbrido, com os planetas girando em torno do Sol, porém este, e os planetas com ele, girando ao redor da Terra.

Aquele modelo de compromisso parecia-me esteticamente perfeito, eu só precisava encontrar as peças de evidência. Foi aí que mergulhei febrilmente na coleta de dados observacionais que apoiassem o meu sistema [17, p. 27].

É importante ressaltar o procedimento de Tycho: primeiro a teoria, as convicções teóricas, depois os dados, para a corroboração, mudança ou mesmo refutação da mesma. Esse procedimento se contrapõe a uma das visões deformadas do trabalho científico – a concepção empírico-indutivista e ateórica [20]. Nesta, sustenta-se o papel "neutro" da observação e da experimentação, desconsiderando-se o papel da teoria e da hipótese como norteadoras do processo investigativo. À luz das reflexões contemporâneas dos pesquisadores em ensino de ciências, tal concepção constitui-se um equívoco muito freqüente entre os professores, tanto em nível médio quanto em nível superior.

Esse papel norteador da teoria pode ser visto de forma ainda mais explícita quando um dos personagens acusa Tycho de usar, em sua crítica ao modelo de Copérnico, uma descrição de observações da realidade que já incorpora implicitamente a concepção aristotélica de que cair significa dirigir-se ao centro do Universo, ou seja, o centro da Terra. Em tom professoral, como se fora um epistemólogo contemporâneo, Tycho replica: "Toda observação na ciência sempre esteve carregada de teoria, não apenas as minhas" [17, p. 27]. A fala do personagem Tycho está em sintonia com uma postura epistemológica contrária ao empirismo-indutivismo.

Tycho Brahe foi, durante toda a vida, adepto do cosmos aristotélico, apesar de ter contribuído decisivamente para a sua superação. Essa ambigüidade de Tycho em relação à antiguidade, combinada com uma nova forma de interação com a natureza, acabaria por conduzir à ruptura com alguns de seus preceitos. É interessante observar que, assim como Tycho, outros pensadores dessa fase final do Renascimento, ao mesmo tempo em que desenvolviam novos métodos de estudos, não se desvencilhavam por completo do peso da tradição antiga e medieval. Esse comportamento pode ser observado, por exemplo, em Kepler, com a sua crença no movimento circular dos planetas, e em Galileu, que chegou a conceber uma "inércia circular" [26]. Tal característica de alguns dos fundadores da ciência moderna permite que se reconheça que os processos que envolvem mudanças de concepções teóricas ou de visão de mundo não são simples nem para os próprios protagonistas dessas transformações. Uma inserção bem fundamentada de tópicos da história da ciência é capaz de revelar ao estudante personagens muito mais ricos e complexos do que os "heróis da ciência", que freqüentemente aparecem nos livros didáticos.

A construção do observatório de Uraniborg, assim como as observações de Tycho Brahe, em diferentes períodos e locais da Europa, não seriam possíveis sem o apoio de príncipes e outros homens ricos. Para que a Astronomia pudesse se desenvolver, fazia-se necessária a construção de grandes e caros instrumentos de observação. Em Uraniborg, Tycho Brahe contou com uma equipe de talentosos astrônomos e matemáticos. A ciência, a despeito do mérito de seus principais protagonistas, é um empreendimento coletivo e a trajetória de Tycho Brahe ilustra isso muito bem. Mais uma vez, dispõe-se de elementos para questionar uma outra visão equivocada da ciência, muito presente entre os professores – a visão individualista e elitista da ciência [20]. Nessa concepção, o conhecimento científico aparece como obra de gênios isolados; ignora-se o trabalho cooperativo e a troca de idéias dos cientistas entre si e com outros profissionais – artesãos, arquitetos, técnicos, etc.

A relação conflitante e as divergências conceituais entre Tycho e Kepler são elementos que também podem ser explorados em uma situação de ensino que trate a ciência como uma construção histórica e, portanto, humana. Kepler não era discípulo, muito menos um simpatizante das idéias de Tycho; em verdade, ele era um grande rival dessas idéias, e ambos sabiam disso. No entanto, cada um reconhecia e respeitava a competência científica do outro. Esses homens, tão diferentes em temperamento, personalidade e concepção de mundo, trabalharam juntos; eles precisavam um do outro para corroborar ou invalidar os seus respectivos modelos. A relação conflituosa entre esses dois cientistas exemplifica o duplo caráter, cooperativo e competitivo, da ciência.

Destoando completamente da figura altiva de Brahe, que tinha uma ascendência nobre, Kepler vinha de uma família sem posses, era doente, fisicamente fraco e apegado à fé religiosa; mas, consciente de sua força intelectual e disposto a lutar por suas idéias. Os contrastes entre esses dois cientistas podem ser bem apreciados em sala de aula, pois denotam uma ciência construída por homens reais, com virtudes e defeitos e não por personagens míticos.

Assim como Tycho, Kepler também teve um grande fascínio pela astrologia. Entretanto, à medida que amadurece os seus conhecimentos sobre astronomia, constata que os fundamentos observacionais da astrologia são frágeis. Ao contrário de Tycho, o interesse de Kepler pelos céus não se manifesta na observação meticulosa, mas na especulação teórica – a matemática foi o seu instrumento.

Em 1589, Kepler entra para a Universidade Protestante de Tuebingen com o objetivo de se tornar pastor luterano. Cursa teologia, filosofia, matemática e astronomia. Sendo aluno do astrônomo Michael Maestlin, um dos primeiros a defender o sistema copernicano, adere a esse sistema. Contudo, a sua fé luterana e sua convicção copernicana entram em choque, e Kepler se recusa a assinar a Fórmula da Concórdia – um documento da Igreja Luterana que rejeitava o sistema copernicano. Em função disso, ele não é ordenado pastor. Esse fato pode estimular discussões profícuas, e talvez difíceis, acerca do conflito entre ciência e religião.

É importante salientar que o sistema copernicano sofreu forte oposição religiosa, tanto da Igreja Católica quanto da Protestante. Apesar disso, e ao longo de sua vida, Kepler foi simultaneamente protestante e copernicano; sendo que a defesa do modelo de Copérnico lhe custou a perda de algumas oportunidades de trabalho. Curiosamente, o seu encontro com Tycho, em grande medida, deu-se em função de ter sido obrigado a sair de Graz, por manter-se fiel à sua fé protestante; ou seja, o apego à sua fé protestante acabou contribuindo para que ele, ao trabalhar com Tycho, desse uma contribuição fundamental à aceitação do modelo copernicano – ironias da história.

Em 1597, Kepler publica o seu primeiro trabalho, o Mysterium Cosmographicum. Nele, além de defender o sistema copernicano, introduz as suas próprias concepções acerca do universo:

Eu não me contentei, entretanto, em reproduzir o esquema de mundo do Copérnico; eu queria mostrar ao mundo que ele fazia um sentido profundo, que havia uma ordem divina subjacente ao mesmo. Foi nesse meu primeiro livro, sob forte influência neo-platônica, que desenvolvi aquela idéia de que as distâncias dos planetas até o Sol, no sistema copernicano, eram determinadas pelos cinco poliedros de Platão. Bastava supor que a órbita de cada planeta estava circunscrita sobre um sólido e inscrita em outros seguintes [18, p. 24-25].

Nessa fala de Kepler, constata-se um posicionamento teórico semelhante ao de Tycho na criação de seu modelo híbrido, qual seja: em primeiro lugar os pressupostos teóricos, depois o diálogo com os dados observacionais – mais uma refutação à imagem de ciência empírico-indutivista e ateórica.

Apesar da beleza de seu modelo, ao confrontá-lo com os dados, Kepler encontra discrepâncias que não sabia como explicar. Entretanto, ele atribui isso a erros nas tabelas disponíveis e, inicialmente, não o abandona. O apego de Kepler à sua construção teórica revela que a relação do cientista com os dados nem sempre é tão simples quanto fazem parecer os manuais de metodologia científica e os livros-texto, que muitas vezes apresentam o método científico como um conjunto de etapas que se seguem, linear e mecanicamente, sem espaço para a incerteza, a ambigüidade, a criatividade e a intuição. A certeza da existência desse método ilustra mais uma concepção equivocada sobre o empreendimento científico, que Gil et al. [20] designam como visão rígida (algorítmica, exata, infalível...).

A construção da obra de Kepler foi marcada por um intenso diálogo crítico com os dados observacionais disponíveis, e depois com os de Tycho. Essa interação entre pressupostos teóricos e dados observacionais permitiu que Kepler, sucessivamente, reelaborasse os seus próprios modelos, levando-o a estabelecer as leis do movimento planetário, que rompem com o dogma do movimento circular – herança cultural dos antigos gregos.

O estudo histórico dessa interação também oportuniza uma crítica à visão aproblemática e a-histórica da ciência, segundo a qual os conhecimentos já elaborados são transmitidos sem mostrar os problemas dos quais eles se originaram, as dificuldades encontradas, etc. [20].

Em 1602, já depois da morte de Tycho e trabalhando com os seus dados, Kepler chega ao que hoje se conhece como segunda lei – a lei das áreas. A primeira lei – a lei das órbitas – emerge por volta de 1605, após um grande esforço para compreender o movimento de Marte.

É importante ressaltar, como faz o autor, que a ordem cronológica em que as duas primeiras leis emergem não corresponde à seqüência didática na qual elas são apresentadas nos manuais de ensino: a lei das áreas, que foi a primeira a ser obtida por Kepler, é enunciada como a segunda, enquanto que a lei das órbitas, que foi a segunda, aparece como a primeira. Do ponto de vista didático, pode ser compreensível a inversão dessas leis, porém, em uma abordagem histórico-filosófica tal fato deve ser conhecido pelo professor e pelo aluno.

A concepção de Kepler de que deveria haver uma "ordem implícita" que justificasse as distâncias dos planetas ao Sol, na época, era metafísica. Como argumenta um dos personagens da entrevista, fazendo um contraste com Newton:

(...) do ponto de vista da mecânica newtoniana, não faz sentido nenhum procurar uma razão especial de ser para essas distâncias entre os planetas e o Sol, como você queria. Elas não parecem como coisas divinas, como pareciam para você, pois se, por exemplo, o sistema solar fosse perturbado pela proximidade de algum corpo celeste de grandes proporções, (...), as tais distâncias dos planetas ao Sol seriam modificadas [18, p. 27].

Nessa passagem, mais uma vez, pode-se notar o valor da contextualização histórica do trabalho de um cientista, e usá-la para questionar a visão aproblemática e a-histórica da ciência. Sem dúvida, o que era importante para Kepler não o é para Newton, com uma nova física. Kepler ressalta isso em sua réplica, ao mesmo tempo em que explicita uma informação sobre Newton que pode chocar aqueles que só admitem o diálogo do cientista com o estritamente racional na ciência:

Certo, mas eu não sabia disso. A mecânica de Newton é posterior à minha morte. É por isso que, de certo modo, a mecânica newtoniana dessacraliza o Cosmos, ao menos nesse sentido relacionado às razões de ser das distâncias entre os planetas e o Sol – já que o próprio Newton via o espaço também de uma forma mística como o sensório de Deus (...). A minha perspectiva teórica era outra [18, p. 27].

O final dessa fala de Kepler pode ser articulado à epistemologia histórica de Kuhn, na qual se sustenta que não se deve avaliar os cientistas de uma determinada época como se eles trabalhassem nos mesmos problemas que os cientistas de outros períodos, com outros pressupostos teóricos e dispositivos instrumentais. Kepler não tinha a mesma perspectiva teórica de Newton [24].

Ainda sobre o artigo de Kepler, podem-se levantar dois pontos que demandam um certo cuidado, ao serem abordados em aula. O primeiro quando se discute a possibilidade do misticismo de Kepler ser considerado, "quase como uma coisa de maluco", por as pessoas não terem entendido as suas idéias. Kepler chega a afirmar: "(...). E o Galileu deveria pensar mesmo que eu era maluco" [18, p. 32]. Um cientista maluco ou com idéias malucas? Há alguma diferença? Talvez essa preocupação se justifique pelo fato de muitas pessoas verem os cientistas como seres não humanos, que vivem em um mundo bem diferente do resto dos mortais. O segundo ponto surge quando um personagem da entrevista diz a Kepler já ter lido em um livro didático que Galileu o havia presenteado com um telescópio, e que Kepler havia feito observações com ele. Indignado, Kepler vocifera: "Mentira! Esses livros didáticos de vocês contam barbaridades" [18, p. 32]. As palavras de Kepler generalizam uma crítica que deveria ser específica a um autor, ou a autores que fazem um mau uso da história da ciência. O aluno (particularmente do ensino médio) pode interpretá-las como uma crítica mais geral aos livros-texto, e isso pode gerar insegurança. Afinal, o aluno poderia pensar: será que é só a história da ciência/física que os autores desconhecem?

Como última observação, cabe ressaltar que o modelo híbrido de Tycho Brahe tem uma redação correta no artigo sobre Tycho Brahe, mas acabou grafado incorretamente no artigo que aborda a obra de Kepler.

Complementando essa reflexão, propõe-se, a seguir, uma estratégia geral para uso dos artigos em sala de aula, pois um dos principais problemas enfrentados pelos professores que desejam usar didaticamente a história da ciência reside, efetivamente, em "como fazê-lo" [5, 14, 15].

4. Uma estratégia de inserção dos artigos em sala de aula

A estratégia aqui apresentada está voltada para um curso de capacitação de professores, podendo igualmente, com as devidas adaptações, ser utilizada em uma disciplina de física básica, onde se aborde o tema gravitação universal, ou ainda em uma disciplina sobre história da física. Em linhas gerais, ela segue as orientações previstas nos três momentos pedagógicos propostos por Delizoicov e Angotti [27]: problematização inicial, organização do conhecimento e aplicação do conhecimento. É importante enfatizar que esses momentos, apesar de distintos, não devem ser interpretados como uma seqüência rígida de etapas estanques, mas como constituintes de uma dinâmica de trabalho pautada pela articulação dialética estabelecida por eles.

A estratégia envolve um estágio inicial, propedêutico, no qual os professores (alunos) recebem os artigos e as orientações gerais para a leitura dos mesmos, além de uma apresentação geral do seu conteúdo, pelo professor-pesquisador. Na leitura dos artigos, os professores devem anotar as suas dúvidas, bem como formular questionamentos e observações. Concomitantemente, o professor-pesquisador também prepara um conjunto de questões e observações, que poderão ser usadas em sua forma original, ou combinadas com questões levantadas pelos próprios professores, nos distintos momentos que compõem a discussão dos artigos.

No primeiro momento – problematização inicial – os professores apresentam e discutem entre si suas questões e observações, a partir dos conhecimentos que trazem de suas diferentes leituras, formações ou práticas docentes. É natural que, nesse processo, surjam tanto concepções equivocadas a respeito da natureza da ciência [20], como posicionamentos mais próximos daqueles sustentados por filósofos e historiadores da ciência contemporâneos; além de inquietações com respeito a possíveis conflitos entre ciência e religião, a influência de idéias metafísicas e esotéricas na formulação de modelos científicos, etc. No que diz respeito ao conteúdo específico, é igualmente importante problematizar os obstáculos de natureza científica que se interpõem à aceitação do modelo copernicano, assim como a necessidade de uma nova física capaz de dar suporte teórico a este modelo – o que só viria a acontecer com a síntese newtoniana.

Nesse momento, cabe ao professor-pesquisador criar condições para que os professores se sintam à vontade para exporem as suas dúvidas, lacunas teóricas e os seus questionamentos acerca das informações e das questões suscitadas pelos textos. Ao invés de simplesmente responder e explicar, o pesquisador utiliza as questões e os argumentos mais representativos da fala dos professores, combinando-os com algumas de suas próprias questões para, com isso, fomentar entre os professores uma certa inquietação intelectual favorável ao exame crítico de alguns de seus próprios posicionamentos epistemológicos, bem como das dificuldades inerentes à gênese e aceitação das idéias científicas. Como salienta Delizoicov [28, p. 143]:

O ponto culminante da problematização é fazer com que o aluno sinta a necessidade da aquisição de outros conhecimentos que ainda não detém, ou seja, procura-se configurar a situação em discussão com um problema que precisa ser enfrentado.

No segundo momento – Organização do conhecimento – os conhecimentos epistemológicos e científicos necessários a uma boa compreensão do potencial educativo dos artigos são explicitados pelo professor-pesquisador. É presumível que vários professores queiram esclarecer ou aprofundar alguns detalhes conceituais e técnicos suscitados pelos artigos, assim como certas visões sobre a natureza da ciência presentes em manuais de ensino e livros de divulgação científica. O professor-pesquisador deve, então, explicitar os obstáculos de natureza científica e epistemológica à aceitação do modelo de Copérnico e as concepções equivocadas acerca da natureza da ciência e do trabalho científico vinculadas ao tema [29, 30].

No terceiro momento – aplicação do conhecimento – o professor é colocado diante de problemas e questões de natureza científica e histórico-epistemológicas, cujas resoluções e encaminhamentos só se tornam possíveis mediante a interação com os novos conhecimentos apreendidos. Delizoicov [28, p. 144] argumenta que este momento:

Destina-se, sobretudo, a abordar sistematicamente o conhecimento que vem sendo incorporado pelo aluno para analisar e interpretar tanto as situações iniciais que determinaram seu estudo quanto outras situações que, embora não estejam diretamente ligadas ao motivo inicial, podem ser compreendidas pelo mesmo conhecimento.

Nessa perspectiva, o professor pode ser solicitado a examinar, em livros didáticos e paradidáticos, afirmações ou procedimentos em que estejam explícitas ou subtendidas posições epistemológicas do autor. O que se almeja aqui é que o professor, de posse desses novos conhecimentos, passe a concebê-los como elementos úteis à melhoria de sua prática docente [27].

Ao professor interessado em utilizar a estratégia aqui sugerida, convém salientar que, em função do seu conhecimento das características gerais da turma, é factível, ainda na fase propedêutica, antecipar alguns dos tipos de questionamentos, dúvidas e argumentos que serão tecidos pelos alunos. Esse trabalho de reconhecimento prévio pode ser explicitamente articulado ao planejamento da ação didática do professor. Assim, a partir de algumas categorias de questionamentos concebidas a priori, o professor pode propor um conjunto de questões que, convenientemente articuladas à fala espontânea dos alunos, potencialize a discussão e assimilação do conteúdo científico e epistemológico dos artigos. A título de exemplo, sem a pretensão de fornecer receitas simples, sugerem-se algumas possíveis categorias de questionamentos, cuja explicitação pode ser útil no planejamento e desenvolvimento da ação docente:

• Os novos problemas científicos suscitados pela hipótese de uma Terra móvel e as dificuldades técnicas e conceituais de resolvê-los.

• As idéias religiosas e filosóficas que tornavam difícil para muitos pensadores da época a aceitação da teoria de Copérnico.

• A relação entre pressupostos teóricos e observação, ou entre estes e a interpretação conferida aos dados observacionais.

• A historicidade da ciência – evidenciada pelo envolvimento de ambos os pensadores, com práticas e idéias hoje consideradas anticientíficas, mas que, de algum modo, inspiraram os seus trabalhos científicos. Historicidade que também se revela no desenvolvimento de uma nova forma de investigação da natureza, marcada por uma crescente aproximação entre ciência e técnica.

• As distintas visões de mundo, de valores e de crenças, compartilhados por Tycho e Kepler, e seus reflexos no curto, contraditório e tenso relacionamento científico de ambos.

• As visões distorcidas de ciência explícita ou implicitamente refutadas pelos artigos.

5. Considerações finais

Tycho Brahe e Johannes Kepler são dois personagens da história da ciência cujos trabalhos foram de fundamental importância para o surgimento de uma nova Astronomia baseada no modelo de Copérnico, um marco no longo e controverso processo de construção da chamada Revolução Científica, que teve na síntese newtoniana a consolidação de uma nova forma de investigar e conceber a natureza – a ciência moderna.

As trajetórias científicas de Tycho e Kepler são marcadas por valores, crenças e atitudes, que não são meras idiossincrasias individuais, antes, revelam as características de uma época de transição, em que através de um retorno ao pensamento antigo se compunham instrumentos para a sua superação. É nessa perspectiva que se deve procurar compreender o envolvimento de Tycho com a alquimia, as concepções metafísicas de Kepler, o interesse de ambos pela Astrologia e o diálogo com a ciência grega [23].

Ao mesmo tempo, percebe-se, ao longo da história de ambos, a atuação, às vezes positiva, outras nem tanto, de fatores de ordem não apenas intelectual, mas também econômica, política e social. Por exemplo, o fato de Tycho ser um homem rico, de ascendência nobre, facilitou-lhe a ida para a Universidade e o contato formal e informal com os grandes astrônomos da época e, posteriormente, a conquista de apoio político, financeiro e logístico para os seus empreendimentos científicos. Por outro lado, nessa época, a ciência, além de ser apreciada por muitos membros da nobreza e da burguesia por seu valor intrínseco, começava a dar sinais de sua utilidade prática.

É importante enfatizar que a precisão e a meticulosidade que caracterizaram o trabalho de Tycho Brahe são atributos que, nesse período histórico, vão sendo cada vez mais articulados às pesquisas dos filósofos naturais, simbolizando uma nova forma de relacionamento do homem com a natureza. Tycho é parte de um novo espírito de criatividade intelectual e artística na história da humanidade – o Renascimento. É contemporâneo das grandes navegações transoceânicas; o conhecimento dos céus não tinha importância apenas acadêmica, havia uma série de interesses e motivações de naturezas distintas: científicas, econômicas, estéticas e político-ideológicas, que tornavam as suas pesquisas especialmente importantes no contexto sócio-histórico da época. Os mercadores e marinheiros precisavam de cartas náuticas, mapas, instrumentos de navegação, e tabelas astronômicas mais precisas, que tornassem o comércio marítimo seguro e lucrativo [23].

Por outro lado, o esforço teórico de Kepler para defender e aperfeiçoar o sistema copernicano estava em sintonia com as aspirações de muitos cientistas, místicos e artistas que vislumbravam um universo muito mais amplo do que aquele defendido pelos aristotélicos. Passando para o plano político-ideológico, a ruptura com o cosmos aristotélico simbolizava uma vitória contra a ortodoxia religiosa da Igreja, cuja engenhosa instrumentação do pensamento de Aristóteles servia como suporte ideológico à defesa da anacrônica ordem feudal, bem como à manutenção de seu poder espiritual e temporal [16].

Percebe-se, assim, que através da abordagem histórica da obra desses personagens, é possível a identificação de elementos que refutam a imagem de ciência descontextualizada, socialmente neutra, nesta:

esquecem-se as complexas relações entre ciência, tecnologia, sociedade (CTS) e proporciona-se uma imagem deformada dos cientistas como seres "acima do bem e do mal", fechados em torres de marfim e alheios à necessidade de fazer opções [20, p. 133].

Finalizando, deve-se destacar que, no ensino de ciência, o diálogo entre professores e pesquisadores é de suma importância. Daí a relevância de textos que façam a articulação entre esses dois espaços de atuação, superando barreiras e incompreensões mútuas, como os trabalhos aqui analisados. Nessa perspectiva, a estratégia de uso dos artigos sugerida neste trabalho, que se destina ao professor em serviço e ao futuro professor, caracteriza-se pela valorização do diálogo pesquisador-professor (aluno) e pelo grau de liberdade concedido a esse professor, a quem, sem a imposição de regras rígidas e unilaterais, caberá o papel ativo e intransferível de adaptar a estratégia à situação específica de sua sala de aula. A efetiva exploração do potencial educativo dos artigos pode contribuir para que professores e alunos, dos distintos níveis de ensino, sintam-se encorajados a incorporar em suas práticas docentes e discentes elementos da história e filosofia da ciência.

Agradecimento

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul.

Recebido em 1/12/2008

Aceito em 7/1/2009

Publicado em 16/9/2009

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  • 1
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Set 2009

    Histórico

    • Aceito
      16 Set 2009
    • Revisado
      07 Jan 2009
    • Recebido
      01 Dez 2008
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