Acessibilidade / Reportar erro

A busca pelo copo ideal: um estudo de otimização em transferência de calor

The quest for the ideal glass: an optimization study in heat transfer

Resumo

Neste trabalho é apresentada uma análise térmica do problema de um líquido contido em um copo sendo aquecido pelo ambiente enquanto é consumido. O problema foi sugerido pelo consumo de bebidas como a cerveja, que se deseja manter o mais fria possível ao longo do consumo. O estudo propõe um meio passivo para a solução do problema, otimizando o formato do copo para garantir a mínima troca de calor, sem o uso de isolantes. O copo foi modelado como um corpo de revolução, gerado por um curva suave S, feito de material com resistência térmica desprezível na superfície de revolução e isolado no fundo. O resultado obtido fornece uma família de curvas ótimas, capazes de gerar um copo possível de ser fabricado por métodos convencionais.

Palavras-chave:
transferência de calor; relação superfície-volume; convecção; formato ótimo

Abstract

In this work, an analysis is presented of the problem of a liquid contained in a glass, being heated by the environment while being consumed. The issue was suggested by the consumption of beverages such as beer, that consumers wish to keep as cold as possible while drinking. The study proposes a passive solution to the problem, optimizing the shape of the glass to ensure minimum heat transfer, with no use of insulating materials. The glass was modeled as a body of revolution generated by a smooth curve S, made of material with negligible thermal resistance at the revolution surface and insulated at the bottom. The result obtained is a family of optimum curves, capable of generating a glass thaat can be manufactured by conventional methods.

Keywords:
heat transfer; surface-to-volume ratio; convection; optimum shape

1. Introdução

Uma interessante abordagem no ensino de física consiste em mostrar como problemas do dia-a-dia podem ser abordados pelos conceitos teóricos aprendidos em sala de aula. Exemplos deste tipo de tratamento são raros, senão inexistentes, em revistas científicas destinadas a especialistas, mas revistas destinadas ao ensino e à educação oferecem uma boa escolha de temas de interesse.

Em um dos poucos estudo encontrados em uma busca sobre otimização em transferência de calor [1][1] G. Planinsic e M. Vollmer, European Journal of Physics 29, 369 (2008). aplicam-se conceitos básicos da área ao problema do aquecimento de pedaços de queijo. Para citar exemplos recentes de abordagens didáticas em uma diversidade de outras áreas, [2][2] M.E. Zaczeski, C.H. Beckert, T.G. Barros, A.L. Ferreira e T.C. Freitas, Revista Brasileira de Ensino de Física 39, 4307 (2018). apresenta uma discussão sobre alguns aspectos de funcionamento do violão e [3][3] J.L.P. Ribeiro, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, 1309 (2017). calcula a velocidade de um elevador para que a pessoa no seu interior possa observar o pôr do sol continuamente. Já o estudo apresentado por [4][4] F.S. Magnani e S.S. Cunha, Revista Brasileira de Ensino de Física 39, 2311 (2017). determina a máxima velocidade na qual uma motocicleta pode fazer uma curva e quando deve iniciar a frenagem. Em uma interessante análise biomecânica, [5][5] J.F. Miranda, A.M. Brinatti, S.L.R. Silva e M.L.M. Godoy, Revista Brasileira de Ensino de Física 38, 4304 (2016). estuda variações no centro de massa e na estabilidade de quatro posturas tradicionais do Kung-Fu. Por sua vez, [6][6] C.C. Pellegrini e M.S. Rodrigues, Revista Brasileira de Ensino de Física 37, 2307 (2015). utiliza conceitos da engenharia aeronáutica para avaliar a dinâmica da decolagem e do pouso de veículos aéreos não tripulados. A presente lista poder-se-ia estender literalmente por centenas de artigos, focados nas mais diversas áreas mas, como dissemos, pouco é encontrado em transferência de calor.

Ainda em relação à problemas do dia-a-dia, algumas soluções matemáticas bem conhecidas têm chamado a atenção dos estudantes. O teorema das quatro cores1 ([7][7] K. Appel e W. Haken, Illinois Journal of Mathematics 21, 429 (1977). e [8][8] K. Appel, W. Haken e J. Koch, Illinois Journal of Mathematics 21, 491 (1977).) e o teorema da esfera peluda2[9][9] M. Eisenberg e R. Guy, The American Mathematical Monthly 86, 571 (1979). são exemplos tradicionais. Mais recentemente, idéias sobre como fazer a divisão de uma pizza em um número arbitrário de partes de forma não convencional [10][10] H. Humenberger, The Mathematics Enthusiast 12, 389 (2015). também se tornaram alvo de interesse.

Os problemas mencionados nos exemplos anteriores, e a infinidade de outros que podem ser encontrados em um busca rápida pela internet, são quase sempre de natureza multi e interdisciplinar e adequados tanto ao ensino de física no ensino médio quanto à graduação em física, engenharia ou matemática, no nível básico.

Inspirado pelo estudo sobre o corte da pizza, o presente autor imaginou uma análise relacionada à bebida que possivelmente melhor a acompanha: a cerveja. Em países tropicais como o Brasil, um problema recorrente é o de como mantê-la gelada durante o consumo, especialmente em regiões litorâneas.

Tal proposta de estudo não configura uma apologia ao consumo de álcool, que deve ser feito sempre com moderação. Trata-se de ilustrar o alcance dos conhecimentos adquiridos em Transferência de Calor e em Cálculo a problemas cotidianos. Com isso pretendemos estimular uma abordagem racional de problemas em física, abandonando o conceito de que "a teoria na prática é diferente", comum nos cursos de ciências exatas quando entram em cena soluções analíticas. Como contribuição final, porém, também esperamos colaborar para a manutenção da qualidade de nossas cervejas.

O problema de se conservar o líquido contido em um reservatório à temperatura mais baixa possível pode ser remetido, como será mostrado posteriormente, ao de se minimizar a relação área/volume do reservatório. Os gregos já conheciam a resposta à versão bidimensional deste problema, ou seja, já sabiam que o círculo era dentre as figuras planas com um dado perímetro a que possuía maior área, ainda que não pudessem provar isto de maneira rigorosa. Posteriormente descobriu-se também que o sólido que apresentava a menor relação superfície/volume era a esfera. A prova formal, em ambos os casos, teve que esperar até o século XIX. Modernamente, o problema é resolvido utilizando a desigualdade isoperimétrica3 em três dimensões (para a qual existe um variedade de provas) ou o cálculo variacional.

As aplicações do conceito de minimizar (ou maximizar) a relação relação superfície/volume de um sólido são muitas e estendem-se a praticamente todas as áreas. Em química, encontram-se estudos envolvendo reações de todos os tipos, como as de combustão (em motores ou em incêndios), de secagem e de umidificação de partículas. Em biologia, há estudos envolvendo trocas através da pele de seres vivos e da membrana de células, microrganismos ou organelas. Em engenharia, há estudos de transferência de calor em reservatórios e de transferência de calor e massa em sistemas sujeitos à mudança de fase. Em ciências atmosféricas, encontram-se estudos envolvendo a formação de gotas de chuva, de pedaços de granizo e de flocos de neve, assim como a evaporação em vegetais e em corpos de água. Em farmacologia, há estudos sobre a absorção de medicamentos. Desnecessário apontar e existência de uma série de estudos multidisciplinares, com interface entre áreas de estudo distintas. O estudo de [1][1] G. Planinsic e M. Vollmer, European Journal of Physics 29, 369 (2008)., por exemplo, mostra como o conceito de maximizar a relação superfície/volume pode ser aplicado ao aquecimento de pedaços cúbicos de queijo e depois mostram sua relação com o metabolismo animal, tomando o exemplo de ratos, os proverbiais consumidores de queijo.

Em comum a todos os estudos mencionados, porém, está o fato de que o corpo que troca calor não muda de forma durante o processo, isto é, o problema é transiente apenas em relação à temperatura. Alguns estudos em secagem, referenciados em [11][11] L.J. Mendes, O.J. Venturinni e E.E.S. Lora, in Anais da 12th International Conference on Energy for a Clean Environment, editado por M. Costa, P. Coelho, J. Pereira, V. Semião, R. Weber e M. Xu, (Instituto Superior Técnico, Lisboa, 2015), consideram a mudança de tamanho, mas não de formato. Este, contudo, não é o caso quando se considera um copo de líquido durante o consumo.

Deste modo, a pergunta que pretendemos responder aqui é: qual é a solução ótima para um problema transiente de transferência de calor também no formato? Mesmo para um copo cilíndrico, o formato muda, uma vez que a área lateral se reduz mas a área superior se conserva ao longo do consumo. Em outras palavras, qual o formato do copo ideal para minimizar a troca de calor durante o consumo da bebida?

A proposta do presente trabalho é, portanto, encontrar analiticamente o formato ideal para um copo que minimize a TRC enquanto a cerveja é consumida. Propõe-se assim obter um sistema passivo de preservação da qualidade e da palatabilidade da bebida, como seguramente o desejam os bons apreciadores. Enfatiza-se a característica analítica da solução, que permite uma compreensão mais profunda do fenômeno.

2. Revisão de Transferência de Calor

A seção a seguir apresenta uma revisão de tópicos introdutórios em Transferência de Calor (TRC, daqui por diante). Ela se destina aos que não estejam familiarizados com o assunto, podendo ser omitida sem perda de continuidade. Diversos textos em língua portuguesa apresentam o conteúdo que será revisado, de forma clara e didática. Como exemplo de textos frenquentemente adotados em cursos de graduação em Engenharia citamos [12][12] F.P. Incropera e D. P. DeWitt, Fundamentos de Transferência de Calor e de Massa (LTC, Rio de Janeiro, 2014).

[13] Y.A. Cengel e A.J. Ghajar, Transferência de Calor e Massa - Uma Abordagem Prática (McGraw Hill, São Paulo, 2012).

[14] F. Kreith, R.M. Manglik e M. S. Bohn Princípios De Transferência De Calor (Cengage Learning, São Paulo, 2014)

[15] F.W. Schmidt, R.E. Henderson e C.H. Wolgemuth, Introdução às Ciências Térmicas (Edgard Blücher, São Paulo, 1996).
-[16][16] M.N. Ozisk, Transferência de Calor - Um texto básico (Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1990)..

Transferência de calor é o fluxo de energia que se estabelece em um sistema devido a uma distribuição desigual de temperatura [12][12] F.P. Incropera e D. P. DeWitt, Fundamentos de Transferência de Calor e de Massa (LTC, Rio de Janeiro, 2014).. É vista como uma forma da lei natural da tendencia ao equilíbrio [17][17] C.P. Livi Fundamentos de Fenômenos de Transporte (LTC, Rio de Janeiro, 2012).: sempre que um sistema apresenta uma distribuição desigual de alguma grandeza intensiva (a temperatura, neste caso), um fluxo da grandeza extensiva associada (o calor, neste caso) aparece para restaurar o equilíbrio.

A TRC pode ocorrer com ou sem a presença de um meio interveniente. Na presença de um meio interveniente estacionário, seja sólido ou fluido, a TRC ocorre pelo modo conhecido como condução. Na presença de um meio móvel, estabelece-se a TRC por convecção. Finalmente, na ausência de um meio interveniente, ocorre a TRC por radiação. Em geral, dois ou mais dos modos citados coexistem. A figura 1 ilustra os processos, que serão detalhados a seguir.

Figura 1
Modos de Transferência de Calor. Fonte: [12][12] F.P. Incropera e D. P. DeWitt, Fundamentos de Transferência de Calor e de Massa (LTC, Rio de Janeiro, 2014).

2.1. Condução

A TRC por condução ocorre devido à transferência de energia cinética entre as partículas microscópicas que compõe a matéria, indo das mais energéticas para as menos, sem movimentação macroscópica do meio. Esta energia está relacionada a diversos tipos de movimentos microscópicos das partículas: translação, rotação e vibração das moléculas em fluidos, ondas da estrutura reticular e/ou movimento de elétrons livres em sólidos. Condução é a forma típica de TRC em sólidos. Por exemplo, o cabo de uma colher metálica cuja ponta foi colocada no fogo eventualmente se aquecerá.

A relação entre o fluxo de calor em uma dada direção, x, e a taxa de variação da temperatura em um meio nesta mesma direção, T/x, é dada pela Lei de Fourier, de natureza experimental:

(1) q x " = k T x

em que qx"=dqx/dt é o fluxo de calor na direção x, sendo qx=dQx/dt a taxa temporal de transferência de calor e Qx o calor, A a área perpendicular à direção x e k a condutividade térmica, uma propriedade de transporte do meio. Valores tabelados de k podem ser encontrados em qualquer texto introdutório sobre o assunto. O sinal negativo é introduzido na equação (1) como convenção, para que o calor flua das temperaturas mais altas para as mais baixas.

Os materiais que apresentam maior condutividade térmica são, em geral, os metais. Neles o calor é transmitido tanto por ondas da estrutura reticular quando pelo movimento de elétrons livres e, não por coincidência, a maioria dos bons condutores de eletricidade também é bom condutor de calor. Líquidos apresentam condutividade menor que os sólidos, pois não há estrutura reticular nem elétrons livres. Nos gases, a condutividade é ainda menor pois as distancias intermoleculares são consideravelmente maiores.

2.2. Convecção

O modo de TRC conhecido como convecção, nada mais é do que condução de calor em um meio móvel, necessariamente um fluido. Na convecção, além da transferência de calor por processos associados à condução, ou seja, translação, rotação e vibração das moléculas, a energia também é transportada pelo movimento macroscópico do meio. Tal movimento pode ter duas origens distintas: (i) o movimento é naturalmente originado pelas diferenças de temperatura no fluido e suas correspondentes variações de densidade, que originam forças de flutuação; (ii) o movimento é externamente imposto por alguma forçante como um gradiente de pressão, o campo gravitacional ou uma máquina. O primeiro caso é conhecido por convecção natural (ou livre) e o segundo por convecção forçada. Na verdade, uma vez que a convecção forçada põe em contato parcelas de fluido a temperaturas distintas, a convecção natural também se estabelece, de modo que não exste convecção forçada pura. Quando os texto acadêmicos se referem a este caso, estão na verdade falando de um processo de convecção predominantemente forçada.

A relação entre o fluxo de calor convectivo e a diferença de temperaturas entre a superfície sólida de um corpo e o fluido que o envolve, é dada pela Lei do resfriamento de Newton, de natureza também experimental:

(2) q = h ( T s T )

em que Ts é a temperatura da superfície do corpo, T é a temperatura do fluido não perturbado termicamente pelo corpo e h é o coeficiente de TRC por convecção. Infelizmente, h é uma propriedade do escoamento e não apenas do fluido. Ela só pode ser conhecida através de valores típicos ou calculada usando métodos analíticos avançados. Para os efeitos do presente estudo, h será considerado conhecido.

Valore típicos de h são apresentados na figura 2. Fica evidente a maior efetividade da TRC por convecção forçada, sendo o h correspondente uma ou mais ordens de grandeza superior ao caso equivalente em convecção natural. Isso é evidente se considerarmos que, como dito, a convecção forçada inclui a natural.

Figura 2
Coeficiente de TRC por convecção. Fonte: [12][12] F.P. Incropera e D. P. DeWitt, Fundamentos de Transferência de Calor e de Massa (LTC, Rio de Janeiro, 2014).

Na forma como está escrita, a equação (2) presume, como o fez Newton, que o fluido está resfriando o corpo, ou seja, que Ts>T. Ela permanece válida caso o fluido esteja aquecendo o corpo, ou seja, caso Ts<T, bastando inverter os termos no parênteses. Pode-se também usar sempre a forma apresentada na equação (2) e convencionar que calor saindo do corpo é positivo, enquanto calor entrando é negativo.

Convecção é o processo de TRC típico de corpos imerso em fluidos. A convecção forçada é o modo preferido em aplicações industriais, devido ao controle do fluxo de calor possível através da variação das propriedades do escoamento forçado, em especial do tipo e da velocidade do fluido. A convecção natural é usada por medida de economia, uma vez que não requer energia, sempre que o fluxo de calor obtido seja capaz de suprir a demanda do processo.

2.3. Radiação

Radiação térmica é o modo de TRC que ocorre sem a necessidade de um meio interveniente. É a forma que Natureza encontrou para equilibrar as diferenças de temperatura de corpos separados entre si pelo vácuo.

A emissão de radiação ocorre a partir de qualquer corpo que se encontre acima do zero absoluto e é atribuída a mudança nas configurações eletrônicas dos átomos ou moléculas constituintes do corpo. Neste caso, a energia é transportada por ondas eletromagnéticas (ou fótons, alternativamente). A TRC por radiação também ocorre entre corpos separados por um meio interveniente, como o ar, mas de forma menos eficiente, uma vez que o meio absorve, reflete e dispersa parte da energia.

O fluxo de calor radiante emitido por um corpo pode ser calculado pela Lei de Stephan-Boltzmann:

(3) q = σ ε T 4

em que T é a temperatura do corpo em Kelvin, σ=5, 67×108 W.m2K4 é a constante de Stephan-Boltzmann e ε é a emissividade, uma propriedade radiativa das superfícies do corpos (material, tipo de superfície e acabamento superficial). A emissividade possui valores na faixa 0ε1, sendo assim uma medida da eficiência com que um corpo real emite radiação em relação a um corpo ideal (ou corpo negro, em que ε=1). Os valores tabelados de ε podem ser encontrados nos textos introdutórios sobre o assunto.

Como todos os corpos trocam radiação térmica entre si, é mais comum desejar-se calcular a radiação líquida trocada entre dois corpos do que simplesmente a radiação emitida por um. Porém, nem toda a energia que chega a um corpo é absorvida: parte é refletida e parte é possivelmente transmitida (caso de corpos transparentes ao tipo de radiação incidente). A relação entre a energia absorvida e a energia incidente é denominada absortividade, α, de modo que qabs"=αqemit". A absortividade é também uma propriedade radiativa das superfícies e 0α1.

Deste modo, calculando a energia radiativa líquida emitida por um corpo com temperatura T, exposto a uma vizinhança mais fria, com temperatura Tviz, levando em consideração que qabs"=αqemit, segue-se

(4) q = σ ε ( T 4 σ T v i z 4 )

Como se pode perceber, devido ao baixo valor de σ e ao expoente 4 na equação (4), a radiação térmica só se torna relevante em temperaturas consideravelmente acima da ambiente. A radiação é o processo de TRC típico de problemas de combustão e de uso de energia solar.

2.4. Conservação da energia térmica

A lei da conservação da energia, ou a Primeira Lei da Termodinâmica, afirma que a variação da Energia interna, ΔU, de um sistema durante um processo é a diferença entre a quantidade de calor, Q, trocada com o ambiente, e o trabalho, W, realizado , isto é,

(5) Δ U = Q - W

Esta lei, válida para sistemas fechados, de massa fixa, pode ser aplicada também a volumes de controle (VC), definidos como uma região delimitada do espaço, por cujas fronteiras a massa pode passar (figura 3). O resultado pode obtido por aplicação do Teorema de Transporte de Reynolds [18][18] Y.A. Cengel e J.M. Cimbala, Mecânica dos Fluidos (McGraw Hill, São Paulo, 2015)., mas sua dedução será omitida, por ser trabalhosa e levar a uma conclusão de certa maneira previsível. Em casos em que a interação com o ambiente seja puramente térmica, segue-se que

Figura 3
Conservação da energia: (a) em um sistema fechado; (b) em um VC. Fonte: [12][12] F.P. Incropera e D. P. DeWitt, Fundamentos de Transferência de Calor e de Massa (LTC, Rio de Janeiro, 2014).
(6) Q a c = Q e Q s + Q g

em que os índices ac, e, s, e g referem-se ao calor que se acumula, entra, sai e é convertido (ou “gerado”) no VC.

Alguns livros texto de TRC [12][12] F.P. Incropera e D. P. DeWitt, Fundamentos de Transferência de Calor e de Massa (LTC, Rio de Janeiro, 2014). e [14][14] F. Kreith, R.M. Manglik e M. S. Bohn Princípios De Transferência De Calor (Cengage Learning, São Paulo, 2014), por exemplo) utilizam a equação (6) como um enunciado da Primeira Lei da Termodinâmica, afirmando que a energia térmica acumulada no VC deve ser igual à diferença entre a energia que entra e a que sai do VC, acrescida da energia internamente convertida. Ainda que este seja um fato tão evidente que pareça ser válido como enunciado da Primeira Lei, é importante enfatizar que o enunciado padrão desta lei encontra-se expresso na equação (5) e só leva à equação (6) pelo uso do Teorema de Transporte de Reynolds e desprezando-se efeitos mecânicos.

A equação (6) pode ser diferenciada em relação ao tempo, fornecendo a equação da conservação da energia térmica por unidade de tempo:

(7) q a c = q e q s + q g

em que q=dQ/dt.

2.5. A equação geral da transferência de calor por condução

Para poder aplicar a equação (7) seus termos precisam ser devidamente modelados. Tomando um VC genérico em forma de paralelepípedo diferencial (figura 4) e aplicando a Lei de Fourier, equação (1), na direção dos três eixos cartesianos tem-se:

Figura 4
Volume de controle diferencial genérico. Fonte: [12][12] F.P. Incropera e D. P. DeWitt, Fundamentos de Transferência de Calor e de Massa (LTC, Rio de Janeiro, 2014).
(8) q ' ' x = - k x T x , q ' ' y = - k y T y , q ' ' z = - k z T z

Lembando que q=dq/dA e supondo k independente da direção (meio isotrópico4) segue-se

(9) q x = k T x d y d z q y = k T y d x d z q z = k T z d x d y

Para utilizar as equações (9) para calcular a diferença entre as parcelas de calor saindo e entrando do VC na equação (7), pode-se usar a expressão da diferencial total de uma função. Para qy=qy(x,y,z,t) por exemplo:

(10) d q y = q y t d t + q y x d x + q y y d y + q y z d z

Cadas termo desta equação pode ser interpretado como a variação de qy em t, x, y e z. Assim, a diferença entre as parcelas de calor saindo e entrando na direção y, ou seja, qysqye seria a variação de qy na direção y ao longo das faces do paralelepípedo, dada na equação (10) por (qy/y)dy, ou seja,

(11) q y s - q y e = q y y d y = - y ( k T y ) d x d y d z

O mesmo resultado poderia ter sido obtido expandindo qys=qy(y+dy) em série de Taylor em torno do ponto y, o método adotado pela maioria dos livros texto. O raciocínio aqui utilizado nos parece mais intuitivo e é válido para as parcelas de calor saindo e entrando do VC nas outras direções:

(12) q x s - q x e = q x x d x = - x ( k T x ) d x d y d z
(13) q z s - q z e = q z z d z = - z ( k T z ) d x d y d z

Totalizando o calor entrando e saindo do VC da figura 4 nas três direções resulta

(14) q e - q s = [ x ( k T x ) + y ( k T y ) + z ( k T z ) ] d x d y d z

Pela definição de calor específico tem-se

(15) c p = 1 d m d Q a c d T

Rearranjando e derivando no tempo, segue-se

(16) q a c = c p d m d T d t

Pela definição de massa específica, ρ=dm/dV, sendo dV=dxdydz o volume. Assim, a equação (16) torna-se

(17) q a c = ρ c p d T d t d x d y d z

Substituindo as equações (14) e (17) na equação (7) e dividindo por dV resulta

(18) ρ c p d T d t = [ x ( k T x ) + y ( k T y ) + z ( k T z ) ] + q ˙ g

em que q˙g é o calor convertido no VC por unidade de volume. Esta é a equação diferencial geral da TRC por condução em um meio isotrópico.

2.6. Condução de calor unidimensional, permanente

Imaginemos uma grande placa feita de material isotrópico, com temperaturas fixas e conhecidas, T1 e T2 em suas faces, como mostra a figura 5. No presente contexto, a palavra “grande” significa uma placa muito mais alta e larga do que espessa, de modo que o fluxo de calor possa ser considerado unidimensional, apenas na direção x.

Figura 5
TRC de calor por condução unidimensional. Fonte: [12][12] F.P. Incropera e D. P. DeWitt, Fundamentos de Transferência de Calor e de Massa (LTC, Rio de Janeiro, 2014).

Consideraremos ainda regime permanente5 e ausência de conversão interna de calor. Neste caso a equação (18) simplifica-se para

(19) x ( k T x ) = 0

Supondo-se que k seja independe da temperatura6 e integrando-se duas vezes obtemos T(x)=C1+C2x. Substituindo-se as condições de fronteira T(0)=T1 e T(L)=T2, resulta

(20) T ( x ) = T 1 - ( T 1 - T 2 ) x L

para a distribuição de temperaturas. Usando a equação (1) e a relação q=dq/dA obtém-se

(21) q = k A ( T 1 - T 2 ) L = k A Δ T L

para o fluxo de calor, sendo ΔT a diferença entre a temperatura mais alta e a mais baixa.

2.7. Resistência térmica

A equação (22) pode ser reescrita como

(22) Δ T = q ( L k A )

A equação (22) pode ser pensada como um análogo térmico da Lei de Ohm, ΔV=Ri. Em ambas, uma diferença de potencial (tensão na Lei de Ohm e temperatura na equação da TRC) gera o fluxo de uma grandeza (corrente elétrica na Lei de Ohm e calor na equação da TRC) através de um meio material, cuja resistência à passagem do fluxo é conhecida. Pela analogia, faz sentido definir a resistência térmica à condução de calor como

(23) R cd L k A

O mesmo pode ser feito para processo unidimensionais e permanentes de TRC por convecção. Reescrevendo-se a equação (2) como q=hAΔT, podemos definir

(24) R cv 1 h A

Em ambos os casos, a taxa de transferência de calor pode ser calculada pela equação sugerida pela analogia, isto é, por

(25) q = Δ T R

usando a expressão adequada para a resistência térmica.

O conceito de resistência térmica não seria muito útil, porém, se as resistências térmicas não pudessem ser associadas entre si como se faz com as resistências elétricas. Suponha, então, que na figura 5 haja um gás quente à esquerda da placa (em x<0) transferindo calor para a sua face esquerda por convecção. A placa, por sua vez, transfere este calor até sua face direita por condução (em 0xL). Lá, finalmente o calor é transferido por convecção para o ar ambiente à direita (em x>L). Um exemplo, seria a parede de um forno. Sejam Tint e Tamb as temperaturas interna e do ambiente, não afetadas pela parede, respectivamente. Como o fluxo de calor é único, podemos escrever a equação (25) para o processo na forma:

(26) q = T int - T 1 R int cv = T 1 - T 2 R cd = T 2 - T amb R ext cv

ou seja,

(27) T int - T 1 = q R int cv T 1 - T 2 = q R cd T 2 - T amb = q R ext cv

Somando-se os dois lados das equações (27) segue-se

(28) T int - T amb = q ( R int cv + R cd + R ext cv )

de onde percebe-se que a equação (25) pode ser utilizada, substituindo-se ΔT pela diferença global de temperatura e R pela soma das resistências do circuito térmico equivalente, exatamente como se faz com os circuitos elétricos em série.

O raciocínio anterior pode ser generalizado para N resistências térmicas em série e em paralelo, implicando que, à semelhança dos circuitos elétricos, numa associação em série

(29) R tot = i = 1 N R i

e numa associação em paralelo

(30) 1 R tot = i = 1 N 1 R i

O conceito de resistência térmica é extremamente útil na resolução de problemas com modos combinados de TRC. Ele também pode ser generalizado para coordenadas cilíndricas e esféricas, muito comuns nas áreas de engenharia e geociências. Deduzir tais resultados encontra-se, contudo, além do escopo do presente artigo. Tais deduções podem ser encontradas nos diversos livros texto mencionados anteriormente. Em geometria cilíndrica resulta

(31) R cd = ln ( r e / r i ) 2 π L k

para a resistência térmica condutiva de um cilindro oco, sendo re e ri seus raios externo e interno respectivamente, e L seu comprimento, e

(32) R cv = 1 h A

para a resistência térmica convectiva externa do cilindro, sendo A=2πreL.

2.8. Isolamento térmico otimizado de um cabo condutor de eletricidade

Para exemplificar o uso do conceito de associação de resistências térmicas, vamos revisar um problema clássico de otimização, introduzindo o nosso objetivo final neste artigo.

Imaginemos um cabo elétrico aquecido por efeito Joule, com raio ri, recoberto por uma camada de isolante elétrico de raio re, como mostra a figura 6. À medida que a espessura do isolamento aumenta, a TRC por condução diminui mas a TRC por convecção aumenta, uma vez que a área superficial externa também aumenta. Isso sugere a existência de uma espessura ótima de isolamento capaz de sl maximizar a TRC, criando um isolamento elétrico sl mínimo, capaz de manter o cabo resfriado. A solução tem grande interesse em projetos elétricos.

Figura 6
Cabo elétrico envolvido por isolamento.

Supondo h, T1, T2 e Tamb conhecidos, a resistência térmica total do isolamento é

(33) R tot = ln ( r e / r i ) 2 π L k + 1 2 π r e L h

Considerando ri constante, a resistência mínima procurada ocorrerá em re tal que dRtot/dre=0, ou seja, em

(34) 1 2 π L k r e - 1 2 π r e 2 L h = 0

e, portanto em

(35) r e = k h

Para confirmar que este é o mínimo da função, precisamos avaliar a segunda derivada, ou seja,

(36) d 2 R tot d r e 2 = - 1 2 π L k r e 2 + 1 π r e 3 L h

em re=k/h. O resultado é d2Rtot/dre2=h2/2πLk3>0, demonstrando, portanto, tratar-se de um mínimo da função.

3. Análise térmica do problema do copo

Suponhamos um copo destinado a conter líquidos, assentado sobre uma superfície plana, como mostra a figura 7. Supondo que se trata de uma bebida destinada a ser consumida à temperatura distinta da ambiente, como a cerveja, uma vez servida, a bebida começa a trocar calor com a vizinhança até que sua temperatura se iguale à do copo e do meio, em um processo transiente de TRC.

Figura 7
Elementos de um copo genérico.

Para conservar o líquido a baixa temperatura por tanto tempo quanto possível, é necessário reduzir o calor trocado entre este e o ambiente, à medida que ele vai sendo consumido. Existem diversos métodos práticos para atingir este objetivo, como o uso de isolantes à base de poliestireno expandido (EPS ou Isopor®), muito usado com latas e garrafas, e o uso de alças em canecas, para evitar que o calor da mão seja transferido para o copo. Segundo os especialistas, também é importante a manutenção de uma camada de espuma sobre a cerveja, que devido à sua baixa condutividade, atua como isolante térmico, além de evitar a perda excessiva de CO2. Nenhuma destas estratégias, contudo, será abordada aqui.

Para que o problema possa ser tratado matematicamente, faremos algumas hipóteses sobre o copo. Vamos supor que o copo seja um corpo de revolução, gerado pela rotação de uma curva S, diferenciável de classe C1, em torno do eixo vertical, y. Seja h a altura do líquido no copo (figura 7) em um instante qualquer ao longo do consumo da bebida e r o raio do copo correspondente. Neste caso, r0 , r(0)=R (o raio da base do copo), r(H)=Rb (o raio da boca do copo) e 0hH. Vamos também supor que o material do copo possui resistência térmica desprezível nas laterais mas tem o fundo isolado.

As hipóteses anteriores são justificáveis na prática. Vasilhames que não são corpos de revolução (como certas garrafas não retornáveis de cerveja) são incomuns; a maioria é axissimétrica. O vidro das laterais tende a ser fino enquanto o fundo tende a ser feito de material mais espesso, por questões de resistência mecânica, e repousa sobre uma mesa, balcão de madeira, ou lâmina de papelão (a famosa "bolacha"), todos materiais de baixa condutividade.

Sobre o conteúdo do copo, vamos supor que o líquido apresenta temperatura uniforme durante o consumo, encontrando-se em equilíbrio quase-estático no sentido termodinâmico. Trata-se, portanto, de um aquecimento lento, o que presume uma diferença de temperatura moderada com o ambiente, e de um consumo realizado por goles pequenos. Desta forma, a temperatura do líquido só depende do tempo, ou seja, T = T(t).

Vamos ainda considerar o líquido como sendo homogêneo, de modo que sua massa específica seja dada por ρ=dm/dV=m/V. Isso é válido para a maioria das cervejas filtradas que não formam acúmulos no fundo, inclusive as Weizenbier. Algumas cervejas artesanais não são filtradas intencionalmente, gerando pequenas quantidades de sedimentos de leveduras, caso que não abordaremos.

De posse das hipóteses anteriores, podemos aplicar a equação (7) ao VC adotado. Como mostra a figura 7, o VC escolhido coincide com a superfície externa da copo até a altura da espuma, corta o vidro nesta altura e acompanha a superfície externa da espuma. Supondo que não há calor gerado no líquido (i.e., terminada a fermentação) e que se trata de uma bebida fria (i.e., qs=0), resulta

(37) q a c = q e

em que qe entra através do vidro lateral e da espuma. Utilizando o conceito de resistência térmica apresentado na equação (27) para estas parcelas de calor têm-se

(38) q a c = T - T amb R lat + T - T amb R esp

em que T=T(t) é a temperatura espacialmente uniforme do líquido.

Cada uma das resistências térmicas da equação (38) é composta por outras duas resistências associadas em série: convecção na superfície externa e condução através do material. Aplicando-se, além disso a equação (17) ao VC do problema, que tem volume V, resulta

(39) ρ V c p d T d t = T - T amb R lat cv + R lat cd + T - T amb R esp cv + R esp cd

Para não obter um problema iterativo, desprezaremos (como dito anteriormente) a resistência térmica condutiva do vidro lateral, Rlatcd, pois ela depende do formato da superfície, ainda não determinado. Supondo o caso crítico e desprezando também o isolamento da espuma, Respcd, segue-se

(40) ρ V c p d T d t = T - T amb R lat cv + T - T amb R esp cv

Substituindo Rcv=1/(hcvA), resulta

(41) ρ V c p d T d t = h cv A tot ( T - T amb )

em que Atot é a área total de TRC, isto é, a soma das áreas lateral e da boca do copo.

A equação (41) nos diz que, diante das hipóteses feitas, a variação da temperatura resulta da TRC convectiva pela lateral e pela boca do copo. Desprezar o isolamento condutivo da espuma nos remete ao caso crítico do problema8 8 Desde que o limite de integração superior coincida com a variável diferenciada, como neste caso ou seja, aquele em que o formato do copo é o único responsável por preservar a temperatura do líquido. O mesmo se aplica ao isolamento condutivo do material do copo.

A equação (41) não será resolvida diretamente aqui. Ela e suas predecessoras nos sugerem, porém, algumas formas de manter o líquido frio por mais tempo. Para reduzir dT/dt, pode-se reduzir (T - Tamb), mantendo a copo em um ambiente fresco. Também é importante evitar a entrada de calor radiante pelo sol -- o que representaria um termo a mais na equação (38). Também fica claro na equação (39) a importância da espuma, que ao aumentar a soma das resistências no denominador, diminui dT/dt. Interessante também é a possibilidade de se aumentar a resistência térmica condutiva das laterais, usando um material espesso e isolante, como a cerâmica. Esta estratégia é por vezes empregadas em canecas de grande porte mas, infelizmente, torna a tornar o contato labial desconfortável.

Por fim, uma forma pouco lembrada de reduzir dT/dt consiste em manter a copo longe de correntes de ar. Com isso garante-se a convecção seja natural e não forçada. À beira-mar, onde ventos quentes e intensos tendem a persistir durante as horas do dia, a dificuldade em se usar essa estratégia este é um problema bem conhecido.

Rearranjando a equação (41) resulta, finalmente

(42) d T d t = h cv ρ c p ( A tot V ) ( T - T amb )

A equação (42) é a EDO que governa o problema. Elas é uma relação implícita para o cálculo de T(t), como ocorre na maioria dos problemas de TRC, mas poderia ser facilmente resolvida para uma geometria conhecida, uma vez que é do tipo separável. Rescrevendo-a como dΘ/Θ=Bdt em que Θ=T-Tamb e B=hcvAtot/(ρVcp), obtém-se facilmente uma solução que tende exponencialmente para Θ=0. Contudo, estamos interessados na busca da melhor solução à medida que o líquido é consumido e, portanto, que a razão Atot/V varia com o tempo.

Supondo, sem perda de generalidade, um determinado instante fixo do tempo, a equação (42) mostra que a taxa de variação instantânea da temperatura do líquido, dT/dt, é tão menor quanto menor for a relação Atot/V para um dado valor fixo de hcv/(ρcp). Deste modo, minimizar a TRC reduz-se a minimizar a relação Atot/V, assunto que será tratado na próxima seção.

4. Análise matemática do problema

Para a análise matemática da equação (41), referencia-mo-nos às figuras 7 e 8. A figura 8 mostra o copo tombado e sua curva geratriz, S, identificada por r=r(h), com r0 , r(0)=R, r(H)=Rb e 0hH. A presumida continuidade e derivabilidade de r(h) convêm tanto à análise matemática quanto ao processo de fabricação do copo. O raio Rb refere-se ao limite do líquido, que pode não coincidir com o do copo. Por motivos óbvios, r = 0 possivelmente apenas em h = 0.

Figura 8
Curva geratriz do copo

Encontrar um mínimo para a relação superfície--volume, significa exigir que

(43) d d h ( A tot V ) = 0

em que Atot e V variam com h à medida que o líquido é consumido. Calculando a derivada do quociente resulta

(44) A ' tot V - A tot V ' V 2 = 0

Considerando que V0 e Atot0 segue-se que

(45) A ' tot A tot = V ' V

Integrando-se resulta lnAtot=lnV+C0 e, portanto,

(46) A tot = C 1 V

em que C1 é uma constante dimensional (dimensão L-1) a ser examinada posteriormente.

Lembrando que consideramos o fundo isolado e usando as fórmulas do Cálculo para a superfície e o volume de um corpo de revolução, isto é,

(47) A lat = 2 π 0 h r 1 + r ' 2 d h

e

(48) V = π 0 h r 2 d h

a equação (46) torna-se

(49) π r 2 + 2 π 0 h r 1 + r ' 2 d h = C 1 π 0 h r 2 d h

Derivando-se a equação anterior em relação a h, lembrando que o teorema fundamental do cálculo garante que a derivada de uma integral é o próprio integrando8 8 Desde que o limite de integração superior coincida com a variável diferenciada, como neste caso , resulta

(50) 2 π r r ' + 2 π r 1 + r ' 2 = 2 C 2 π r 2

em que escolhemos C2=C1/2 por conveniência algébrica.

A equação anterior pode ser dividida por 2πr, uma vez que r0, exceto possivelmente em h = 0. Segue-se

(51) 1 + r ' 2 = C 2 r - r '

Elevando ambos os lados ao quadrado e simplificando resulta

(52) 1 = C 2 2 r 2 - 2 C 2 r r '

Esta é uma EDO separável que pode ser reescrita como

(53) 0 h d h = R r 2 C 2 r C 2 2 r 2 - 1 d r

e integrada substituindo η=C22r2-1. Resulta

(54) h = 1 C 2 ln ( C 2 2 r 2 - 1 ) - 1 C 2 ln ( C 2 2 R 2 - 1 )

Como h, o segundo logaritmo exclui a possibilidade de que R = 0 no fundo do copo. Lembrando que C1=2C2 e rearranjando segue-se

(55) h = 2 C 1 ln ( C 1 2 r 2 - 4 C 1 2 R 2 - 4 )

Esta equação pode ser invertida para fornecer r = r(h) na forma

(56) r = 1 C 1 4 + ( C 1 2 R 2 - 4 ) e C 1 h / 2

que nos dá o raio ótimo para troca de calor a cada altura h, durante o consumo da bebida.

A equação anterior permite calcular a área total e o volume do copo, integrando as equações (47) e (48) entre os limites 0 e H. Resulta:

(57) A tot = π C 1 2 ( 4 C 1 h + 2 ( C 1 2 R 2 - 4 ) e C 1 h / 2 )
(58) V = π C 1 3 ( 4 C 1 h + 2 ( C 1 2 R 2 - 4 ) e C 1 h / 2 )

A influência de C1 e R sobre o comportamento da solução e, portanto, sobre o formato do copo, serão discutidos na próxima seção.

4.1. O comportamento da função r = r(h)

A relação entre o raio do copo e sua altura, expressa pela equação (56), é uma dependência exponencial de r com h atenuada por uma raiz quadrada. Deve-se esperar, portanto, um crescimento relativamente rápido de r com h, afetado pelos parâmetros C1 e R.

Uma análise cuidadosa das equações anteriores mostra que o valor de C1 não pode ser escolhido arbitrariamente. Em primeiro lugar, pela equação (46), verifica-se que C1>0. Além disso, para que a condição ótima seja satisfeita com h é necessário que o argumento do logaritmo seja positivo na equação (55), isto é, que (C12r2-4) e (C12R2-4) tenham o mesmo sinal. Isso implica ter-se |C1r|>2 ou |C1r|<2 para todo r, inclusive r = R, ou seja -2>C1r>2 ou -2<C1r<2. Como C1>0, ficam excluídos os intervalos negativos e resulta simplesmente

(59) C 1 r 2 e C 1 > 0

para todo r, inclusive r = R.

Para verificar se a curva S possui pontos críticos, pode-se explicitar r' na na equação (52) com C1=2C2 e obter-se

(60) r ' = C 1 r 4 - 1 C 1 r

Fazendo-se r'=0 na equação (60) segue-se que C12r2=4. Comparando esta condição à equação (59), verifica-se que a função não possui máximo ou mínimo e, portanto, cresce ou decresce monotonicamente. Como C1r2, tem-se:

  • Caso C1r>2: o primeiro termo do lado direito da equação (60) é maior que 1/2 e o segundo menor que 1/2. Logo r'>0 e a função r é crescente para 0hH.

  • Caso C1r<2: o primeiro termo do lado direito da equação (60) é menor que 1/2 e o segundo maior que 1/2. Logo r'<0 e a função r é decrescente para 0hH.

Intuitivamente, porém, o caso r decrescente implicaria em que quanto mais vazio o copo e, portanto, menor o volume do líquido, maior seria a área relativa de TRC. Isso indica tratar-se de um máximo da função Atot/V ao invés de um mínimo. Este fato precisaria ser provado pelo sinal da segunda derivada de Atot/V, mas nossas tentativas analíticas mostraram-se infrutíferas devido à complexidade matemática da expressão.

Aceitando, por enquanto, o resultado anterior, tem-se

(61) C 1 r > 2

para RrRb.

4.2. Sobre os possíveis valores de C1 e R

Para avaliar os valores que C1 e R podem adotar e a relação que eles devem manter entre si, caso haja, voltemos à equação (55). Percebe-se que à medida que C1R2 para um r fixo, o argumento do logaritmo cresce ilimitadamente e, portanto, h para qualquer C1 finito. Isso significa que próximo ao limite C1R=2, só é possível obter a solução ótima para valores de H muito grandes. Entretanto, como observado anteriormente, espera-se um crescimento rápido de r com h, dependendo de C1 e R. Assim, o quão próximo de 2 deve estar C1R para, por um lado, evitar valores de H impraticáveis e, por outro, evitar aumentos muito rápidos de r com h, levando a valores de Rb impraticáveis?

Para responder a esta questão, a equação (55) será reescrita na forma:

(62) e C 1 h / 2 = C 1 2 r 2 - 4 C 1 2 R 2 - 4

Suponhamos, então, que se deseje estabelecer um valor C1R2 tal que Rb não exceda algum limite pratico pré-estabelecido, por exemplo, Rb=5R, por questões de equilíbrio do copo e de limitação de seu volume. Sabemos que este valor representa o máximo raio do copo pois a função r=r(h), dada pela equação (56), é crescente em todo o domínio. Com h = H e Rb=5R a equação (62) torna-se

(63) e C 1 H / 2 = 25 C 1 2 R 2 - 4 C 1 2 R 2 - 4

Contudo, C1R2 implica que 25C12R2-496 e que C12R2-4=ε0. A equação (63) torna-se, então, eC1H/296/ε, ou seja,

(64) ε 96 e - C 1 H / 2

Esta relação será usada na próxima seção para estimar relações entre C1 e R que levem a copos aceitáveis na prática, uma vez que com ε calculado pela equação (63), a definição εC12R2-4 leva a

(65) C 1 R = ε + 4

É importante salientar que a equação (65) é implícita, com C1 visível do lado esquerdo e embutido em ε do lado direito. Para utilizá-la, um valor inicial para C1 deve ser estimado escolhendo o valor desejado para R e usando a aproximação C1R=2. O valor resultante de C1 deve ser substituído na equação (64), com o H escolhido, para obter ε e este então substituído na equação (65) para obter a estimativa final de C1. Por tratar-se de um valor usado apenas como parâmetro no cálculo do raio, não há necessidade de outras iterações e nem de um critério de convergência para C1.

5. Análise dos Resultados

A influência de C1 e R sobre r(h) pode ser vista nas figuras (9) e (10) para copos com H=20,0 cm, altura típica de tulipas comerciais de 500 ml. Verifica-se que tanto C1 quanto R afetam fortemente a curvatura de r(h), como esperado, e que R altera o ponto de interseção com o eixo vertical.

Na figura (9), R=3,0 cm e os valores de C1 diferem por 0,01 cm-1. O valor 0,667 foi calculado pela equação (64) com uma estimativa inicial de C1=2/R=0,666... Percebe-se que o copo com C1=0,697 já não apresenta formato aceitável, com Rb=28,5 cm e impraticáveis 7,77 litros de capacidade.

Figura 9
Curvas S com R=3,0 cm e C1 variando.

Na figura 9 o valor de C1=0,677 foi mantido constante enquanto R variou de 3,0 a 5,0 cm. Novamente os copos representados pelas linhas superiores, com R=4,0 e 5,0 cm não apresentam formato aceitável, com Rb=79,7 e 119,1 cm, respectivamente, e impossíveis 59,36 e 132,14 litros de capacidade.

Figura 10
Curvas S com C1=0,677 cm-1 e R variando.

Fica claro aqui que, como dito anteriormente, nem todos os valores possíveis para C1 e R são aceitáveis na prática, porque Rb e o volume crescem rapidamente, devido à alta sensibilidade da função exponencial a estes parâmetros. Para respeitar C1R>2 com raios da base razoáveis, digamos entre 1 e 5 cm, tem-se C1 entre 2/5 e 2 cm-1. Isso implica em um crescimento aceitável do raio para C12/5 mas inaceitável para C12, resultando em Rb=101 m a 20,0 cm de altura.

Por tentativa e erro, considerando-se a estimativa fornecida pela equação (65) e a alta sensibilidade do problema a R e C1, foi possível obter valores razoáveis para copos de 20,0 cm de altura:

  • Copo 1: R = 3,0 cm e C1=0,677 cm-1, resultando em Rb=15,4 cm e 2,68 litros de capacidade.

  • Copo 2: R = 4,0 cm e C1=0,510 cm-1, resultando em Rb=10,8 cm e 2,22 litros de capacidade.

  • Copo 3: R = 5,0 cm e C1=0,420 cm-1, resultando em Rb=13,3 cm e 3,74 litros de capacidade.

A figura 11 mostra as curvas S destes copos, evidenciando que a forma excessivamente cilíndrica foi evitada. Todos apresentam capacidades consideradas elevadas pela maioria dos consumidores não alcoólatras e um valor de Rb que exige um pé largo para manter o equilíbrio. Valores menores de R obrigariam C1 a crescer, levando a bocas ainda mais largas. Valores maiores de R levariam a valores de C1 pequenos e, portanto, copos muito cilíndricos, que exigiriam um H muito grande, ou a valores de C1 grandes e copos com Rb muito elevado. Aqui, como no caso do corte das pizzas, a solução ótima do problema pode mostrar-se um tanto complicada na prática.

Figura 11
Curvas S para os três copos propostos

A figura 12 mostra croquis em escala dos copos 1 e 3 propostos, com R=3,0 cm e R=5,0 cm, ambos com H=20,0 cm.

Figura 12
Forma de dois dos copos propostos em escala. Esquerda: R= 3,0 cm e 2,68 litros. Direita: R = 5, 0 cm e 3,74 litros.

Uma imagem de um copo comercial semelhante ao copo 3 (figura 12, R = 5,0 cm) pode ser vista na figura 13.

Figura 13
Forma comercial semelhante a um dos copos propostos.

6. Conclusões

O presente trabalho apresenta uma análise do problema da transferência de calor entre o ambiente e o conteúdo de um copo contendo líquido ao longo de seu consumo. A proposta de encontrar um formato ideal para a copo, do ponto de vista de minimizar o calor transferido pelo ambiente, foi resolvida pela equação (56) e fornece um sólido de revolução que pode ser fabricado pelos métodos tradicionais e utilizado no dia-a-dia, desde que alguns limites de fabricação sejam respeitados. O volume pode ser calculado pela equação (58).

A modelagem adotada para o problema utiliza-se de algumas hipóteses, devidamente justificadas ao longo do texto. A copo é um corpo de revolução, gerado pela rotação de uma curva suave S em torno de um eixo vertical. O raio do copo é diferente de zero, mesmo no fundo. O material da copo tem resistência térmica desprezível nas laterais e o fundo é isolado. A espuma é desconsiderada. O líquido é homogêneo e apresenta temperatura uniforme enquanto se aquece. Tanto o aquecimento quanto o consumo são lentos. A TRC devida ao contato com a mão é desconsiderada. Não há efeitos de borda.

Tais hipóteses restringem um pouco a aplicabilidade do resultado mas não comprometem o caráter didático do estudo. Pelo contrário, os estudante devem se perguntar qual seria o resultado levando-se em conta os efeitos desconsiderados. Por exemplo, a inclusão do fundo como elemento de troca térmica na análise é certamente bem simples. Já a inclusão da resistência térmica das laterais do copo deve apresentar-se ligeiramente mais complicada, demandando possivelmente uma análise via volume de controle diferencial, ou transformando a solução em uma análise iterativa.

O estudo também ilustra como soluções analíticas são poderosas, mas exigem atenção aos detalhes. Entender toda a informação contida nos resultados tende a não ser tarefa trivial, mesmo quando a solução matemática do problema é explícita, como aqui, e pouco exige além de conhecimentos básicos de Cálculo para ser obtida.

Soluções analíticas fechadas para problemas físicos são em geral muito bem-vindas, ainda que via de regra representem o resultado de análises simplificadas. Elas oferecem uma visão completa do problema, mostrando explicitamente a influência de todos os parâmetros envolvidos. Uma solução analítica além disso, é quase sempre uma conclusão geral sobre o problema tratado e raramente configura um estudo de caso. Soluções completas deixam claras, também, todas as condições sob as quais o resultado obtido é válido. Essas afirmativas podem parecer um tanto óbvias, mas em tempos de uso tão intenso e descuidado de simulação computacional, elas nos parecem oportunas.

Em conclusão, espera-se que este artigo possa contribuir para ampliar o interesse dos estudantes pela área de transferência de calor, ao aplicar seus conceitos básicos a um tema cotidiano porém relevante, como a cerveja.

  • 1
    Dada qualquer separação de um plano em regiões contíguas, produzindo uma figura chamada mapa, não são necessárias mais do que quatro cores para colorir as regiões do mapa, de modo que não haja duas regiões adjacentes com a mesma cor.
  • 2
    Não se pode pentear uma bola peluda sem criar um redemoinho.
  • 3
    Seja γ uma curva plana fechada e diferenciável por partes de classe C1. Sejam L e A seu perímetro e superfície, respectivamente. A desigualdade isoperimétrica estabelece que 4πAL2, com a igualdade valendo caso γ seja um círculo.
  • 4
    Substâncias isotópicas possuem as mesmas propriedades físicas independentemente da direção considerada. Aqui evidentemente estamos nos referindo apenas à isotropia térmica. Exemplos de substâncias anisotrópicas são a maioria das madeiras, compostas por fibras que possuem comportamento distinto nas direções longitudinal e transversal
  • 5
    O processo atingiu um ponto em que nada mais varia com o tempo.
  • 6
    Uma aproximação razoável para muitas substâncias, como os metais por exemplo, em uma ampla faixa de temperaturas.
  • 7
    E, segundo os entendedores, a uma heresia degustativa
  • 8
    Desde que o limite de integração superior coincida com a variável diferenciada, como neste caso

Referências

  • [1]
    G. Planinsic e M. Vollmer, European Journal of Physics 29, 369 (2008).
  • [2]
    M.E. Zaczeski, C.H. Beckert, T.G. Barros, A.L. Ferreira e T.C. Freitas, Revista Brasileira de Ensino de Física 39, 4307 (2018).
  • [3]
    J.L.P. Ribeiro, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, 1309 (2017).
  • [4]
    F.S. Magnani e S.S. Cunha, Revista Brasileira de Ensino de Física 39, 2311 (2017).
  • [5]
    J.F. Miranda, A.M. Brinatti, S.L.R. Silva e M.L.M. Godoy, Revista Brasileira de Ensino de Física 38, 4304 (2016).
  • [6]
    C.C. Pellegrini e M.S. Rodrigues, Revista Brasileira de Ensino de Física 37, 2307 (2015).
  • [7]
    K. Appel e W. Haken, Illinois Journal of Mathematics 21, 429 (1977).
  • [8]
    K. Appel, W. Haken e J. Koch, Illinois Journal of Mathematics 21, 491 (1977).
  • [9]
    M. Eisenberg e R. Guy, The American Mathematical Monthly 86, 571 (1979).
  • [10]
    H. Humenberger, The Mathematics Enthusiast 12, 389 (2015).
  • [11]
    L.J. Mendes, O.J. Venturinni e E.E.S. Lora, in Anais da 12th International Conference on Energy for a Clean Environment, editado por M. Costa, P. Coelho, J. Pereira, V. Semião, R. Weber e M. Xu, (Instituto Superior Técnico, Lisboa, 2015)
  • [12]
    F.P. Incropera e D. P. DeWitt, Fundamentos de Transferência de Calor e de Massa (LTC, Rio de Janeiro, 2014).
  • [13]
    Y.A. Cengel e A.J. Ghajar, Transferência de Calor e Massa - Uma Abordagem Prática (McGraw Hill, São Paulo, 2012).
  • [14]
    F. Kreith, R.M. Manglik e M. S. Bohn Princípios De Transferência De Calor (Cengage Learning, São Paulo, 2014)
  • [15]
    F.W. Schmidt, R.E. Henderson e C.H. Wolgemuth, Introdução às Ciências Térmicas (Edgard Blücher, São Paulo, 1996).
  • [16]
    M.N. Ozisk, Transferência de Calor - Um texto básico (Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1990).
  • [17]
    C.P. Livi Fundamentos de Fenômenos de Transporte (LTC, Rio de Janeiro, 2012).
  • [18]
    Y.A. Cengel e J.M. Cimbala, Mecânica dos Fluidos (McGraw Hill, São Paulo, 2015).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2019

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2018
  • Revisado
    18 Out 2018
  • Aceito
    14 Nov 2018
Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: marcio@sbfisica.org.br