Resumos
Estudos recentes apontam a importância de investigações mais abrangentes sobre o universo da formação médica, ressaltando que esta é constituída por um complexo quadro de atitudes. O curso é extenuante e, mesmo assim, os estudantes se envolvem com uma infinidade de atividades extras durante a sua formação, construindo um vasto currículo paralelo. Por meio da "triangulação metodológica", investigaram-se as concepções de estudantes de Medicina sobre as vivências e papéis das atividades extracurriculares. O estudo buscou o diálogo entre três diferentes estratégias: aplicação de questionário aos estudantes do primeiro ao sexto ano de Medicina (n = 423), entrevistas individuais (n = 24) e entrevistas em dois grupos focais (n = 14). Os dados revelaram que os estudantes de Medicina identificam seu envolvimento com atividades extracurriculares como uma tentativa de preencher lacunas curriculares, integrar-se com colegas, suplementar o curso, obter bem-estar, atender a indagações profissionais, enfim, múltiplas motivações. A dimensão individual e coletiva da metodologia permitiu que toda a heterogeneidade relativa ao cotidiano da formação médica acabasse por emergir.
Educação Médica; Educação Profissionalizante; Estudantes de Medicina; Currículo
Recent studies point to the importance of more comprehensive investigations about the universe of medical education, emphasizing the complex scenario of attitudes involved. Although the course is exhausting, medical students participate in a wide range of extracurricular activities during graduation, thus aggregating multiple experiences to their academic curricula. Using triangulation of methods, this study assessed how medical students perceive their extracurricular activities and the role these play in their education. The study was conducted based on 3 strategies: 1) Questionnaires applied to 1st-6th-year medical students (n = 423); 2) Individual interviews (n = 24); 3) Interviews with two focal groups (n = 14). Qualitative data analysis shows that the medical students identify their involvement in extracurricular activities and/or programs as attempts to fill in curricular gaps, interact with colleagues, supplement the graduation course, increase their well-being and answer to professional queries, in summary, a variety of motivations The individual and collective dimension of this methodology allowed all heterogeneity inherent to the everyday life of medical education to emerge.
Education, Medical; Education, Professional; Students, Medical; Curriculum
PESQUISA
Atividades extracurriculares: multiplicidade e diferenciação necessárias ao currículo* Endereço para correspondência: Cristiane Martins Peres Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP Av. Bandeirantes, 3900 - Cep.: 14.049-900 E-mail: cris@fmrp.usp.br
Extracurricular activities: multiplicity and differentiation required for the curriculum
Cristiane Martins Peres; Antonio dos Santos Andrade; Sérgio Britto Garcia
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Cristiane Martins Peres Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP Av. Bandeirantes, 3900 - Cep.: 14.049-900 E-mail: cris@fmrp.usp.br
RESUMO
Estudos recentes apontam a importância de investigações mais abrangentes sobre o universo da formação médica, ressaltando que esta é constituída por um complexo quadro de atitudes. O curso é extenuante e, mesmo assim, os estudantes se envolvem com uma infinidade de atividades extras durante a sua formação, construindo um vasto currículo paralelo. Por meio da "triangulação metodológica", investigaram-se as concepções de estudantes de Medicina sobre as vivências e papéis das atividades extracurriculares. O estudo buscou o diálogo entre três diferentes estratégias: aplicação de questionário aos estudantes do primeiro ao sexto ano de Medicina (n = 423), entrevistas individuais (n = 24) e entrevistas em dois grupos focais (n = 14). Os dados revelaram que os estudantes de Medicina identificam seu envolvimento com atividades extracurriculares como uma tentativa de preencher lacunas curriculares, integrar-se com colegas, suplementar o curso, obter bem-estar, atender a indagações profissionais, enfim, múltiplas motivações. A dimensão individual e coletiva da metodologia permitiu que toda a heterogeneidade relativa ao cotidiano da formação médica acabasse por emergir.
Palavras-chave: Educação Médica; Educação Profissionalizante; Estudantes de Medicina; Currículo.
ABSTRACT
Recent studies point to the importance of more comprehensive investigations about the universe of medical education, emphasizing the complex scenario of attitudes involved. Although the course is exhausting, medical students participate in a wide range of extracurricular activities during graduation, thus aggregating multiple experiences to their academic curricula. Using triangulation of methods, this study assessed how medical students perceive their extracurricular activities and the role these play in their education. The study was conducted based on 3 strategies: 1) Questionnaires applied to 1st-6th-year medical students (n = 423); 2) Individual interviews (n = 24); 3) Interviews with two focal groups (n = 14). Qualitative data analysis shows that the medical students identify their involvement in extracurricular activities and/or programs as attempts to fill in curricular gaps, interact with colleagues, supplement the graduation course, increase their well-being and answer to professional queries, in summary, a variety of motivations The individual and collective dimension of this methodology allowed all heterogeneity inherent to the everyday life of medical education to emerge.
Key-words: Education, Medical; Education, Professional; Students, Medical; Curriculum.
INTRODUÇÃO
Um trabalho extracurricular, num grupo[...] As atividades trazem idéias novas que fogem da realidade do currículo, daquela linha preestabelecida do curso. Então, às vezes, a gente fixa muito no curso e esquece um pouco das novas idéias que também estão interligadas e que não são trabalhadas na graduação. (estudante 3º ano)
Considerando-se as discussões na literatura e o contexto sociocultural e econômico, pode-se pressupor que as finalidades da educação superior não são simples nem unidimensionais, mas envolvem, ao contrário, um conjunto intencional e subjetivo que torna a formação profissional mais abrangente do que somente as ações educativas encontradas numa estrutura curricular. Desde a década de 1980, intensificou-se o número de trabalhos que têm evidenciado o impacto do contexto universitário, constituído tanto pelas atividades do currículo formal, que são obrigatórias, quanto pelas extracurriculares, não obrigatórias, sobre o desenvolvimento psicossocial e cognitivo do estudante na universidade¹. Nessa perspectiva, subentende-se que exista o currículo formal, manifesto e previsto, que expõe os alunos a determinadas experiências e prevê aulas, trabalhos práticos e exames; e o informal ou oculto, que seria o conjunto de experiências e estímulos que o estudante recebe sem que tenham sido previstos nem planejados pelas instâncias instituídas².
O tema atividades extracurriculares é tratado na literatura sob nomenclaturas, óticas e segmentos distintos que podem indicar a singularidade e a intencionalidade do estudo. As atividades extracurriculares podem ser entendidas como aquelas que não são concebidas com características obrigatórias, mas se encontram sob a responsabilidade da instituição e fazem parte do currículo de formação³. Nas investigações em educação médica, as atividades extracurriculares são comumente configuradas como "currículo paralelo". Essa terminologia segue a idéia de paralelismo, pois as atividades realizadas pelos estudantes são desenvolvidas simultaneamente ao currículo oficial4.
As experiências não planejadas abrangem uma gama de possibilidades tão vasta que Maia5 preferiu criar certa distinção entre elas. Denominou currículo paralelo as "experiências que o aluno busca espontaneamente no âmbito da própria instituição, como é o caso de estágios em serviços e laboratórios". E chamou de currículo informal as experiências que contribuem para a formação, como os plantões em serviços de emergência, ou em estágios em serviços, mas são procuradas pelo estudante fora da instituição. Acrescenta que a escola pode ter conhecimento do que ocorre nos currículos paralelo e informal de seus estudantes, mas, geralmente, essas experiências não são transpostas para o currículo planejado, seja por "falta de desejo político ou por dificuldades materiais". Quais seriam as reflexões que as atividades extracurriculares suscitam sobre aspectos do curso médico?
Há dois referenciais fundamentais que as diversas formas de organizar um currículo revelam: tendências que consideram as disciplinas como ponto de partida e referencial básico na organização de seus conteúdos; propostas globalizadas que integram os conteúdos em torno de uma situação ou bloco temático6. Compreende-se que o "saber" em curso, expresso por meio de suas concepções curriculares e seus procedimentos organizacionais (departamentos), resulta de visões específicas da realidade que incidem sobre a epistemologia do conhecimento, os valores e as motivações dos alunos7. Poder-se-ia inferir que as atividades extracurriculares podem assumir tanto o lugar de produto em um currículo oculto, como, ao mesmo tempo, podem produzi-lo.
É possível fazer, inclusive, analogia sobre o atual momento do Brasil, pois, ao mesmo tempo em que temos a economia formal no mundo contemporâneo (currículo oficial), há uma economia informal que cresce (currículo paralelo), levando a um questionamento sobre o que estaria ocorrendo.
Alguns estudos avaliam que a incorporação de atividades extracurriculares na formação médica desvela a crise do currículo médico diante do mercado de trabalho público ou da atuação futura do profissional liberal. Assim, a causa do conjunto de atividades extracurriculares que os alunos desenvolvem traria a idéia de subversão da ordem na escola, da estrutura curricular formal estabelecida em um curso médico8.Moreira9, ao pesquisar a temática "currículo", admite a importância da articulação entre os diferentes elementos enfatizados em cada concepção sobre "currículo". Mas prefere considerar o conjunto de conhecimentos oferecido pela escola como matéria-prima para o conceito sobre currículo. Na realidade, há uma preocupação, por parte dessa área de investigação, com as diferentes concepções, a fim de evitar uma possível flexibilização conceitual.
Contudo, não se trata da generalização de um conceito, mas da abrangência dos elementos presentes na formação do estudante. Ao se optar pela utilização da denominação atividades extracurriculares, não houve a ilusão de que se conseguiria abarcar todas as intenções deste estudo, mas distingui-las das que são normalizadas pelas redes formais da instituição como obrigatórias para a certificação profissional do estudante.
Compreender as causas referentes ao envolvimento dos estudantes nessas atividades vem suscitando interesse em investigações produzidas no interior dos cursos médicos10. Várias razões são citadas nesses estudos para explicar tal situação, como a necessidade, sentida pelo estudante, de aquisição de conhecimentos e novas experiências que complementem o currículo, a necessidade de urgência em vivenciar o ser médico por meio de aprendizados significativos, a definição profissional e, também, em alguns casos, motivos de ordem econômica11. O estudante traz consigo uma visão idealizada da Medicina e, durante o processo inicial de desidealização do curso, acrescenta certa sensação de exclusão. Ao entrar na universidade, o estudante se distancia dos grupos de origem e sai em busca da concretização de novos vínculos e de experiências que o levem a se sentir parte daquele grupo social12.
Cada interpretação sobre as causas brota em virtude de um contexto institucional específico, mas que, à sua maneira, reflete a ausência de formação profissional adequada ao aprendizado das competências e habilidades que respondam ao cenário atual da saúde. As realidades educativas são paradoxais e, freqüentemente, contraditórias. Por essa razão, o educador português Antônio Nóvoa nos adverte que "todo o esforço teórico para tentar compreendê-las tem de fugir às linearidades explicativas e refletir a complexidade das posições em confronto"13.
O DIÁLOGO ENTRE TRÊS ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
Para compreender a heterogeneidade crescente e a diversidade de interesses presentes nas vivências dos alunos em atividades extracurriculares durante a formação médica, este estudo procurou se valer da combinação de estratégias de investigação capazes de apreender as dimensões qualitativas e quantitativas da temática. Por meio da triangulação metodológica, manifestou-se um caleidoscópio de dados14. E, para analisar esse diálogo entre as múltiplas e heterogêneas estratégias de coleta, a orientação hermenêutico-dialética foi seu norte15.
Procedimentos metodológicos
PRIMEIRA ETAPA QUESTIONÁRIO ESTRUTURADO
Inicialmente, aplicou-se um questionário estruturado aos estudantes do primeiro ao sexto ano (n = 602), buscando identificar as atividades extracurriculares vinculadas ao contexto universitário e levantar as motivações envolvidas nessas participações e o grau de envolvimento dos estudantes. Todas as turmas foram visitadas pela pesquisadora em um determinado dia de aula previamente cedido pelos professores, ocasião em que os objetivos e a metodologia da pesquisa foram apresentados aos potenciais participantes.
Todos os alunos que concordaram em participar, após assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido, foram incluídos para responder ao questionário. Este questionário continha, em sua parte final, um convite para o estudante participar de uma segunda fase da pesquisa, em que, por meio de entrevistas individuais, se buscaria um aprofundamento do tema.
SEGUNDA ETAPA ENTREVISTA INDIVIDUAL
Aqueles que aceitaram participar dessa fase de entrevista individual foram contatados por correio eletrônico ou telefone e solicitados a confirmar sua disponibilidade e a comparecer em determinada sala da instituição em um prazo definido, o que serviu também como critério de seleção da amostra. Quanto ao perfil dos participantes, estudantes de Medicina do primeiro ao sexto ano (n = 24), a pesquisa procurou certa representatividade em termos das variáveis ano do curso, sexo e participação ou não em atividades extracurriculares vinculadas ao campus universitário para, assim, atender a critérios de seleção sugeridos em métodos qualitativos16, como a definição de um conjunto de informantes relevante e diversificado que possibilitasse a apreensão de semelhanças e diferenças.
A estratégia adotada, comumente utilizada pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em Sociodrama Educacional17, é uma proposta menos estruturada, quase projetiva, que favorece manifestações verbais mais profundas dos sujeitos. Foram confeccionados quatro cartões temáticos que foram apresentados, um a um, aos entrevistados e que contemplaram os seguintes temas: 1) minha opção pela Medicina; 2) meu curso médico; 3) minhas atividades extracurriculares; 4) minha aspiração profissional. A cada tema proposto, a entrevista seguiu três momentos:
Evocação: o entrevistado pensa sobre o tema;
Enunciação: o entrevistado escreve sobre o tema;
Entrevista: o entrevistado fala livremente sobre o tema, e esse momento passa a ser gravado pelo pesquisador.
TERCEIRA ETAPA ENTREVISTA EM GRUPO FOCAL
Nesta etapa, a estratégia de coleta de dados ocorreu por meio de dois grupos focais com três encontros e sete participantes em cada um. Morgan18 considera Grupo Focal como uma técnica de coleta de dados sobre determinada temática, que, na essência, é previamente definida pelo interesse do pesquisador. Contudo, ressalva que o pesquisador deve ser flexível em relação à demanda do grupo e estar ciente de que os dados, por si mesmos, são trazidos pela interação grupal.
Cada encontro teve como referencial de apoio o Sociodrama Educacional, que norteou a construção do roteiro semi-estruturado e orientou a forma como as propostas temáticas seriam conduzidas em meio à dinâmica grupal. A opção por este modelo teórico-metodológico possibilitou à estratégia de entrevista em grupo focal ganhar matizes de espontaneidade e criatividade, além de proporcionar uma dinâmica que permitisse ao investigador conhecer mais profundamente a dialética presente no grupo e na instituição investigada19,20. Nesse caso, o investigador procurou facilitar as interações entre os participantes para que a intersubjetividade se configurasse, e o grupo se tornasse autogestivo. Esse referencial foi eleito, inclusive, por suas contribuições quanto à possibilidade de uma análise institucional dos dados e por possibilitar que conflitos e contradições relativos ao tema pudessem emergir21,22.
DADOS LEVANTADOS POR MEIO DA TRIANGULAÇÃO METODOLÓGICA
Questionários: Houve a adesão de 70,3% de estudantes nessa etapa. As freqüências e percentuais obtidos demonstraram que os estudantes que participam ou participaram de atividades extracurriculares vinculadas ao contexto universitário se comprometem com várias delas simultaneamente, sendo que do primeiro ao quarto ano eles despendem mais de 8 horas semanais. Não foram encontradas diferenças significativas em relação ao sexo e à idade dos participantes.
A Figura 1 demonstra as atividades extracurriculares em que ocorreram percentuais de participação iguais ou superiores a 20% dos estudantes nos três primeiros anos do curso. O N em cada ano corresponde ao número de alunos que participam de pelo menos uma atividade extracurricular, segundo os dados obtidos por meio do questionário.
A participação em Ligas Acadêmicas foi a atividade mais freqüentemente relatada pelos estudantes do primeiro ao terceiro ano, e "aproximar-se da prática médica" foi o principal motivo apontado nesse quesito. As Ligas estão vinculadas ao Centro Acadêmico da instituição. Embora exista a exigência de um docente responsável, a maioria atua com um orientador que não participa de todas as atividades. No presente estudo, foram encontradas 14 Ligas estudantis. Todas elas envolvem a participação em estudos, palestras e jornadas relacionadas a temáticas médicas, campanhas e eventos públicos, com enfoque na promoção de saúde na comunidade, sendo que algumas colocam os estudantes em situações da prática médica.
No caso do Programa de Tutoria, a maior concentração de participação ocorreu no primeiro ano, correspondendo a 43% dos alunos. Esse dado pode ser justificado pelo fato de esse programa ter sido implantado recentemente e ser direcionado principalmente para questões relacionadas ao período de adaptação dos estudantes do primeiro ano. Quanto à razão que levou o aluno a participar, o quesito mais apontado foi "influência de conhecidos" junto com a opção "outros", na qual foi praticamente unânime a seguinte motivação: "obter uma visão mais ampla do curso e da Medicina".
A Figura 2 demonstra as atividades extracurriculares em que ocorreram percentuais de participação iguais ou superiores a 20% dos estudantes nostrês últimos anos do curso. O N em cada ano corresponde ao número de alunos que participam de pelo menos uma atividade extracurricular, segundo os dados obtidos por meio do questionário.
Em relação às participações dos estudantes do quarto ao sexto ano em Ligas, percebe-se ainda um grande percentual de envolvimento dos acadêmicos no quarto ano. Contudo,já no quarto ano e principalmente no quinto, o envolvimentose restringe basicamente às vivências da prática clínica que são promovidas junto aos alunos de anos anteriores, não havendo, assim, uma participação constante. No sexto ano, os estudantes optam por atividades extracurriculares cujo retorno é direcionado para eles mesmos e que são desenvolvidas nos espaços intracampus, provavelmente pela intensificação da carga horária acadêmica nesse final de curso. Inclusive, os estudantes dos três últimos anos apontaram que suas participações em atividades de iniciação científica e monitorias foram motivadas pela contribuição para ocurrículo.
A participação nas atividades da Associação Atlética Acadêmica, que englobava, na época do estudo, 23 modalidades esportivas, ainda teve um envolvimento significativo dos estudantes nesse momento final do curso,como mostra a Figura 2. É possível que nesse momento o esporte atenda à necessidade de amenizar as fontes de tensão relativas a esse período.
A participação em atividades de extensão, durante todo o curso, assim como nas atividades culturais propiciadas pelo campus, apesar de constar no questionário entregue ao aluno, não obteve um índice significativo que justificasse sua visualização. Particularmente no caso da extensão, o estudo observou que muitas atividades desenvolvidas pelas Ligas seguem o mesmo perfil da extensão, mascarando, portanto, a fidedignidade desses resultados.
Estudos vêm sendo desenvolvidos com a finalidade de compreender, por meio de uma perspectiva integral, o impacto do período de formação profissional na vida dos estudantes universitários3,23,24. As atividades extracurriculares reveladas nesses estudos são de natureza distinta e contribuem de forma diferenciada para mudanças pessoais no universitário. Essas contribuições se concentram principalmente em cinco domínios principais: conhecimentos e habilidades acadêmicas; complexidade cognitiva; competência prática; competência interpessoal; e humanitarismo. Nessa mesma direção, este estudo encontrou um caleidoscópio de motivações envolvidas na adesão e permanência dos estudantes em atividades extracurriculares que reforçou a decisão de agregar outros instrumentos metodológicos de investigação.
Entrevista individual: Essa segunda etapa permitiu a auto-reflexão do participante, levando ao aprofundando da temática. Os participantes expressaram motivações como: "faço porque quero aprofundar meus conhecimentos"; "faço porque me traz bem-estar"; "faço porque me propicia autonomia...":
[...] ter participado de Liga no primeiro ano foi bem interessante. Eu não entendia nada do que estava acontecendo, mas só de botar o jaleco, ir lá, ver os mais velhos atendendo era uma coisa que me fazia sentir um pouco médico, era ótimo! Acho que é uma coisa de encarar o papel. (estudante 5º ano).
Rego25 já havia assinalado, em seu estudo sobre estágios da prática médica, que os alunos desejam complementar sua formação porque consideram que, nessas experiências, longe da supervisão docente, podem desfrutar de uma autonomia que não precisa ser compatível com seu nível de formação, permitindo que não sejam meros espectadores da realidade.
Nas transcrições das falas, foram apresentadas razões como convívio, complementação do curso, aproximação da prática médica, remuneração, visão mais crítica do conhecimento, distanciamento do ambiente escolar, entre outras. Contudo, de algumas vivências emergiram questões que contribuíram para a desistência de algumas participações, como tempo consumido, semelhança com a atividade curricular, cobranças dos colegas, obrigatoriedade: "[...] Você vai lá... é opcional. Mas você se sente meio obrigado a cumprir algumas coisas... Ela se torna obrigatória. [...]" (estudante 4º ano).
Entrevista em grupo: Diferenciou-se em relação à entrevista individual, possibilitando o advento de novas considerações sobre o tema. Nesse modelo, o entrevistado não está sozinho perante o investigador, o que pode diminuir algumas resistências, mas, em contrapartida, a irredutibilidade das contradições presentes pôde emergir em cada grupo. As percepções individuais que, em sua maioria, delinearam as atividades extracurriculares de forma objetiva, puderam ser confrontadas durante a estratégia em grupo focal. Cada membro pôde manter ou modificar a postura que havia assumido nas etapas individuais e abriu espaço para a relativização de concepções. A dinâmica grupal torna-se, assim, experiência válida contra o modelar e o normalizar de nossa sociedade.
A diferença entre os indivíduos, a ser exposta, não é escamoteada. [...] Se a singularidade encontra obstáculos no projeto de grupo, é ela que o fecunda, é dela que nasce entre os indivíduos a identidade que faz do coletivo, Grupo26.
No primeiro encontro, o grupo foi conduzido de forma que não se ativesse somente à descrição das atividades de que participa, mas como as vivencia, deixando aflorar sentimentos e mobilizando os participantes a refletir sobre os significados dessas vivências.
Logo no início da dinâmica grupal, as vivências foram correlacionadas pelos estudantes à necessidade de compensar as frustrações relativas ao seu curso médico.
[...] Eu realmente tinha que fazer várias coisas que eu gostasse muito pra poder compensar a faculdade que é muito chata! (risos). E que exige muito da gente! Então, eu acho que a gente tem que ter um lazer muito bem estruturado pra conseguir dar conta da graduação! [...] (estudante 3º ano).
Os relatos sobre as vivências foram se desdobrando concomitantemente aos conflitos relativos ao grau de comprometimento do tempo livre que resulta dessas participações em atividades extracurriculares. Num segundo momento, realizou-se a aproximação conceitual com a proposta "Como defino atividades extracurriculares...", articulando as concepções com as vivências experimentadas.
Todo o segundo encontro ocorreu em torno de aproximação avaliativa do tema, trazendo os custos e benefícios decorrentes da participação em atividades extracurriculares.
[...] Com relação a essas atividades ligadas à faculdade, assim, embora eu reconheça o valor, eu acho que é o valor pessoal. Depende do que você quer, depende da cara que você vai querer dar à sua profissão! [...] (estudante 6 º ano)
No terceiro encontro, em aproximação projetiva do tema, foi oferecido aos participantes um contexto social imaginário, no qual os alunos puderam projetar suas concepções sobre um currículo ideal para o curso médico.
[...] Eu acho que, talvez, não sei... em volta desse... o currículo seria uma coisa... nuclear, mesmo. Deixar espaço para você... montar o que você gostaria de preencher. [...] você poderia preencher com... lazer, com seu desenvolvimento pessoal [...]. (estudante 3º ano).
Em consonância com o contexto atual de reformulações nos cursos médicos, os estudantes trouxeram, para seu curso imaginário, a busca da flexibilização curricular necessária à inserção do estudante em cenários médicos reais como forte componente de aprendizado profissional.
Então, ao se efetuarem mudanças curriculares, será que as atividades extracurriculares se modificariam? Permaneceriam? Ou algo sempre poderia escapar?
Havia um sentimento de falta de lazer que perpassava todos os encontros dos dois grupos, e o fator tempo assumiu o papel de vilão e de mocinho nas relações com o curso e com a vida pessoal. As mesmas regras de uma atividade laboral apareceram cerceando o tempo livre dos estudantes e exercendo um poder invisível de persuasão.
Muito gratificante foi perceber o quanto a triangulação de estratégias metodológicas pôde contribuir para o aprofundamento da temática e levar o grupo ao questionamento de mitos e conflitos.
[...] A carga horária excessiva, porque eu não sei, assim, se isso é uma cultura da população... O médico tem que ser dedicado totalmente aos seus pacientes e ao hospital. Não sei se isso vem dessa cultura... que o curso tem que ser assim, ou se precisa ser assim mesmo, porque senão a gente não vai ser um bom profissional [...].(estudante 5º ano).
Qualquer organização social que realmente objetive o desenvolvimento do indivíduo deveria, em sua essência, reconhecer que proporcionar um aprendizado com prazer e criatividade seria a premissa básica para o sustento dos princípios de liberdade, democracia e transformação. Nessa direção, Batista27 afirma que "pensar o ensino médico no contexto atual exige a ousadia de não enquadrar as demandas em velhos modelos de aprendizagem, mas a lucidez de encontrar, nas situações concretas, suas potencialidades de formação".
É premente trazer à baila a questão da homogeneização dos discursos e práticas, tanto para elucidar as políticas públicas de saúde, como para refletir sobre as propostas de reformulações curriculares dos cursos médicos28. A "Micropolítica", proposta por Deleuze e Guattari29, fornece referenciais para entender a necessidade da universidade autogestiva atrelada à concepção da integralidade. Esses referenciais alertam para o perigo da autogestão modelizadora, do centralismo democrático que se serve dos grupos, das assembléias para se chegar à imposição de um novo modelo. Um outro modelo único para substituir o vigente. Para os princípios micropolíticos, não se deve eliminar a diferença, ao contrário, deve-se promover a "diferenciação" a partir da "integração" da mesma, pois só a diferenciação pode contemplar a singularidade do homem no seu devir.
Mas existe um ponto para onde convergem todas as singularidades, onde os humanos se identificam: a vida, a afirmação da vida. Afirmar a vida deveria ser o valor único e exclusivo. Um princípio que, ao se manifestar, respeite todas as diferenças, pois a vida não segue modelos, ela se manifesta diferente, continuamente, numa multiplicidade de espécies. Assim, cada ser humano afirma a sua vida em acordo com a sua singularidade.
Para a vida, é importante a Medicina, e, para a formação em Medicina, é importante que qualquer atividade possibilite aliar a vida àquela experiência de aprendizagem.
Será que a melhor compreensão das participações extracurriculares não poderia suscitar reflexões sobre as insuficiências curriculares e, concomitantemente, sobre as atitudes que se constituem em conserva cultural e concorrem para a cultura de descrédito da formação médica?
A estrutura de papel presente em todo contexto social é constituída por componentes cristalizados, internalizados num processo de identificação como grupo instituído. Mas, ao mesmo tempo, contém necessariamente os "componentes de resistência, que resultariam do movimento dialético em direção à superação da imposição social dos papéis"18.
É preciso investigar os processos educacionais, que são, em última instância, tentativas de mudança social. Avaliar se um tipo específico de mudança social, uma intervenção que vise à mudança de valores não deveria considerar o modus faciendi (hábitos, ritos, tradições, normas) que pode ser identificado no cerne de participações extracurriculares.
Quanto à diversidade das vivências e percepções levantadas pelo estudo, foi possível captar um amplo mosaico que deve ser contemplado como tal. Afinal, é da natureza humana o diferente em consonância com o singular, a heterogeneidade crescente e a diversidade de interesses. Encontrar o caminho da harmonia no contexto da formação médica, certamente, passa pela formação de grupos autogestivos, nos quais a reflexão é partilhada na dimensão do coletivo.
Aprovado em: 24/09/2006
Conflito de Interesse Declarou não haver
* Trabalho vencedor do Prêmio ABEM/2006 de Educação Médica, no 44° Congresso Brasileiro de Educação Médica,realizado no período de 21 a 24 de setembro de 2006, em Gramado, Rio Grande do Sul, Brasil. (2º Lugar).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Abr 2008 -
Data do Fascículo
Dez 2007
Histórico
-
Recebido
24 Set 2006